Resumo: O presente artigo pretende em linhas gerais e de forma não exaustiva elucidar de maneira progressiva a evolução da discussão cravada ao longo dos séculos por filósofos, estudiosos, cientistas e teólogos acerca do problema da liberdade da vontade, ou melhor, acerca da possibilidade do livre arbítrio. Tal tema é de extrema importância na seara jurídica, haja vista que, o Direito pretende ser a morada da liberdade, garantindo aos sujeitos uma condição de liberdade e igualdade. Para além desta analise, o que se coloca em xeque diante da possibilidade da não existência de um livre agir, são institutos tradicionalmente aceitos em Direito, tais como culpa e dolo, que necessariamente implicam a existência de livre arbítrio. Portanto, com o avanço das pesquisas e estudos acerca desta temática interessantíssima, iremos discorrer acerca do posicionamento dos principais marcos teóricos que buscaram uma resposta para o problema em questão. Iniciaremos expondo o pensamento de Santo Agostinho, logo em seguida, o contraponto proposto por Schopenhauer, que de certa forma revolucionou a visão acerca do tema em questão.
Palavras-chave: Livre Arbítrio – Pecado – Agostinho – Schopenhauer – Vontade
Abstract: This paper aims to broadly and is not limited to progressively elucidate the evolution of discussion spiked over the centuries by philosophers, scholars, scientists and theologians about the problem of freedom of the will, or rather, about the possibility of free will. This topic is of paramount importance in legal harvest, given that the law is intended to be the abode of freedom, subject to a condition guaranteeing freedom and equality. In addition to this analysis, which calls into question facing the possibility of not having a free act, institutes are traditionally accepted in law, such as guilt and guile, which necessarily imply the existence of free will. Therefore, with the advancement of research and studies about this interesting topic we will discuss about the positioning of the main theoretical frameworks that sought an answer to the problem in question. We begin by exposing the thought of St. Augustine, shortly thereafter, the counterpoint proposed by Schopenhauer, which somehow revolutionized the view on the subject in question.
Keywords: Free Will – Sin – Augustine – Schopenhauer – Will
Sumário: 1. O pensamento de Santo Agostinho. 2. A filosofia Agostiniana e a influência Platônica. 3. O problema do Livre Arbítrio. 4. O pensamento filosófico de Schopenhauer: “uma crítica à tudo que já existia”. 5. A liberdade da vontade. 6. Conclusão.
1. O pensamento de Santo Agostinho
Santo Agostinho nasceu em Tagaste na Numídia, próximo a Catargo, no ano de 354, portanto era Africano, convivia em meio a uma realidade diversificada pela presença do império romano cristianizado, e de uma cultura herege e pagã dos nativos da região. Filho de Patrício, magistrado e pagão, homem conhecido por possuir inflamada sensualidade, e temperamento violento; sua mãe Santa Mônica, ao contrário de seu pai, era considerada mulher de grande virtude e profundo espírito cristão.[1]
O filósofo é conhecido por ser uma das figuras mais interessantes de seu tempo, possuindo uma personalidade original e de extrema riqueza que impressionou o mundo, através de suas celebres obras.
