Resumo: O presente trabalho tem por objeto analisar a Política Pública Habitacional no Brasil a partir da obra “A Estrutura das Revoluções Científicas” de Thomas S. Kuhn. Pretende-se fazer um paralelo entre as revoluções políticas e científicas ocorridas no setor habitacional em três momentos: no regime militar (1964-1985), no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso e, finalmente, no governo do Presidente Lula, identificando seus respectivos planos cognitivos, normativos e operacionais.
Palavras-Chaves: Políticas Públicas – Habitação – Kuhn – Paradigmas.
Abstract: The object of this paper is to analyze the Public Housing Policy in Brazil from the book "The Structure of Scientific Revolutions" by Thomas S. Kuhn. It is intended to draw a parallel between the scientific and political revolutions occurring in the housing sector in three phases: the military regime (1964-1985), under President Fernando Henrique Cardoso, and finally the government of President Lula, identifying their respective plans cognitive, normative and operational.
Keywords: Public Policy – Housing – Kuhn – Paradigms
Sumário: Introdução. 1. Síntese da obra “as estruturas das revoluções científicas” – Kuhn. 2. Política Pública Habitacional no Brasil. 2.1. Paradigma 1 – Regime Militar (1964-1985). 2.1.1. Crise do Paradigma 1 – Regime Militar (1964-1985). 2.2. Paradigma 2 – Governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2003). 2.3. Paradigma 3 – Governo Lula (2003-2010). Síntese Conclusiva. Referências Bibliográficas.
INTRODUÇÃO
A obra “A Estrutura das Revoluções Científicas” foi publicada por Thomas S. Kuhn em 1962 e trata de uma análise sobre a história da Ciência. O autor questiona dogmas científicos consagrados, e vê o avanço da Ciência não tanto como o acúmulo gradativo de novos dados, e sim como um processo conflitante marcado pelas revoluções do pensamento na comunidade científica.
Kuhn defende que os períodos de acumulação gradativa de conhecimento pela comunidade científica (ciência normal), são interrompidos ou intercalados por períodos da chamada ciência extraordinária, quando os paradigmas científicos são questionados e revistos através das revoluções científicas. Assim, a ciência evolui tanto de forma acumulativa, nos períodos de ciência normal, quanto aos saltos, nas revoluções científicas.[1]
A obra de Kuhn faz ainda um paralelo entre as revoluções políticas (representadas pelas instituições) e científicas (representadas pelos paradigmas) e é nesse contexto que se pautou o presente trabalho. Busca-se trazer as considerações defendidas por Kuhn para analisar as Políticas Públicas ocorridas no setor habitacional no Brasil em três momentos políticos: no regime militar, no governo Fernando Henrique Cardoso e no governo Lula.
Para tanto, o presente trabalho foi organizado em capítulos, sendo o primeiro uma breve síntese da obra “A Estrutura das Revoluções Científicas”, de Kuhn, e os demais divididos por cada período político supramencionado, buscando identificar os paradigmas existentes (com seus respectivos planos cognitivos, normativos e operacionais) e os sintomas de uma eventual crise entre um paradigma e outro.
Frisa-se, por oportuno que nos referidos capítulos a autora se exime de tecer juízos de caráter e opiniões pessoais, deixando tais ponderações para o último capítulo, denominado Síntese Conclusiva.
1. SÍNTESE DA OBRA “A ESTRUTURA DAS REVOLUÇÕES CIENTIFICAS” – KUHN
Na obra “A Estrutura das Revoluções Científicas” Kuhn observa que o desenvolvimento da maioria das ciências deve-se a uma contínua competição entre diversas concepções de naturezas diferentes.
Assim, o progresso da ciência não estaria associado somente ao acúmulo e aprimoramento de dogmas existentes, mas sim, e principalmente, aos conflitos, questionamentos e revoluções do pensamento científico.
Kuhn então sugere que o período de acumulação e aprimora mente gradativo de conhecimento pela comunidade científica seria denominado “ciência normal” e que tais períodos são interrompidos ou intercalados por períodos da chamada “ciência extraordinária”.
A ciência extraordinária ocorre quando os paradigmas científicos são questionados e revistos através das revoluções científicas.
Kuhn[2], para desenvolver o conceito de “ciência normal”, parte do significado de paradigma. Para o autor, o paradigma seria o conjunto regras/procedimentos aceito pela comunidade científica durante algum tempo, fornecendo problemas e soluções, in verbis: “considero ‘paradigmas’ as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, oferecem problemas e soluções para uma comunidade de praticantes de uma ciência.”
