Resumo: O texto busca analisar o contexto derredor do surgimento da noção de bem jurídico-penal, identificando os influxos históricos que o ocasionaram e que repercutiram nas suas características, afeitas ao paradigma teórico do período.
Palavras Chave: Direito Penal. Bem Jurídico-Penal. História do Direito Penal. Estado Moderno.
A Teoria do Bem Jurídico há muito tem guarida no Direito Penal a fim de indicar a que fim se prestará a qualificação de determinadas condutas como crimes e com que objetivo se está a assim qualificá-las e, ulteriormente, puni-las com uma sanção penal. Com efeito, entende-se que o Direito Penal cuida da repressão dos atos que lesionam ou exponham a perigo bens jurídicos, como bem salienta Aníbal Bruno ao anotar que: “a idéia de que a ofensa ou ameaça a um bem jurídico é o caráter substancial do fato punível tornou-se geral na doutrina” (BRUNO, 2005, p. 176).
Nesse paper, procura-se analisar o advento histórico de surgimento da noção de bem jurídico-penal, haja vista que ela se liga, umbilicalmente, à história moderna [sobretudo considerando as tentativas de contenção do poder estatal e de legitimação das punições] do direito penal[1]. Com efeito, a história do bem jurídico confunde-se, a partir de um determinado ponto, com a própria história do direito penal e dos influxos teóricos que o alcançaram. Nesse ponto, o estudo da gênese do bem jurídico-penal contribui com o entendimento de suas características e finalidades.
O embrião da ideia de bem jurídico exsurge com o período histórico do iluminismo, momento em que, com a ascensão econômica definitiva da burguesia, o estado absolutista passa a ser combatido. Como bem salienta Luiz Regis Prado [abordando a gênese da construção ora examinada]: “a idéia de objeto jurídico do delito nasce com o movimento da ilustração e com o surgimento do Direito Penal moderno” (PRADO, 2009, p. 17).
O absolutismo foi o modelo que seguiram os estados europeus no período que antecedeu as grandes revoluções [estas que deram origem aos Estados modernos e, outrossim, ao Direito Penal moderno]. Neste momento, a burguesia crescia e acumulava capital, enquanto financiava os monarcas para que eles mantivessem uma ordem [que compreendia unidade de medidas, conservação de estradas, segurança] que impulsionava o seu crescimento[2]. Leo Huberman bem explana essa relação entre monarca e burguesia, ao tempo em que colaciona acurada lição de Boissonnade sobre a matéria (BOISSONADE apud HUBERMAN, 1986, p. 76):
“[…] O estado nacional predominava porque as vantagens oferecidas por um governo central forte, e por um campo mais amplo de atividades econômicas, eram do interessa da classe média como um todo. Os reis sustentavam-se com o dinheiro recolhido da burguesia, e dependiam, cada vez mais, de seu conselho e ajuda no governo de seus crescentes reinos. Os juízes, ministros e funcionárias vinham, em geral, dessa classe. Na França do século XV, Jacques Coeur, banqueiro de Lião e um dos homens mais ricos da época, tornou-se conselheiro real. Na Inglaterra dos Tudor, Thomas Cromqell, advogado, e Thomas Gresham, merceeiro, chegaram a ministros da Coroa. ‘Um pacto tácito foi concluído entre ela [a realeza] e a burguesia industrial de empreendedores e empregadores. Colocavam o serviço do Estado monárquico sua influência política e social, os recursos de usa inteligência e sua riqueza. Em troca, o Estado multiplicava seus privilégios econômicos e sociais. Subordinava a ela os trabalhadores comuns, mantidos nessa posição e obrigados a uma obediência rigorosa’.
Era um exemplo perfeito do provérbio “Uma mão lava a outra”.
No período absolutista, os burgueses já detinham grande poderio econômico, contudo, isto não se significava influência política proporcional. Ademais, as crenças de que um Estado Absoluto proporcionaria crescimento econômico e industrialização não se mostraram tão acertadas quanto se imaginava: mostrava-se deveras oneroso [para burgueses e trabalhadores] sustentar clero e nobreza que em nada contribuíam ao erário (HAZEN, 1932, p. 128 e 129). Com efeito, a nobreza e o clero parasitavam o Estado que, destarte, onerava as demais pessoas para manter o luxo da elite social. É dizer, as classes altas acumulavam conforto e riquezas, enquanto a burguesia lhe fornecia dinheiro e os trabalhadores a força braçal [além dos recursos que possuíssem][3].
O Estado Absoluto tornara-se, destarte, um instrumento de automanutenção do poder da elite. Nesse sentido, não atendia aos interesses da burguesia que outrora o impulsionara e, outrossim, não servia às demandas do campesinato que padecia da fome e dos altos tributos. Este é o contexto de superação do absolutismo, com o surgimento dos ideais dos Estados modernos, máxime no que toca a garantia esfera de direitos dos indivíduos [que já não se resignavam com as arbitrariedades] ante o poder estatal, e, com eles, a teoria do bem jurídico-penal.
No período do mercantilismo se identifica, nessa trilha, enfraquecimento do Estado Absoluto, devido a testilha que se amoldou entre elite e demais classes[4]. Posteriormente, em consequência do embate, dá-se o advento do Estado burguês, que tem como fundo teórico a teoria do contrato social, entendido como pacto que advém da necessidade de união das pessoas para sobreviver. Trata-se de uma virada política e também ideológica que teve papel fulcral na ascensão da teoria do bem jurídico-penal. Veja-se o quanto delineara Rousseau ao cunhar a teoria de que ora se trata (ROUSSEAU, 2005, p. 31):
“Contemplo os homens chegados ao ponto em que os obstáculos danificadores de sua conservação no estado natural superam, resistindo, as forças que o indivíduo pode empregar, para nele se manter; o primitivo estado cessa então de poder existir, e o gênero humano, se não mudasse de vida, certamente pereceria.
