Resumo: A decisão judicial não pode ser concebida como fruto de mera aplicação automática de regras gerais e abstratas, pois pertence a um momento distinto da criação legislativa e executiva. O momento da aplicação deve – especialmente nos casos considerados como difíceis, nos quais não exista uma norma que ofereça uma resposta clara e inequívoca – apresentar uma integridade em relação a todo o ordenamento. A exigência da resposta certa para um caso único e irrepetível encontra-se na necessária responsabilização dos juízes e no seu compromisso com o Estado Democrático de Direito visando proteger os direitos fundamentais dos cidadãos. O artigo objetiva analisar o caso difícil apresentado na recente decisão do STF no caso da união homoafetiva, com enfoque na teoria da resposta certa de Ronald Dworkin e na idéia de coerência em Klaus Günther.
Palavras-chave: Aplicação do direito. Teoria das decisões judiciais. Jurisdição constitucional. Ronald Dworkin. Klaus Günther. União homoafetiva.
Abstract: The judicial decision cannot be perceived as the result of mechanical application of general and abstract rules, as it belongs to a distinct moment of the legislative and executive creation. The moment of application must – especially on those cases that are considered hard, to which there are no rules that bring a clear and unequivocal answer – provide an integrity regarding the whole legal system.. The requirement of the right answer to a unique and unrepeatable case is necessary to the responsibility of judges and their commitment to the Democratic Rule of Law in order to protect the fundamental rights of citizens. The article aims to analyze the case difficult presented in recent Supreme Court decision in the case of homoaffective union, focusing on the theory of Ronald Dworkin's right answer and the idea of coherence in Klaus Günther.
Keywords: Law application. Theory of adjudication. Constitutional jurisdiction. Ronald Dworkin. Klaus Günther. Homoaffective union
Introdução
A opção por utilizar o marco teórico de Ronald Dworkin para analisar a questão da união estável homoafetiva recentemente julgada pelo Supremo Tribunal Federal se dá pela sua coerência ao integrar os princípios no cerne da sua teoria das decisões judiciais. Para Dworkin, não basta que as decisões judiciais analisem qual regra é aplicada a cada caso, pois os princípios são igualmente normas e devem ser sempre respeitados. A importância que Dworkin confere aos princípios irá influenciar na sua teoria da decisão nos casos difíceis[1], vez que, frente a um destes casos, o juiz não terá discricionariedade para decidir da melhor maneira, isto é, criar o direito.
Conforme a sua teoria da resposta certa, toda questão possui uma resposta, devendo ela ser descoberta de maneira coerente (pela escolha do princípio aplicável ao caso). Segundo Dworkin, nos casos controversos o juiz sempre deverá dar uma resposta certa: a melhor possível. O juiz ao decidir o caso controverso, deverá interpretar os argumentos apresentados, levando em consideração não só as regras e os precedentes, mas também os padrões morais da sociedade e os seus próprios.
Para Dworkin a prática judicial deve conceber o direito como cadeia (the chain of Law), o qual deve ser analisado em seu passado, presente e futuro, numa interpretação crítico-construtiva, como se fosse uma narrativa, na qual, a cada decisão construída, fosse incorporado um pedaço da história jurídica. Esta concepção do direito como cadeia está inserida na proposta política de Dworkin, de coerência da prática judicial com os princípios, visto estes serem também normas, pois atuam como norteadores de comportamento. O juiz ao analisar a questão irá analisar o ordenamento como um todo, incluindo suas expectativas morais e principalmente a expectativa moral da comunidade[2].
Ressalte-se, entretanto, que por invocar princípios morais Dworkin não pode ser identificado como um representante do pensamento jusnaturalista clássico. Afinal, da sua postura antipositivista não decorre um compromisso jusnaturalista com uma moral objetiva que pressupõe a existência de princípios universais e inalteráveis que devem apenas ser descobertos pela razão humana. Os princípios morais não resultam de um processo ‘contemplativo’, mas, ao contrário, de um processo ‘construtivo’. Com efeito, Dworkin supõe que a argumentação moral constrói historicamente princípios capazes de justificar as instituições da sociedade, em função dos seus próprios conteúdos e de sua força argumentativa.[3]
Segundo Dworkin, o direito se constitui por normas, das quais se destacam os princípios. Para o autor, diferentemente do positivismo jurídico de H. L. A. Hart[4], o direito não pode ser reduzido a regras, pois estas não encerram o debate sobre a efetivação do direito, apenas a iniciam, já que, por seu caráter geral e abstrato, elas não conseguiriam regular a sua própria aplicação.