O jovem Agostinho inicia seus estudos ainda em sua terra natal, e aos dezesseis anos vai para a cidade vizinha Catargo, lá se apaixona por uma mulher e tem seu primeiro filho, Adeodato. Na mesma época inicia sua jornada filosófica ao ler a obra de Cícero, Hortensio. Tomado por uma vontade de revelação da verdade, busca nas escrituras sagradas uma resposta para o problema filosófico, contudo, se vê frustrado e parte para a leitura maniqueísta para saciar o seu desejo.[2] O dualismo proposto pelo maniqueísmo atraiu Agostinho, que convivia com uma situação parecida em sua vida particular, sempre situado em meio ao bem e o mal, passando por toda sua existência a conviver com a luta entre estes dois princípios inconciliáveis, a seita maniqueísta possui assim um dualismo ontológico-cosmológico que demonstra a realidade com um elemento de salvação.[3]
Após este período, Agostinho começou a lecionar retórica, e iniciou os estudos em astrologia e filosofia. Parte para Milão, local este, que marca o inicio do processo de conversão do filósofo ao cristianismo, e o abandono da seita maniqueísta.[4]
A seita maniqueísta pregava que o mal provinha de Lucífer (Satanás), tratava-se de um ser semelhante a Deus e fonte de todo o mal. Santo Agostinho pretende contrapor essa idéia, pois, para o filósofo, só há Deus. Inexistindo outra entidade que esteja igualdade a Deus e que dê movimento ao mal. Nas palavras de Agostinho: “Em, absoluto, o mal não existe nem para Vós nem para as vossas criaturas, pois nenhuma coisa há fora de Vós que se revolte ou que desmanche a ordem que lhe estabelecestes.”(AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p.188)
Em 386 Agostinho se converte, após uma crise de choro e tomado por um sentimento de angústia e arrependimento, desgraçado consigo mesmo, escutou uma voz infantil que lhe disse: “Tolle, lege”, toma e lê. Neste momento, Agostinho pega em suas mãos o Novo Testamento e ao abri-lo se depara com o livro de Romanos, escrito pelo apóstolo Paulo, em uma passagem que aludia à vida de Cristo ante às vontades carnais, no mesmo momento sente-se transformado e sua vida nunca mais foi a mesma. A partir de então, o filósofo passa a dedicar sua vida inteiramente a Deus e sua atividade teológica e religiosa. Agostinho morreu aos 76 anos de idade em Hipona no ano de 430.[5]
2. A filosofia Agostiniana e a influência Platônica
Autor de diversas obras importantíssimas para a filosofia e teologia, Agostinho expôs em seus livros extrema contribuição à dogmática cristã e à teologia, bem como, significativa contribuição para a conformação de seu pensamento filosófico que perdurou até Hegel, influenciando diversos filósofos e pensadores da época.
Santo Agostinho busca na filosofia helênica, sobretudo nas ideias propostas pelos neo-platônicos, de Plotino e Porfírio, uma aproximação entre o patrimônio filosófico grego ao cristianismo, isto é, o filósofo tratou de fazer uma adaptação das contribuições filosóficas helênicas às necessidades filosóficas da dogmática cristã. Trata-se de uma contribuição ímpar para a teologia, sobretudo no que tange à fixação dos dogmas, bem como, para a metafísica, posteriormente.[6]
Para avançarmos no tema a ser discutido no presente trabalho, antes, faz-se mister expor o problema central da filosofia agostiniana, que em síntese expressa: “Deum et animam scire cupio. Nihilne plus? Nihil omnino.” Quero saber de Deus e da alma. Nada mais? Nada mais em absoluto. Portanto, os temas centrais da filosofia de Santo Agostinho são DEUS e ALMA. Destes temas nasce a denominada tríplice contribuição filosófica agostiniana; a metafísica (Deus no centro da especulação); a filosofia do espírito (o homem em sua intimidade e confissões) e a filosofia da história (ideia de civitas dei).
Neste aspecto, o filósofo africano remete ao pensamento filosófico de Platão, mas com alterações pontuais, pois em Platão temos que o ponto de partida são as coisas, Agostinho ao contrário, irá se apoiar na alma como realidade de intimidade do homem interior, por tal motivo a dialética agostiniana se dá por meio da confissão. Portanto, o movimento de revelação da verdade parte da alma que se eleva do corpo a ela mesma, depois à razão e por último a Deus, que é a luz que ilumina. Outra aproximação ao pensamento platônico, é o de mundo das ideias, que em Agostinho parte do pensamento que Deus criou o mundo do nada, trata-se de um ato de vontade, criou as coisas por um ato de decisão.