Como os homens não podem criar novas forças, mas só unir e dirigir as que já existem, o meio que têm para se conservar é formar por agregação uma soma de forças que vença a resistência, com um só móvel pô-las em ação e fazê-las obrar em harmonia”.
A referida teoria do contrato social consiste, pois, consoante Rousseau, em apontar como fundamento da formação da sociedade a sobrevivência de cada indivíduo e que, portanto, cada pessoa cede apenas uma parcela [a mínima necessária] de sua liberdade ao Estado, que deverá tutelar cada pessoa, mas apenas na medida em que fora disposta. Trata-se de visão eminentemente individualista, nesse sentido, Cesare Beccaria assinalou, correlacionando contrato social e o direito de punir, que (BECCARIA, 2007, p. 19 e 20):
“[…] somente a necessidade obriga os homens a ceder uma parcela de sua liberdade; disso advém que cada qual apenas concorda em pôr no depósito comum a menor porção possível dela, quer dizer, exatamente o que era necessário para empenhar os outros em mantê-la na posse do restante.
A reunião de todas essas pequenas parcelas de liberdade constitui o fundamento do direito de punir. Todo exercício do poder que deste fundamento se afastar constitui abuso e não justiça; é um poder de fato e não de direito; constitui usurpação e jamais um poder legítimo.
As penas que vão além da necessidade de manter o depósito da salvação pública são injustas por sua natureza; e tanto mais justas serão quanto mais sagrada e inviolável for a segurança e maior a liberdade que o soberano propiciar aos súditos”.
Vê-se que a liberdade, nesse contexto, fora sacralizada e que as pessoas só poderiam ser apenadas conforme o necessário. Demais disso, as pessoas, no contrato social, cediam a menor parcela possível de sua liberdade ao Estado, para garantir a vida comum. Não se poderia pensar, portanto, em legitimidade das penas que ultrapassassem essas medidas.
A partir deste momento, não havia mais como fundamentar o jus puniendi na relação entre o divino e o Estado [em face da ocorrência da laicização do Estado e, outrossim, da busca pela separação entre direito e moral][5], de modo que ela passa a ser a retribuição à perturbação da ordem acordada entre os homens e consagrada pelas leis. O crime deixou de ser uma agressão ao rei, para se tornar uma violação ao contrato social. A dignidade humana passou a ser limite do poder de punir [inclusive repercutindo nos métodos de punição] como bem percebe Foucault (FOUCAULT, 2000, p. 64):
“[…] nessa época das Luzes, não é como tema de um saber positivo que o homem é posto como objeção contra a barbárie dos suplícios, mas como limite de direito, como fronteira legítima do poder do poder de punir. Não o que ela tem de atingir se quiser modificá-lo, mas o que ela deve deixar intacto para estar em condições de respeitá-lo. Noli me tangere. Marca o ponto de parada imposto à vingança do soberano. O ‘homem’ que os reformadores puseram em destaque contra o despotismo do cadafalso é também um homem-medida: não das coisas, mas do poder”.
O Estado, pois, consoante o ideário iluminista, passa a ter, declaradamente, a função de resguardar os homens e a vida em comum. Reclamou-se, destarte, por algo que legitimasse a imposição de penas às pessoas pelo ente estatal, pois, afinal, tais sanções implicavam [e ainda implicam] sérias restrições de direitos das pessoas.
Nesse contexto, em razão do surgimento do ideário iluminista e busca pela limitação do poder estatal [outrora absoluto], que surge a noção de bem jurídico-penal [que se desenvolve até os dias atuais, apenas obtendo repercussão e amplitude cada vez maiores na doutrina penal] a indicar que o direito penal apenas seria instrumento legítimo de coerção e punição das condutas que lesionassem os bens das pessoas em sociedade[6].
Ante as considerações acima expostas, conclui-se que a noção de bem jurídico-penal [deveras arraigada na doutrina e dogmática penais hodiernas] surgiu em resposta aos anseios sociais contestadores do Estado Absoluto e com esteio teórico no iluminismo. Desvela-se, outrossim, a relação existente entre o contexto de seu surgimento e seus contornos eminentemente limitadores do exercício do poder de punir pelo Estado, sobretudo por, desde aquele tempo, cunhar a linha que divide a intervenção penal legítima da ilegítima. Com efeito, a primeira noção de bem jurídico-penal foi cunhada por Feuerbach, e surgiu correlacionada à teoria do contrato social [produção iluminista que propugnava diferente visão Estado, não mais como absoluto, mas pondo em posição de privilégio os direitos individuais], postulando que apenas transgressões aos direitos subjetivos previstos na lei poderiam ocasionar a intervenção penal. É dizer, a partir da ascensão do bem jurídico-penal, os crimes não mais poderiam ser identificados [legitimamente] em condutas que meramente ofendessem a vontade estatal ou seus aspectos ideológicos, mas quando houvesse violação dos direitos da pessoa.
Notas
Informações Sobre o Autor
Rudá Santos Figueiredo
Mestrando em Direito pela Universidade Federal da Bahia Especialista em Ciências Criminais pelo Juspodivm-IELF Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia Professor da Pós-graduação em Ciências Criminais da Faculdade Baiana de Direito Professor de Direito Penal da Faculdade Baiana de Direito Professor de Direito Penal e Processo Penal da Faculdade Salvador-FACSAL Coordenador Adjunto da Pós-graduação em Ciências Criminais da Faculdade Baiana de Direito Coordenador Adjunto da Pós-graduação em Ciências Criminais do Ciclo