Assim, diante de vários competidores (soluções diversas) pode-se entender que os paradigmas serão aqueles mais bem sucedidos na resolução de determinado problema posto pelos cientistas, ou seja, diante de várias escolas pré-paradigmáticas, uma escola acaba triunfando sobre as outras e as divergências desaparecem em um grau considerável.
Salienta-se, por oportuno, que uma comunidade científica ao adquirir um paradigma adquire também um critério para a escolha dos problemas a serem resolvidos. A possibilidade da inexistência de um paradigma pode ser temerária, pois em tese, todos os fatos, procedimentos e regras serão pertinentes/relevantes ao desenvolvimento de determinada ciência.[3]
Para Kuhn “ciência normal” significa a pesquisa baseada em uma ou mais realizações científicas passadas, ou seja, paradigmas já estabelecidos e aceitos pela comunidade científica, ou seja, paradigmas passados[4]. Assim, descobertas científicas não seriam o objeto da “ciência normal”, mas tão somente o desenvolvimento e detalhamento de idéias já estabelecidas.
Prossegue ainda afirmando que a “ciência normal” além de ser a atividade na qual a maioria dos cientistas emprega quase todo seu tempo, é baseada no pressuposto de que a comunidade científica sabe como é o mundo e grande parte do sucesso dessa ciência deriva da disposição da comunidade científica para defender esse pressuposto.[5]
Um dos problemas dessa “ciência normal” seria, para Kuhn, a falta de introdução de novidades, pois geralmente o cientista que utiliza um paradigma tem que seguir padrões já determinados, pois o paradigma estabelece resultados esperados. Nesse sentido, o autor ainda pondera[6]: “(…) a gama de resultados esperados (assimiláveis) é sempre pequena se comparada com as alternativas que a imaginação pode conceber.”
Interessante ainda a colocação de Kuhn sobre a “ciência normal”, pois pondera que quando uma pesquisa é bem sucedida, utilizando-se determinado paradigma, geralmente a referida pesquisa não traz novidades. De outra banda, se um determinado cientista não chega sequer aos resultados desejados de um determinado paradigma, a priori o erro é do cientista e não do paradigma.
Apenas quando o paradigma não consegue mais resolver os problemas pesquisados instalam-se crises que poderão então gerar um novo paradigma. Nesse sentido, Kuhn[7] afirma que “o fracasso das regras existentes é o prelúdio para uma busca de novas regras.” e é nesse contexto que as revoluções científicas acontecem e novos paradigmas surgem para substituir os existentes.
Nesse sentido Kuhn[8] afirma: “as revoluções científicas são os complementos desintegradores da tradição à qual a atividade da ciência normal está ligada”.
Durante as revoluções científicas, o autor[9] pondera que os cientistas acabam vendo “coisas novas e diferentes, quando, empregando instrumentos familiares, olham para os mesmos pontos já examinados anteriormente.”
Sobre as revoluções científicas, Kuhn[10] afirma que “são os complementos desintegradores da tradição à qual a atividade da ciência normal está ligada.”
Ademais, Kuhn pondera que a busca por novas teorias geralmente trazem também período de inseguranças e crises, visto a queda de paradigmas estabelecidos. Contudo, o autor[11] defende que “as crises são uma pré-condição necessária para a emergência de novas teorias.”
Esse período de crise, segundo Kuhn[12], pode terminar de três formas: a) a “ciência normal” acaba revelando-se capaz de tratar do problema que provoca a crise; b) o problema resiste, não obstante novas abordagens. Nesse caso, os cientistas podem concluir que nenhuma solução poderá ser dada ao problema, que recebe então um rótulo e é posto de lado para ser resolvido por uma futura geração, que possa dispor de instrumentos mais elaborados; e c) surge um novo paradigma e aí trabalha-se para sua aceitação pela comunidade científica.
Importante destacar, que, para abandonar um paradigma vigente, necessariamente significa abandonar a “ciência normal”. Assim, tem-se que um novo paradigma surge apenas após o fracasso de um paradigma vigente adotado pela comunidade científica na utilização da “ciênica normal”. Nota-se que, não obstante a queda de um paradigma existente há a necessidade de convencer a comunidade científica desse fato e que um novo paradigma existe e que pode orientar futuras pesquisas sobre o problema, abrindo um novo campo de estudo.