Dworkin adota um sistema aberto de regras, desta maneira, o direito permitiria a possibilidade de criticá-lo internamente, pois os direitos morais sairiam do seu exílio como backgroundrights e passariam a influenciar a interpretação das regras, inclusive para a solução dos casos difíceis[5].
Assim, o juiz não precisaria criar um direito para decidir um caso difícil, ele poderia alcançar a resposta certa para o caso[6], de maneira que a sua resposta seja a mais coerente com os princípios constitucionais, o que afirma sua característica institucional e não de backgroundrights[7].
Dessa maneira, Dworkin esclarece que os juízes não podem se esquivar de tomar decisões para as quais não exista uma regra clara, mas as suas decisões não podem ser arbitrárias, isto é, elas não podem ser tomadas sem um fundamento previsto pelo ordenamento, especialmente se este fundamento for um argumento de política. Este só seria admitido para fundamentar as decisões dos órgãos legitimados democraticamente (não vitalícios e responsáveis perante a coletividade por seus atos). Para se tornar legítima, a decisão deverá ser fundamentada num argumento de princípio.
Para Dworkin, uma decisão judicial deve sempre se fundamentar num argumento de princípio, e nunca num argumento de política para não ultrapassar a sua competência e ferir os ideais democráticos. Apesar dos juízes não serem meros delegados do Poder Legislativo, a sua atuação não deve ir além dos limites de um órgão que não foi eleito pelo povo para atuar como seu representante. Sua atuação é contramajoritária e por isto deve agir dentro dos limites dos princípios estabelecidos pela comunidade de princípios.
Paralelamente ao pensamento de Dworkin, o filósofo Klaus Günter pensa no aplicador do direito como possuidor de uma função distinta da do legislador, na medida em que irá promover a concretude das regras, analisando-as frente ao caso real. Dessa maneira, os discursos de aplicação do direito não seriam “mera renovação dos discursos de fundamentação do direito. Ao contrário, caracterizam-se por um exame da sua adequação diante das circunstâncias do caso concreto”[8].
Apesar da distinção entre argumentos de princípio e argumentos de política ser importante para delimitar o papel do Judiciário de garantidor dos direitos individuais e co-criador do direito, a sua função se distingue das funções do Legislativo e do Executivo por um motivo ainda mais profundo. A atividade do Judiciário possui uma racionalidade prática diferente da atividade dos órgãos eleitos majoritariamente, se verificando assim uma diferença estrutural entre ambas as atividades.
Para Günther[9], os discursos de aplicação são distintos dos discursos de justificação. No plano da validade de uma norma, a norma é justificada de acordo com os interesses gerais dos destinatários da norma. Neste plano não é possível verificar todas as situações em que a norma a ser justificada será aplicada, por isto, é necessária a existência de um plano de adequação, que irá aplicar as normas de maneira coerente. A racionalidade na aplicação se difere da justificação, pois enquanto nesta são analisadas apenas as situações previsíveis de acordo com os interesses comuns, naquela é analisada uma determinada situação com todas as suas características de maneira coerente com o sistema.
Enquanto Günther explora a coerência das decisões de aplicação, de maneira similar, Dworkin explora a sua integridade. Para ambos, as decisões de aplicação devem se fundamentar na coerência ou na integridade do ordenamento jurídico, de modo que o juiz alcance a melhor decisão para uma determinada situação. A melhor decisão será aquela orientada por princípios e nunca por políticas, respeitando, assim, a racionalidade de uma decisão de aplicação.
Dessa maneira, o objeto do presente artigo será a analise da decisão sobre a união estável homoafetiva, recentemente julgada pelo Supremo Tribunal Federal, de forma a relacionar a teoria das decisões judiciais de Klaus Günther e de Ronald Dworkin com a nossa prática judicial. Para tanto inicio com um resumo deste caso difícil e do voto do relator, o Ministro Carlos Ayres Britto e, em seguida, uma análise do mesmo.
Apresentação do caso
Após muitos anos de polêmica e manifestações fervorosas contra e a favor, em 2011 a questão da união homoafetiva finalmente foi objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal, quando foram julgadas, de maneira conjugada, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132-RJ (posteriormente convertida em Ação Direta de Inconstitucionalidade em relação aos incisos II e V do art. 19 e ao art. 33 do Dec-lei 220/75 e ao art. 1.723 do Código Civil) e a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277-DF.