3. O problema do Livre Arbítrio
No livro Livre-Arbítrio, uma das principais obras de Agostinho, o teólogo busca revelar uma causa para o mal, após concluir que a origem do mal está vinculada à liberdade da vontade humana, vejamos uma passagem da celebre obra:
“Mas quanto a esse mesmo livre-arbítrio, o qual estamos convencidos de ter o poder de nos levar a pecar, pergunto-me se aquele que nos criou fez bem de no-lo ter dado. Na verdade, parece-me que não pecaríamos, se estivéssemos privados dele […]”[7]
Neste espeque, o problema, objeto de investigação filosófica de Agostinho na obra supracitada pode ser desvelado pelos seguintes questionamentos: O livre-arbítrio é um mal para o homem, haja vista que apenas pecamos porque temos liberdade da vontade? Seria melhor se Deus não nos tivesse dado o livre-arbítrio, e conseqüentemente nos livrado do pecado? Se foi Deus quem nos Deus a liberdade da vontade, não é Ele responsável indiretamente pelo pecado do homem?
“Para Agostinho, a causa do mal deve ser procurada no próprio homem, mais precisamente, deve ser procurada no interior desse, e não somente em seus atos externos […]. Assim, o mal é visto como um exercício de vontade, cuja fonte deve ser buscada na vida interior.”[8]
A hipótese à questão se o livre-arbítrio vem de Deus tem como fundamento dois princípios. O primeiro enuncia que tudo quanto existe fora criado por Deus, donde a asserção de que é por Ele que existimos e que o homem recebe sua bondade por participação na bondade de Deus. Em decorrência deste, advém o segundo princípio, tudo o que é bom procede de Deus. Como a obra Livre-Arbítrio trata-se de um dialogo entre o filósofo e seu amigo Evódio, primeiro, Agostinho certificar-se se tais verdades eram evidentes para seu interlocutor, ou se tais constatações apenas eram firmadas face a um argumento de autoridade. Neste passo, a longa argumentação disposta na obra, cinge-se basicamente a tratar sobre dois pontos fundamentais acerca da ideia de livre-arbítrio. Primeiramente, o que se questiona é se é evidente que Deus existe, para daí (secundariamente) deduzir que o livre-arbítrio é obra de Deus. Por fim, o que o filósofo indaga é se o livre-arbítrio deveria ou não ter sido dado ao homem.
Na busca por uma resposta racional à essas duas verdades (Deus existe) (Todos os bens procedem dele, inclusive o livre-arbítrio), Agostinho discorrerá uma longa argumentação, praticamente, todo o Livro II (cap. 3 ao 17), que se ocupa basicamente na prova da existência de Deus. No presente trabalho não nos interessa demonstrar essas comprovações agostinianas acerca da existência de Deus, nos basta apenas as suas conclusões argumentativas, que demonstram que o livre-arbítrio provém de Deus, e tudo que Deus faz é bom, logo enquanto bem, deveria ter sido dado ao homem.
“Declaro estar suficientemente convencido, e que, até certo ponto, são evidentes, ao menos enquanto é possível nesta vida e em homens como nós, estes dois princípios primários: que Deus existe e que todos os bens procedem Dele.”[9]
Além dos dois princípios já expostos, que Deus existe e que todos os bens procedem dele, Agostinho irá advertir Evódio acerca de outro princípio insurgido nas primeiras páginas do Livro II, capítulo 1, segundo o qual, o filósofo teria indicado que o livre-arbítrio fora dado ao homem, com um objetivo traçado, qual seja, para que este viva retamente. O axioma Deus é justo, neste viés permanece intacto. Ora, se o livre-arbítrio é dádiva de Deus, cabe ao homem utilizá-lo para o bem, caso contrário Deus não seria justo, ao punir o homem pecador, ou ao abençoar o benfeitor, por ter usado livremente do livre-arbítrio para o fim a que lhe foi dado, vejamos o que Marcos Costa expõe acerca do problema do pecado e do livre-arbítrio:
“Não seria ela uma causa natural ou necessitária, já que o livre-arbítrio tem em si a possibilidade natural de inclinar-se para o mal? Se assim for, então o homem não é responsável pelo mal, uma vez que nasceu com tal disposição natural. Em outras palavras, é verdadeiramente livre o homem?”[10]
Portanto, a ideia de livre-arbítrio em Agostinho repousa também sobre outro princípio: o da justiça divina. Ainda neste viés, a de se considerar que caso o homem não fosse dotado de livre-arbítrio inexistiria a culpa ou dolo, portanto, não caberia a aplicação de um castigo, ou determinada retribuição em virtude do seu agir, pois seriam condutas não volitivas.