Kuhn ressalta que a tarefa de convencer o meio científico é árdua e por vezes apenas ocorre quando morrem os últimos opositores. Outros fatores que não podem ser ignorados é nacionalidade, escolas, personalidade dentre outros. Ademais, pode acontecer do cientista não estar preparado para o fracasso de um paradigma vigente e o surgimento de um novo paradigma, necessitando do apoio da comunidade científica para a troca de informações, estudos e idéias.
O autor[13] em sua obra ainda faz um paralelo entre as revoluções políticas e revoluções científicas, afirmando que aparece um sentimento crescente, restrito a um grupo da comunidade, de que as instituições existentes, no caso das revoluções políticas, ou os paradigmas utilizados, no caso das revoluções científicas, deixaram de funcionar adequadamente aos problemas postos por um meio que ajudaram em parte a criar.
As revoluções políticas e científicas, em um caso e em outro, visam realizar mudanças, que são proibidas pelas instituições, no caso político, ou pelos paradigmas existentes, no caso das ciências. A importância da crise se deve ao fato de que os membros da comunidade são levados por vezes a escolhas de novas instituições ou paradigmas, usando como meio de ação a força ou a persuasão, no caso das revoluções políticas ou científicas, respectivamente.[14]
Kuhn[15] pondera que o estudo histórico da mudança de paradigmas revela características tal como a escolha entre duas instituições políticas em competição que utilizam seus próprios paradigmas para argumentarem em favor desses mesmos paradigmas.
2.POLÍTICA PÚBLICA HABITACIONAL NO BRASIL
As Políticas Públicas podem ser tratadas como um conjunto de ações desencadeadas pelo Estado Brasileiro nas esferas federal, estadual e municipal, com o objetivo de atender a determinados setores da sociedade civil. O Contrato Social gera, para os cidadãos, a expectativa de que cabe ao Estado propor e gerir ações que diminuam o risco à sociedade como um todo e promova o progresso em diversos setores considerados essenciais, trazendo o bem-estar para essa mesma sociedade.
Assim, pode inferir que Políticas Públicas são “totalidade de ações, metas e planos que os governos (nacionais, estaduais ou municipais traçam para alcançar o bem-estar da sociedade e o interesse público.”[16]
O direito à moradia (artigo 6º, inserto no Título II, do Capítulo II, da CF) está inserido no princípio da dignidade humana, vigente no Estado Democrático de Direito adotado pelo Brasil e é considerado condição sine qua non para que outros princípios sejam alcançados.
A Constituição Federal, em seu artigo 23, IX, estabelece ainda que é dever do Estado, nas suas três esferas, promover programas de construção de moradias e melhorias nas condições habitacionais e de saneamento básico.
O Artigo 7º ainda salienta que o direito à moradia também faz parte das necessidades básicas dos direitos dos trabalhadores, no qual o salário mínimo deve atender.
O Poder Executivo, em todas as instâncias do governo, é o responsável por idealizar, planejar e executar as políticas públicas no Brasil. Elas são criadas e instituídas por instrumentos legais e acabam caracterizando determinado aspecto social, territorial, cultural econômico de determinada época, estabelecendo planos, diretrizes e metas[17], conforme abaixo elencado.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas – IBGE, o Brasil é considerado um país predominantemente urbano[18]. De acordo com o seu site “o Brasil chegou ao final do século XX como um país urbano: em 2000 a população urbana ultrapassou 2/3 da população total, e atingiu a marca dos 138 milhões de pessoas.”
De fato, a questão habitacional é um grande desafio postos para o Estado, e constatam-se diversas ações governamentais, em diversos níveis de atuação e intensidade, na busca de uma solução.
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA[19], o principal desafio das políticas públicas é “permitir o acesso a uma moradia adequada para todos, compatível com o tamanho, nível de renda e de diferentes necessidades habitacionais das famílias brasileiras”.
2.1.PARADIGMA 1 – REGIME MILITAR (1964-1985)
Com o golpe militar no Brasil em 1964, os militares tentaram estancar a forte crise habitacional que pairava no país criando o Banco Nacional de Habitação – BNH (Lei n.º 4.380 de 1964). O principal objetivo do governo militar com a criação do BNH era angariar o apoio das massas populares e criar uma política permanente de financiamento “capaz de estruturar em moldes capitalistas o setor da construção civil habitacional”[20]. Assim, o sistema habitacional montado durante o governo militar foi estruturado a partir do princípio da auto-sustentação financeira da atividade.