A ADPF nº 132 foi proposta pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro, alegando o descumprimento:
“I – da interpretação que se tem conferido aos incisos II e V do art. 19 e aos incisos I a X do art. 33, todos do Decreto-Lei 220/1975 (Estatuto dos Servidores Civis do Estado do Rio de Janeiro), na medida em que tal interpretação implica efetiva redução de direitos a pessoas de preferência ou concreta orientação homossexual.
II – de decisões judiciais proferidas no Estado do Rio de Janeiro e em outras unidades federativas do País, negando às uniões homoafetivas estáveis o rol de direitos pacificamente reconhecidos àqueles cuja preferência sexual se define como ‘heterossexual’”[10].
A ação proposta elencou como causa de pedir os princípios da igualdade, da liberdade, da dignidade da pessoa humana, da segurança jurídica e da razoabilidade.
No que tange às informações prestadas, os Tribunais de Justiça do Acre, Goiás, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Paraná se mostraram a favor da equiparação entre a união estável heterossexual e a união homoafetiva; enquanto os Tribunais de Justiça do Distrito Federal e Santa Catarina se mostraram desfavoráveis. A Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro manifestou o vigor com que a Lei Estadual 5.034/2007 é aplicada em prol da igualdade de benefícios previdenciários dos servidores públicos em união homoafetiva do Estado. Também favorável foi o parecer da Procuradoria-Geral da República e a Advocacia Geral da República, que pugnaram pela equiparação entre a união estável heterossexual e a união homoafetiva.
Por sua vez, a ADIN nº 4.277 foi proposta pela Procuradoria Geral da República com o objetivo de declarar:
“a) que é obrigatório o reconhecimento, no Brasil, da união entre pessoas do mesmo sexo, como entidade familiar, desde que atendidos os requisitos exigidos para a constituição da união estável entre homem e mulher; e b) que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis estendam-se aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo”[11].
A ação foi proposta sob o fundamento dos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da vedação de discriminações odiosas, da liberdade e da proteção à segurança jurídica.
Ambas as ações contaram com o deferimento de grande quantidade de amicus curiae, dentre eles: Associação de Incentivo à Educação e a Saúde do Estado de São Paulo, Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Conectas Direitos Humanos, Escritório de Direitos Humanos do Estado de Minas Gerais, Grupo Gay da Bahia, Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (ANIS), Grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual (GAI), Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP), Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e Associação Eduardo Banks.
O julgamento conjugado da ADPF nº 132 e da ADIN nº 4.277 foi decidido por unanimidade, pela procedência das ações, com eficácia erga omnes e efeito vinculante.
O Ministro Ayres Britto, relator, em sua decisão, apresentou diversos motivos para a procedência da ação e a conseqüente interpretação conforme a Constituição do art. 1.723[12] do Código Civil, para
“dele extrair qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como ‘entidade familiar’, entendida esta como sinônimo perfeito de ‘família’. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas conseqüências da união estável heteroafetiva”[13].
Primeiramente, o Ministro relator afirma que o sexo das pessoas não pode ser levado em consideração para favorecer a desigualdade entre elas. Isto porque a promoção do bem de todos é um objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, sendo proibida a discriminação pelo sexo, conforme o art. 3º, inciso IV, da Constituição. Segundo o Ministro, esta promoção do bem de todos deve ser viabilizada por meio da “adoção de políticas públicas afirmativas da fundamental igualdade civil-moral”. Assim, o combate ao preconceito seria vital para a “plena aceitação e subseqüente experimentação do pluralismo sócio-político-cultural”[14], previsto como fundamento do Estado Democrático de Direito, no art. 1º, inciso V, da Constituição Pátria.
Para Ayres Britto, a Constituição não se manifesta de maneira a determinar o tipo de envolvimento sexual que considere legal:
“em tema do concreto uso do sexo nas três citadas funções de estimulação erótica, conjunção carnal e reprodução biológica, a Constituição brasileira opera por um intencional silêncio, que já é um modo de atuar mediante o saque da kelseniana norma geral negativa, segundo a qual ‘tudo o que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido’”[15].