“[…] o pecado inverte a ordem: os seres racionais, utilizando-se mal das criaturas, transformam a ordem do universo; sua corrupção não é natural e nisso consiste propriamente o mal.”[11]
Outro aspecto é que, se o a liberdade da vontade tivesse sido atribuída apenas com o intuito de levar o homem ao pecado, não caberia castigo, pois trata-se de situação que se assemelha ao instituto penal do flagrante preparado, no qual o agente não tem outro opção, outra saída, sendo inevitável a provocação do resultado, neste caso, o pecado. Logo, para Agostinho a existência da vontade livre é a condição de possibilidade da manifestação da conduta reta dos homens, e assim benção ou a maldição recaem sobre o homem como justiça, vejamos:
“É verdade que o homem em si seja certo bem e que não poderia agir bem, a não ser querendo; seria preciso que gozasse de vontade livre, sem a qual não poderia proceder dessa maneira […]. Há, pois, uma razão suficiente para ter sido dada, já que sem ela o homem não poderia viver retamente. Ora, que ela tenha sido dada para esse fim pode-se compreender logo, pela única consideração de que, se alguém se servir dela para pecar, recairão sobre ele os castigos da parte de Deus. Ora, seria isso uma injustiça, se a vontade livre fosse dada, não somente para se viver retamente, mas igualmente para se pecar. Na verdade, como poderia ser castigado, com justiça, aquele que se servisse de sua vontade para o fim mesmo para o qual ela lhe fora dada?”[12]
Sob este prisma, é necessário que o homem seja livre (livre em sua vontade) para que a justiça divina possa recair sobre os homens. Agostinho assevera que a liberdade da vontade é uma virtude (um bem), mesmo que o homem a utilize para o mal deve considerar a sua vontade livre como um bem. Portanto, a liberdade da vontade é uma dádiva, e torna-se necessária ao homem, pois, o livre-arbítrio também é condição de possibilidade do arrependimento, e da mudança de trajetória do homem pecador para uma conduta reta. Logo, a livre vontade é um bem necessário, sem o qual ninguém pode viver retamente, tão menos teria a oportunidade de arrepender-se e adotar um agir reto.
Assim sendo o livre-arbítrio é um bem médio, haja vista estar entre Deus (o bem supremo, imutável e eterno), e as coisas mundanas (bens mutáveis e corruptíveis). E devido a sua natureza pode tender tanto para o bem, como para o mal.
Neste sentido, Agostinho declara que a felicidade se aproxima daquele que tende a sua vontade para o bem, in verbis:
“A vontade obtém, no aderir ao bem imutável e universal, os primeiros e maiores bens do homem, embora ela mesma não seja senão um bem médio. Em contrapartida, ele peca, ao se afastar do Bem imutável e comum, para se voltar para o seu próprio bem particular, seja exterior, seja inferior. Ela se volta para seu bem particular, quando quer ser senhora de si mesma; para um bem exterior, quando se aplica a apropriar-se de coisas alheias, ou de tudo o que não lhe diz respeito; e volta-se para um bem inferior, quando ama os prazeres do corpo. Desse modo, o homem orgulhoso, curioso e lascivo entra noutra vida, que compara com a vida superior, há mais que se chamar morte do que vida.”[13]
Buscando alertar acerca das falsas conclusões expostas pelo maniqueísmo acerca da temática do livre agir e acerca da origem do mal, Agostinho faz considerações importantes, declarando; não que o mal seja algo necessário, como no maniqueísmo, que, para salvar a incorruptibilidade de Deus, acaba por instituir o mal como um princípio ontológico que dá origem em si mesmo, como algo imanente na alma do homem, ou melhor, na alma má do homem[14]. Ou ainda, como na causalidade prevista no neoplatonismo, pelo qual o mal é causa necessária da existência do bem, enquanto seu contrário; ao negá-lo (o bem) acaba por afirmá-lo (o bem).