De acordo com Itaque Santana Barbosa[21] o problema habitacional foi escolhido como um dos principais desafios pelo governo ditatorial. Vários fatores contribuíram para essa escolha: (i) magnitude que o problema habitacional tinha atingido no debate público; (ii) preocupação com relação à legitimação ideológica do novo regime e o combate ao comunismo – Autor inclusive cita pesquisa não divulgada na época – no qual afirmava “a casa própria” ser a principal aspiração do brasileiro; (iii) pressão realizada por setores organizados, como o Sindicato da construção civil.
Os militares tinham uma grande preocupação em combater as idéias comunistas e progressivas no país – em especial as idéias vindas da revolução cubana, motivo pelo qual tentaram ao máximo incutir na cabeça dos brasileiros a tão sonhada “casa própria”.
No entanto, Nabil Bonduki[22] destaca que foi
“o papel econômico desta política habitacional – que dinamizou a economia, através da geração de empregos e fortalecimento do setor da construção civil – que a transformou num dos elementos centrais da estratégia dos governos militares”.
Veio a Lei 4.591/64, que regulamentou as atividades da incorporação imobiliária através das relações incorporador, o construtor e o comprador e, em 1967, foi instituído o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS.
O FGTS, com a criação de Associações de Poupança e Empréstimo (APE) e Sociedades de Crédito Imobiliário (SCI) constituía o Sistema Financeiro de Habitação – SFH, que permitiria a captação de recursos específicos e subsidiados que somariam um montante significativo para o investimento inicial. Houve também a criação de um conjunto de diretrizes gerais a serem seguidas pelos órgãos executivos. [23]
Conforme já ressaltado o SFH tinha como objetivo ser um sistema de produção habitacional que se auto-financiasse. Itaque Santana Barbosa[24] demonstra que o SFH era baseado em dois subsistemas, baseados nas suas fontes de recursos: o Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE) e o BNH-FGTS.
O Autor supramencionado[25] explica que o primeiro subsistema, SBPE, era composto pela poupança voluntária, mobilizada pela CEF ou bancos privados. O BNH controlava o SBPE e era responsável pela normatização e fiscalização da utilização dos recursos. Era o BNH, portanto, que definia as condições de financiamento das unidades habitacionais aos consumidores finais – mutuários. Os recursos da SBPE era captados pelas Associações de Poupança e Empréstimo (APEs) que destinavam ao financiamento da produção habitacional realizada pela incorporação imobiliária. Esse subsistema (promoção privada) repassava exclusiva e diretamente o dinheiro (aproximadamente 80% do capital necessário para à realização do empreendimento) para o incorporador imobiliário. Uma vez captados os recursos necessários ao empreendimento, o incorporador assumia a responsabilidade pela construção e venda das unidades aos consumidores finais. Após a edificação e venda das unidades autônomas aos consumidores finais, o incorporador quitava seu financiamento com o SFH. Os consumidores finais se tornavam mutuários só sistema.
Já o segundo sistema (promoção pública) tinha como foco a produção de habitações de interesse social. Tinha como fonte de recursos o FGTS (constituído por contribuição compulsória no valor de cerca de 8% dos salários da economia formal). O BNH repassava os recursos do FGTS mediante a apresentação de projetos julgados adequados às políticas do banco pelas COHABs. Itaque Santana Barbosa[26] ressalta que “diferentemente do incorporador provado, que ao operacionalizar a venda ao consumidor final saía de cena, as Cohab’s eram responsáveis pelas unidades até a integralização dos saldos devedores.”
Como característica da época política, o BNH cotinha pressupostos rígidos e centralizados, de administração autoritária. Assim, adotava como a única forma de acesso à moradia a adoção da casa própria, restando inerte e omisso com relação a processos alternativos de produção da moradia que utilizasse o esforço próprio e a capacidade organizativa das comunidades. Essa omissão acarretou na exclusão de parcela significativa da população de baixa renda do atendimento da política habitacional e quando abarcava essa parcela da população, ocorria um alto índice de inadimplência.[27] Em conseqüência, houve um aumento crescente de centros urbanos precários, como favelas, vilas irregulares dentre outros.
Nabil Bonduki[28] salienta que
“dentre os erros praticados se destaca a opção por conjuntos na periferia das cidades, o que gerou verdadeiros bairros dormitórios; a desarticulação entre os projetos habitacionais e a política urbana e o absoluto desprezo pela qualidade do projeto, gerando soluções uniformizadas, padronizadas e sem nenhuma preocupação com a qualidade da moradia, com a inserção urbana e o com o respeito ao meio físico. Indiferente à diversidade existente num país de dimensões continentais, o BNH desconsiderou as peculiaridades de cada região, não levando em conta aspectos culturais, ambientais e de contexto urbano, reproduzindo à exaustão modelos padronizados”.