Assim, a Constituição teria silenciado quanto ao desempenho das funções sexuais para garantir o livre arbítrio de cada um. A proibição da discriminação em razão do sexo aparece como proteção à dimensão sexual dos indivíduos, a qual configura um verdadeiro bem de personalidade. A orientação sexual, por sua posição de direito fundamental e de bem de personalidade, corresponde à emanação do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da Constituição), pois “se as pessoas de preferência heterossexual só podem se realizar ou ser felizes heterossexualmente, as de preferência homossexual seguem na mesma toada: só podem se realizar ou ser felizes homossexualmente”[16].
Para o Ministro, como a Constituição não determinou o concreto uso da sexualidade humana, esta fica a cargo da autonomia da vontade. A liberdade humana para se concretizar precisa do direito à intimidade e do direito à privacidade. Neste sentido, a prática da sexualidade necessita desse encaixe com a intimidade e a privacidade. A igualdade também deve ser respeitada, na medida em que “todos são iguais em razão da espécie humana de que façam parte e das tendências ou preferências sexuais que lhes ditar, com exclusividade, a própria natureza, qualificada pela nossa Constituição como autonomia de vontade”[17].
Ayres Britto acredita que os parceiros homoafetivos estáveis devem ter a mesma proteção que os parceiros heteroafetivos estáveis, por honra ao princípio da igualdade e da não discriminação. Desta maneira, a família constitui-se como “lócus de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por ‘intimidade e vida privada’ (inciso X do art. 5º), além de, já numa dimensão de moradia, se constituir no asilo ‘inviolável do indivíduo”[18] (inciso XI, do art. 5º). A família é a “base da sociedade” e “tem especial proteção do Estado” (Art. 226, caput). Desta forma, todas as demais normas referentes a ela devem ser analisadas conforme esta importância que a Constituição lhe garante. A família é, por natureza, amorosa, parental, protetora dos seus membros e estável, tais características a credenciam como base da sociedade, pois também ela deseja ser estável, afetiva e solidária. Assim, a família que deve servir de “norte para a interpretação dos dispositivos em que o capítulo VII se desdobra”[19] e não o inverso.
A família a que se refere a Constituição é assimilada em seu sentido coloquial e não ortodoxo, visto a sua ligação com o mundo do ser ao não fazer distinções entre as formalmente constituídas e as de fato. Deste modo, “interpretando por forma não reducionista o conceito de família”, Ayres Britto acredita que o “STF fará o que lhe compete: manter a Constituição na posse do seu fundamental atributo da coerência, pois o conceito contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto a incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico”[20].
Quanto à expressão contida no §3º, art. 226, da união estável entre “o homem e a mulher”, para o Ministro, tal referência a gêneros significa uma proteção especial à mulher em relação estável não formalizada, visto que tal tipo de união tornava a mulher desprestigiada por não possuir uma união de “papel passado”. A dualidade entre o homem e a mulher, constante na Constituição, surge para garantir relações jurídicas horizontais, sem hierarquias entre os companheiros, não se relacionando com a dicotomia entre a homossexualidade e a heterossexualidade. Este pensamento é corroborado pela ausência de disposição no mesmo sentido quanto ao casamento civil.
Com base nesses fundamentos, o Ministro relator conclui pela interpretação conforme a constituição do art. 1.723 do Código Civil, para garantir a igualdade entre a união homoafetiva e a união heteroafetiva[21].
Nas decisões judiciais colegiadas brasileiras, normalmente “a estratégia é invocar tantas autoridades quantas possíveis para sustentar a opinião do juiz, considerado sempre como indivíduo e não como voz de uma instituição dotada de uma racionalidade própria”[22] O tribunal dificilmente age como o órgão colegiado que deveria ser, pois normalmente as decisões são meras agregações de opiniões derivadas de uma votação por maioria ao invés de se construir uma verdadeira decisão coletiva[23]. A fundamentação de uma decisão, mesmo dentro de um mesmo voto, por vezes é fragmentada em diversas idéias para dar uma falsa sensação de decisão grandemente fundamentada por inúmeras razões e com respaldo de inúmeros autores.
Assim, nota-se que, muito aquém da exigência de uma integridade no direito, proposta por Dworkin, a jurisprudência brasileira não possui nem mesmo uma coerência dentro de uma mesma decisão colegiada, ou pior, dentro de um mesmo voto.
