Resumo – O presente artigo busca analisar alguns aspectos atuais no sistema jurídico brasileiro, principalmente aqueles relacionados ao biodireito e aos direitos da personalidade. Para tanto é feito um breve histórico dos direitos da personalidade e suas características. Define-se os conceitos de bioética e biodireito. Nesse contexto, o artigo aborda a discussão de três assuntos relevantes: a eutanásia e diretrizes antecipadas de vontade, a cirurgia de transgenitalização e a objeção de consciência como argumento contrário à transfusão de sangue.
Palavras-chave– Direitos da personalidade. Biodireito.
1. Introdução
Os direitos da personalidade como proteção integral do ser humano em toda a sua essência são uma construção jurídico-teórica recente. “O homem não deve ser protegido somente em seu patrimônio, mas principalmente, em sua essência.” [1]
Durante muitos anos na história da humanidade, a proteção a direitos fundamentais do ser humano era relegada às categorias privilegiadas da sociedade, haja vista as inúmeras atrocidades cometidas nos mais diversos períodos da história. Nesse sentido apontam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald que essa construção teórica é fruto do cuidado da doutrina germânica e francesa, especialmente depois da II Grande Guerra mundial.[2]
“Seu destaque e o desenvolvimento das teorias que visavam proteger o ser humano se devem, especialmente, ao cristianismo (dignidade do homem), ao jusnaturalismo (direitos inatos) e ao iluminismo (valorização do indivíduo perante o Estado).” [3]
Os códigos civis não faziam nenhuma referência aos direitos da personalidade o que foi ocorrendo aos poucos na maioria dos países. “Uma das principais inovações da Parte Geral do Novo Código Civil é justamente, a existência de um capítulo próprio destinado aos direitos da personalidade” [4]
Um grande passo para a proteção dos direitos da personalidade foi dado com o advento da Constituição Federal de 1988, que expressamente a eles se refere no art. 5º, caput, e inciso X. [5]
O Código Civil de 2002, ao contrário dos anteriores, disciplina a matéria nos artigos 11 a 21 da Parte Geral. A legislação civil tratou de regular o direito ao próprio corpo, o direito ao nome, o direito à honra, à imagem e o direito à privacidade. “A inserção dos direitos da personalidade na Parte Geral do Código Civil já representa, por si só, uma admirável evolução em relação ao Código Civil de 1916, carregado de tintas patrimoniais.”[6]
Características dos direitos da personalidade
Os direitos da personalidade são direitos subjetivos da pessoa humana capazes de garantir um mínimo necessário e fundamental à uma vida com dignidade. Diante dessa afirmação, é imprescindível a análise de suas características que os diferenciam no arcabouço jurídico.
A primeira característica dos direitos da personalidade é a sua relativa indisponibilidade. A relativa indisponibilidade decorre do fato de que é possível ao titular ceder o exercício de alguns direitos de personalidade e não a sua titularidade. “É o exemplo do direito à imagem, que pode ser cedida, onerosa ou gratuitamente durante determinado lapso temporal.” [7]
Não é permitido ao titular desses direitos dispor de forma permanente e ilimitada assim como aponta o Enunciado 4, da I Jornada de Direito Civil ao estabelecer que “o exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral.” A característica da indisponibilidade relativa dos direitos da personalidade foi muito bem analisada no emblemático “Caso de Arremesso de Anões”.
O famoso caso de arremesso de anões (dwarf tossing ou dwarf throwing) em inglês ou (lancer de nains) em francês, é um exemplo do limite de disposição dos direitos da personalidade.
A situação ocorreu em uma cidade Francesa chamada Morsang-sur-Orge na qual existia uma brincadeira ou esporte, para alguns, em que anões, vestindo roupas de proteção, eram arremessados à mão livre ou através de canhões de pressão em direção a um tapete acolchoado, vencendo aquele que conseguisse lançar o anão à maior distância possível.
A Prefeitura do referido município, utilizando-se de seu poder de polícia, entendeu por bem interditar o bar onde era praticado o referido arremesso de anões, argumentando que aquela atividade violava a ordem pública, pois era contrária à dignidade da pessoa humana.
Não se conformando com a decisão do Poder Público, o próprio anão (Sr. Wackenheim) em litisconsórcio com os organizadores do evento, questionaram a interdição e afirmaram que necessitavam daquele trabalho para a sua sobrevivência. O anão argumentou que o direito ao trabalho e à livre iniciativa também seriam valores protegidos pelo direito francês e, portanto, tinha o direito de decidir como ganhar sua própria vida.
Em outubro de 1995, o Conselho de Estado Francês, órgão máximo da jurisdição administrativa daquele país, decidiu, em grau de recurso, que o Poder Público Municipal estaria autorizado a interditar o estabelecimento comercial que explorasse o arremesso de anão, pois aquele espetáculo seria atentatório à dignidade da pessoa humana além de violar a ordem pública, reconheceu também, que o respeito à dignidade humana, conceito absoluto que é não poderia cercar-se de quaisquer concessões em função de apreciações subjetivas que cada um possa ter a seu respeito, (Assemblée. – Req. n° 136727 – Mlle Laigneau, rapp. ; M. Frydman, c. dug. ; Mes Baraduc-Bénabent, Bertrand, av.).
Ainda assim, o Sr. Wackenheim, mais uma vez, inconformado com a decisão, recorreu ao Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), alegando que a decisão seria discriminatória e violava o seu direito ao trabalho.
Em setembro de 2002, o Comitê de Direitos Humanos da ONU confirmou a decisão do Conselho de Estado Francês, reconhecendo que o lançamento de anão violaria a dignidade da pessoa humana e, portanto, deveria realmente ser proibido.
O art. 11 do Código Civil preceitua que “com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.”
Desse modo, também é característica dessa categoria de direitos a intransmissibilidade. A personalidade da pessoa humana extingue-se com morte de seu titular, já que os direitos da personalidade são vitalícios, outra característica apontada pela doutrina.
Insta ressaltar o que dispõe o art. 12 do Código Civil:
“Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.
Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.”
Apontam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald que o parágrafo único do artigo mencionado refere-se aos lesados indiretos que estão legitimados a reclamar em nome próprio, a proteção de seus direitos de personalidade, com base na violação da personalidade de cônjuge ou companheiro falecido, bem como de seus parentes mortos, em linha reta ou colateral até quarto grau. [8]
Nessa hipótese, o dano ocorre depois da morte, já que o falecido não tem mais personalidade, por isso são designados lesados indiretos.