Segundo Adauto Lucio Cardoso[29], mesmo com todas as suas deficiências diante do acelerado processo de urbanização, o BNH durante sua existência – 20 anos – produziu aproximadamente 4,5 milhões de unidades, 48,8% para a classe média e 33% formalmente destinados aos setores populares.
Em breve síntese, podemos definir o paradigma habitacional ocorrido no período do gole militar no Brasil, através do seguinte esquema:
*Plano Cognitivo (representação)
– Preocupação: fazer da política habitacional, baseada na casa própria, um instrumento de combate as idéias comunistas e progressivas no país, em tempos de guerra fria e de intensa polarização política e ideológica em todo continente; e
– Administração autoritária, rígida e centralizada;
*Plano Normativo
– Dar uma resposta à forte crise de moradia presente num país que se urbanizava rapidamente e buscar apoio nas massas populares (criação do Banco Nacional de Habitação); e
– Criar uma política permanente de financiamento capaz de estruturar em moldes capitalistas o setor da construção civil habitacional com rigidez e centralização;
*Plano Operacional
– Criação do Banco Nacional de Habitação: apresentou relevantes características na estrutura e na concepção dominante de política habitacional; e
– Criação de um sistema de financiamento que permitiu a captação de recursos específicos e subsidiados (apoiado no FGTS – criado em 1967) que somariam um montante significativo para o investimento inicial.
2.1.1.CRISE DO PARADIGMA 1 – REGIME MILITAR (1964-1985)
Apesar do modelo implantado pelo regime militar ter representado um avanço no setor habitacional do país, o mesmo mostrou não ser suficiente para atender as demandas da população urbana que não parava de crescer. Esse fato gerou uma forte recessão nos anos 80 caracterizada pela inflação crescente, o desemprego e, consequentemente, o alto índice de inadimplência dos mutuários.
Em paralelo, o movimento pelas eleições diretas para Presidente e pela constituinte ganhou grande mobilização popular, que culminou na queda do regime militar em 1985. Após a sua queda, a situação se agravou e instaurou-se o caos.
Com a posse de Sarney em 1985 inicia-se a chamada Nova República. O novo governo empossado encontrava-se em uma situação difícil, visto que no setor habitacional havia um alto índice de inadimplência, baixa liquidez do sistema e movimento dos mutuários.[30]
Em meio à crise, em 1986 o BNH foi extinto sem grandes resistências e suas atribuições foram incorporadas pela Caixa Econômica Federal-CEF. Desde então, a Caixa Econômica Federal se tornou a única agência financiadora dos programas relacionados à habitação. Tal fato acarretou em um enorme vazio institucional na área habitacional, visto que o BNH havia financiado a maior produção habitacional da história do país.
Nabil Bonduki[31] destaca “Na redemocratização, ao invés de uma transformação, ocorreu um esvaziamento e pode-se dizer que deixou propriamente de existir uma política nacional de habitação.”
A inexistência de uma referência para a política pública habitacional trouxe retrocesso, caracterizado pela ausência de metas, estratégia e descontinuidade administrativa, tanto que a gestão da política habitacional pulou de ministério em ministério.
Os movimentos sociais, como os sem-terra (urbano), evidenciaram a necessidade de se institucionalizar uma política pública que solucionasse a situação. Esses movimentos sociais eram compostos por brasileiros que não conseguiam financiamento para a aquisição da casa própria, bem como por aqueles que não conseguiam adimplir com seus financiamentos.[32]
A Constituição de 1988 marcou a gradual transferência de atribuições da esfera federal para os Estados e Municípios, fator que tornou a habitação uma atribuição concorrente dos três níveis de governo. Os movimentos sociais por uma instituição e políticas públicas no setor habitacional favoreceram uma maior participação dos Municípios. A consolidação da democracia tornou o poder local o principal interlocutor das comunidades e organizações populares. Tal fato gerou uma tendência de descentralização dos programas habitacionais, prestigiando a estrutura e gestão administrativa dos estados e municípios.[33]
Nabil Bonduki[34] destaca que nessa época surgem um amplo conjunto de experiências municipais de habitação, o que acarretou na diversidade de iniciativas e pouca articulação.
No governo Collor reinou o favorecimento e o clientelismo. A má utilização do FGTS suspendeu qualquer investimento do recurso pelo prazo de 2 anos para possibilitar uma reestruturação do fundo.