Não estamos aqui tentando mostrar um modelo de decisões judiciais que seja dotado de autoridade pelo qual seria possível acusar a prática jurisprudencial brasileira como “errada”. O que ocorre é que a partir da promulgação da Constituição de 1988, a visão da jurisprudência tem se alterado no Brasil. A redemocratização trouxe reivindicações por direitos individuais e sociais[24] até então desprestigiados e as teorias de Dworkin e Alexy se tornaram atrativas por trazerem um novo tipo de racionalidade para o direito e chamaram a atenção para a centralidade dos princípios, sobretudo na fundamentação de decisões judiciais acerca de direitos fundamentais[25]. A busca por modelos racionais para suplantar a irracionalidade das decisões baseadas em autoridade tem sido um motor principalmente entre teóricos do direito e constitucionalistas.
A necessidade da superação dos argumentos de autoridade por parte da jurisprudência brasileira vem da necessidade, especialmente, de responsabilização pelas decisões. O juiz não deve produzir apenas uma decisão com base em leis demonstráveis. Ele deve construir a melhor decisão para o caso com base em razões de aplicação fundamentadas na integridade do sistema.
Apesar da decisão do Ministro relator no caso da união homoafetiva não estar centrada em argumentos de autoridade (a decisão se preocupa em construir uma fundamentação racional) – diferentemente de alguns votos do acórdão, tais quais os do Ministro Luiz Fux, Gilmar Mendes e Celso de Mello, que apresentam vários argumentos de autoridade na tentativa de fundamentar as suas decisões –, ela é fragmentada em sua fundamentação, não apresentando uma razão que efetivamente ordene a preservação de um direito das minorias no caso específico, sob o ponto de vista de uma lógica discursiva. Ayres Britto coloca como fundamentos os princípios constitucionais da igualdade (e o princípio análogo da não discriminação), da dignidade da pessoa humana, da autonomia da vontade e da proteção especial à família.
Em uma análise com base nos pensamentos de Dworkin e Günther, o voto do Ministro relator carece de uma única racionalidade. A ela falta o ônus argumentativo de fornecer a melhor resposta para o caso, com base numa perspectiva do direito como integridade.
A equiparação de tratamento jurídico da união homoafetiva à união heteroafetiva é a de absoluta exigência do princípio de igual consideração e respeito. Neste caso, a igualdade exige que os modos de vida de cada indivíduo sejam respeitados pelo Estado, independentemente da opção sexual de cada um. Nosso sistema jurídico vem caminhando para uma ampliação da igualdade, que aparece na sociedade como um crescente respeito pelo modo de vida da comunidade homossexual. A lógica argumentativa da igualdade é coercitiva, a melhor resposta que atende a integridade do direito é a preservação do direito à igualdade.
Entretanto, em seu voto, o Ministro relator, apesar de se fundamentar em princípios, acaba por dispersar o seu raciocínio ao tentar colocar o máximo de princípios coerentes com o caso em tela, sem elencar o motivo determinante para a sua decisão. Assim, sua decisão, apesar de, em minha opinião, ser correta, acaba se tornando fraca do ponto de vista da fundamentação, pois não coloca o princípio que impõe a sua aplicação. O Ministro coloca a igualdade como um dos fundamentos da sua decisão:
“O que significa o óbvio reconhecimento de que todos são iguais em razão da espécie humana de que façam parte e das tendências ou preferências sexuais que lhes ditar, com exclusividade, a própria natureza, qualificada pela nossa Constituição como autonomia de vontade. Iguais para suportar deveres, ônus e obrigações de caráter jurídico-positivo, iguais para titularizar direitos, bônus e interesses também juridicamente positivados”[26].
Não obstante, ele igualmente coloca como fundamentos: o princípio constitucional de proteção especial à família[27], o princípio da dignidade da pessoa humana[28] e o princípio da autonomia da vontade[29], que, apesar de serem aplicáveis ao caso, não constituem os motivos determinantes para a decisão, pois não constituem o fundamento para a melhor resposta possível, de acordo com a integridade.
Ademais, em seu voto, Ayres Britto demonstra contradições argumentativas. Em sua discussão com o Ministro Ricardo Lewandowski, Ayres Britto afirma que no caso da união homoafetiva não via uma lacuna constitucional a ser preenchida pelo Judiciário na ausência do Legislativo. Isso porque Ayres Britto teria dado à Constituição uma “interpretação superadora da literalidade”[30]. Apesar de indicar que a Constituição não é meramente texto e que há necessidade de se respeitar o “fundamental atributo da coerência”[31] da Constituição – aceitando uma perspectiva hermenêutica e pós-positivista –, o Ministro, em várias passagens, se refere ao “Magno Texto”, em expressa referência ao positivismo kelseniano.
O relator admite que a proteção a um direito de liberdade sexual do ser humano pode ser protegido enquanto tal, apenas porque há um silêncio constitucional sobre a questão. Assim, uma “enunciação igualmente constitucional em sentido diverso”[32] poderia impedir a sua proteção. Não sendo meu objetivo entrar numa questão sobre a inconstitucionalidade de uma norma constitucional hipotética, este cuidado em demonstrar que há um silêncio constitucional sobre o caso demonstra que, para Ayres Britto, o texto constitucional é valorizado em sua literalidade, pois uma disposição constitucional preconceituosa contra a liberdade sexual dos homossexuais seria capaz de impedir o direito à igualdade dessa minoria, ainda que houvesse determinação constitucional no sentido de tratar a todos com igualdade.
Essa extrema preocupação com o texto constitucional coloca a questão da sexualidade humana sob um ponto de vista positivista, no qual o Direito é considerado um sistema fechado e limitador. Por isto, mesmo procurando fundamentar sua decisão em argumentos principiológicos, o Ministro ainda compreende o direito como um sistema fechado de regras:
“Ora por efeito de uma ‘norma geral positiva’ (Hans Kelsen), ora por efeito de uma ‘norma geral negativa’ (ainda segundo Kelsen, para cunhar as regras de clausura ou fechamento do Sistema Jurídico, doutrinariamente concebido como realidade normativa que se dota dos atributos da plenitude, unidade e coerência). Precisamente como, em parte, faz a nossa Constituição acerca das funções sexuais das pessoas”[33].
Para Klaus Günther, a decisão judicial, nos casos de aplicação do direito, possui uma lógica própria e distinta das decisões legislativas e executivas. A aplicação do direito deve corrigir a indeterminação do direito num caso específico. Desta maneira, por meio de uma aplicação imparcial e adequada, é possível realizar o ideal do princípio de universalização, pois ainda que a norma geral e abstrata não possa considerar todas as situações de aplicação – pela limitação de tempo e conhecimento – no momento da aplicação pode-se pretender conhecer todos os sinais relevantes de um caso específico delimitado no tempo e no espaço.
Assim, enquanto as normas, no plano de validade, são justificadas de acordo com os interesses gerais dos destinatários das normas, no plano da aplicação são analisados todos os princípios e situações relevantes para se extrair a melhor decisão para o caso. Dworkin tangencia essa questão ao separar as decisões fundamentadas em princípios das decisões fundamentadas em políticas. Para o autor, apenas as decisões embasadas em princípios seriam adequadas ao Judiciário, de maneira a não ferir os ideais democráticos, pois estas se fundamentariam num direito moral que Estado Democrático de Direito está comprometido a proteger. Já as decisões de política objetivariam um interesse coletivo, sobre os quais os juízes não são legitimados a decidir, pois uma decisão sobre o que seria melhor para a sociedade como um todo só pode ser decidida por ela mesma ou por seus representantes democraticamente eleitos[34].
Dworkin coloca o Judiciário em posição de grande importância para a eficácia dos direitos. Ao afirmar que a constante criação de regras gerais e abstratas pelo Legislativo e Executivo não é responsável pela solução da questão da efetividade do direito – mas tão apenas o início desse processo de efetivação, Dworkin mostra que o Judiciário não pode atuar como mero delegado do Legislativo, pois a ele cabe a função de fazer a transposição do abstrato para o concreto, fazendo com que a regra abstrata seja aplicada de maneira individualizada[35].
Assim, a união das teorias de Dworkin e Günther seria capaz de promover uma efetivação de direitos morais sem cair num ativismo tosco, comum nos tribunais, que vê o juiz como um paladino da justiça, podendo impor a sua moralidade pessoal em questões que só podem ser decididas por representantes do povo.
Nesse sentido, o voto do Ministro relator se manteve dentro da lógica de uma decisão de aplicação, pois fundamentou seu voto em argumentos de princípio, que verificavam a adequação dos dispositivos do Código Civil impugnados com os princípios constitucionais e direitos individuais. Desta forma, a equiparação da união estável homoafetiva à união estável heteroafetiva não foi fundamentada no que seria melhor para a sociedade, mas na necessidade de proteção de direitos fundamentais.