Os direitos da personalidade também são absolutos, ou seja, são oponíveis erga omnes, pois, todos devem abster-se de violá-los.
Os direitos da personalidade são extrapatrimoniais, isto é, não podem ser apreciados economicamente, pois são valores existenciais da pessoa humana, extra commercium, todavia a violação à esses direitos dá ensejo à possibilidade de reparação pecuniária como forma, por exemplo, de compensar um eventual prejuízo ou dano ao seu portador.
Também possuem a característica da impenhorabilidade, não podendo sofrer ato de constrição judicial, a penhora, em qualquer hipótese.
Além das características apontadas, pode-se também elencar a imprescritibilidade como um aspecto relevante desses direitos. O tempo não impede que o lesado em um direito da personalidade cesse a violação em qualquer momento da sua vida já que não existe prazo extintivo, todavia, há que se ressaltar que a pretensão indenizatória pelo dano sofrido tem o prazo de prescricional de 3 anos, nos termos do art. 206, § 3º, V, do Código.
São duas situações distintas, ou seja, na primeira hipótese o lesado em um direito da personalidade, pode a qualquer momento da sua vida fazer cessar essa lesão já que são imprescritíveis, entretanto, se quiser a reparação financeira, aspecto patrimonial desse direito, deverá ajuizar a ação no prazo estipulado na lei, sob pena de prescrição.
Apontam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald que o STJ vem entendendo que as ações de reparação por danos causados na prisão ou tortura durante o regime militar são imprescritíveis. [9]
Por fim, é importante ressaltar que o rol apresentado nos artigos 11 a 21 do Código Civil é meramente exemplificativo já que o referido diploma legal, ainda que tenha dispensado elogiável tratamento da matéria, disciplinou de forma tímida e insuficiente um assunto de tamanha envergadura e importância na atualidade.
Vários aspectos importantes dos direitos da personalidade não foram abordados pelo atual Código Civil, temas como reprodução assistida, gestação em útero alheio, dentre outros.
Bioética e Biodireito.
Dentro dessas novas perspectivas que se acortinam para os operadores do direito na atualidade, o que seriam os termos Bioética e Biodireito?
De acordo com Maria Helena Diniz, a Bioética seria, em sentido amplo, uma resposta da ética às novas situações oriundas da ciência no âmbito da saúde, ocupando-se não só de problemas éticos, provocados pelas tecnociências biomédicas, mas também a vários aspectos das pesquisas em seres humanos, como, por exemplo, a clonagem, mudança de sexo, esterilização, eugenia, eutanásia, dentre outros. [10]
Francisco Amaral define a Bioética como “a disciplina que examina e discute os aspectos éticos relacionados com o desenvolvimento e as aplicações da biologia e da medicina, indicando os caminhos e os modos de respeitar os valores da pessoa humana.” [11]
O termo Bioética foi empregado pela primeira vez pelo oncologista e biólogo norte-americano Van Rensselder Potter, da universidade de Winsconsin, em Madison. Na sua obra Bioethics: Bridge to the future, publicada em 1971. [12]
A bioética abarca a macrobioética, que trata de questões ecológicas, em busca da preservação da vida humana, e a microbioética, que cuida das relações entre médico e paciente, instituições de saúde públicas ou privadas e entre estas instituições e os profissionais da saúde. [13]
Seu estudo ultrapassa a área da medicina abrangendo a sociologia, a biologia, a antropologia, a pscicologia, a ecologia, a teologia, a filosofia, dentre outros.
Todavia, para o direito, as normas e princípios da bioética não são coercitivos, é necessário que o direito regulamente atitudes lícitas, definindo seus contornos com base no princípio da dignidade da pessoa humana, estabelecendo regras e limites à investigação. [14]
Daí surge então o Biodireito que nada mais é do que a normatização jurídica de permissões de comportamentos médico-científicos, e de sanções pelo descumprimento destas normas. “Biodireito e bioética são ordens normativas, e, como tais, têm caráter prescritivo. A distinção, todavia, está na forma de abordagem e na força cogente.” A sanção ética ou é interna ou é social, uma reprovação da comunidade, já o direito dispõe de meios coercitivos e sua a força institucional para exigir o cumprimento de suas prescrições. [15]
Segundo os autores Maria de Fátima Freire de Sá e Bruno Torquato de Oliveira Naves o Biodireito é uma disciplina incipiente no universo jurídico e ainda não ocupou seu devido lugar nos currículos das universidades e faculdades brasileiras, nem na própria dogmática. [16]
O direito à morte digna
O primeiro assunto que envolve os conceitos de direitos da personalidade e biodireito, é a proteção da própria vida do ser humano. A vida é pressuposto lógico de existência de qualquer ser vivo, e desse modo merece proteção do ordenamento jurídico.
Os avanços tecnológicos dos últimos anos trouxe um fato novo e curioso no campo científico. Hoje a medicina possui um grande poder de intervenção sobre a vida e morte das pessoas. A morte faz parte da vida e da existência de todos os seres humanos e mesmo assim as pessoas de um modo geral não estão preparadas a enfrentá-la, seja pela cultura, religião, filosofia, ou qualquer outro aspecto do conhecimento humano. Pensar na finitude da vida é um dos aspectos mais delicados da sociedade.
O direito à vida é garantido constitucionalmente em seu art. 5º, como um pressuposto lógico de existência do próprio ser humano. Desse modo a Carta Magna brasileira dedica proteção especial à vida, como direito fundamental.
Diante desses aspectos, algumas discussões tem pontuado o direito ultimamente. Teria o paciente, no limite de sua autonomia privada, a possibilidade de escolher procedimentos ou a ausência deles nos momentos finais?
Antes de uma possível resposta à essa questão é necessário definir alguns conceitos relevantes sobre o assunto.
Em primeiro lugar é importante a definição do termo Eutanásia. O termo foi criado no Século XVII, pelo filósofo inglês Francis Bacon e deriva do grego eu (boa), thanatos (morte), podendo ser traduzido como “boa morte”. É relevante apontar que a morte nem sempre foi tratada da forma que se trata no mundo e na cultura atual.
Os espartanos arremessavam os idosos e recém-nascidos deformados do alto do Monte Taijeto, em Atenas, o Senado determinava a eliminação de anciãos doentes ministrando-lhes veneno.