2.2.PARADIGMA 2 – GOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO (1995-2003)
Em 1995 o governo federal passa a ser administrado por Fernando Henrique Cardoso que marca o começo de um novo período habitacional. A política construída ao longo do seu governo partiu de um diagnóstico do problema habitacional do Brasil. Esse diagnóstico baseou-se num estudo da Fundação João Pinheiro, realizada em 1995. O estudo em referência redefiniu o conceito de déficit habitacional, a partir da inclusão, no conceito de necessidade de adequação das áreas urbanas criadas ilegalmente. Ademais, o estudo apontou que os problemas habitacionais estavam tão agravados que o governo federal sozinho não seria capaz de financiar sua solução.[35]
Princípios como flexibilidade, descentralização e reconhecimento da cidade real marcam o governo FHC, bem como o reconhecimento de legalidade e ilegalidade habitacional, criados para denominar favelas e cortiços como habitações ilegais[36].
Itaque Santana Barbosa destaca[37] que nesse período houve o “fim do princípio da auto-sustentação financeira na política habitacional (…) na produção habitacional para as populações de mais baixa-renda. Os problemas do SFH foram finalmente debelados pelas mudanças que criaram o Sistema Financeiro Imobiliário – SFI. E, a utilização dos recursos do FGTS na produção habitacional teve seu escopo ampliado.”
Para Camilla Fernandes Moreira e Alessandro André Leme[38] os principais pontos de relevância do governo FHC no que se trata à moradia são os seguintes:
“o reconhecimento da cidade legal e a extensão dos direitos e da cidadania; o conceito de déficit que incorporou áreas ocupadas precariamente; a descentralização dos programas, tais como: Pró-moradia, Habitar Brasil, Carta de Crédito Individual Associativa; Apoio à Produção.”
Itaque Santana Barbosa[39] dividiu os programas elaborados e implementados em três grupos:
– O primeiro grupo seria composto por programas voltados à melhoria do funcionamento do mercado de habitações. Visava principalmente a faixa renda superior a 12 salários mínimos. Os principais programas eram o Programa Brasileiro de Qualidade e Produtividade Habitacional, o Sistema Nacional de Certificação e o Sistema Financeiro Imobiliário.
– O segundo grupo era composto por programas destinados ao financiamento, e, alguns casos a fundo perdido, da recuperação de áreas habitacionais degradadas, ocupadas por populações de até 3 salários mínimos. O foco era a melhoria ou construção de habitações e infraestrutura urbana. Os principais programas eram o Pró-Moradia e o Habitar-Brasil.
– O terceiro grupo era composto por programas de financiamento de longo prazo, destinados à população de renda familiar entre 3 e 12 salários mínimos. O principal programa era a carta de crédito – FGTS. O programa tinha duas modalidades de funcionamento: um era a carta de crédito individual. Este era um crédito direto ao consumidor, destinado à compra de material de construção, para reforma, ou construção de um imóvel ou à compra de um imóvel usado. A segunda modalidade era a Carta de Crédito Associativo. Esta na prática se converteu em um mecanismo do setor privado, a incorporação imobiliária, pode captar recursos do FGTS com o fim de aplicá-los na produção de habitações novas.
A Carta de Crédito Individual Associativa representou o maior destaque entre os programas, sendo que cerca de 85% dos recursos administrados pela União destinados a habitação, foram consumidos pelo programa. Porém nenhum desses programas apresentou a repercussão esperada.
As alterações executadas pelo governo FHC representaram um impacto diante das políticas promovidas pelo BNH em tempos ditatoriais, porém não alavancou uma nova política habitacional. Pelo contrário, restou por gerar efeitos negativos, do ponto de vista social, econômico e urbano, pois contribuiu para a produção informal da moradia.[40]
Ademais, houve a incidência do mesmo problema quando do regime militar: apesar do resultado quantitativo – números de beneficiados – o quesito qualitativo restou prejudicado, visto que os programas acabaram por incentivar moradias informais da má qualidade.
Para Camilla Fernandes Moreira e Alessandro André Leme[41] destacam:
“Dessa forma, observa-se como o crescimento de favelas pode se tornar um indicador da gravidade da situação urbana no Brasil. Sabe-se que de 1995 a 1999 foram construídos 4.4 milhões de moradias no país. Destas, apenas 700 mil foram realmente construídas formalmente, isto é, foram financiadas pelo mercado legal privado ou público no Brasil. O saldo restante, 3 milhões e 700 mil foi erguido por iniciativa da própria população, dos excluídos do mercado formal.”