Neste aspecto, Santo Agostinho percebe que o pecado e a maldade não são necessários para a conformação de perfeição do universo, mas as almas enquanto almas livres, dotadas de liberdade de vontade podem tender ao pecado ou à conduta reta, e assim à felicidade e a desgraça.
“[…] o livre é condição necessária para o homem fazer o bem ou o mal, mas o pecado não é condição para a existência do livre-arbítrio no homem, pois este pode, se quiser, não pecar, a exemplo dos anjos bons, que têm livre-arbítrio e nem por isso pecam.”[15]
Logo, a existência do pecado não altera ou diminui a perfeição do universo, porque mesmo utilizando da vontade para o mal, o homem não deixa de ser obra de Deus, e tudo quanto Deus faz é bom e perfeito, portanto o pecado é um acidente perfeitamente abarcado pela ordem, contudo, não se pretende como necessário.
4. O pensamento filosófico de Schopenhauer: “uma crítica à tudo que já existia”
Arthur Schopenhauer[16] nasceu a 22 de fevereiro de 1788 em Gdansk, na Polônia, cidade que depois passaria à Prússia como Danzig, e voltaria a ser Gdansk após a Segunda Guerra Mundial. Filho de Johanna, escritora, e seu pai Heinrich Floris Schopenhauer, negociante, que veio a falecer em 1805.[17]
Em 1809 matriculou-se na escola de Medicina da Universidade de Göttingen, porém desistiu da medicina e passou à filosofia e Letras (humanidades). Trocou Göttingen por Berlim no outono de 1811, e lá foi aluno de Fichte e de Friedrich Schleiermacher um dos pais da moderna teologia. Estudou Platão e Kant e teve a influência de Gottlob Ernst Schultze, autor de Aenesidemus, crítico do kantismo.
Devido à guerra, deixa Berlim para viver em uma hospedaria em Rodolstadt. Termina sua tese “Vierfach Wutzel der Zats uber zurechern Grund” (Sobre a quádrupla raiz do princípio da razão suficiente), que apresenta na Universidade de Jena em 1813.
Nos anos seguintes escreveu sua obra principal Die Welt als Wille and Vorstellung “O Mundo como vontade e representação” que seria publicado em 1819.
Schopenhauer fez concurso para professor da Universidade de Berlim. Hegel fez parte da banca examinadora. Obteve o lugar na Universidade e começou uma competição com Hegel pela atenção dos alunos. Ficou apenas dois anos ligado à Universidade, pois os estudantes preferiam as aulas de Hegel.
Conhecido por ter uma personalidade forte, arrogante, e de difícil trato, Schopenhauer após seu deslinde no professorado, deu inicio a um combate implacável a Hegel e seus colegas, inclusive Schelling e Fichte, atacou os professores de filosofia em geral no seu ensaio “Sobre a filosofia na universidade”. Depois de uma segunda viagem à Itália (1823 e 1824), foi por um ano professor em Munique.[18]
Em 1836 publicou Über der willen in der Natur (Sobre a vontade na natureza), um complemento ao 2º livro do Die Welt buscando demonstrar que as descobertas das ciências naturais corroboravam sua teoria da vontade. No ano seguinte recebeu um prêmio da Sociedade de Ciências da Noruega pelo Über die Freiheit des Menchlichen willens (Sobre a liberdade da vontade dos homens), que depois foi publicado em 1839. Concorreu, mas perdeu, ao prêmio da sociedade de Ciências da Dinamarca com Über des fundament der Moral (Sobre os fundamentos da Moral) publicado em 1840, complemento ao 4º livro do Die Welt.
Finalmente reuniu o 4º livro do Die Welt com o Uber des fundament em um único Die beiden grandproblem der Ethik (Os dois problemas fundamentais da Ética) publicado em 1841. Faleceu em 21 de setembro de 1860 de mal súbito.[19]
A divergência de Schopenhauer com os outros filósofos da época antecedente, principalmente de Hegel, é enorme, até mesmo no que tange ao trato da filosofia enquanto um ofício. Hegel entende o mundo como uma complexidade que, no seu conjunto, constitui o absoluto. Porém este absoluto não é um todo rígido. Contém diferentes graus de complexidade, pois todo ente pode seguir-se de um predicado que o diferencia de outro. Mas, quando comparados, chegam a uma síntese, dentro do princípio da lógica dialética que compõe o sistema.[20]
Schopenhauer é contrário às ideias hegelianas, sua filosofia se baseia em princípios simples, não recorre a conceitos amplos, por vezes até indeterminados, de difícil compreensão. Na compreensão schopenhauriana o mundo é visto e explicado por dois componentes: a vontade (Wille) e a representação (Vorstellung).
Para descortinar a essência das coisas o filósofo polonês direcionou sua tese para o próprio homem, que neste aspecto, não deixa de ser uma coisa no cosmos. Salienta que o homem conhece seu corpo como fenômeno, como aparência, segundo o tempo e o espaço e as categorias .(SCHOPENHAUER, 1992, Cap. 2) Contudo, quando olha para o seu interior, já não é necessário elementos como tempo ou espaço para sua consciência, haja vista que esta não se submete a tais elementos, a vontade se mostra tanto como o reverso do mundo da representação quanto como a essência desse mundo. [21]
O que é a vontade para Schopenhauer? O Autor enuncia que a vontade representa o querer viver, ou seja, é um querer realizar-se. A vontade é soberana, trata-se de uma coisa em si mesma, é irredutível, é incausada, e independe do tempo, espaço e as categorias, conforme já demonstrado acima.
Schopenhauer diferentemente de Santo Agostinho elimina a necessidade da existência de Deus para desenvolver sua filosofia acerca da liberdade da vontade, em seu lugar, coloca uma “vontade universal”, portanto, a vontade para ele não se confunde com uma decisão racional levada a efeito, conforme um querer agir. Neste aspecto, Vontade é um ser absoluto, essência primeira, coisa em si mesma, que é irredutível e dá origem ao mundo e as coisas. [22]
Para o filósofo a idéia de respeito à lei moral nada mais é que a noção de obediência e que o conceito do dever esconde em si a idéia de um legislador que garante a recompensa e o castigo com respeito a lei moral, ou seja, a idéia de Deus:
“O que está dito aqui quer dizer, em alemão, obediência. Porém, já que a palavra respeito não pode ser posta tão descabidamente no lugar da palavra obediência, então isto teria de servir a alguma intenção, e esta não é manifestamente outra senão a de ocultar a proveniência da forma imperativa e do conceito de dever a partir da moral teológica.”[23]
5. A liberdade da vontade
No pensamento de Schopenhauer, a função desenvolvida pela razão é derivada e secundária, uma vez que a razão é mera expectadora da Vontade, trabalha apenas como se fosse uma organizadora dos eventos, atribuindo sentido aos fatos. Justamente, neste ponto Schopenhauer já demonstra seu pessimismo quanto à existência do livre-arbítrio.
“Por conseguinte, esperar que um homem, sob influências idênticas aja, ora de uma maneira, ora de uma outra absolutamente oposta, é como se quiséssemos esperar que a própria árvore que, no verão passado, deu cerejas, dê no próximo verão peras. O livre-arbítrio implica, considerando-o de perto, uma existência sem essência, ou seja, qualquer coisa que é e que ao mesmo tempo não é nada; por conseqüência, que não é – daí uma contradição evidente.”[24]
Conforme, Renato Cardoso, em seu livro A ideia de justiça em Schopenhauer, vejamos:
“O desenvolver deste pensamento, ao qual procede Schopenhauer, nos leva a uma constatação importantíssima sobre a condição humana, embora, deve-se admitir, nada lisonjeira: estando uma vez sujeitas, como já foi dito, ao primado da vontade, todas as ações dos homens seriam, em ultima instância, como aquela à qual se submetem, ou seja, também inintelegíveis e insubmissas ao princípio da razão. A primazia da vontade sobre a racionalidade é nota característica e elemento fundamental na filosofia de Schopenhauer. A vontade é soberana e o intelecto está a seu serviço.”[25]
Portanto, não é possível conceber a existência de uma razão prática, e neste viés, também não é possível o agir ético pautado por esta mesma razão. Em Schopenhauer, é praticamente impossível ter-se um avanço moral, tendo em vista que Vontade é livre, soberana e absoluta. Sob este prisma inexiste progresso moral e ético, justamente porque o livre-arbítrio não passa de uma ilusão, vejamos:
“A supremacia do intelecto, da razão e da inteligência, ordenando, escolhendo e determinando nossa vontade, cai por terra, melancólica e irremediavelmente, sob este novo prisma. Ao contrario, o cenário mostra-se agora de forma inversa, com a razão subjugada, posta a serviço desta vontade imperiosa e, pior, inexplicável. Estabelecendo um paralelo, diríamos que a vontade é metafísica; a inteligência, física. O intelecto é fenômeno; a vontade, a essência.”[26]
Logo, a razão não é menos submissa à vontade, o filósofo é contrario à tradição racionalista cartesiana afirmando não ser tarefa possível a ser desempenhada pela razão a garantia de um agir moral e ético. A razão é o instrumento da vontade que possibilita o surgimento da linguagem, da ciência e do estado. Conforme já exposto anteriormente, o intelecto está subordinado à Vontade, logo, conclui-se que existe na verdade uma relação de dependência por parte do intelecto, que se assemelha a figura de um serviçal que está perpetuamente a serviço do seu senhor, sofrendo com todas as suas decisões e sendo obrigado a corresponder a cada uma delas. Outro aspecto angustiante, é que jamais a razão poderá prever o conteúdo das decisões propostas pela Vontade, já que a inteligência sempre estará em desvantagem diante da própria Vontade enquanto coisa-em-si.
“Mira, pues, la voluntad identificado por nosotros con la cosa misma, la idea, por cierto, no es más que la inmediata esto objetidade celebró un cierto grado, se deduce que la cosa en sí de Kant y de Idea de Platón Estos dos grandes paradojas y oscuro de los dos más grandes filósofos de Occidente no son idénticos, pero unidos por un parentesco cercano”.[27]
Schopenhauer, em sua obra acerca da liberdade da vontade explicita que existem três tipos de liberdade: física, intelectual e moral. No que tange à primeira, pode-se entender a liberdade como a ausência de impedimento de ordem material, obedecendo somente à vontade. Para este tipo de liberdade o que está em jogo é a ação, em que o homem é livre quando capaz de agir pela sua própria vontade. Segundo Cardoso, o problema da questão não reside, contudo, na ação, mas na liberdade da vontade, fazendo o seguinte questionamento: “podemos obviamente fazer o que queremos, mas será possível também, por sua vez, querer o que queremos”?[28]
Santo Agostinho em sua obra acerca do livre arbítrio tinha uma preocupação que será foi igualmente tratada por Schopenhauer, qual seja, a idéia de que natureza alguma se corrompe sem já estar viciada.[29] Neste passo, considera-se que todo homem possui uma essência inclinada para o bem ou para o mal, não necessitaria de estímulo externo para exercer sua faculdade de agir. Contrapondo com Schopenhauer, temos que para o filósofo o caráter é inato, e não é fruto da práxis social. Portanto, o homem não possui poder algum de escolha do seu próprio bem ou de seu próprio mal, verdade esta que afasta a possibilidade de um livre agir. Por isso também pensamos numa herança, pelo menos temática em Agostinho, através do estudo do Livre Arbítrio, em Schopenhauer.
Ainda neste diapasão adverte que no que se refere ao livre-arbítrio não se aplica o princípio de razão, logo no mundo da representação inexiste liberdade, pois há causalidade que determina a conduta. Assim, somente no campo da vontade é que a liberdade se faz presente. Schopenhauer rompe com a tradição racionalista, a qual fundamentava a liberdade como uma condição racional, visto que o intelecto – representação – é subjugado pela vontade – essência. Para finalizar, “o indivíduo faz o que quer, sempre, porque é já objetivação de sua vontade, é a própria expressão do seu querer, dessa vontade”.[30]
Pernin acrescenta acerca do serviço prestado pelo intelecto à vontade, tal como se estabelecesse uma relação de servidão, senhor e escravo:
“O sentido do intelecto, essa função derivada e secundária, é, pois claro. Ele está a serviço da vontade. O arbítrio é servo. Não será surpreendente, pois, que o filósofo seja um adversário ferrenho do livre arbítrio (…) O tema luterano volta secularizado.”[31]
Assim, respondendo à pergunta sobre se é possível querer o que queremos, a resposta é afirmativa, pois, uma vez que a liberdade reside na própria vontade e o ser humano é a manifestação fenomenal desta, a “vontade não determina o ato do homem, ela é o seu ato” [32]
6. Conclusão
Após não exaustiva demonstração dos pensamentos filosóficos de Santo Agostinho e Schopenhauer, percebe-se afinal, que em ambos os casos o contexto de formação social familiar e as pré-compreensões adquiridas ao longo da história de ambos os pensadores, contribuíram de forma significativa para a conformação de suas teses acerca da temática em questão.
Em Agostinho, temos a formação de um pensamento centrado em princípios cristãos, e uma busca pela verdade que encerra a angústia experimentada pelo filósofo em sua vida particular, qual seja, a busca da origem do mal e a possibilidade de fazer o bem, agindo com uma conduta reta. Neste aspecto, percebe-se claramente que Agostinho vê no livre-arbítrio a possibilidade do homem fazer o bem, alcançar sua redenção e arrepender-se do pecado, que o afasta da felicidade.[33] Negar o livre-arbítrio, seria praticamente negar a justiça de Deus, e conseqüentemente por em xeque a própria existência de Deus. Já em Schopenhauer o que se apresenta é uma revolução filosófica, tal como o próprio autor sua filosofia é geniosa e até desagradável por vezes, pois nos provoca uma sensação de impotência e angústia ante a falta de ação da razão perante a Vontade. É que acostumados a um movimento filosófico racionalista o intérprete da obra de Schopenhauer que por vezes se vê frustrado diante de tamanha coerência demonstrada nos argumentos aduzidos pelo autor em sua obra, levando-nos a um novo patamar de discussão filosófica.
Finalmente, conclui-se que a contribuição exposta pelo pensamento de Santo Agostinho e Schopenhauer contribuíram de forma significativa para a discussão do tema livre-arbítrio, que ainda não nos chegou à uma resposta conclusiva, muito embora, temos em Schopenhauer uma construção certamente considerável do ponto de vista filosófico e científico.
Informações Sobre o Autor
Daniel Carreiro Miranda
Advogado, Mestrando em Direito pela UFMG