Na Índia, lançavam no Ganges os incuráveis, mas antes vedavam-lhes a boca e a narina com lama sagrada. Os povos nômades das regiões rurais da América do Sul, para evitar que ancião, ou enfermo sofresse ataque de animais, matavam-no. [17]
Vários são os exemplos do tratamento dado à morte, em diversas épocas e culturas da humanidade. O fim da vida é a única certeza que o ser humano carrega desde o seu nascimento, mas sempre tem imensa dificuldade em lhe dar com o inevitável.
A distanásia é a prática pela qual se prolonga, ao máximo, a vida de um enfermo incurável. Na distanásia busca-se preservar a vida a qualquer custo, empregando para isso, todos os meios disponíveis na medicina tanto os meios ordinários quanto os extraordinários inúteis, já que não proporcionam mais nenhum benefício ao paciente a não ser o prolongamento da sua vida.
Maria Helena Diniz explica o conceito de distanásia nos seguintes termos:
“Pela distanásia, também designada obstinação terapêutica (L’acharnement thérapeutique) ou futilidade médica (medical futility), tudo deve ser feito mesmo que cause sofrimento atroz ao paciente. Isso porque a distanásia é a morte lenta e com muito sofriemento. Trata-se do prolongamento exagerado da morte de um doente terminal ou tratamento inútil”.[18]
A mistanásia ou eutanásia social é a chamada morte miserável, antes da hora, nada tem de boa, na categoria de mistanásia pode-se focalizar três situações distintas: primeiro, a grande quantidade de doentes e deficientes que, por motivos políticos, sociais e econômicos, não chegam a ser pacientes, pois não conseguem ingressar efetivamente no sistema de atendimento médico; segundo, os doentes que conseguem ser pacientes para, em seguida, se tornar vítimas de erro médico e; terceiro, os pacientes que acabam sendo vítimas de má-prática por motivos econômicos, científicos ou sociopolíticos. A mistanásia é uma categoria que nos permite levar a sério o fenômeno da maldade humana. [19]
Ainda aponta Maria Helena Diniz a chamada Ortotanásia ou Eutanásia passiva, é a eutanásia por omissão, consistente no ato de suspender medicamentos ou medidas que aliviem a dor, ou suspender meios artificiais para prolongar a vida de um paciente em coma irreversível. [20]
A Holanda em 1º de Abril de 2002, aprovou legislação específica sobre o tema, mas a prática da eutanásia já era bastante tolerada pela justiça se feita a pedido do paciente em estado terminal, atestado por dois médicos.
No Brasil o Código Penal possibilita a redução da pena de 1/6 a 1/3 se o homicídio for cometido por relevante valor social ou moral, art. 121,§ 1º, além disso, prevê o referido Código as figuras do induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, art. 122 e o crime de omissão de socorro, art. 135.
O novo projeto de Código Penal em trâmite nas casas legislativas brasileiras, traz abordagens sobre a eutanásia e a ortotanásia. O projeto prevê atenuantes no caso de eutanásia e a descriminalização da ortotanásia, considerados avanços positivos pelo Conselho Federal de Medicina.
Em 2006, o Conselho Federal de Medicina (CFM) editou a Resolução n. 1.805 que permitia ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolongassem a vida do paciente em fase terminal, acometido por enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. Todavia a referida resolução foi questionada judicialmente pelo Ministério Público Federal através de Ação Civil Pública por entender tratar-se tal prática de homicídio por omissão e não exercício regular da medicina.
Percebe-se que a discussão do tema é extremamente polêmica, pois aspectos extrajurídicos estão envolvidos no debate.
O importante é que o assunto tem sido alvo de amplo debate na sociedade e principalmente no meio jurídico, até o cinema começou a tratar da questão nos últimos anos. Pode-se apresentar como exemplos o filme “Uma Prova de Amor” (My Sister´s Keeper), dos Estados Unidos, 2009, baseado no romance de Jodi Picoult, que aborda questões polêmicas como direito ao próprio corpo, manipulação genética de embriões, eutanásia, dentre outros. O referido filme é bastante usado nos cursos de direito e já foi até alvo de um artigo científico. [21]
Também pode-se apontar o filme “Mar Adentro” (Mar Adentro) Espanha, 2004 e “Dr. Morte” (You Don’t know Jack), Estados Unidos, 2009. O primeiro, baseado em fatos reais aborda o drama vivido por Ramon Sampedro, um espanhol tetraplégico que solicitou a justiça espanhola o direito de morrer que não foi concedido. Com o auxílio de alguns amigos planejou a sua morte de maneira a não incriminar os mesmos. Ele gravou um vídeo de seus últimos minutos que teve repercussão mundial. Uma das amigas de Ramón Sampedro foi incriminada pela polícia como sendo a responsável pelo homicídio. Um movimento internacional de pessoas enviou cartas "confessando o mesmo crime". A justiça, alegando impossibilidade de levantar todas as evidências, acabou arquivando o processo.
O segundo filme, conta a história do Dr. Jack Kervokian, conhecido como “Dr. Morte”, por ter participado e auxiliado mais de 130 doentes terminais a cometerem suicídio, sendo que um deles foi filmado e transmitido pela TV. [22]
Os debates acerca de tão relevante tema são acalorados e torna-se impossível permanece-se neutro acerca de um assunto que atinge a todos.
Diante desses questionamentos, o Conselho Federal de Medicina publicou no dia 09 de agosto de 2012, a Resolução n. 1995 que dispõe sobre as diretrizes antecipadas de vontade, também conhecida como living will ou testamento vital.
O testamento vital é um documento em que a pessoa, desde que juridicamente capaz e consciente, declara quais tipos de tratamentos médicos aceita ou rejeita caso se encontre em estado terminal irreversível. O instrumento permite ao paciente registrar, por exemplo, a vontade de, em caso de agravamento do quadro de saúde, não ser mantido vivo com a ajuda de aparelhos, nem submetido a procedimentos invasivos ou dolorosos. Nos países onde existe, o testamento vital tem respaldo legal e deve ser observado pelos profissionais de saúde; o documento recebe a assinatura de testemunhas e é elaborado enquanto o paciente ainda está consciente. O testamento também tem caráter de procuração: por meio dele, o interessado pode indicar uma pessoa de sua confiança para tomar decisões sobre os rumos do tratamento a que será submetido a partir do momento em que não tiver condições de fazer escolhas.
A Resolução n. 1995/2012 apresenta como fundamentos a atual relevância da questão da autonomia do paciente no contexto da relação médico-paciente e alerta que na prática profissional, os médicos podem defrontar-se com situação de ordem ética ainda não prevista nos atuais dispositivos éticos nacionais e que os novos recursos tecnológicos permitem a adoção de medidas desproporcionais que prolongam o sofrimento do paciente em estado terminal, sem trazer benefícios.
Nesse sentido é o posicionamento do Conselho Federal de Medicina, senão vejamos:
“Para o presidente do CFM, Roberto Luiz d’Avila, a diretiva antecipada de vontade é um avanço na relação médico-paciente. Segundo ele, esse procedimento está diretamente relacionado à possibilidade da ortotanásia (morte sem sofrimento), prática validada pelo CFM na Resolução 1.805/2006, cujo questionamento sobre sua legalidade foi julgado improcedente pela Justiça.
A existência dessa possibilidade não configura eutanásia, palavra que define a abreviação da vida ou morte por vontade do próprio doente, pois é crime. “Com a diretiva antecipada de vontade, o médico atenderá ao desejo de seu paciente. Será respeitada sua vontade em situações com que o emprego de meios artificiais, desproporcionais, fúteis e inúteis, para o prolongamento da vida, não se justifica eticamente, no entanto, isso deve acontecer sempre dentro de um contexto de terminalidade da vida”, ressaltou.”[23]
Dessa forma, essas medidas podem ter sido antecipadamente rejeitadas pelo mesmo através das chamadas diretrizes antecipadas de vontade.
Diante desses argumentos merece destaque o texto da referida resolução, que assim dispõe:
“Art. 1º Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.
Art. 2º Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade.
§ 1º Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico.
§ 2º O médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica.
§ 3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares.
§ 4º O médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente.
§ 5º Não sendo conhecidas as diretivas antecipadas de vontade do paciente, nem havendo representante designado, familiares disponíveis ou falta de consenso entre estes, o médico recorrerá ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional e Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender esta medida necessária e conveniente.
Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação”.
Percebe-se que o texto da resolução permite ao paciente elaborar suas diretrizes antecipadas de vontade e estabelecer quais os procedimentos a que deva ser submetido em caso de doença terminal, a chamada ortotanásia.
O assunto tomou tamanha proporção que foi tema de capa da Revista Veja, de 12 de setembro de 2012, intitulada “Eu decido meu fim”. A referida reportagem traz um trecho de um testamento vital de uma médica geriatra, Ana Claudia Arantes, de 44 anos, que testemunha regularmente o óbito de pacientes em sua rotina profissional.
Nesse sentido, merece destaque o referido trecho:
“Eu, Ana Cláudia Arantes, diante de uma situação de doença grave em progressão e fora de possibilidade de reversão, apresento minhas diretrizes antecipadas de cuidados à vida. Se chegar a padecer de alguma enfermidade manifestamente incurável, que me cause sofrimento ou me torne incapaz para uma vida racionale autônoma, faço constar, com base no princípio da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade, que aceito a terminalidade da vida e repudio qualquer intervenção extraordinária, inútil ou fútil. Ou seja, qualquer ação médica pela qual os benefícios sejam nulos ou demasiadamente pequenos e não superem os seus potenciais malefícios. As diretrizes incluem os devidos cuidados: admito ir para UTI somente se tiver alguma chance de sair em menos de uma semana; não aceito que me alimentem à força. Se não puder demonstrar vontade de comer, recuo qualquer procedimento de suporte à alimentação; não quero ser reanimada no caso de parada respiratória ou cardíaca”.[24]
A reportagem ainda aponta que o referido testamento vital dessa médica aborda outros aspectos mais humanos desse momento.
“Quero um beijo de boa-noite e de bom-dia. Sei que meu corpo pode estar frágil e muito diferente de mim, mas, acreditem, estarei nele; quero tomar banho todos os dias, com água quente. Quero privacidade. Que as portas do quarto e as janelas estejam fechadas: Ninguém deverá sentir pena de mim. Ao contrário, ao me verem, as pessoas hão de dize: que sorte morrer assim.”
É importante ressaltar que o Novo Código de Ética Médica, em vigor desde abril de 2010, já explicitou que é vedado ao médico abreviar a vida, ainda que a pedido do paciente ou de seu representante legal (eutanásia), mas, atento ao compromisso humanitário e ético, o Código também prevê que nos casos de doença incurável, de situações clínicas irreversíveis e terminais, cabe ao médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis e apropriados. [25]
No dia 05 de setembro de 2012 representantes do Conselho Federal de Medicina (CFM) e da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) reuniram-se para tratar da Resolução CFM 1.995/12. Na reunião, os representantes das entidades ratificaram a importância de afirmar para a sociedade a diferença entre a eutanásia, que é crime e considerada antiética pelos médicos, e a ortotanásia, que recebe apoio da comunidade médica. [26]
A ortotanásia, abordada no Código de Ética e na Resolução CFM 1.805/06, desaconselha ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas em casos de doença incurável e terminal, já a eutanásia, por sua vez, é o aceleramento do processo de morte por meios artificiais, por ação omissiva ou comissiva.
Os critérios a respeito da aceitação desses novos instrumentos dependerão não só das leis, mas também da aceitação social e científica. “Logo nem tudo que é cientificamente possível é moral ou juridicamente admissível.” [27]
A cirurgia de transgenitalização
Outro ponto polêmico que envolve a discussão sobre o direito da personalidade, integridade física, e o biodireito, é a questão da cirurgia de transgenitalização.
As questões relacionadas à sexualidade sempre foram tabus na sociedade e ponto de divergências entre culturas e religiões. O protótipo do indivíduo normal é aquele que possui o sexo biológico em harmonia com o sexo psíquico. As discussões sobre o transexualismo surgem exatamente dessa desarmonia, entre sexo biológico e “sexo da alma.”
É importante apontar as diferenças entre alguns conceitos básicos da sexualidade. “Por intersexualismo entende-se o desequilíbrio entre os diversos fatores responsáveis pela determinação do sexo, levando a uma ambiguidade biológica.” [28] Não se confunde com hermafroditismo, pois não há na história da humanidade hermafroditismo verdadeiro.
O homossexualismo é a prática de atos sexuais entre indivíduos do mesmo sexo, enquanto que o bissexualismo caracteriza-se por prática sexual com ambos os sexos. Os travestis são pessoas que gostam de se vestir com roupas do sexo oposto, geralmente homossexuais. Atualmente pode-se falar também em cross-dressing que é um termo derivado dos inglês que designa, ao pé da letra, vestir-se ao contrário. São aquelas pessoas que se vestem com roupa e acessórios do sexo oposto, mas sem necessariamente terem algum desvio de comportamento sexual.
No Brasil existe um cartunista famoso, Laerte Coutinho, que publica suas tiras em quatro jornais brasileiros, inclusive na Folha de São Paulo que é adepto do cross-dressing. [29]
O Transexualismo refere-se à condição do indivíduo que possui uma identidade de gênero diferente da própria anatomia. Segundo a Resolução n. 1955/10 do CFM, o transexual é o paciente portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e ou auto-extermínio. Afirma que a cirurgia de transformação plástico-reconstrutiva da genitália externa, interna e caracteres sexuais secundários não constitui crime de mutilação previsto no artigo 129 do Código Penal brasileiro, haja vista que tem o propósito terapêutico específico de adequar a genitália ao sexo psíquico. Aponta ainda a referida Resolução que o diagnóstico de transexualismo deve apresentar os critérios mínimos de: desconforto com o sexo anatômico natural; desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto; permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente, por no mínimo dois anos e ausência de outros transtornos mentais.
O transexual sente que nasceu no corpo errado por isso recusa a sua situação, a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconhece o transexualismo como uma patologia médica.
O Enunciado 276 da IV Jornada de Direito Civil dispõe o seguinte:
“276 – Art.13. O art. 13 do Código Civil, ao permitir a disposição do próprio corpo por exigência médica, autoriza as cirurgias de transgenitalização, em conformidade com os procedimentos estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, e a consequente alteração do prenome e do sexo no Registro Civil.”
A interpretação constitucional do art. 13 do Código Civil conduz ao entendimento de que a cirurgia de mudança de sexo é procedimento autorizado nos termos do princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, III, da Carta Magna Brasileira.
Diante desse entendimento, é importante ressaltar os principais aspectos dessa cirurgia destacados no texto da Resolução n. 1955/10.
A seleção dos pacientes para se submeterem à cirurgia de transexualismo obedecerá a avaliação de uma equipe multidiciplinar composta de médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social. [30]
Esse paciente tem que ser maior de 21 anos de idade, e terá o acompanhamento da equipe por no mínimo 2 anos. Caso seja diagnosticado o transgenitalismo, o paciente só será operado se suas características físicas e anatômicas forem apropriadas para a cirurgia.
Além disso, o tratamento do transgenitalismo deve ser realizado apenas em estabelecimentos que contemplem integralmente os pré-requisitos estabelecidos nesta resolução, bem como a equipe multidisciplinar estabelecida na mesma. O corpo clínico destes hospitais, devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina, deve ter em sua constituição os profissionais previstos na equipe multidisciplinar citada no artigo 4º, aos quais caberá o diagnóstico e a indicação terapêutica. Em qualquer ocasião, a falta de um dos membros da equipe ensejará a paralisação de permissão para a execução dos tratamentos.
Existem dois procedimentos básicos, as cirurgias para adequação do fenótipo feminino para masculino (neocolpovulvoplastias) e as cirurgias para adequação do fenótipo masculino para feminino (neofaloplastias) que possem uma dificuldade técnica maior na obtenção de bons resultados tanto no aspecto estético quando funcional.
Ambas independem de autorização judicial e hoje são inclusive custeadas pelo SUS, Sistema Único de Saúde, através da Portaria n. 1.707 de 2008.
Afirma a referida Portaria que a orientação sexual e a identidade de gênero são fatores reconhecidos pelo Ministério da Saúde como determinantes e condicionantes da situação de saúde, não apenas por implicarem práticas sexuais e sociais específicas, mas também por expor a população GLBTT (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais) a agravos decorrentes do estigma, dos processos discriminatórios e de exclusão que violam seus direitos humanos, dentre os quais os direitos à saúde, à dignidade, à não discriminação, à autonomia e ao livre desenvolvimento da personalidade, além disso, a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, instituída pela Portaria nº 675/GM, de 31 de março de 2006, menciona, explicitamente, o direito ao atendimento humanizado e livre de discriminação por orientação sexual e identidade de gênero a todos os usuários do Sistema Único de Saúde.
Segundo Maria Helena Diniz, os procedimentos de transgenitalização podem ocorrer da seguinte forma:
“a)Extirpação dos testículos ou seu ocultamento no abdômen, aproveitando-se parte da pele do escroto para formar os grandes lábios; b) amputação do pênis, mantendo-se partes mucosas da glande e do prepúcio para a formação do clitóris e dos pequenos lábios com sensibilidade erógena; c) formação de vagina, forrada, em certos casos, com a pele do pênis amputado; e d) desenvolvimento das mamas pela administração de silicone ou estrógeno. A mudança do sexo masculino para o feminino está aperfeiçoada, podendo até mesmo não causar suspeita no parceiro sexual. Já a conversão da aparência genital feminina para é muito problemática, porque a formação de pênis funcional é quase impossível, e, além disso, a cirurgia é complexa, uma vez que requer: a) ablação dos lábios da vulva sem eliminação do clitóris; b) fechamento da vagina; c) histerectomia, ou seja, ablação do útero; d) Ovariotomia, para fazer desaparecer a menstruação, se o tratamento com testosterona não a eliminar; e) elaboração de escroto com grande lábios, com bolinhas de silicone, o que torna os testículos insensíveis sexualmente; f) faloneoplastia, ou seja, construção do neopênis, com retalho abdominal, que reveste o pênis, e com uso de uma prótese de silicone, transferindo-se alguns nervos, para que possa haver semi-ereção”.
O transexual ainda pode ter que passar por uma série de cirurgias e procedimentos para se chegar a um aspecto adequado ao desejado. Cirurgias plásticas para alteração no nariz, maças do rosto, ablação do pomo de adão, operação foniátrica para aumentar a voz em um oitavo, tratamentos hormonais e estéticos, além de acompanhamento psicológico.
Depois de todo esse longo caminho percorrido os transexuais ainda enfrentavam uma certa resistência no poder judiciário brasileiro com relação à sua redesignação sexual. De nada adiantaria a uma pessoa que se submeteu a um tratamento tão longo e penoso em busca da sua felicidade se ao final do mesmo continuasse sendo identificada pelo nome e sexo de batismo.
Roberta Close ou Roberta Gambine Moreira talvez seja o caso mais emblemático dessa situação aqui no país. Nascida com o nome de Luis Roberto Gambine Moreira, depois de uma cirurgia de transgenitalização realizada na Inglaterra em 1989, teve seu nome e estado sexual alterados em 10 de março de 2005, pela 9ª Vara de Família do Estado do Rio de Janeiro, depois de muitos anos de brigas judiciais.
Hoje, o pedido deve ser feito através de um procedimento especial de jurisdição voluntária nas Varas de família por se tratar de verdadeira alteração do estado da pessoa, com acompanhamento do Ministério Público como custus legis. O Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade de se posicionar sobre o assunto e o acórdão da decisão é uma verdadeira aula, senão vejamos:
“Direito civil. Recurso especial. Transexual submetido à cirurgia de redesignação sexual. Alteração do prenome e designativo de sexo. Princípio da dignidade da pessoa humana. – Sob a perspectiva dos princípios da Bioética – de beneficência, autonomia e justiça –, a dignidade da pessoa humana deve ser resguardada, em um âmbito de tolerância, para que a mitigação do sofrimento humano possa ser o sustentáculo de decisões judiciais, no sentido de salvaguardar o bem supremo e foco principal do Direito: o ser humano em sua integridade física, psicológica, socioambiental e ético-espiritual. – A afirmação da identidade sexual, compreendida pela identidade humana, encerra a realização da dignidade, no que tange à possibilidade de expressar todos os atributos e características do gênero imanente a cada pessoa. Para o transexual, ter uma vida digna importa em ver reconhecida a sua identidade sexual, sob a ótica psicossocial, a refletir a verdade real por ele vivenciada e que se reflete na sociedade. – A falta de fôlego do Direito em acompanhar o fato social exige, pois, a invocação dos princípios que funcionam como fontes de oxigenação do ordenamento jurídico, marcadamente a dignidade da pessoa humana – cláusula geral que permite a tutela integral e unitária da pessoa, na solução das questões de interesse existencial humano. – Em última análise, afirmar a dignidade humana significa para cada um manifestar sua verdadeira identidade, o que inclui o reconhecimento da real identidade sexual, em respeito à pessoa humana como valor absoluto. – Somos todos filhos agraciados da liberdade do ser, tendo em perspectiva a transformação estrutural por que passa a família, que hoje apresenta molde eudemonista, cujo alvo é a promoção de cada um de seus componentes, em especial da prole, com o insigne propósito instrumental de torná-los aptos de realizar os atributos de sua personalidade e afirmar a sua dignidade como pessoa humana. – A situação fática experimentada pelo recorrente tem origem em idêntica problemática pela qual passam os transexuais em sua maioria: um ser humano aprisionado à anatomia de homem, com o sexo psicossocial feminino, que, após ser submetido à cirurgia de redesignação sexual, com a adequação dos genitais à imagem que tem de si e perante a sociedade, encontra obstáculos na vida civil, porque sua aparência morfológica não condiz com o registro de nascimento, quanto ao nome e designativo de sexo. – Conservar o “sexo masculino” no assento de nascimento do recorrente, em favor da realidade biológica e em detrimento das realidades psicológica e social, bem como morfológica, pois a aparência do transexual redesignado, em tudo se assemelha ao sexo feminino, equivaleria a manter o recorrente em estado de anomalia, deixando de reconhecer seu direito de viver dignamente. – Assim, tendo o recorrente se submetido à cirurgia de redesignação sexual, nos termos do acórdão recorrido, existindo, portanto, motivo apto a ensejar a alteração para a mudança de sexo no registro civil, e a fim de que os assentos sejam capazes de cumprir sua verdadeira função, qual seja, a de dar publicidade aos fatos relevantes da vida social do indivíduo, forçosa se mostra a admissibilidade da pretensão do recorrente, devendo ser alterado seu assento de nascimento a fim de que nele conste o sexo feminino, pelo qual é socialmente reconhecido. – Vetar a alteração do prenome do transexual redesignado corresponderia a mantê-lo em uma insustentável posição de angústia, incerteza e conflitos, que inegavelmente atinge a dignidade da pessoa humana assegurada pela Constituição Federal. No caso, a possibilidade de uma vida digna para o recorrente depende da alteração solicitada. E, tendo em vista que o autor vem utilizando o prenome feminino constante da inicial, para se identificar, razoável a sua adoção no assento de nascimento, seguido do sobrenome familiar, conforme dispõe o art. 58 da Lei n.º 6.015/73. – Deve, pois, ser facilitada a alteração do estado sexual, de quem já enfrentou tantas dificuldades ao longo da vida, vencendo-se a barreira do preconceito e da intolerância. O Direito não pode fechar os olhos para a realidade social estabelecida, notadamente no que concerne à identidade sexual, cuja realização afeta o mais íntimo aspecto da vida privada da pessoa. E a alteração do designativo de sexo, no registro civil, bem como do prenome do operado, é tão importante quanto a adequação cirúrgica, porquanto é desta um desdobramento, uma decorrência lógica que o Direito deve assegurar. – Assegurar ao transexual o exercício pleno de sua verdadeira identidade sexual consolida, sobretudo, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, cuja tutela consiste em promover o desenvolvimento do ser humano sob todos os aspectos, garantindo que ele não seja desrespeitado tampouco violentado em sua integridade psicofísica. Poderá, dessa forma, o redesignado exercer, em amplitude, seus direitos civis, sem restrições de cunho discriminatório ou de intolerância, alçando sua autonomia privada em patamar de igualdade para com os demais integrantes da vida civil. A liberdade se refletirá na seara doméstica, profissional e social do recorrente, que terá, após longos anos de sofrimentos, constrangimentos, frustrações e dissabores, enfim, uma vida plena e digna. – De posicionamentos herméticos, no sentido de não se tolerar “imperfeições”
como a esterilidade ou uma genitália que não se conforma exatamente com os referenciais científicos, e, consequentemente, negar a pretensão do transexual de ter alterado o designativo de sexo e nome, subjaz o perigo de estímulo a uma nova prática de eugenia social, objeto de combate da Bioética, que deve ser igualmente combatida pelo Direito, não se olvidando os horrores provocados pelo holocausto no século passado. Recurso especial provido.” (STJ – 3ª T. REsp 1008398/SP – Rel Min. Nancy Andrighi – j. 15.10.09 – DJU 18.11.09)
Atualmente, o entendimento que prevalece é que o transexual tem direito a redesignação sexual e mudança de nome sem qualquer referência ao status anterior.
Tramita no Congresso Nacional um projeto de Lei PL-70B, de autoria do deputado José Coimbra que estabelece critérios sobre a cirurgia de transgenitalização e as questões relacionadas ao registro civil dessas pessoas.
A transfusão de sangue e os seguidores da Religião Testemunhas de Jeová e da Seita Christian Science
Tema que tem ganhado atenção nos últimos debates relacionados ao biodireito é a discussão acerca da possibilidade ou não de recusar tratamentos médicos por opção religiosa ou filosófica, a chamada objeção de consciência.
Dispõe o art. 15 do Código Civil que ninguém pode ser compelido a submeter-se a tratamento médico de risco. Tal artigo consagra o princípio da autonomia no paciente, sendo dever do profissional médico atuar com o consentimento e autorização dos mesmos. É o que a doutrina chama de consentimento informado ou esclarecido que nada mais é do que a obrigação ética do médico (Capítulo, IV, art. 22 do Código de Ética Médica) de expor ao paciente todos os riscos, benefícios e complicações presentes em um determinado tratamento médico para que o paciente possa, com base no princípio da autonomia privada, determinar aquilo que seja melhor para sua situação.
O médico precisa fornecer ao paciente todas as informações necessárias para que o mesmo tome uma decisão, assim como deve informar sobre as consequências da decisão tomada pelo paciente. Tal atitude requer esforço por parte do médico, que precisa dispor de tempo, paciência e conhecimento para esclarecer sobre diagnóstico, prognóstico e tratamento, em uma linguagem simples, para ter certeza de que foi entendido. Todas as dúvidas do paciente devem ser esclarecidas, bem como o propósito da realização de exames, cirurgias e medicamentos. Um paciente adulto mentalmente sadio, com tais informações, possui o direito de dar ou não consentimento para qualquer diagnóstico ou tratamento, mesmo quando a recusa redundar em seu próprio prejuízo.
A pergunta que se faz é, seria possível alguém se recusar, com risco de morte, determinado tratamento médico?
O exemplo emblemático que se tem atualmente é o dos seguidores da religião de Testemunhas de Jeová que se recusam a receber transfusão de sangue com base na interpretação de alguns trechos bíblicos e por entenderem que o sangue é sagrado:
“Génesis 9:3-5
Tudo o que se move e vive vos servirá de alimento; eu vos dou tudo isto, como vos dei a erva verde. Somente não comereis carne com a sua alma, com seu sangue. Eu pedirei conta de vosso sangue, por causa de vossas almas, a todo animal; e ao homem que matar o seu irmão, pedirei conta da alma do homem
Levítico 7:26, 27
E não deveis comer nenhum sangue em qualquer dos lugares em que morardes, quer seja de ave quer de animal. Toda alma que comer qualquer sangue, esta alma terá de ser decepada do seu povo.
Levítico 17:10, 11
Se alguém da casa de Israel, ou dos estrangeiros que residirem entre eles, tomar qualquer sangue, eu porei a Minha face contra a pessoa que toma o sangue, e a cortarei de entre seus parentes. Pois a vida da carne está no sangue.
Levítico 17:13, 14
Ele deve derramar o seu sangue e cobri-lo de terra. Não deveis tomar o sangue de carne alguma, pois a vida de toda carne é o seu sangue. Qualquer pessoa que tomar dele será cortada."
Atos dos Apóstolos 15:28, 29
O Espírito Santo e nós próprios resolvemos não vos impor outras obrigações além destas, que são indispensáveis: abster-vos de carnes imoladas a ídolos, do sangue, de carnes sufocadas e da imoralidade. Procederei bem, abstendo-vos destas coisas.
Atos 21:25
Quanto aos crentes dentre as nações, já avisamos, dando a nossa decisão, de que se guardem do que é sacrificado a ídolos, bem como do sangue e do estrangulado, e da fornicação.”
Esses são alguns trechos em que o sangue é considerado precioso, símbolo da própria vida. A Bíblia contêm várias outras referências ao sangue e ao seu simbolismo, o que as Testemunhas de Jeová consideram muito significativo para a sua fundamentação. Pode-se ainda afirmar que o sangue de um cordeiro foi pintado em cada ombreira das casas israelitas no Egito, o que os poupou dos efeitos mortíferos da décima praga; o sangue de animais era derramado em sacrifício no altar do Templo em Jerusalém, representando a própria vida dos ofertantes; o sangue que Jesus derramou, como sacrifício perfeito, em favor de toda a humanidade e que é representado no cálice de vinho puro usado anualmente na comemoração da sua morte. Esses, dentre outros, são exemplos da importância do elemento sangue nessa crença religiosa.
A seita Christian Science (Church of Christ Scientist) foi fundada em Boston, em 1879, por Mary Baker Eddy e também não admite a transfusão de sangue com base da objeção de consciência. Os aspectos da objeção dessa seita são ainda mais extenso, pois acreditam que os males podem ser curados pela oração. The central texts of Christian Science are the Bible and Science and Health with Key to the Scriptures . [ 2 ] Christian Science has been described as a form of philosophical idealism . [ 5 ] She regarded the creation of Christian Science as an important event that resulted from embracing continuous divine revelation . [ 6 ] :27 Christian Scientists do not view Jesus as having died for our sins. [ 7 ] :146 Os textos centrais da Ciência Cristã são a Bíblia e “Ciência e Saúde com a Chave das Escrituras”, escrito pela fundadora Mary Baker Eddy.
Os adeptos dessa seita acreditam que as doenças são o resultado do medo, da ignorância ou do pecado e devem ser curados através da oração ou introspecçãoCombined with a belief that the use of medicine is incompatible with Christian Science healing methods, this has led to outbreaks of preventable disease and a number of deaths. [ 3 ] Its claim that sickness can be healed through prayer rather than medicine, its rejection of science as illusory, and its attempts to present itself as science make Christian Science a pseudoscience ., possuem a crença de que o uso da medicina é incompatível com métodos de cura da Ciência Cristã, isso levou a surtos de doenças evitáveis e a um número elevado de mortes de seus seguidores.
Apesar de muitos entenderem que a vida é um direito ou princípio absoluto e que se sobrepõe a qualquer outro direito ou princípio, a equação não é tão simples quanto parece. “Os princípios podem ser afastados no caso concreto em razão de um princípio preponderante.” [31]
O direito à liberdade de crença ou a ausência dela é garantido constitucionalmente e é aspecto fundamental do direito da personalidade. As soluções a serem discutidas em relação a esse problema não podem ser estabelecidas de forma apriorística.
A doutrina tem apontado dois pontos importantes sobre a objeção de consciência nesses casos: A objeção de consciência de pessoas adultas e a objeção de consciência de incapazes.
Em nosso país, embora a jurisprudência majoritária se posicione em favor do procedimento transfusional forçado, já existem decisões isoladas cuja motivação se harmoniza com o respeito à autonomia privada do paciente. [32]
Nesse sentido, se o paciente é maior e capaz e está em perfeitas condições de consciência, a doutrina tem entendido que deve prevalecer a vontade do paciente, sendo a escolha pela recusa em se submeter à tranfusão de sangue, o médico deve adverti-lo dos riscos.
Outra hipótese apontada é a do paciente maior e capaz mas inconsciente. Aqui vislumbra-se duas situações: Caso exista prova inequívoca da objeção de consciência à transfusão de sangue a vontade do paciente deve ser respeitada segundo alguns juristas, pois o princípio da autonomia privada lhes garante essa prerrogativa. Já na hipótese de paciente maior e capaz, em situação de emergência ou que não haja prova da escolha religiosa feita, a solução pode ser outra, pois o profissional médico, pelo dever de sua profissão tem a obrigação legal e moral de salvar vidas. É o que está disposto na Resolução n. 1.021/80 do Conselho Federal de Medicina que autorizam os profissionais a realizarem a transfusão independentemente de autorização, quando exista perigo de morte.
Dentro dessa perspectiva, Miguel Kfouri Neto aponta um interessante caso que ocorreu no Estado de Paraná. O médico realizou a transfusão de sangue em uma parturiente, seguidora da religião de Testemunha de Jeová, contra a sua vontade e a de seu marido. Após a alta médica, a paciente começou a sofrer repúdio da sua comunidade e de seu marido, não sendo inclusive admitida mais em casa ou na sua igreja. [33]
Já com relação aos incapazes, é dever do Estado proteger seus interesses mesmo contra a vontade dos pais ou responsáveis e nessa perspectiva, não resta alternativa a não ser realizar a transfusão mesmo contra a vontade de seus familiares ou de sua comunidade.
É importante ressaltar que o aspecto religioso, consagrado constitucionalmente não é um dado inato ao ser humano. As pessoas assumem esta ou aquela religião principalmente por elementos culturais dos locais onde vivem ou de suas famílias. Nada impede que uma determinada pessoa ao longo da vida opte por outra religião que passou a conhecer ou admirar. Desse modo, impor a um incapaz preceitos ou deveres assumidos por seus pais ou responsáveis, com o risco de colocar em jogo a sua própria vida, parece ceder diante da proteção dispensada ao incapaz pelo Estado Brasileiro.
Conclusão
O presente estudo procurou demonstrar, de forma sucinta os pontos de convergência entre os direitos da personalidade e o biodireito, em especial os aspectos relacionados aos direitos da personalidade integridade física e vida. Não é a pretensão deste trabalho esgotar os referidos temas, o que não seria possível no formato de um artigo científico, mas sim, despertar nos operadores do direito os pontos mais polêmicos de assunto tão novo e apaixonante.
Afirmou-se que os direitos da personalidade como proteção integral do ser humano em toda a sua essência são uma construção jurídico-teórica recente. Somente o Código Civil de 2002 tratou do tema nos seus artigos 11 a 21, mas de forma tímida já que a doutrina aponta que muitos dos aspectos relevantes ficaram de fora do diploma civil brasileiro.
Temas como reprodução assistida, gestação em útero alheio e também os assuntos tratados no presente trabalho são, na sua grande maioria, regulamentados por resoluções do Conselho Federal de Medicina o que de certa forma, num primeiro momento causa estranheza já que o Estado brasileiro possui um poder legislativo para tal desiderato.
Vale lembrar que o Código Civil de 1916 foi obra das concepções individualistas e voluntaristas do Séc. XIX e XX cujo conteúdo só começou a se modificar depois da Segunda Guerra Mundial, momento em que o ser humano percebeu-se capaz de atrocidades que rementem às barbáries de séculos menos esclarecidos.
A bioética e o biodireito são respostas éticas e normativas às evoluções tecnológicas da atualidade. Situações como a possibilidade de “mudança de sexo” com métodos avançadíssimos de cirurgia e tratamento, a manutenção da vida por meses ou anos somente por aparelhos e a possibilidade de uma pessoa preferir não se submeter a um tratamento por convicção religiosa ou filosófica são aspectos desse novo campo do saber jurídico.
A evolução da ciência biomédica tem se mostrado bem mais veloz, e os operadores do direito começam a se sentir perplexos diante de tamanhas mudanças.
Com base no preceito fundamental da dignidade da pessoa humana, art. 1º, III, da Carta Constitucional Brasileira, os sujeitos envolvidos nessas novas questões têm a seu dispor uma Carta de direitos condizente com valor da vida digna.
Se esse valor de vida digna é alterar o fenótipo de uma pessoa que se sente no corpo errado, ou permitir que um cidadão escolha como pretende passar seus últimos dias, sem tratamentos paliativos, ou até mesmo possibilitar que uma pessoa tenha a liberdade de escolha religiosa, todos esses questionamentos possuem como ponto de partida e chegada a dignidade da pessoa humana.
Informações Sobre o Autor
Júlio Moraes Oliveira
Advogado . Professor Universitário – Mestre em Instituições Sociais Direito e Democracia pela Universidade FUMEC – Especialista em Advocacia Civil pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas – FGV-EDESP – Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos FDMC. Professor da FAPAM Faculdade de Pará de Minas e da Faculdade Asa de Brumadinho