Um marco importante, porém, no governo FHC, foi a aprovação pelo Congresso Nacional e promulgação presidencial do Estatuto da Cidade, em 2001, depois de 13 anos de tramitação, um componente indispensável para o equacionamento da questão habitacional no país.
O Estatuto da Cidade define os instrumentos que o poder público pode utilizar para garantir o cumprimento da função social da propriedade, da regularização fundiária e a gestão democrática e participativa da cidade.
Em breve síntese, podemos definir o paradigma habitacional ocorrido no período do governo administrado por Fernando Henrique Cardoso, através do seguinte esquema:
*Plano Cognitivo (representação)
– Renovação na maneira como a questão da habitação passou a ser tratada pelo Governo Federal: Extensão dos direitos e da cidadania;
– O reconhecimento da cidade ilegal (favelas e cortiços como habitações ilegais);
– Novos referenciais: Flexibilidade, descentralização, diversidade;
– Reconhecimento da importância da questão fundiária e Urbanística; e
– Reconhecimento de que o déficit habitacional se concentra de forma radical nas camadas de rendas mais baixas.
*Plano Normativo
– Descentralização dos programas de Governos: União/Estados e Municípios;
– Rejeição aos programas convencionais, baseados no financiamento direto à produção de grandes conjuntos habitacionais e em processos centralizados de gestão;
– Diminuir o desemprego e a queda de renda;
– Melhoria das áreas ocupadas precariamente = cidades ilegais; e
– Reorganização institucional;
*Plano Operacional
– Diversidade de programas rompendo com a rigidez e a padronização excessiva (Programas Criados: Pró-moradia; Habitar Brasil; Carta de Crédito Individual e Associativo, e Apoio à Produção);
– Retomada nos financiamentos de habitação e saneamento com base nos recursos do FGTS;
– Criação de programas de financiamento voltados ao beneficiário atual (carta de crédito, individual e associativa);
– Urbanização de áreas precárias (pró-moradia);
– Programa de arrendamento residencial – PAR;
– Marcos Importante: Direito à moradia (Emenda 26/00 – CF) e aprovação do Estatuto da Cidade em 2001; e
– Extinção do Ministério do Bem-Estar Social e a criação da Secretaria de Política Urbana (SEPURB) no âmbito do Ministério do Planejamento e Orçamento (MPO), esfera que ficaria responsável pela formulação e implementação da Política Nacional de Habitação;
2.3.PARADIGMA 3 – GOVERNO LULA (2003-2010)
Após o Censo de 2000, a necessidade de novas moradias em todo o país é de 6,65 milhões, sendo 5,4 milhões nas áreas urbanas e 1,2 milhão na área rural. Em números absolutos, a maior parte dessa necessidade concentra-se nos Estados do Sudeste (41%) e do Nordeste (32%), sendo que 83,2% do déficit habitacional urbano está concentrado nas famílias com renda mensal de até três salários mínimos.
No governo Lula há a criação dos Ministérios das Cidades, com o caráter de órgão coordenador, gestor e formulador da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, envolvendo, de forma integrada, políticas relacionadas à cidade. O Ministério das Cidades constituiu um fato inovador, na medida em que superou o recorte setorial da habitação. O site do Ministério das Cidades[42] afirma que:
“A estrutura do MCidades constitui hoje um paradigma, não só em território brasileiro, mas como em toda a América Latina. O movimento social formado por profissionais, lideranças sindicais e sociais, ONGs, intelectuais, pesquisadores e professores universitários foi fundamental para a criação do Ministério das Cidades. Esse movimento alcançou várias conquistas nos últimos 15 anos tais como a inserção inédita da questão urbana na Constituição federal de 1988, a lei federal Estatuto da Cidade, de 2001, e a Medida Provisória 2220, também de 2001.
Outro aspecto fundamental de sua criação está na busca da definição de uma política nacional de desenvolvimento urbano em consonância com os demais entes federativos (município e estado), demais poderes do Estado (legislativo e judiciário) além da participação da sociedade visando a coordenação e a integração dos investimentos e ações nas cidades do Brasil dirigidos à diminuição da desigualdade social e à sustentabilidade ambiental.
Mais do que 80% da população brasileira mora em cidades no ano 2000, segundo o IBGE. Com a criação do Ministério das Cidades o governo federal ocupa um vazio institucional e cumpre um papel fundamental na política urbana e nas políticas setoriais de habitação, saneamento e transporte sem contrariar, mas reforçando, a orientação de descentralização e fortalecimento dos municípios definida na Constituição Federal de 1988.”