Contudo, Ayres Brito não fundamenta seu voto num direito que obrigasse o tribunal a dar somente aquela resposta, ou, de outra maneira, segundo o qual o tribunal estaria obrigado a proteger esse direito sob pena do Estado Democrático de Direito carecer de legitimidade por não garantir direitos aos seus cidadãos[36].
Conclusão
De acordo com a concepção dworkiniana do direito como integridade, os juízes devem entender o direito de acordo com a “comunidade personificada”, ou seja, o direito deve ser pensado como sendo proveniente de um único autor, de maneira que a sua prática contemporânea seja coerente com o passado e com o futuro. Neste sentido, o direito como integridade se distancia das concepções pragmatistas e positivistas, pois não vê o direito com foco nem apenas no passado, nem apenas no futuro, mas sim numa perspectiva íntegra. Assim, o direito não é estático, ele é essencialmente dinâmico e deve sempre ser interpretado de acordo com a sua história institucional.
Por ser essencialmente interpretativo, o direito como integridade sempre espera que o juiz, ao decidir, realize uma re-interpretação de todo o direito e não meramente de uma parte dele. Dworkin cria Hércules para demonstrar como esse processo poderia ser realizado. Entretanto, esse juiz “super-poderoso” só seria necessário metodologicamente, pois na prática o juiz faria isto de maneira automática e semi-intuitiva, com base na sua experiência e na sua própria convicção política do que seja o direito. Portanto, o juiz constrói durante toda a sua carreira o que Hércules procura construir de maneira metodológica num único caso.
Essa visão dinâmica do direito exige que se considere a Constituição como uma “constituição viva”[37], pois ela deve ser capaz de se manter atualizada com a moral social e os direitos individuais que forem impostos por ela. Não obstante, é necessário que essa constituição seja segura, não podendo ser alterada por qualquer opinião particular sobre como ela deveria ser.
Levando-se em conta que as emendas constitucionais não são suficientes para garantir a dinâmica da constituição[38] (apesar de se proliferarem no sistema constitucional brasileiros) e que um texto escrito é sempre fonte de complexidade (ao ser necessário interpretá-lo e aplicá-lo), cabe ao Judiciário parte da tarefa de manter a constituição viva. Nesta tarefa, a não desnaturação da Constituição se dará pela aplicação do princípio da integridade, o qual exige que as decisões judiciais sejam íntegras com todo o ordenamento jurídico, com respeito especial ao passado e aos objetivos futuros impostos pela Constituição[39].
Um determinado momento histórico não pode ser capaz de congelar o significado da Constituição. Os direitos morais que os cidadãos possuem contra o Estado não podem ser estagnados em um determinado período. A comunidade personificada exige que se interprete o direito de maneira dinâmica e íntegra. Neste sentido, a jurisprudência brasileira já coleciona algumas decisões[40] que demonstram a alteração do paradigma homem/mulher nas uniões estáveis. Estas decisões refletem as demandas da sociedade brasileira e a tensão normativa necessária para discernir as legítimas pretensões acerca da igualdade. Vale dizer, a jurisprudência ampliou a noção de igualdade para amparar a igualdade de preferência sexual. Assim, o significado de “união estável” não pode ser congelado no momento em que foi criada a norma que a regulamentava. A aplicação do direito deve analisar todas as circunstâncias que não puderam ser previstas no momento da elaboração da norma por conta da limitação de tempo e conhecimento humanos.
Para Dworkin, a legitimidade de um governo depende do igual respeito e consideração com que trate todos os cidadãos, respeitando todos os modos de vida. É neste contexto que deve ser analisado o instituto da união estável homoafetiva. Neste caso, ao não aceitar a igualdade entre a união estável heteroafetiva e a homoafetiva, o governo brasileiro estaria tratando todos os cidadãos com igual respeito e consideração? Acredito que a resposta a essa pergunta seja negativa, pois todos os cidadãos possuem o direito à igualdade e este direito deve sempre ser protegido pelo Judiciário. Sendo assim, apesar de não ter sido fundamentada de maneira coerente e íntegra, conforme os ditames das teorias de Günther e Dworkin, o voto do Ministro Relator no caso da união estável homoafetiva efetivamente protegeu o direito à igualdade pugnado pela nossa Constituição.
Informações Sobre o Autor
Joanna Maria de Araújo Sampaio
Graduação em Direito pela UFPR, Mestre em Direito pela UFPR, Advogada