Mesmo apresentando sua importância no cenário histórico do desenvolvimento habitacional, faz-se necessário observar sua fraqueza institucional, uma vez que a CEF, principal agente financeiro de recursos do FGTS, é subordinada ao Ministério da Fazenda, demonstrando na prática a autoridade e responsabilidade de aprovação dos pedidos de financiamento unicamente da CEF.[43]
O projeto moradia concebido pelo governo FHC foi englobado pelo Ministério das Cidades, no qual houve por bem em estabelecer a participação de vários segmentos da sociedade, a saber: sindicatos, entidades empresariais, associações, concessionárias de serviços públicos, entidades de representantes de vereadores, dentre outros. Tal fato permitiu a criação de fóruns de debate na maioria das cidades do país. O projeto destacou a competência concorrente entre as três esferas de Governo (União, Estados e Municípios) e conseguiu criar um sistema central e único, com atribuições específicas para cada esfera do governo. Ademais, tem-se que o projeto em referência visou reunir três fontes básicas de recursos, e não mais somente o FGTS, buscando adequar a capacidade de pagamento à necessidade de moradia. [44]
*Plano Cognitivo (representação)
– Permanência de um elevado déficit habitacional concentrado na baixa renda;
– Moradia = significava garantir o direito à cidade, envolvendo o acesso à infra-estrutura e aos serviços urbanos;
– Todo Cidadão tem direito a uma moradia digna; e
– Prioridade Nacional: equacionamento global da questão da habitação no Brasil;
*Plano Normativo
– Necessidade de se formular estratégias mais eficazes para atender as faixas de menor poder aquisitivo;
– Transformar a moradia em uma prioridade nacional;
– Projeto: partia do pressuposto de que era fundamental a dinamização do mercado habitacional para a classe média – a ser atendida com recursos da poupança e do sistema financeiro imobiliário – de modo que este segmento pudesse deixar de utilizar o FGTS, que seria voltado para as faixas de renda mais baixas;
– Estratégia geral partia do pressuposto de que para enfrentar a magnitude do problema habitacional era necessário congregar os esforços dos três níveis de governo, criando um sistema único e articulado do ponto de vista institucional e financeiro, o Sistema Nacional de Habitação; e
– Financiar programas de urbanização de favelas e assentamentos precários;
*Plano Operacional
– Envolver todos os níveis de governo, setor privado, ONG’s, universidades, movimentos Sociais etc;
– Criação do Ministério das cidades: criado com o caráter de órgão coordenador; gestor e formulador da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano; e
– Instituir três fontes básicas de recursos e não mais somente o FGTS, que agora se uniria ao mercado e ao fundo de subsídio, buscando ajustar a capacidade de pagamento à necessidade de moradia.
SÍNTESE CONCLUSIVA
No regime militar busca-se afastar as idéias comunistas e estabelecer as idéias capitalistas com o discurso do “sonho da casa própria”. Ocorre a criação do Banco Nacional de Habitação – BNH e apesar das severas críticas produziu milhões de unidades habitacionais e buscou dar um norte para o setor.
O período de redemocratização ficou marcado pelos retrocessos ocorridos no governo Sarney e Collor. As políticas Públicas no setor habitacional somente tiveram respaldo, coerência e resultados com o governo FHC. O Estatuto da Cidade foi um marco importante e, no governo Lula, houve uma forte ampliação das políticas públicas, com a criação do Ministério das Cidades.
Não obstante, constatou-se com o presente trabalho que todos os paradigmas adotados pelos governos analisados não conseguiram alcançar e acompanhar o crescimento urbano no Brasil, que se deu de forma desenfreada, acarretando em cidades desiguais, no qual a maioria da população vive em condições precárias, longe do ideal determinado pela Carta Magna. Portanto, conclui-se que as políticas públicas adotadas pela administração pública não foram suficientes.
A Constituição Federal de 1988 avançou na consolidação institucional da política habitacional, bem como a competência concorrente das três esferas do governo (Federal, Estadual e Municipal), mas o que se constata é a prática das administrações públicas ainda não conseguiu assegurar de forma efetiva a política de moradia como direito humano universal.
Informações Sobre o Autor
Renata de Souza Maeda
Advogada graduada pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB. Possui especialização em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília – UnB, especialização em Contratos e Responsabilidade Civil pelo Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP e MBA em Direito da Economia e da Empresa pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Atualmente é Mestranda em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB