Resumo: A “consulta fiscal” é relevante e profícuo instituto do Direito Tributário brasileiro, em que predomina a animosidade e a incerteza nas relações jurídicas tributárias, como instrumento de colaboração entre o Fisco e o contribuinte, orientado à garantia da segurança jurídica na tributação e à melhora no trato entre os seus sujeitos, no intuito de aumentar a eficácia social das normas tributárias e a melhor distribuição dos ônus tributários dentre os indivíduos. Para que a consulta se torne um instrumento atraente, a conduta do Estado perante o consulente deve ser a mais leal e coerente possível. O estudo a seguir analisa as balizas desta lealdade e coerência visando elucidar se o Fisco estaria permanentemente vinculado ao critério jurídico informado ao consulente na resposta ou se, podendo alterá-lo, seja revogando a resposta anterior, seja quando do lançamento, quais consequências são geradas. A questão merece ser desenvolvida porque, se estabelecido que a boa-fé da Administração perante o consulente é basilar à consulta fiscal, parece injusto que ela possa alterar livremente o entendimento sobre a norma tributária, fornecido através da resposta, e aplicar a nova interpretação retroativamente constituindo o crédito tributário e autuando o contribuinte, frustrando a sua legítima expectativa. Entretanto, não se pode olvidar que vigora em nosso sistema o princípio da legalidade e que o lançamento tributário é ato vinculado e obrigatório, assim, mesmo que um sopesamento dos princípios confluentes in casu apontasse o impedimento da retroação do novo critério jurídico como a solução mais justa, a Administração estaria em tese obrigada à mera aplicação automática do prévio sopesamento contido nas normas. A pesquisa então apresenta a legislação regula esta situação para depois discorrer sobre a possibilidade de o administrador proceder a um sopesamento entre a legalidade e os princípios correlatos à boa-fé objetiva, podendo afastar a aplicação do disposto na norma positivada e optar por solução mais protetiva da boa-fé do contribuinte, mesmo que contra legem. Por fim analisa-se o recurso ao Judiciário pelo contribuinte que se julgue injustiçado pela mudança da resposta, sendo abordada a sua diferente leitura do ordenamento em relação à Administração e a possibilidade de o administrado pleitear indenização por eventuais danos que tenha sofrido em virtude de sua adesão voluntária à resposta modificada supervenientemente.[1]
Palavras-chave: Consulta fiscal; Boa-fé objetiva no Direito Tributário
Abstract: The "tax consultation" is a relevant and proficuous instrument in the context of taxation in Brazil, in which predominates animosity and uncertainty, as an mechanism of cooperation between the State and the taxpayer, aimed at ensuring legal certainty and pacifying the relations between the subjects of taxation in order to improve the social effectiveness of taxes and the best distribution of the tax burden among individuals. To be attractive to taxpayers the conduct of the State before the inquirer should be the most loyal and consistent as possible. The following study analyzes the limits of this loyalty and consistency in order to elucidate whether the State would be permanently linked to the legal criterion informed to the inquirer in the response or if it can be changed, either by an annulment of the previous answer or in the moment of constitution of the tax credit, and also the consequences generated by it. The question deserves attention because if it was established that the good faith of the Administration before the inquirer is fundamental to the tax consultation, it seems unfair that it can freely change the understanding of the tax rule, provided through the response, and apply the new interpretation retroactively constituting the tax credit and fining the taxpayer, frustrating his legitimate expectation. However, since prevails in our system the principle of legality and that the constitution of the credit is a binding act, even if the balancing of the confluent legal principles points the non- retroactivity of the new criteria as the fairest solution, the State would be obliged to the mere mechanical application of the law. The study then presents how the brazilian law regulates this to then discuss the possibility of the carrying out of a balancing between legality and the principles related to the objective good faith carried out by the tax authority, allowing it to choose the solution that most suits the loyalty and fairness that are essential to the “tax consultation” even if it is contra legem. Finally it is analyzed how the Judiciary would deal with the same situation and the possibility of indemnization of the taxpayer for any damage caused by the modified response.
Keywords: Tax consultation, Objective good faith in Tax Law
A tributação é fenômeno tão necessário quanto rejeitado na vida sob o manto do Estado Democrático de Direito. Em que pese a doutrina apresentar justificativas tão diversas quanto bem fundamentadas para o exercício do poder tributário pelo Estado, nenhuma delas foi capaz de convencer os contribuintes a pagar os tributos de forma complacente, certos de que assim garantem o exercício de sua liberdade e o usufruto de direitos fundamentais garantidos pelo Estado.
A inerente aversão à tributação parece decorrer do fato de que com o fim de garantir os direitos fundamentais, ela acaba por interferir em dois deles, dos mais caros ao indivíduo na sociedade capitalista, a liberdade e a propriedade privada.
Esta resistência às normas tributárias é uma realidade que não pode ser ignorada, porquanto a tributação é atividade instrumental do Estado, utilizada para o atingimento dos fins constitucionais que justificam e orientam a sua existência, tais como a garantia dos direitos fundamentais e a promoção do bem-comum. Destarte, a resistência fiscal, que tem por consequência a baixa eficácia social das normas tributárias, representa uma ameaça à capacidade do Estado em atender às demandas de seus cidadãos, prejudicando a harmonia e o bem-estar cuja proteção é sua obrigação institucional, o que resulta em perda de sua legitimidade.
À natural resistência ao exercício do poder tributário agregam-se outros elementos exaltadores da conflituosidade na relação Fisco-contribuinte nociva à eficiência da atividade tributária, sendo um dos principais a complexidade da legislação, que gera óbice à clara compreensão pelo contribuinte de sua situação jurídica perante o Fisco, impossibilitando-o de planejar seguramente sua vida fiscal e deixando-o constantemente temeroso de que efetuou irregularidades no cumprimento de seus deveres fiscais e que darão ensejo a penalidades prejudiciais ao exercício de sua atividade econômica.
Neste contexto cresce a importância de canais de comunicação através dos quais a autoridade tributária presta assistência ao cidadão fornecendo-lhe as informações necessárias à exata compreensão de sua situação jurídica, visando o cumprimento adequado da norma e fomentando a adesão voluntária aos mandamentos do ordenamento jurídico-tributário.
Dentre estes canais de comunicação destaca-se a “consulta fiscal”, objeto do presente trabalho, que é um processo administrativo regido pelo Decreto-lei n. 70.235/72 através do qual o sujeito passivo efetivo ou potencial de relação jurídica tributária ou entidade que o represente indaga formalmente à autoridade competente sobre a aplicação da legislação tributária a fato determinado.
A “consulta fiscal” é instrumento relevante e profícuo no contexto brasileiro, em que predomina a animosidade e a incerteza nas relações jurídicas tributárias, como instrumento de colaboração entre o Fisco e o contribuinte, orientado à garantia da segurança jurídica na tributação e à melhora no trato entre os sujeitos da relação jurídica tributária, visando a maior eficácia social das normas tributárias e a melhor distribuição dos ônus tributários dentre os indivíduos.
Estabelece-se a premissa de que a conduta do Estado perante o consulente deve ser a mais leal e coerente possível para que a consulta se torne um instrumento atraente, promovendo a generalização de sua utilização, o que traria benefícios tanto para o Estado – o maior interessado na eficácia do sistema tributário – quanto para os contribuintes, que através dela obtém a segurança necessária para planejarem sua atividade econômica.
O estudo a seguir visa analisar as balizas desta lealdade e coerência visando elucidar se a autoridade tributária estaria permanentemente vinculada ao critério jurídico informado ao consulente na resposta ou se, podendo alterá-lo, seja revogando a resposta anterior, seja quando do lançamento, quais consequências são geradas.
O trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro, o fenômeno da tributação é apresentado como imprescindível à existência do Estado Democrático de Direito, mas, ao mesmo tempo gerador de grande rejeição social. O intuito é demonstrar que, portanto, incumbe ao ente estatal o constante desafio de aprimorar a sua relação com os contribuintes, para que a eficiência da atividade tributária seja a maior possível e assim ele possa cumprir melhor os deveres constitucionais que lhe incumbem, preservando a sua legitimidade.
A análise prossegue com a demonstração de outro elemento que somado ao natural asco do cidadão aos tributos contribui sensivelmente para a ineficácia das normas tributárias em nosso país: a complexidade da legislação tributária. São debatidos aspectos problemáticos de nosso ordenamento e suas causas. Após, discorre-se sobre as dificuldades que a nebulosidade da legislação representa tanto para o Fisco, que enfrenta entraves à arrecadação como a má captação da capacidade contributiva, a sonegação, a corrupção e longos debates judiciais, que afetam diretamente a eficiência arrecadatória, quanto para o contribuinte, que vê os custos de transação de sua atividade econômica aumentados, pois enfrenta problemas no planejamento tributário, eventualmente recolhendo valor a maior ou a menor do que deveria, ou até deixando de recolhê-lo, sofrendo com penalizações.
Associa-se a dificuldade de compreensão das normas à quebra da isonomia entre os contribuintes, dado que aqueles capazes de acessar a informação jurídica fiscal – contratando consultores fiscais, advogados tributaristas, etc. – encontram-se em plena vantagem perante aqueles que por ignorância e/ou falta de recursos materiais para bancar consultores, está condenada a arcar com a crescente carga fiscal, sem a possibilidade de contestá-la (Dummensteuereffekt).
Faz-se a ressalva de que a complexidade da legislação tributária não é necessariamente ruim, dado que a crescente complexidade das relações econômicas e sociais requer um sistema tributário igualmente complexo, para que possam ser captadas todas as suas sutilezas e melhor repartir os ônus tributários pelos diversos setores da sociedade.
Também se aponta que a dificuldade de interpretação da legislação é de certa forma decorrência da ínsita plurivocidade da linguagem jurídica e dos termos técnicos utilizados pelo Direito Tributário especificamente.
Tendo em consideração a multiplicidade de interpretações a que estão sujeitas as normas tributárias, ressalta-se a relevância e a utilidade da consulta fiscal por ser instrumento através do qual se obtém a interpretação adotada pelo Fisco, o autêntico hermeneuta da norma tributária e, destarte, a mais apta a fornecer segurança jurídica ao contribuinte.
Chega-se então ao tópico mais importante do primeiro capítulo, em que se apresenta a conduta ética da Administração perante o consulente como condição de efetividade da consulta fiscal. Aponta-se o respeito à moralidade administrativa como pressuposto à eficácia social da consulta, pois, somente caso o Fisco se porte de maneira leal perante aqueles que dela se valham, ela se tornará atraente para os cidadãos, incentivando-os a utilizá-la cada vez mais, fortalecendo-a como instrumento de preservação da segurança jurídica e melhora do relacionamento entre as partes envolvidas nas relações tributárias, colaborando assim, para a mudança do atual cenário da tributação no Brasil.
É o tópico que se reveste de maior relevância, porque lança as bases para o debate a ser desenvolvido no último capítulo: a possibilidade e as consequências da alteração pela autoridade tributária do critério jurídico emitido na resposta, seja revogando a anterior, seja quando do lançamento.
A parte final do primeiro capítulo se refere à doutrina da Justiça Fiscal (Steuergerechtigkeit) desenvolvida inicialmente por Tipke e busca demonstrar como a consulta fiscal pode ser utilizada como instrumento de sua promoção.
O segundo capítulo é dedicado à análise pormenorizada de todos os elementos da consulta fiscal.
Inicialmente trata-se dos fundamentos jurídicos da consulta fiscal, sendo apresentados os debates doutrinários sobre qual seria o embasamento constitucional do instituto (direito à informação, direito de petição ou direito à segurança jurídica).
Parte-se então à análise dos sujeitos da consulta – quem pode formular consulta e quem deve respondê-la – sendo revelada uma crítica da doutrina à faculdade de consultar concedida pelo legislador a órgãos da própria Administração Pública.
Em seguida, delimita-se o que pode ser objeto de consulta, sendo defendida a interpretação ampla das matérias consultáveis, já que sua limitação é prejudicial tanto para o contribuinte, quanto para o Fisco, já que o esclarecimento do sentido das normas legais favorece a eficácia social da norma e é dele o maior interesse na efetividade do ordenamento tributário.
Ao final do capítulo, onde são apresentados os efeitos da proposição da proposição da consulta e de sua resposta, todos protetivos do consulente, busca-se demonstrar a atenção que o legislador nacional deu à necessidade de amparo do contribuinte que, por espontaneidade e boa-fé, se dirige ao Fisco em busca de adequar sua conduta à inteligência estatal. Proteção esta essencial à efetividade da consulta fiscal, nos termos do raciocínio desenvolvido no penúltimo tópico do primeiro capítulo.
No terceiro e derradeiro capítulo se parte ao enfrentamento da questão central do presente trabalho: a possibilidade e as consequências de a Administração modificar o critério jurídico informado ao contribuinte através do ato de resposta.
O tema se reveste de grande relevância na hipótese em que, entre a data da resposta dada a uma consulta feita antes da prática do fato gerador e a de sua revisão ou do lançamento, o contribuinte tenha incorrido no fato descrito em sua consulta e procedido conforme a orientação fornecida, ou caso tenha tomado decisões econômicas que não se justificariam caso a resposta não fosse aquela primeira.
Desta maneira, além de frustrar a expectativa do contribuinte que de boa-fé depositou confiança na orientação dada pelo Fisco, a adoção de critério jurídico diverso quando do lançamento também poderia motivar a autuação do contribuinte.
A questão é problemática e merece ser desenvolvida porque, se estabelecido que a boa-fé da Administração perante o consulente é basilar à consulta fiscal, parece injusto que o Fisco possa alterar livremente o entendimento sobre a norma tributária, fornecido através da resposta, e aplicá-lo retroativamente constituindo o crédito tributário e autuando o contribuinte, frustrando a legítima expectativa do administrado sobre a interpretação da lei. Entretanto, não se pode olvidar que vigora em nosso sistema o princípio da legalidade e que o lançamento tributário é ato vinculado e obrigatório, assim, mesmo que um sopesamento dos princípios confluentes in casu – legalidade e boa-fé objetiva – apontasse o impedimento da retroação do novo critério jurídico como a solução mais justa, a Administração estaria em tese obrigada à mera aplicação automática do prévio sopesamento condensado nos mandamentos positivados.
É por isso que, para respondermos a estas questões, devemos primeiramente compreender como o ordenamento jurídico brasileiro regula a possibilidade de o Fisco alterar seu entendimento e se o novo critério pode operar retroativamente sendo constituído o crédito tributário sobre os fatos praticados sob a vigência do critério anterior.
Após a revelação da regulação legal dos efeitos da modificação do critério jurídico da resposta, dado que a contradição entre a orientação fornecida pelo Fisco em resposta e o critério que adote quando do lançamento certamente contraria a confiança que o contribuinte nela deposita, a pesquisa se direciona a descobrir se a invocação dos princípios da boa-fé objetiva, da segurança jurídica e da proteção à confiança, informadores da consulta fiscal, seria capaz de mitigar a adstrição da Administração à estrita legalidade, impedindo-a de alterar o critério jurídico interpretativo informado na resposta ou limitando o seu efeito retroativo e dispensando o contribuinte do pagamento do tributo.
Na tentativa de buscar uma resposta expõe-se inicialmente qual é o conteúdo dos referidos princípios e como se dá a sua aplicação no Direito Público, em especial no Direito Tributário. Exposto o seu conteúdo, discute-se se é lícito ao administrador, diante da situação ora referida, proceder a um sopesamento entre a legalidade e os princípios correlatos à boa-fé objetiva, podendo afastar a aplicação do disposto na norma positivada e optar por solução mais protetiva da boa-fé do contribuinte, mesmo que contra legem.
Neste passo, é analisado o recurso ao Judiciário pelo contribuinte que se julgue injustiçado pela mudança da resposta.
A abordagem desta matéria coloca foco a diferente leitura do ordenamento jurídico a que está obrigado o Poder Judiciário na determinação da solução jurídica das questões sub judice. Isto em função do seu comprometimento institucional com a regulação individual de casos isolados, que lhe obriga a esgotar a potencialidade da norma legal que aplica, buscando por meio do sopesamento principiológico e fundamentação, a extração de normas densificadas, aptas a reger o direito em um caso concreto de modo a se conseguir o mais alto grau possível de justiça material e não meramente operar a subsunção mecânica dos fatos à norma.
Por fim, discorre-se sobre a possibilidade de o administrado pleitear indenização por eventuais danos que tenha sofrido em virtude de sua adesão voluntária à resposta modificada supervenientemente e sobre a inclusão do agente público diretamente responsável pela primeira resposta no polo passivo da ação indenizatória.
1. A CONSULTA FISCAL E SUA FUNÇÃO NO DIREITO TRIBUTÁRIO
1.1. Pagar tributos: imprescindível e rejeitado dever
As únicas coisas certas na vida são a morte e os tributos[2]. Esta célebre máxima, deveras fatalista e sardônica, inspira-se na real inevitabilidade da morte para destacar a dificuldade em se evitar a carga tributária.
Tributos são uma constante durante toda a vida do indivíduo sob a égide do Estado Democrático de Direito. O nascimento é o marco inicial de um longo relacionamento que travaremos com o Fisco. Desde crianças, mesmo que ignoremos a existência dos tributos, já somos relevantes para efeitos de tributação, pois a maioria dos sistemas tributários, como o brasileiro, permite que nossos pais nos reportem como dedução na declaração de imposto de renda. Quando crescemos e iniciamos o exercício de uma atividade econômica, passamos então à posição de pagadores ativos de tributos, e nos defrontamos com uma série sucessiva de obrigações perante o Estado, que perdura até nossos últimos dias. E mesmo abandonando a vida, não somos abandonados pelos tributos, já que estes incindirão sobre nossas conquistas materiais quando transmitidas à próxima geração[3].
E como a morte, apesar de certa e inevitável, a tributação não deixa de nos causar ojeriza e perplexidade. É difícil imaginar qualquer outro fenômeno jurídico que se apresente tão repulsivo e complexo[4] ao cidadão quanto a tributação. Por isso, justificar o exercício desta prerrogativa estatal, promovendo a efetividade da norma tributária sempre representou grande desafio para o Estado.
Várias são as contribuições doutrinárias que buscam justificar o exercício do poder tributário. José Casalta Nabais e Hugo de Brito Machado defendem que pagar tributos é um dever fundamental dos cidadãos, correlato aos direitos que o Estado está obrigado a lhes proporcionar; é o preço que preço que se paga por uma comunidade organizada sob a égide dos direitos fundamentais[5]. Ricardo Lobo Torres, no mesmo sentido, considera a cobrança de tributos como correspectiva à liberdade e aos direitos fundamentais, sendo por eles limitada e, ao mesmo tempo, servindo-lhes de garantia[6]. Para Tipke, os tributos são a garantia da propriedade privada e da liberdade econômica[7]·.
Em comum, esses posicionamentos afirmam que a competência tributária é uma prerrogativa estatal atrelada a uma finalidade. O Estado somente a exerce pelo fato de ser o ente responsável pela garantia dos direitos e liberdades fundamentais, e a cobrança de tributos ser ferramenta imprescindível para que ele suceda nesta tarefa[8].
Apesar de repugnante ao indivíduo, a tributação é, dentre as alternativas que o Estado poderia dispor para obter a indispensável colaboração do particular na consecução de seus fins[9], a mais justa, a mais eficiente e a que menos constringe direitos fundamentais, pois distancia o homem do Estado, permitindo-lhe desenvolver livremente as suas potencialidades no espaço público, sem necessidade de entregar qualquer prestação permanente de serviço ao Estado[10].
Todavia, por mais que esta fundamentação logre êxito em legitimar a tributação sob o aspecto formal, certamente não é suficiente para convencer os cidadãos a pagar os tributos com voluntariedade e prazer, certos de que, assim, estão garantindo o exercício de seus direitos fundamentais.
O natural asco do cidadão aos tributos parece advir do fato de que, com o fim de garanti-los, a tributação acaba por interferir em dois dos direitos mais caros ao indivíduo na sociedade capitalista: a liberdade e a propriedade privada[11]. A sensibilidade dessa interferência é tão latente que leva Ives Gandra Martins a categorizar o tributo como norma de “rejeição social” [12].
A resistência às normas tributárias é uma realidade que não pode ser ignorada, pois a norma sem eficácia social tem prejudicada, no tempo, sua própria existência como norma.
Se é certo que o nascimento da obrigação tributária dispensa a anuência do contribuinte, por outro lado, levando em consideração que atualmente a maioria dos tributos estão sujeitos a lançamento por homologação, a sua colaboração é essencial à revelação da prática do fato gerador ao Fisco para que a relação jurídica possa se formalizar e o crédito se tornar exigível.
Da mesma forma, a aceitação do indivíduo da imposição do ônus tributário é importante para que o tributo seja pago e a obrigação se extinga, porquanto mesmo o Estado podendo dispor da força para buscar o seu cumprimento, o contribuinte sempre poderá dispor de inúmeros artifícios para protelar a cobrança.
Quanto mais resistência os contribuintes oferecerem à tributação menos eficiente será a atividade tributária e menos eficazes serão os tributos como instrumentos do Estado para a consecução dos fins constitucionais que fundamentam a sua existência. Por isso é indispensável ao Estado Democrático de Direito a constante busca por maior aceitação do exercício do poder tributário, concretizando a paz, o bem-estar coletivo e a justiça social.
A legitimação da tributação exige atenção à sua instrumentalidade. Representando restrição de direitos, os tributos somente se justificam enquanto ferramentas para o atendimento das demandas sociais. O exercício do poder tributário não pode ser arbitrário, orientado pela idiossincrasia do legislador, há de ser comprometido com a Justiça e o cumprimento de forma legal e moral[13] dos fins determinados pela Constituição, sempre no intuito de consolidar do modelo de Estado adotado[14].
As autoridades tributárias têm o dever de cobrar e arrecadar os impostos com igualdade e em conformidade com as leis e a moralidade pública. Em particular, devem garantir que todos paguem os tributos, não permitindo que sejam objeto de elusão ou que se apliquem de modo contrário ao Direito.
A cobrança generalizada e equânime de tributos não visa atender ao interesse econômico do Fisco, mas sim ao direito que tem o contribuinte de que todos os demais também paguem os impostos[15] . Assim, não cabe ao funcionário da Administração buscar o máximo de arrecadação, mas sim aplicar o direito material com Justiça[16].
Outrossim, em decorrência do princípio da moralidade a defesa do Erário há de sempre orientada pela ética, sendo dever dos agentes fiscais inicialmente orientar o contribuinte sobre suas obrigações tributárias e ofertar oportunidades de correção sempre que estes se depararem diante de leis dúbias, restando as punições somente para aqueles que agirem de má-fé [17].
Em cumprimento à função ética da tributação, é que são abertos canais comunicativos entre Fisco e contribuinte, como forma de auxílio àquele que, de boa-fé, quer ver eliminada a sua incerteza quanto aos seus deveres fiscais para cumpri-los conforme a intenção do Estado e evitar penalizações.
São canais através dos quais a autoridade tributária presta assistência ao cidadão, sujeito passivo real ou potencial de relação tributária, fornecendo-lhe as informações necessárias à exata compreensão de sua situação jurídica[18], visando o cumprimento adequado da norma e a diminuição de sua rejeição.
Canais estes que tanto serão mais produtivos, quanto maior a confiança que o indivíduo deposite no Estado[19]. É justamente neste contexto que se encaixa o objeto deste trabalho, o processo administrativo de consulta fiscal.
1.2. Panorama de incerteza do ordenamento jurídico tributário brasileiro
A consulta fiscal é processo administrativo[20] regido pelo Decreto-lei n. 70.235/72 através do qual o sujeito passivo, efetivo ou potencial (porquanto a condição de sujeito passivo pode ser exatamente o objeto da consulta), ou entidade que o represente, indaga formalmente (em contraposição às “consultas informais”, feitas verbalmente perante os “plantões fiscais”) à autoridade tributária competente sobre a aplicação da legislação tributária a fato determinado[21].
A faculdade de consultar se presta a dar ao cidadão – no contexto de séria preocupação com a garantia dos direitos e a estabilidade das relações jurídicas – a segurança necessária para o planejamento de sua atividade econômica[22]. Dela se vale o interessado para buscar a certeza do direito aplicável à determinada situação para esclarecer a sua situação jurídica perante as autoridades tributárias[23].
A intenção do legislador com o instituto é prevenir dissídios ex post facto entre Fisco e contribuinte e, por isso, vem dar ao último a chance de expor e sanar as dúvidas que lhe suscitem a legislação tributária antes mesmo de qualquer fiscalização ou autuação. O que permite ao contribuinte, orientar de forma antecipada a sua conduta em consonância com a interpretação estatal sobre a aplicação da norma, evitando assim equívocos e as sanções dele decorrentes[24]. É expressão do provérbio mieux vaut prévenir que guérir.
A consulta fiscal apresenta nítido caráter instrutivo e se insere no contexto da atuação estatal na esfera tributária como manifestação da função ética orientadora[25].
O esclarecimento do sentido das normas legais através da consulta favorece principalmente o Fisco, pois é dele o maior interesse na efetividade do ordenamento tributário[26]. O instituto representa uma oportunidade de educar e se tornar mais próximo do contribuinte, reduzindo as práticas elusivas e sonegatórias e tomando conhecimento antecipado de novas formas de comportamento dos agentes econômicos, podendo eventualmente promover a sua regulação jurídica, preenchendo lacunas deixadas pela lei ou promover as correspondentes modificações legais[27].
É importante instrumento de aprimoramento da relação do Fisco com o contribuinte, pois promove a transparência da atuação fiscal do Estado, o que resulta em um aumento da confiança entre as partes, e, consequentemente em maior eficácia social das normas tributárias[28].
Contemporaneamente, a importância do instituto se agiganta ao passo que a legislação tributária se torna mais abrangente, complexa intricada, e, não raro, conflitante e repleta de contradições e obscuridades, como se o próprio legislador se tivesse perdido no emaranhado de normas por ele mesmo criado.
A dificuldade enfrentada pelos cidadãos para compreender seus deveres fiscais é notória, sendo ressaltada por diversos doutrinadores. Becker, ácido crítico do ordenamento jurídico tributário brasileiro, afirma que qualquer jurista é capaz de reconhecer que vivemos em um manicômio tributário[29]. Conforme o autor, nossas leis tributárias são tão defeituosas que o contribuinte nunca está seguro das obrigações a cumprir, necessitando manter uma dispendiosa equipe de técnicos especializados, para simplesmente saber quais as exigências do Fisco[30]. No mesmo tom, Balera afirma que a legislação tributária, “que deveria ser das mais inteligíveis ao cidadão comum, apresenta-se como das mais herméticas” sendo necessária formação jurídica completa para que um cidadão possa compreender todo o conjunto de disposições normativas que lhe cumpre observar em matéria tributária[31]. Mais pessimista, Ives Gandra Martins, acredita que nem mesmo os especialistas estão a salvo do caos tributário. Para o autor aquele que afirmar conhecer perfeitamente a legislação tributária brasileira, podendo assegurar, com precisão, a interpretação do direito vigente, ou é um gênio ou um mentiroso[32].
Aliás, pode-se dizer com segurança que a dificuldade na interpretação da legislação tributária não é sequer exclusividade do administrado, já que o parágrafo único art. 46 do Decreto n. 70.235/72 faculta a formulação de consulta aos órgãos da própria Administração Pública.
A nebulosidade de nossa legislação é prejudicial ao Fisco, que enfrenta entraves à arrecadação como a má captação da capacidade contributiva, a sonegação, a corrupção e longos debates judiciais[33], o que afeta diretamente a eficiência arrecadatória. Não é menos prejudicial ao contribuinte, que vê os custos de transação de sua atividade econômica aumentados, pois enfrenta problemas no planejamento tributário[34] (exercício da liberdade fiscal[35]), eventualmente recolhendo valor a maior ou a menor do que deveria, ou até deixando de recolhê-lo, sofrendo com penalizações, já que vigora o brocardo “ignorantia legis nenimem excusat”[36] aliado ao princípio de responsabilidade objetiva por infrações tributárias consagrado no art. 136 do Código Tributário Nacional[37].
As graves dificuldades do sujeito passivo na elaboração do sentido do comando estatal é um dos fatores que contribui para que o sistema tributário brasileiro seja um dos mais injustos e economicamente menos eficiente do mundo[38].
Por ignorância e/ou falta de recursos materiais para bancar consultores, grande parte dos contribuintes está condenada a arcar com a crescente carga fiscal, sem a possibilidade de contestá-la. Diante desta situação é que o economista e financista Gerd Rose, referindo-se ao sistema tributário alemão, criou a expressão “imposto dos bobos” (Dummensteuer), ou seja, somente os que não têm condições de conhecer, com clareza, o alcance e a extensão de suas obrigações fiscais pagam o imposto[39]. Quem não puder pagar um “consultor fiscal” (Steuerberater) para ajudar na compreensão de uma legislação tributária caótica (Steuerchaos), e encontrar possibilidades de reduzir a carga fiscal, “é feito de bobo”, ocorre o chamado Dummensteuereffekt[40]. A mesma situação se constata em nosso país, o que levou o ex-ministro da Fazenda Delfim Netto a afirmar que “no Brasil, só paga imposto quem não tiver um bom contador ou um bom advogado”[41].
É fato que a atual e crescente complexidade das relações econômicas e sociais requer um sistema tributário igualmente complexo, para que possam ser captadas todas as suas sutilezas[42]. A tendência à complexidade que a legislação tributária apresenta não é per se ruim, especialmente quando promovida em prol da Justiça Fiscal ou para a ampliação da base tributária que resulte em melhor repartição dos ônus tributários pelos diversos setores da sociedade[43].
Mas isto não exclui o dever do Estado de buscar legislar de forma clara e coesa. A transparência fiscal é um princípio constitucional que impõe que a atividade financeira e tributária do Estado, incluindo a produção de normas infraconstitucionais, se desenvolva segundo os ditames da clareza, abertura e simplicidade[44].
O tributo a que cada indivíduo está obrigado a pagar deve ser certo: o tempo, a forma e o quantum do pagamento devem ser claros tanto para o contribuinte como para qualquer outra pessoa. A certeza do direito, é segundo Shoup, citado por Lapatza, um dos aspectos mais importantes do Direito Tributário, chegando a ter maior importância do que qualquer característica econômica do sistema em questão, pois, tanto a arrecadação quanto a produção de riquezas tributáveis se veem extraordinariamente estimulados quando existe um sistema fiscal que permite conhecer com exatidão e antecipação as consequências que um ato privado qualquer possa produzir[45]. Adam Smith chega a afirmar que a certeza é, em matéria tributária, de tamanha relevância que se poderia dizer que um alto grau de desigualdade não é tão perigoso como um pequeníssimo grau de incerteza[46].
Quanto maior a complexidade das normas, maior a possibilidade de que sejam dotadas de pouca clareza, confusas, dando margem a diferentes interpretações aumentando a incerteza do sistema tributário e restringindo a possibilidade, daqueles que não contam com o auxílio de consultores, exercerem a liberdade fiscal[47].
O legislador deve atuar com minúcia, pois a norma tributária por sua própria natureza apresenta peculiaridades que contribuem para deixar as regras ainda mais suscetíveis a dúvidas de intepretação, como a abordagem de diversos termos técnicos, de temas contábeis, a frequente utilização pelo legislador dos chamados conceitos jurídicos indeterminados[48]; e, ainda, a frenética sucessão de leis e atos normativos em matéria tributária[49], que torna maior a chance de surgirem contradições e obscuridades na sua interação sistêmica[50].
Vale lembrar, que mesmo que a atividade legiferante estivesse firmemente comprometida com a inteligibilidade de sua linguagem, nunca estaria livre de fazer surgir dúvidas para os contribuintes, alguma medida de insegurança jurídica no ordenamento é inevitável[51]. Diversas são as razões[52], primeiro, a legislação tributária por referir-se diretamente à atividade econômica é, como afirmado, recheada de tecnicismos e temas relativos a contabilidade, nem sempre de significado aberto a qualquer hermeneuta. Ademais, é característica dos enunciados normativos a generalização, não fugindo a legislação tributária à regra, o que é capaz de gerar grande incerteza quanto à inclusão de determinado fato concreto no espectro abstrato de significado emitido pela da norma. Além disso, por melhor que seja a técnica legislativa e a vontade do legislador em permear a norma jurídica tributária com elementos claros e precisos, a atividade humana por vezes cria variações não previstas originalmente pelo legislador[53].
É justamente por isso que a consulta fiscal se reveste de tamanha importância, pois através dela o consulente pode submeter dúvida quanto à aplicação de uma norma diretamente ao seu legítimo aplicador, que deverá, através do ato de resposta, fundamentadamente eliminar a incerteza garantindo a segurança jurídica até então prejudicada pela opacidade do espectro semântico da norma posta em questão.
1.3. Garantia da segurança jurídica pelo intérprete oficial da norma
Uma das expressões mais elementares da segurança jurídica é a exigência de que as normas jurídicas sejam formuladas, sob perspectiva formal, de modo claro. A norma pouco clara faz surgir dúvida que causa instabilidade nas expectativas de regulação de conduta; gera, em outras palavras, insegurança jurídica. diante do estado de incerteza objetiva em que se encontra o destinatário de comando legal dúbio, o ideal seria a expedição de ato normativo geral capaz de clarificar seu conteúdo. Na sua ausência, resta o direito de peticionar o esclarecimento perante o Poder Público, a quem caberá expedir norma singular e concreta apta a lhe conferir segurança sobre a conduta a seguir[54].
Ao mesmo tempo em que o Estado, em razão de sua soberania, tem o direito de exigir o tributo que previamente estabeleceu em lei, tem a obrigação correlata de, quando solicitado, instruir o cidadão, esclarecendo e conferindo segurança sobre quando e como deve pagar o mesmo tributo, ou como cumprir determinada obrigação legal ou regulamentar[55]–[56].
O que legitima a faculdade de consultar é, portanto, o direito à segurança jurídica nas relações entre Fisco e contribuinte[57], que se instrumentaliza através de outro direito garantido constitucionalmente, o direito de petição[58].
A conjugação de ambos garante ao sujeito passivo – efetivo ou potencial – de relação jurídica tributária, o direcionamento de sua dúvida à autoridade competente, ao mesmo tempo em que impõe a esta o dever de lhe prestar informações para dirimir dúvida a respeito de fato ou hipótese, em prol do desaparecimento do estado de incerteza jurídica em que ele se encontra.
A manifestação do Poder Público, emissor dos comandos normativos, se revela essencial à clarificação do sentido das normas, pois, porquanto vertido em linguagem, o Direito é a tentativa de tradução em signos exteriores de um pensamento móvel e espiritualmente rico, portanto de difícil univocidade[59].
Há correntes doutrinárias que negam a possibilidade de significados plurais a um mesmo signo jurídico, pois defendem que cada um é portador de um sentido próprio e único. Um significado natural, revelado inequivocamente pelo legislador, ou que possa ser “descoberto” pelo intérprete. Porém, o acerto parece estar no contrário, os enunciados se revestem de uma ampla área de incertezas, o que ressalta a atuação do intérprete enquanto sujeito do conhecimento, que é quem vincula o objeto a um significado[60].
O Direito Positivo é composto por uma série de signos vertidos em linguagem prescritiva (de lógica deôntica) que emanam ordens – dos órgãos emissores aos sujeitos a eles subordinados – buscando direcionar a sua conduta, nas relações de intersubjetividade, aos valores neles consubstanciados[61].
O texto legal (o signo) é a tentativa de expressão física do comando desejado pelo legislador. Ao captarmos o signo através dos sentidos, produz-se em nossa mente um ato de associação da mensagem vinda do exterior a ideias e noções previamente estabelecidas em nosso interior para formar um juízo, que se exprimirá verbalmente como proposição[62].
A norma jurídica é exatamente este juízo formulado internamente quando nos deparamos com os comandos expressos nos textos legais[63].
Tratando-se de operação interna à consciência do hermeneuta, o ato interpretativo está sujeito às mais diversas variáveis, pois as ideias e noções prévias do sujeito cognoscente são formadas pelas infinitas possíveis experiências que ele teve antes de seu contato com o texto legal, de modo que passível de conduzir aos mais diversos resultados. Como diz Schlensiger “il lettore cerca di scavarne i riposti supporti, ma lo fa avvalendosi dela sua personale esperienza e dele sue soggesttive convinzione e mentalità, com un doppio pericolo di distorsione e tradimenti”[64].
Assim, está claro que o mesmo signo linguístico é capaz de gerar as mais diversas significações na mente de cada sujeito cognoscente nem todas elas coincidentes com o que almeja o sujeito emissor[65].
A plurissignificação dos enunciados normativos se revelará problemática, causando incerteza e insegurança jurídica em seus destinatários, no momento em que o ordenamento jurídico estático interage com o meio social dinâmico visando a regulação de condutas; quando se busca verificar a incidência da norma sobre determinado fato.
Analisado em momento estático, em qualquer ordenamento que apresente o mínimo de racionalidade nas interações sintáticas e semânticas entre suas proposições, é possível se afirmar a presença de certeza jurídica e, por conseguinte, a ostentação do princípio da segurança jurídica. O Direito, como dito, é um sistema linguístico orientado por uma lógica deôntica, e a certeza é ínsita ao “dever ser”. A aceitação de um juízo de probabilidade nas soluções que o plano jurídico pretende apresentar ao plano fático faria o sistema perder a sua coerência. Seria absurdo, por exemplo, que, em sentença, o magistrado que visasse pacificar controvérsia apresentada, decidisse que A deve provavelmente indenizar B. Não haveria qualquer caráter mandamental no ato jurídico, tornando-se inócua a atividade jurisdicional, assim como qualquer pretensão de regulação das condutas intersubjetivas através do Direito[66].
Todavia, quando se analisa a interação entre o ordenamento e o meio social, percebe-se a existência de outra acepção no campo de irradiação semântica da locução “certeza jurídica” e, consequentemente, outro significado do termo segurança jurídica, que é a possibilidade de previsão pelos destinatários da mensagem normativa do modo como se dará a regulação da conduta[67]–[68].
O momento da aplicação da norma, que se localiza logicamente na dimensão pragmática da linguagem do direito, caracterizada por forte oscilação de tendências e intensa variação de expectativas, responsável direta por mutações semânticas e sintáticas no conjunto dos signos[69]. Das normas extrai-se a conclusão de que “quando A, então B”, mas apesar da certeza da inevitabilidade desta relação de causa-consequência, não se sabe, contudo a completa dimensão semântica do vocábulo “A” tipificador de fato cuja ocorrência será gatilho do mecanismo lógico previsto normativamente a ponto de se verificar infalivelmente a incidência da norma no caso concreto[70].
Por exemplo, sabe-se que o disposto no art. 15, §1º, inciso III, alínea a da Lei 9.249/95, que altera a legislação do imposto de renda das pessoas jurídicas, representa claro benefício fiscal à “prestação de serviços hospitalares”[71]. Mas, daí a saber, dentre as infinitas interações existentes no meio social, quais serão interpretadas pelo ente tributante como “serviço hospitalar” há grande distância[72].
Nestes casos, somente o ato de interpretação pelo agente competente diante do fato concreto e, além disso, a congruência na sequência de atos de interpretação, é capaz de dar indícios da dimensão do espectro de significado do signo linguístico desejada pelo legislador, permitindo ao destinatário da norma adequar com segurança a sua conduta ao nela proposto, garantindo ao Direito o cumprimento de seu fim específico que é o de regulação do comportamento humano nas suas relações de intersubjetividade visando promover a consecução dos valores que a sociedade almeja.
Quer dizer, a verdadeira certeza jurídica garantidora da segurança jurídica, somente se obtém com atos de interpretação do hermeneuta oficial do Direito. Sendo função primordial do Direito o controle social, buscando atingir o maior número possível de situações hipotéticas, ele é versado em uma linguagem generalizada, a qual, em certos casos, gera um excesso de simplificação, que deve ser corrigido nos casos concretos[73]. A textura aberta da linguagem normativa significa que há, na verdade, áreas de conduta em que muitos aspectos devem ser deixados para serem explicitadas pelos órgãos interpretadores, os quais determinam a configuração in casu do mandamento legal.
A atuação dos órgãos de interpretadores é essencial à própria funcionalidade do Direito, pois sendo linguagem destinada à orientação de condutas, o Direito só é útil quando o destinatário tem ciência da existência da mensagem e que esta o atinja com o menor ruído possível, quer dizer o mais próximo à pretensão do emissor.
A preservação da funcionalidade do comando normativo se relaciona com a legalidade, a legitimidade, e a eficiência da atuação estatal. Assumindo o Direito caráter essencialmente instrumental para Estado Democrático de Direito[74], que em decorrência do princípio da legalidade, o tem como único meio legítimo de controle social, a falta de clareza dos enunciados jurídicos é extremamente prejudicial.
A regra que o individuo desconhece ou que não entende não tem eficácia social e, portanto, inútil para o Estado[75]. Resulta ainda em perda da legitimidade de seus atos, pois o desconhecimento da norma ou de seu real sentido priva o cidadão da possibilidade de controlar a legalidade da conduta estatal. No que se refere à tributação, o estado mental de incerteza do particular lhe tolhe garantias fundamentais como a liberdade fiscal, impedindo o seu planejamento tributário, já que fica sem saber se suas ações cumprem com as expectativas do ordenamento jurídico ao qual está submetido, correndo sempre o risco de ser surpreendido por anulação dos negócios que tenha praticado, ou por uma ação punitiva do Fisco.
Quanto à eficiência, a transmissão clara do mandado do legislador ao contribuinte resulta no melhor cumprimento das normas tributárias, representando maior efetividade das normas indutoras e maior arrecadação[76]. Mais recursos, por sua vez, representam maior possibilidade para o Estado cumprir os fins que a Constituição lhe determina garantindo mais bem estar à sociedade e conferindo legitimidade à sua atuação.
1.4. Moralidade administrativa como pressuposto da efetividade da consulta fiscal
A diferenciação entre os conceitos de Moral e Direito proposta por Kant foi definitivamente inserida patrimônio jurídico ocidental pela obra de Kelsen que promoveu a sistematização da separação entre Direito, Moral e Justiça, demonstrando que para a validade da norma jurídica é desnecessário qualquer paradigma qualificativo, estranho ao sistema em que ela esteja inserida, sendo considerada pertinente somente a norma fundamental[77].
Direito seria sinônimo de sistema normativo (ordenamento jurídico positivo); Justiça, de adequação sintática da norma (legalidade/validade); e legitimidade, de vigência normativa.
No final do século XIX houve uma nova leitura da obra kantiana que provou uma reaproximação entre Moral e Direito consagrada pela obra do pensador alemão Otfried Höffe como “virada kantiana” (kantische Wende)[78]. Tal reaproximação veio a ser tornar fundamento do Estado Democrático de Direito, reintroduzindo as dimensões éticas perdidas da licitude e da legitimidade.
O Estado Democrático de Direito deixa de se limitar a aspectos meramente formais. Não basta mais que as autoridades meramente procedam conforme a lei, ou que haja Tribunais que se atentem ao cumprimento delas. O Estado de Direito (Rechtsstaat) precisa ser também Estado do Direito (Staat des Rechts) e acolher a ideia de Justiça[79].
Nasce o conceito de direitos fundamentais, que passa a pairar acima dos ordenamentos jurídicos e dos Estados os inspirando e informando, reestabelecendo o primado da sociedade sobre o Estado e do homem sobre a sociedade.
Consoante estas ideias foi elaborada a Constituição Federal de 1988, que dedica capítulo específico a direitos e garantias fundamentais e positiva a moralidade, a ela submetendo toda a atividade da Administração[80]:
A moralidade administrativa interdita comportamentos estatais que apesar de formalmente legítimos, em decorrência da flexibilidade da norma jurídica, contrariem os padrões éticos vigentes na sociedade[81]. A exigência constitucional de moralidade configura verdadeiro pressuposto da validade de todo ato da Administração Pública, impondo que o agente público, ao atuar não despreze o elemento ético da atuação estatal, não podendo decidir meramente entre o legal e o ilegal, o conveniente e o conveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o honesto e o desonesto. Honestidade esta, que se orienta pelas exigências da instituição a quem o agente sirva e a finalidade de sua ação: o bem-comum[82].
Esclareça-se que a moralidade dos atos da Administração não se localiza na intenção do agente ao praticá-los, mas decorre de seu próprio objeto. Imoral é o ato cujo conteúdo contrariar o senso comum de honestidade, retidão, equilíbrio, justiça, respeito à dignidade do ser humano, à boa fé, ao trabalho, à ética das instituições[83].
A conduta ética[84] da Administração, exigível em qualquer área da atuação estatal, adquire especial relevância em matéria tributária. Isto, pois, como já afirmado, a tributação é atividade estatal que enfrenta grande rejeição social. A tensão na relação Fisco-contribuinte obsta a eficiência arrecadatória, provoca alto índice do sonegação[85] e embaraça o Judiciário[86] impondo graves obstáculos ao Estado na consecução de seus fins. Neste cenário, atividade administrativa que despreza liames morais não só faz aumentar resistência aos tributos e não contribui para a minimização da evasão fiscal, como pelo contrário, é utilizada pelos contribuintes como uma pseudo-justificação para as suas ações ilícitas.
A consulta fiscal é, como afirmado, relevante ferramenta de diminuição da resistência fiscal e, como qualquer atividade administrativas, deve ser orientada por ditames legais e morais, que envolvem proteção à confiança do contribuinte que por espontaneidade e boa-fé se dirige ao Fisco em busca de adequar sua conduta à inteligência estatal o que significa, respeito ao direito do contribuinte de obter a resposta, lealdade e a promoção da Justiça.
A moralidade administrativa representa um pressuposto à efetividade da consulta, pois somente a atuação ética da Administração com relação àqueles que dela se valem, é capaz de torná-la atraente, incentivando os contribuintes a cada vez mais utilizá-la, tornando-a eficaz instrumento de preservação da segurança jurídica e melhora do relacionamento entre as partes envolvidas nas relações tributárias. Contribuindo, assim, para a transformação do atual cenário da tributação no Brasil, injusto, conflituoso e desagregador, para outro, em que os vínculos entre Estado e a sociedade sejam de mútua colaboração, e o dever de pagar imposto seja compreendido como um dever de cidadania, guiando a atividade tributária à efetiva realização da Justiça Fiscal[87].
O dever de moralidade imposto ao Fisco deve ser visto como contrapartida à boa-fé que se requer do consulente, assim deve o órgão proceder de forma leal e impessoal, não se valendo da exposição que o consulente faz de suas operações em seu desfavor, transformando a consulta em armadilha para o contribuinte[88].
Há mais de seis décadas, Francisco de Souza Mattos alertava sobre a necessidade de uma consciência amadurecida e de um posicionamento certo e definido da doutrina sobre o instituto, que permitisse que o contribuinte tomasse “coragem” e se habituasse a esse vantajoso processo preventivo. Afirmava que os contribuintes à época pouco dela utilizavam, uns por ignorarem suas vantagens, outros por a verem como uma espécie de autodenúncia, receosos de “dar o pescoço à forca fiscal”. Por outro lado não eram raros os casos em que os órgãos administrativos desprezavam a importância do instituto e equiparavam o contribuinte que, preocupado em cumprir fielmente seus deveres fiscais propunha consulta, àquele que, por desídia ou má-fé, desrespeitava dispositivos legais ou regulamentares[89].
De lá para cá, a legislação vem evoluindo no sentido da proteção ao consulente. Neste sentido veio o art. 100 do CTN excluir a imposição de penalidades, a cobrança de juros de mora e a atualização do valor monetário da base de cálculo do tributo ao contribuinte que confiasse na resposta dada pelo fisco à sua consulta. Posteriormente, com a criação do Decreto n. 70.235/72, a proposição de consulta passou a impossibilitar a instauração de qualquer procedimento fiscal contra o sujeito passivo, relativo à espécie consultada até o 30º dia subsequente à decisão final (art. 48).
Não seria moralmente aceitável que o cidadão que, de boa-fé, se dirige ao Fisco visando eliminar legítima dúvida e adequar sua conduta aos anseios do Estado fosse punido ou tivesse de qualquer modo sua situação agravada, da mesma forma como não se poderia deixar de suspender quaisquer ações fiscais contra o consulente[90].
Também execrável seria que o contribuinte, que consultasse a Administração antes da prática do fato gerador e pautasse sua conduta de acordo com a orientação fornecida, não tivesse sua boa-fé protegida de nenhuma forma, podendo ser surpreendido no momento do lançamento por uma eventual alteração desta orientação[91].
Da mesma forma, seria inadmissível que a autoridade tributária fornecesse respostas diferentes a consulentes em igual situação, conforme sua conveniência. Estaria em evidente prejuízo aquele que obedecesse a instruções eventualmente desfavoráveis do Fisco enquanto outros, na mesma situação, obtivessem pronunciamentos mais favoráveis[92].
Ciente da necessidade de proteger o consulente contra respostas divergentes, o legislador aprovou a Lei n. 9.430/96 que trouxe alterações para a disciplina jurídica da consulta fiscal tais como: (i) a possibilidade de interposição de recurso especial para o órgão central da Receita Federal pelo destinatário de solução divergente, quando houver diferença de conclusões entre soluções de consultas relativas a uma mesma matéria, fundada em idêntica norma jurídica; (ii) determinação no sentido de que o servidor da Administração Tributária deverá, a qualquer tempo, formular representação ao órgão que houver proferido a decisão encaminhando as soluções divergentes sobre a mesma matéria de que tenha conhecimento; (iii) cabimento de recurso especial ao órgão central da Receita Federal pelo sujeito passivo que tiver conhecimento de solução divergente daquela que estiver observando em decorrência de resposta a consulta anteriormente formulada, sobre idêntica matéria; (iv) previsão de que a solução da divergência acarretará, em qualquer hipótese, na edição de ato específico, uniformizando o entendimento, com imediata ciência ao destinatário da solução reformada, aplicando-se seus efeitos a partir da data de ciência. Ricardo Lobo Torres observa que, neste caso, juridicizou-se a imoralidade do comportamento do fisco, transformando-a em ilegalidade[93]–[94].
1.5. Consulta fiscal como instrumento de promoção da Justiça Fiscal
A consulta fiscal, como processo administrativo de instrução dos cidadãos sobre seus direitos é deveres, é ferramenta de promoção da Justiça Fiscal e consolidação do Estado Democrático de Direito[95].
O Estado Democrático de Direito deve buscar sempre atuar de forma justa[96]. A Justiça é garantida primordialmente mediante a igualdade perante a lei, o que no Direito Tributário significa a equitativa divisão dos encargos financeiros da tributação[97].
A Justiça Fiscal (Steuergerechtigkeit) se realiza, conforme Tipke, da conjugação de dois elementos: a moral tributária do Estado (Besteurungsmoral des Staates) e a moral dos contribuintes (Moral der Steuerzähler): ao Estado cabe atentar à justa distribuição dos ônus tributários, visando sempre o bem-comum[98] e não a mera arrecadação de recursos; já os contribuintes devem entender o pagamento de tributos como um dever de cidadania (staatsbürgeliche Pflicht)[99], não se desincumbindo de pagar tributos aquém de sua capacidade contributiva.
Um sistema tributário complexo como o brasileiro, que acarreta graves entraves aos contribuintes na elaboração do sentido do comando estatal, coloca-os em uma situação de desigualdade. Isto pois, neste caos tributário, como já nos referimos, aqueles que têm recursos para pagarem bons advogados e bons contabilistas levam grande vantagem, porquanto o conhecimento da legislação tributária é fundamental ao exercício do direito ao planejamento tributário[100].
Uma tributação desigual tem o condão de afetar direitos fundamentais como o do livre desenvolvimento da personalidade e o primado da dignidade da pessoa humana. É iníquo, como ressalta Cezaroti, que os demais integrantes do tecido social, desprovidos de um bom aconselhamento, paguem tributos e um só membro deste grupo, com capacidade contributiva, deixe de contribuir[101]. Da mesma forma, sendo certo que qualquer medida impositiva de natureza tributária interfere na capacidade competitiva das empresas, a disparidade no acesso à informação é capaz de acarretar distorções na concorrência entres as empresas.
Nesta conjuntura, tendo em vista que o interesse do Fisco no Estado Democrático de Direito é a consecução de Justiça e não a arrecadação, o ideal seria que ele próprio oferecesse a cada contribuinte individualmente a melhor alternativa de planejamento. Somente assim o princípio da capacidade contributiva seria realizado em sua plenitude.
É óbvio que isto seria uma solução impraticável, pois pressuporia que o Estado dispendesse uma enorme quantidade de recursos para manter milhões de servidores dedicando-se exclusivamente à tal tarefa. É por isso que o princípio da capacidade contributiva não pode ser considerado absoluto, admitindo-se exceções frente à impossibilidade prática de um tratamento minuciosamente isonômico[102].
Restam à correção da desigualdade no acesso à informação, os canais de comunicação do contribuinte com o Fisco, tais como a consulta fiscal.
A informação obtida diretamente com a autoridade tributária, legítima aplicadora da norma, é muito mais apta a clarificar aos contribuintes os ônus tributários a que estão sujeitos enquanto agentes econômicos, oferecendo-lhes segurança para o planejamento fiscal, do que o trabalho de qualquer tributarista ou contabilista.
A valorização do instituto da consulta fiscal, visando que os cidadãos cada vez mais dela se valham, divulgando a sua existência, buscando excelência no oferecimento das respostas e protegendo o contribuinte que, de boa-fé, dela se valha é, portanto, um dever do Estado Democrático de Direito conexo à consecução de Justiça Fiscal, porquanto a consulta dela é instrumento.
2 – ANÁLISE DOS ELEMENTOS DA CONSULTA
2.1.Fundamento jurídico e natureza jurídica do procedimento de consulta
Valdir de Oliveira Rocha, um dos mais consagrados autores que já escreveram sobre o tema, considera o direito constitucional de petição (art. 5º, inciso XXXIV, alínea a da Constituição Federal) como o fundamento jurídico da consulta[103]. Faleiro, por sua vez, discorda que a consulta fiscal se funde no direito de petição, afirmando que, o que o consulente busca ao dirigir seu questionamento à Administração é a “informação” sobre a sua interpretação acerca de determinado dispositivo legal, sendo portanto o direito constitucional à informação (art. 5º XXXIII) que autoriza o contribuinte em dúvida a requerer o pronunciamento do Fisco[104].
Pedimos venia aos ilustres juristas para discordar. O objetivo da consulta fiscal é eliminar o estado de incerteza objetiva prejudicial à função orientadora de condutas do Direito. Não há dúvida que, para obter a segurança almejada, o contribuinte deva pedi-la e, para tanto, necessita do reconhecimento de seu direito de pedir um esclarecimento à Administração que solucione o problema hermenêutico enfrentado[105]. Mas isto não significa que o “direito de petição” configure autonomamente o fundamento jurídico da consulta. Esta premissa levaria à conclusão de que o direito de petição seria o fundamento de qualquer pedido direcionado ao Poder Público[106]. O direito de petição legitima e instrumentaliza a proposição do questionamento do consulente perante a Administração, reconhecendo o seu direito de pedir e obrigando-a a analisá-lo e respondê-lo em prazo razoável, contudo, não fundamenta o objeto da manifestação. Conforme Adame Martínez, o direito de petição se trata de um “derecho a pedir, pero no de un derecho a obtener lo que se pide”. E o que se pede, é a informação sobre o sentido da norma tributária, apta a eliminar a dúvida do consulente, reestabelecendo a certeza jurídica.
Não se nega desta forma, que o conteúdo da resposta à consulta configure uma “informação”, porém, em decorrência de sua função para o Direito Tributário, a informação que se visa obter através da consulta fiscal apresenta conteúdo, pressupostos de legitimidade à sua obtenção e efeitos jurídicos que são demasiadamente específicos para que se enquadre o instituto no vago “direito à informação”[107].
Diferentemente do que ocorreria se este fosse o seu fundamento, o consulente não pode livremente formular consulta sobre qualquer questão teórica, fundada em sua mera curiosidade[108]. De acordo com a legislação pertinente, não será eficaz a consulta formulada (i) por pessoa física ou jurídica não competente para formular consulta, tal como estabelecimento filial; ou sobre tributos não administrados pela Receita Federal do Brasil (por ex.: ISS); (ii) sobre questão teórica, com referência a fato genérico, ou, ainda, que não identifique o dispositivo da legislação tributária sobre cuja aplicação haja dúvida[109]; (iii) por quem estiver intimado a cumprir obrigação relativa ao fato objeto da consulta; (iv) sobre fato objeto de litígio de que o consulente faça parte, pendente de decisão definitiva nas esferas administrativa ou judicial; (v) por quem estiver sob procedimento fiscal, iniciado antes de sua proposição, para apurar os fatos que se relacionem com a matéria consultada; (vi) quando o fato houver sido objeto de solução anterior proferida em consulta ou litígio em que tenha sido parte o consulente, e cujo entendimento por parte da Administração não tenha sido alterado por ato superveniente; (vii) quando o fato estiver disciplinado em ato normativo, publicado na imprensa oficial antes de sua apresentação; (viii) quando versar sobre constitucionalidade ou legalidade da legislação tributária; (ix) quando o fato estiver definido ou declarado em disposição literal de lei; (x) quando o fato estiver definido como crime ou contravenção penal; (xi) quando não descrever, completa e exatamente, a hipótese a que se referir, ou não contiver os elementos necessários à sua solução, salvo se a inexatidão ou omissão for escusável, a critério da autoridade julgadora[110].
Com relação aos efeitos da resposta, fundamentá-la juridicamente no direito à informação traria o risco de confusão da consulta fiscal com tantas outras consultas que ocorrem no âmbito interno da Administração e que se identifiquem como conselho ou mero pedido de opinião sem efeito vinculante. Como assinala Valdir de Oliveira Rocha, a consulta fiscal sendo direito do administrado exige resposta em defesa de direitos e, portanto, deve ser descarta-se qualquer significação que a atrele com mero pedido de conselho ou opinião[111].
Por fim, no tocante ao seu conteúdo, a informação obtida através da resposta à consulta não é e nem poderia ser genérica. Ao formular consulta, como ressalta Balera, o consulente relacionado de alguma forma ao tributo, busca segurança jurídica para planejar sua vida fiscal[112]. Assim, somente a resposta que contenha informação completa e adequada ao esclarecimento do sentido da norma, e que seja vinculante será apta a fornecer a segurança almejada.
Por estas razões concordamos com as palavras de José Souto Maior Borges, de que o que fundamenta juridicamente a consulta é a necessidade de preservação da segurança jurídica (“direito à segurança jurídica”), sendo proclamado no questionamento o direito subjetivo à certeza nas relações entre Fisco e contribuinte, que se manifesta através do direito de petição[113].
2.2. Sujeito ativo e sujeito passivo da consulta
Sujeito ativo da consulta é quem a formula, o consulente. A legislação confere genericamente a legitimidade para proposição de consulta aos sujeitos passivos da obrigação principal ou acessória, à entidade representativa de categoria econômica ou profissional e a órgão da Administração Pública (art. 46 do Decreto n. 70.235/72).
Em que pese a referência expressa a sujeito passivo, há de se ter também por legítimo consulente aquele que questiona justamente se é o sujeito passivo da obrigação tributária, bem como aquele que questiona previamente a autoridade sobre fato gerador futuro, e cuja decisão, de praticá-lo ou não poderá depender justamente do conteúdo da resposta que o Fisco lhe oferecer[114].
Portanto, o consulente pode ocasionalmente ser ou vir a ser sujeito passivo da obrigação exacional objeto de consulta. A existência de relação jurídica material é irrelevante. Relevante é que, ao formular a consulta, demonstre interesse, quanto à situação de fato descrita em seu objeto[115], que demonstre, em termos processuais, a sua legitimatio ad causam[116]. Ou seja, que revele interesse juridicamente qualificado em sua solução[117].
Ainda que o interesse na resposta à consulta seja coletivo ou difuso, atingindo um grupo indeterminado de pessoas, é possível provocar o pronunciamento da autoridade tributária, pois a lei admite expressamente a consulta formulada por ente representativo de categoria profissional ou econômica (parágrafo único do art. 46 do Decreto n. 70.235/72).
Autorizando a lei alguém a agir processualmente em nome próprio na defesa de direito alheio, tratar-se-á de hipótese de legitimação extraordinária[118]. No caso, a entidade representativa atuará como substituto processual de seus representados pleiteando em nome próprio a pretensão alheia à segurança jurídica[119].
A disposição deve ser interpretada considerando-se o artigo 5º, XXI da Constituição Federal, o que leva à conclusão de que entidades representativas devem estar devidamente autorizadas a formular a consulta em nome de seus representados. A autorização não precisa ser expressa, bastando a autorização genérica presente em seus estatutos[120].
Schoueri afirma que a legitimação coletiva à consulta, tal como prevista no ordenamento jurídico brasileiro, não encontra paralelo no direito comparado. Na Alemanha, por exemplo, embora se admita a consulta formulada por associações, a resposta não cria qualquer vinculação para o Fisco[121].
Balera afirma que há doutrinadores que se posicionam contrariamente a esta faculdade concedida pelo legislador aos entes representativos, alegando que a representação pode acarretar em excessiva diluição dos fatos submetidos à interpretação da autoridade fiscal, pois existem circunstâncias peculiares a cada um dos sujeitos envolvidos, cuja possibilidade de completa e minuciosa exposição em uma consulta, que englobe grande número de envolvidos, é escassa[122].
A legislação tributária também possibilita que os órgãos da Administração Pública formulem consulta (primeira parte do parágrafo único do art. 46 do Decreto n. 70.235/72)[123]–[124], tendo em vista que, naturalmente, os funcionários ou autoridades de seu cumprimento não estão livres de dúvidas na interpretação da lei.
Apesar da aparente boa intenção do legislador, tal faculdade é questionada por alguns doutrinadores. Não se põe em xeque o legítimo fim a que se presta o esclarecimento das dúvidas de tais órgãos, mas sim se a consulta fiscal é o instrumento adequado para tanto.
Balera e Faleiro, defendem que no caso de dúvidas quanto à aplicação da norma tributária, os servidores deveriam recorrer aos órgãos de assessoria jurídica da própria Administração Pública, cuja tarefa consiste, precisamente, em dar solução aos problemas legais enfrentados pelo ente em que atuem, como é o caso, no âmbito federal, da Advocacia-Geral da União[125].
Quanto à legitimidade para responder à consulta fiscal (legitimidade passiva), esta não é dada a quem edita a norma geral e abstrata que motiva a consulta, mas sim a quem irá aplicá-la, ou seja, a Administração Pública direta ou indireta[126].
Na Administração direta, destacam-se como órgãos competentes a responder consultas, a Secretaria da Receita Federal e as Secretarias da Fazenda e Finança e na Administração indireta, o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS).
Por objeto da consulta tem-se sua “matéria”, isto é, o assunto sobre o qual versa a dúvida contida no questionamento formulado pelo consulente[127].
A função do instituto é dissolver a incerteza do consulente sobre a aplicação de determinada norma jurídica a fato determinado. Portanto, a dúvida que será objeto de consulta, somente poderá ser de ordem jurídica, afastando-se questão de qualquer outra ordem[128].
A dissolução da dúvida é um direito do administrado, pois a existência de incerteza quanto ao sentido de norma não configura razão jurídica para o seu descumprimento, ficando, sem o devido esclarecimento, à mercê de penalidades[129].
A incerteza diz sempre respeito à interpretação da norma pelo órgão aplicador, não tendo relevância que o destinatário da norma esteja certo de como deve observá-la, porquanto sempre lhe restará a dúvida de como o Fisco a aplicaria[130].
Todo assunto exacional pode ser objeto de consulta fiscal, sem barreiras. Portanto, são inaceitáveis decisões que restrinjam a amplitude dos assuntos consultáveis[131]. Toda a legislação pode ser objeto de consulta fiscal, pois, afinal, de qualquer dispositivo pode surgir dúvida. Nada obsta, inclusive, que o consulente formule consulta sobre dispositivo infralegal, porquanto tais enunciados, cujo objetivo é viabilizar a fiel execução da lei também são passíveis de gerar dúvidas[132].
A limitação das matérias consultáveis também é prejudicial tanto para o contribuinte, quanto para Administração, pois, como já afirmado, o esclarecimento do sentido das normas legais através da consulta favorece principalmente o Fisco, pois é dele o maior interesse na efetividade do ordenamento tributário.
Claro é, contudo, que sendo objetivo da consulta prover segurança jurídica ao consulente, o seu objeto deve sempre a ele se referir e sempre se relacionar a alguma norma tributária que lhe seja aplicada ou que lhe possa vir a ser aplicada[133]. Afinal, norma que não o afete de maneira alguma, e nem afete quem quer que ele represente, não tem o condão de gerar qualquer sensação de insegurança que deva ser eliminada[134]. Como já dissemos, não é cabível consulta sobre questão meramente teórica, fundada simplesmente na sede de saber do consulente, pois o fundamento constitucional da consulta não é o direito à informação, mas sim o direito à manutenção da segurança jurídica.
Em comparação com a consulta individual, não há no Decreto n. 70.235/72 qualquer limitação ao objeto da consulta coletiva, ou ao alcance dos efeitos de sua resposta[135].
O objeto da consulta coletiva não é, contudo, ilimitado. A entidade associativa somente pode consultar a respeito de fatos em que seus afiliados se enquadram ou poderiam se enquadrar como sujeitos passivos de obrigação principal ou acessória[136]. No mesmo sentido, justamente por representar uma coletividade, as entidades representativas não poderão oferecer consulta sobre fato determinado afeito a apenas um de seus filiados, sob pena de desvirtuação de sua legitimação extraordinária[137].
Como se verá, a proposição de consulta produz efeitos protetivos do consulente, dependentes da verificação de sua boa-fé com relação ao objeto da consulta[138].
A boa-fé de quem formula consulta fiscal é uma presunção relativa que se baseia em circunstâncias objetivas arroladas no art. 52 do Decreto n. 70.235/72. São elas: (i) a inexistência de procedimento fiscal sobre o objeto da consulta; (ii) a ausência de disposição literal de lei dispondo sobre a matéria objeto da consulta; (iii) a ausência de ato normativo definindo a matéria consultada; (iv) a inexistência de lançamento sobre o fato objeto de consulta e a ausência de consulta anterior sobre a mesma matéria formulada pelo mesmo consulente.
Somente nestas hipóteses se desconstituirá a presunção de boa-fé do consulente, desautorizando a consulta. Quaisquer outras circunstâncias não poderão ser opostas para desautorizar o oferecimento de consulta fiscal[139].
Não há óbice a que o fato descrito no objeto da consulta se refira a uma situação já ocorrida, ou de ocorrência certa ou possível. Basta que seja uma situação determinada, isto é, descrita de maneira a permitir sua identificação[140].
Não se exige do particular que, para obter a resposta, relate os fatos exaustivamente, expondo indefectivelmente a sua situação, mas sim que a descreva o suficiente para tonar possível sua subsunção à norma questionada[141].
A correta determinação dos fatos é importante, pois, a consulta produz efeitos que se referem especificamente a eles. Sua identificação é, portanto, fundamental à delimitação dos efeitos da proposição e da resposta à consulta.
Vale discorrer sobre o cabimento de consulta sobre matéria meramente de fato, quer dizer, se poderia o consulente propor questionamento ao Fisco sobre quais normas são aplicáveis a uma situação concreta.
Dada a dificuldade reconhecida pela Teoria Geral do Direito em se distinguir quaestio facti de quaestio juri, Juan Zorzona Pérez, referindo-se ao direito espanhol, crê inadmissível qualquer restrição neste sentido, até mesmo porque os questionamentos sobre matéria de fato envolvem, na grande maioria dos casos, valorações jurídicas[142].
No Brasil, no caso de consulta formulada após a ocorrência do fato gerador, nenhum impedimento haveria porquanto, neste caso, a consulta se caracterizaria justamente pela verificação da subsunção do fato descrito à norma questionada[143].
Já no caso de consulta prévia à ocorrência do fato gerador, a questão merece maior reflexão, pois, conforme o art. 46 do Decreto n. 70.235/72, o escopo da consulta se limita a “dispositivos da legislação tributária a fato determinado”. A exigência de fato determinado, poderia levar ao entendimento de que somente seria cabível consulta sobre matéria de direito.
Todavia, como esclarece Schoueri, a noção de fato determinado, não se confunde com a de fato concreto. Determinado é o fato descrito de forma a não suscitar na autoridade julgadora questionamentos sobre os aspectos relevantes para o caso[144].
A interpretação do autor se revela adequada quando se tem em conta a faculdade garantida a entidades representativas de categorias econômicas ou profissionais de formular consultas em nome de seus representados. Ao propor consulta, tais entidades submetem ao Fisco, não o relato de fato concreto de interesse de contribuinte individualizado, mas sim fato genérico aplicável a seus associados.
Fato este que fará jus a resposta quando determinado, ou seja, quando nos termos do art. 52, VIII do Decreto n. 70.235/72, descrever completa ou exatamente a hipótese a que se referir, contendo todos os elementos fáticos necessários à análise de sua subsunção à norma questionada. Salvo a hipótese em que a inexatidão ou omissão for escusável, a critério da autoridade julgadora[145].
Outra discussão quanto ao objeto da consulta resta em saber se a consulta fiscal seria instrumento legítimo ao questionamento da legalidade ou constitucionalidade de norma tributária.
Posicionando-se contrariamente a esta faculdade Faleiro afirma somente ser possível o exame da constitucionalidade e legalidade da lei tributária por órgãos administrativos investidos na função jurisdicional, o que não seria o caso do órgão julgador da consulta, que estaria investido na função regulamentar de expedir regra para viabilizar a aplicação da legislação tributária, não cabendo negar aplicação à lei que fundamenta sua própria atividade[146].
A autora vê uma incongruência lógica na hipótese, pois acredita que se a Administração está limitada a dizer como determinada regra se aplica, é porque antes de tudo essa regra deve ser aplicada. Se o consulente se insurge contra a constitucionalidade ou legalidade de uma regra tributária, é porque sabe de antemão como ela será aplicada e sua certeza retira a sua legitimidade para consultar[147].
Discordamos da autora. Se considerarmos que somente cabe questionamento das leis que “devam ser aplicadas”, não seria possível considerar cabíveis questionamentos sobre a vigência de lei tributária. Considerando que a legislação tributária é “aquela que envelhece mais rápido”[148] é de se esperar que os contribuintes se deparem constantemente com dúvidas desta estirpe. Desta maneira, não admitir questionamentos relativos à vigência da norma tributária, esvaziaria sensivelmente a utilidade do instituto para a preservação da segurança jurídica.
Ademais, como já afirmamos, a convicção do autor sobre o sentido da norma não retira a legitimidade de sua dúvida, pois lhe restará a dúvida sobre a interpretação do Fisco. Por isso, concordamos com Valdir de Oliveira Rocha quando afirma que o órgão encarregado de oferecer resposta, pode e deve conhecer de consulta que aponte dúvida sobre a inconstitucionalidade ou ilegalidade, relativamente ao fato individual que lhe é apresentado[149].
2.4. Efeitos da proposição de consulta
A apresentação de consulta fiscal produz efeitos próprios típicos da sua característica de instrumento de leal cooperação entre Administração e administrado, que são essenciais à sua efetividade prática[150]. É por isso que se atribui certas vantagens àquele que consulta o Fisco em busca de orientação para cumprir devidamente o comando da norma[151].
É que sendo paradigma orientador da consulta, a espontaneidade e a boa-fé do consulente, que a utiliza para tratar de assunto sobre o qual tem legítima dúvida, não se poderia, evidentemente, penalizá-lo, ou agravar-lhe de qualquer modo, a situação quando se decide pela tributação, como também não se poderia deixar de suspender quaisquer ações fiscais contra o consulente.
Em todos os efeitos decorrentes da proposição de consulta se refletem os princípios da moralidade, lealdade, impessoalidade e boa-fé, aos quais está adstrita a Administração Pública no exercício de suas funções[152]. Como já afirmado, o dever de moralidade imposto ao Fisco deve ser visto como contrapartida à boa-fé do consulente, assim cabe ao órgão consultado proceder leal, pessoal e honestamente, não se valendo da exposição que o consulente faz de suas operações em seu desfavor, transformando o instituto em uma armadilha[153].
Antes mesmo da edição do Código Tributário Nacional, Francisco de Souza Mattos cogitou da divisão dos efeitos da consulta em duas categorias, a dos efeitos imediatos e a dos efeitos mediatos. Dentre os primeiros estariam o efeito instrutivo (ou informativo) e o preventivo, que se verificariam quando da proposição da consulta, já os efeitos mediatos seriam o efeito normativo, decorrente da decisão de última instância sobre o ato de resposta, bem como a criação de situação jurídica para o contribuinte[154].
Observe-se que somente a consulta formulada em consonância aos ditames legais será apta a gerar efeitos. O artigo 52 do Decreto n. 70.235/72 define pela negativa as exigências para que a consulta seja considerada eficaz. Conforme o dispositivo não produz efeito a consulta formulada: (ii) por quem tiver sido intimado a cumprir obrigação relativa ao fato objeto da consulta; (iii) por quem estiver sob procedimento fiscal iniciado para apurar fatos que se relacionem com a matéria consultada; (iv) quando o fato já houver sido objeto de decisão anterior, ainda não modificada, proferida em consulta ou litígio em que tenha sido parte o consulente; (v) quando o fato estiver disciplinado em ato normativo, publicado antes de sua apresentação; (vi) quando o fato estiver definido ou declarado em disposição literal de lei; (vii) quando o fato for definido como crime ou contravenção penal.
A declaração de eficácia da consulta é feita pela autoridade consultada, de forma expressa ou tácita[155], e não tem natureza de resposta, porquanto não resolve a dúvida apresentada[156]. Desta decisão não é cabível pedido de reconsideração (art. 58 do mesmo decreto), restando ao contribuinte inconformado, valer-se do remédio constitucional do mandado de segurança[157].
Os efeitos preventivos da proposição da consulta (efeitos imediatos preventivos) são previstos no art. 48 do Decreto n. 70.235/72 e art. 161, §2º do Código Tributário Nacional. Eles passam a valer, a partir do ato de proposição do consulente, que gera para a Administração obrigação de não fazer[158].
São efeitos que se cogitam quando da prática do fato gerador do tributo objeto de questionamento, assim, aplicam-se somente às consultas feitas após a ocorrência do fato gerador ou a fatos ocorridos na pendência de decisão sobre consulta prévia. Não faria sentido falar em falar nos efeitos imediatos preventivos, caso a hipótese descrita na consulta não tivesse se concretizado[159].
O art. 48 do Decreto n. 70.235/72 impede a instauração de procedimento fiscal relativo à espécie consultada até o trigésimo dia subsequente à ciência do consulente sobre a decisão final da consulta. O lapso temporal visa justamente permitir que ele se adeque à orientação apontada pela resposta[160]
A despeito da falta de previsão legal expressa, Faleiro defende que, o óbice imposto pela norma ao procedimento de formalização do crédito tributário, suspende o seu prazo decadencial, pois este supõe inércia do ente estatal e, no caso, ele deixa de atuar, não por desídia, mas por impedimento legal[161].
O efeito não representa nenhum favor ao consulente, é natural que a proposição de consulta deve livrar o consulente de autuações, afinal o ele, de boa-fé, se antecipou à ação do Fisco justamente para evitar incorrer em alguma infração e como “contraprestação” à sua boa-fé, expondo a realidade suas operações com o objetivo de adequar sua conduta ao esperado pela autoridade, cabe a ela proceder com lealdade e não utilizar tais informações para a instauração de procedimento fiscal.
Admitir que o consulente fosse autuado enquanto espera decisão, representaria grave violação dos princípios da lealdade, boa-fé e moralidade[162].
O art. 51 do Decreto n. 70.235/72 limita os efeitos previstos em seu art. 48 na hipótese de consulta formulada por entidades representativas de categoria econômica ou profissional, que só alcançariam os seus associados ou filiados depois de cientificado o consulente da decisão. Faleiro, Balera e Schoueri consideram que tal dispositivo não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, pois constituinte foi claro ao conferir entre os direitos e garantias individuais o da representação coletiva, não podendo o legislador ordinário limitá-lo[163].
O art. 49 do mesmo diploma legal traz exceção à este efeito dispondo que a consulta não suspende o prazo para recolhimento de tributo, retido na fonte ou autolançado antes ou depois de sua apresentação, nem o prazo para apresentação de declaração de rendimentos.
A exceção se coaduna com a presunção de boa-fé do consulente pois busca evitar que o contribuinte de direito, obrigado ao recolhimento de tributo que já descontou ou obteve como reembolso, venha a locupletar-se financeira e indevidamente, por meio do instituto da consulta, ainda que, diante de dúvida fundada e razoável[164].
Ao se valer do termo tributo autolançado, o legislador não se refere a todos os tributos cuja modalidade de lançamento seja a homologação, mas somente aos tributos cuja conformação jurídica comporta transferência do encargo financeiro a terceiros, como o IPI. Isto porque, estender tal regra à universalidade de tributos, sendo que atualmente a grande maioria deles se subsume a esta modalidade de lançamento, esvaziaria sensivelmente a utilidade do instituto da consulta fiscal[165].
Interpretando extensivamente o termo procedimento fiscal presente no art. 48 do Decreto n. 70.235/72, Faleiro e Gabriel Lacerda Troianelli sustentam que a proposição de consulta formulada antes do início de qualquer procedimento fiscal contra o consulente configura hipótese de suspensão da exigibilidade do crédito tributário[166].
A suspensão da exigibilidade pressupõe que este já tenha sido constituído formalmente, o que o torna exigível. Como a consulta formulada acerca de hipótese sobre a qual já exista crédito formalizado não é dotada de eficácia, somente poder-se-ia cogitar deste efeito caso a formalização tenha sido promovida pelo próprio consulente (lançamento por homologação)[167].
O CTN não prevê a consulta como fundamento para a suspensão da exigibilidade do crédito tributário[168]. Todavia, conforme os autores, a suspensão da exigibilidade decorreria diretamente do impedimento à instauração de qualquer procedimento fiscal (lato sensu) contra o consulente na pendência de consulta[169]. Estando suspensa a instauração de qualquer procedimento fiscal não poderia a Administração movimentar a máquina administrativa contra o consulente no sentido de satisfazer qualquer pretensão tributária relativa à matéria consultada.
O art. 161,§2º do CTN prevê como efeito preventivo que, na pendência de consulta formulada após a constituição do crédito tributário, mas antes de seu vencimento, é indevida a cobrança de juros de mora e a imposição de penalidades. A hipótese típica de que trata o dispositivo é a dos créditos cujo recolhimento independe de prévio lançamento pela autoridade fiscal, como o dos tributos sujeitos a lançamento por homologação, em que a obrigação de pagar antecede a atividade administrativa[170].
Para Faleiro, decorrência lógica é que o tributo propriamente dito também não se tornará exigível, ficando suspenso o prazo para seu pagamento, pois não haveria sentido em isentar o consulente do pagamento de juros e multas caso o prazo de vencimento não tenha sido suspenso, porquanto tais acréscimos só seriam devidos com o vencimento do crédito[171].
O efeito busca salvaguardar o contribuinte que, diante da nebulosidade do espectro semântico da norma, optou naturalmente pela conduta que lhe é menos onerosa. Daí, caso lhe sobrevenha da resposta interpretação mais onerosa, deverá pagar o tributo não pago na pendência da consulta, mas desacompanhado dos juros de mora e penalidades.
De fato, não seria justo que o consulente já penalizado com a sensação de insegurança gerada pela norma pouco clara fosse novamente prejudicado, sendo obrigado a pagar de forma mais onerosa prestação cuja existência era até então era duvidosa[172].
A regra não concede nenhuma benesse ao consulente, apenas reconhece o fato de que, se ele pagou menos tributo em função de dúvida legítima causada pela falta de clareza da norma tributária, ele simplesmente não está em mora[173]. Se houver mora, será do legislador ou da Administração Tributária enquanto não sanar por meio de norma geral a obscuridade da norma[174]. Ou mora na apresentação da resposta, caso a legislação estabeleça prazo[175]–[176].
O efeito se coaduna com o princípio da moralidade, na medida em que (i) impede que a Administração possa autuar contribuinte que buscou a correta aplicação da lei e (ii) permite ao contribuinte, quando em dúvida quanto à interpretação de determinada regra, optar pela que lhe é mais favorável, sem receio de sofrer qualquer penalidade. Pensar de outra forma seria privilegiar o contribuinte que permanecesse silente na sua dúvida até a eventual fiscalização, em detrimento daquele que, espontaneamente e de boa-fé, buscou a correta orientação fiscal perante a autoridade tributária[177].
A consulta formulada após o vencimento do crédito tributário, antes, contudo, do início de qualquer procedimento fiscal para a cobrança do crédito equivaleria para Faleiro, por analogia, à denúncia espontânea prevista pelo caput do art. 138 do CTN[178]. Seu entendimento é de que o contribuinte, ao fornecer os dados sobre suas operações à Administração, procede a uma espécie de auto-denúncia. Desta maneira, caso a resposta caracterize a conduta até então adotada pelo consulente como infração, tem ele o direito de pagar o crédito tributário eventualmente devido, dentro do prazo estabelecido na resposta, acrescido dos juros moratórios, na proporção que couberem, com a exclusão da penalidade[179].
Evidente que não se trata de denúncia de infração, pois até a resposta, o contribuinte não tem ciência se o fato relatado efetivamente configura uma infração[180].
2.5. Ato de resposta à consulta
2.5.1. Natureza jurídica do ato de resposta à consulta
A resposta à consulta é o ato através do qual a Administração expõe o seu entendimento sobre a matéria questionada, provocando modificação na esfera jurídica do consulente e da autoridade tributária. Responder à consulta fiscal é dever da Administração correspondente ao direito do administrado de formulá-la[181].
A definição de sua natureza jurídica é fundamental para a delimitação de seus efeitos e requisitos de validade. De forma pacífica, a doutrina nacional define a natureza jurídica do ato de resposta à consulta como ato administrativo[182].
Ato administrativo é toda declaração do Estado ou de quem o represente, que tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direitos ou impor obrigações aos administrados ou a si própria, com a observância da lei, sob regime de Direito Público e sujeita a controle pelo Poder Judiciário[183].
Dado que a resposta à consulta introduz um mandamento de justaposição revelador do conteúdo do enunciado consultado, permitindo ao consulente a compreensão da norma tributária, bem como orientando o órgão aplicador quando do lançamento, podemos classificar a resposta à consulta como um ato normativo regulamentar expedido por autoridade administrativa, que introduz norma complementar à legislação tributária (art. 100, I do CTN)[184].
Sendo ato administrativo, para ser válida a resposta deve necessariamente atender a requisitos de competência, finalidade, forma, motivo e objeto e também aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência aos quais está sujeita a Administração Pública no exercício de qualquer atividade (art. 36 caput da Constituição Federal)[185].
A resposta à consulta atenderá ao requisito de competência quando for emitida pelo ente administrativo legitimado à aplicação da norma debatida; atenderá ao de finalidade quando eliminar a incerteza jurídica oriunda da opacidade do espectro semântico da norma; o seu motivo é a existência de dúvida legítima a respeito de norma tributária com a qual o consulente demonstre interesse juridicamente qualificado e o seu objeto é a fundada dúvida sobre a aplicação da norma a ser respondida; a sua forma deve ser a escrita[186].
A validade da resposta depende ainda de sua publicação para a ciência de todos os contribuintes[187], que assim podem se valer dela, caso se encontrem em situação equivalente à do consulente, ou a impugnem, na hipótese de terem recebido resposta diversa para o mesmo questionamento.
Deve também ser oferecida em tempo razoável para atender ao requisito de eficiência e seu conteúdo ser baseado estritamente na lei, livre da idiossincrasia do agente público responsável pela resposta.
Também imprescindível a sua motivação, que permitirá o seu o seu controle pelo administrado, porquanto demonstrará o atendimento da legalidade, impessoalidade e moralidade administrativa com a qual a Administração deve proceder[188]. Na motivação, por não se tratar de procedimento litigioso, a Administração não necessitará comprovar que levou em consideração a eventual opinião fornecida pelo contribuinte para proferir decisão[189].
2.5.2. Efeitos do ato de resposta à consulta
O conteúdo da resposta vincula o órgão emissor. É seu “efeito mediato normativo”[190], que não é disciplinado de forma expressa pelo Decreto n. 70.235/72[191].
Os requisitos de legitimidade e procedimento da consulta fiscal, somados a seu efeito vinculante a diferenciam de tantas outras consultas formuladas à Administração em que se obtém mera opinião[192].
A vinculação se restringe somente ao Fisco[193], pois ao consulente sempre restará a via judicial para contestá-la, assim como poderá ignorar a orientação conferida e impugná-la administrativamente no momento em que for autuado[194].
Para Schoueri, a correta definição do “efeito normativo” depende da identificação do exato momento em que a consulta foi formulada pelo consulente: antes ou depois da prática do fato gerador.
Na hipótese de consulta formulada após a prática do fato gerador, o Fisco não se manifestaria sobre fato a ocorrer, prometendo decidir no futuro de determinada maneira, mas sim decidiria no presente. Haveria apuração do crédito tributário através da subsunção de fatos concretos à norma tributária, o que equivaleria, a um “lançamento parcial”, dada a congruência da atividade aos termos do art. 142 do CTN[195].
Desta maneira, o efeito normativo decorreria da aplicação à espécie do art. 146 do CTN, protegendo-se o fato gerador praticado, que já fora objeto de “lançamento”, de eventual mudança nos critérios jurídicos adotados pela autoridade por ocasião da resposta à consulta. Da mesma forma, seria também aplicável à espécie o art. 149 do mesmo CTN, autorizando a mudança do critério jurídico da resposta, na hipótese de fraude ou falta funcional da autoridade que ofereceu a resposta[196].
O mesmo regime se aplicaria para consulta formulada antes da prática do fato gerador, mas cuja resposta advenha somente após a sua prática[197].
Na hipótese de consulta formulada antes da ocorrência do fato gerador, a chamada “consulta prévia”[198], há dissenso na doutrina quanto à extensão do “efeito normativo”.
Rubens Gomes de Souza, Francisco de Souza Mattos, e Gilberto de Ulhôa Canto em obras anteriores à elaboração do Código Tributário Nacional, além de Valdir de Oliveira Rocha, Grau, Faleiro, Misabel de Abreu Derzi, Flávio Rubinstein, Facal Villareal e Cruz e Creuz, Luciano Amaro e Souto Maior Borges, em obras mais atuais, defendem que a emanação de um critério jurídico pelo Fisco no processo administrativo de resposta, impede-no de adotar critério jurídico diverso quando do lançamento referente aos mesmos fatos e o mesmo sujeito passivo[199].
Em síntese, os autores citados sustentam que a adesão ativa do consulente ao conteúdo da resposta, renunciando à sua liberdade de apreciação e aceitando a resposta do Fisco como vinculante, lhe cria o direito subjetivo de não ser exigido comportamento diverso, sob pena de afronta à segurança jurídica e à boa-fé do contribuinte nos atos do Fisco.
À espécie seria, portanto, analogicamente aplicável o art. 146 do CTN que, em respeito à garantia de irretroatividade das normas e à boa-fé do consulente, exige a inalterabilidade dos critérios jurídicos com relação aos fatos ocorridos anteriormente à introdução de nova interpretação do Fisco.
Ou seja, as informações prestadas oficialmente pela Fazenda Pública, ainda que errôneas, podem afastar a cobrança do tributo devido em um caso concreto[200].
O que não quer dizer que o critério jurídico emitido através do ato de resposta não possa jamais ser revogado representando, o “efeito normativo”, um impedimento ao exercício da prerrogativa de autotutela da Administração sobre seus próprios atos, mas sim que eventual critério jurídico diverso somente será aplicável a fatos geradores futuros.
Já Schoueri, Antônio da Silva Cabral, e Hugo de Brito Machado, defendem restrições ao “efeito mediato normativo” da “consulta prévia”[201].
De acordo com estes doutrinadores o “efeito normativo” se resumiria à vinculação à dos órgãos subordinados hierarquicamente à autoridade que respondeu à consulta, o que não impediria a adoção de um novo critério jurídico quando do lançamento e cobrado o tributo[202], vedada a aplicação de penalidades e encargos, por força do disposto no parágrafo único do art. 100 do CTN[203].
Além do “efeito normativo”, o ato de resposta à consulta apresenta ainda um “efeito preventivo” decorrente do art. 50 do Decreto 70. 235/72 que exclui a exigibilidade do tributo, além dos encargos, do contribuinte que houver seguido a orientação da decisão de primeira instância na hipótese de a resposta ser alterada judicialmente ou através de recurso de ofício.
Tal dispositivo, segundo Schoueri, decorre de críticas feitas por Ruy Barbosa Nogueira, que alertava sobre injustiça que poderia ocorrer, nas hipóteses de impostos indiretos, em que seguindo a orientação do Fisco, o sujeito passivo deixasse de repassar o encargo financeiro do tributo ao contribuinte[204].
A doutrina também discute os efeitos da resposta perante terceiros não participantes do processo de consulta (excetuadas as hipóteses de representação).
Francisco de Souza Mattos acredita que a resposta vincula o Fisco frente a terceiros que estejam em situação idêntica à do consulente, somente podendo a Administração adotar critério diverso em casos futuros[205].
Já Faleiro, Hugo Brito Machado, Valdir de Oliveira Rocha, e Gilberto de Ulhôa Canto afirmam que ao terceiro não se estende o efeito vinculatório da consulta, cabendo o seu aproveitamento como mera informação ou jurisprudência[206].
3 – POSSIBILIDADE E CONSEQUÊNCIAS DA MODIFICAÇÃO DO CRITÉRIO JURÍDICO DA RESPOSTA
3.1. Regulação legal do efeito retroativo da modificação do critério jurídico da resposta
A consulta fiscal consiste em um procedimento de lhana cooperação entre Fisco e contribuinte que visa preservar a certeza jurídica do sistema tributário que, quando bem utilizado, ainda contribui para a melhora das per se conflituosas relações jurídicas tributárias.
Para que a consulta seja eficaz como instrumento de promoção da cidadania fiscal, impulsionando os contribuintes a cumprirem diligentemente os seus deveres tributários, é necessário que a atuação do Fisco perante o consulente seja dotada de lealdade e coerência[207].
Por esta razão a consulta gera diversos efeitos protetivos daquele que se dirige à autoridade tributária expondo suas operações em busca de cumprir devidamente o comando da norma.
Em todos estes efeitos refletem os princípios da moralidade, lealdade, impessoalidade e boa-fé aos quais está sujeita a Administração Pública no exercício de suas funções.
Os deveres morais impostos ao Fisco na consulta que devem ser interpretados como contraprestação à boa-fé demonstrada pelo contribuinte, que se adianta à sua atuação, buscando segurança para o planejamento e correição de sua vida fiscal.
O seu descumprimento cria o risco de a consulta fiscal se tornar, na expressão de Ferreira Sobrinho, um verdadeiro “presente de grego” para o cidadão tornando-a apenas mais uma frustrada tentativa de melhorar a comunicação e o relacionamento entre Fisco e contribuinte[208].
Destarte, parece inegável, como ressalta José Souto Maior Borges que o Fisco não agiria de boa-fé quando, contrariando decisão proferida em consulta, surpreendesse o contribuinte que depositou confiança em sua orientação, alterando o seu entendimento anterior sobre a matéria consultada, com referência ao mesmo contribuinte e com eficácia retroativa[209].
Não se prega que a Administração esteja ad aeternum adstrita a uma orientação emitida em resposta. O Direito é por sua natureza é mutável, sendo inclusive saudável que a interpretação das normas se altere, em especial quando orientada à consecução de um maior grau de justiça material.
Ademais, a manutenção da aplicação de um critério jurídico para aquele que formulasse consulta, quando este já não mais representasse o entendimento do Fisco, poderia colocar tal contribuinte em situação de vantagem em relação aos demais submetidos à nova orientação, o que representaria séria afronta aos princípios da isonomia e capacidade contributiva[210], em contrariedade à Justiça Fiscal que se busca promover através do instituto[211].
Por outro lado, como alerta Ferreira Sobrinho admitir-se a tese da volatilidade da resposta, seria o mesmo que admitir que o Estado pudesse, à seu gosto emitir qualquer resposta, alternando-a conforme sua conveniência e simplesmente alegando que a evolução da hermenêutica forçou uma mudança de posicionamento, sem prestar cuidado algum ao contribuinte afetado[212].
Neste sentido, parece mais justo que novo critério jurídico do Fisco, que contrarie aquele emitido em resposta a consulta prévia, não seja aplicado de forma retroativa.
Ocorre que devido à submissão da Administração ao princípio da legalidade deve-se questionar, em primeiro lugar, como o ordenamento regula a eficácia retroativa da mudança de posicionamento da Administração.
Uma grande parte da doutrina afirma que, ao consulente que adere voluntariamente à orientação fornecida pela Administração em consulta prévia, aceitando-a como vinculante, é criado o direito subjetivo de não ser exigido comportamento diverso, de modo que, a mudança de critério jurídico somente poderia ser aplicada fatos econômicos futuros, excluindo a possibilidade de constituição do crédito tributário relativo aos fatos geradores praticados na vigência da resposta. Incidiria na espécie, por analogia, o disposto no art. 146 do CTN que, garantindo a segurança jurídica do consulente, impediria o Fisco a pretexto da alteração no critério jurídico de interpretação, proceder a nova fiscalização de fatos ocorridos em período já fiscalizado sob a égide do critério anterior[213].
Já para Schoueri, o disposto no art. 146 do CTN somente seria aplicável à resposta à consulta formulada após a ocorrência do fato gerador. Hipótese em que, a atividade administrativa de resposta equivaleria a um autêntico lançamento na acepção do art. 142 do CTN.
No caso de caso de consulta formulada antes da prática do fato gerador (“consulta prévia”), dada a não ocorrência do fato gerador seria descabida a aplicação do regime legal do lançamento para o ato de resposta, restando caracterizá-la como “norma complementar” em matéria tributária, submetendo-se a resposta ao disposto no parágrafo único do art. 100 do CTN, que veda, ao contribuinte que observa a orientação do Fisco, a aplicação de penalidades, bem como a cobrança de juros de mora e atualização monetária da base de cálculo do tributo, contudo, não exclui o pagamento do mesmo[214]. Exceção seriam os casos em que o Fisco tenha agido de má-fé, induzindo o consulente em erro, para depois exigir-lhe tributo que já sabia devido ou em que houvesse emitido respostas variadas a consulentes em situação análoga, conforme a sua conveniência[215].
Na verdade, a resposta à consulta antecipa o motivo legal do ato administrativo de lançamento que possa decorrer da realização do fato, mas com este não se confunde.
Ao informar o critério jurídico aplicável a determinado fato, a decisão que responde à consulta delimita o motivo legal do lançamento que dele resulte, condicionando e para isso, é irrelevante que a consulta tenha sido sobre fato ocorrido ou por ocorrer[216].
Ainda que relativa a situação pretérita, a Administração não procede na consulta à constituição do crédito tributário eventualmente exigível em face do entendimento firmado. Para tanto, seria necessário um conjunto de elementos nem sempre fornecidos pelo consulente como a base de cálculo, alíquota, a materialidade e outras tantas circunstâncias juridicamente pertinentes à constituição do crédito.
O questionamento feito através da consulta versa sobre um aspecto específico da norma tributária em relação ao qual se tem dúvida, de modo que a resposta limitar-se á a dizer sobre um critério da norma, não sendo suficiente para (re)produzi-la em sua inteireza[217].
Quer dizer, a consulta conserva o seu caráter hipotético-abstrato, mesmo tratando de fato ocorrido, uma vez que a descrição feita na petição de consulta não é o suporte linguístico hábil para constituir o crédito tributário.
Não há no ato de resposta subsunção do fato exposto à norma. A resposta à consulta sobre fato ocorrido não obriga o consulente a adimplir a obrigação que ela identifique. Da mesma forma não afasta o dever da administração de proceder ao lançamento caso o fato gerador tenha sido praticado.
A resposta a consulta, situa-se na escala de concreção do direito, entre a lei geral e abstrata e o ato de aplicação individual e concreto, independentemente de versar sobre fato ocorrido ou a ocorrer[218].
Trata-se de mandamento de concreção do dispositivo normativo posto em questão, verdadeiro ato normativo regulamentar[219]., que introduz “norma complementar” à legislação tributária (art. 100, I do CTN).
Portanto, a regulação legal da retroação da alteração do critério jurídico emitido na resposta se dá pelo art. 100 do CTN que prevê a proteção daquele que confia e segue a orientação dada pelo Fisco excluindo a imposição de penalidades, a cobrança de juros de mora e a atualização do valor monetário da base de cálculo do tributo, mas não afasta a constituição do crédito tributário referente ao respectivo fato gerador praticado.
Havendo regulação legal expressa sobre a situação, não é possível a pretendida analogia com o art. 146 do CTN, mesmo que mais protetiva da boa-fé do contribuinte.
Caberia questionar se a invocação dos princípios da boa-fé objetiva, da segurança jurídica e da proteção à confiança, seria capaz de mitigar a adstrição da Administração à estrita legalidade motivando a limitação o efeito retroativo da alteração do critério jurídico interpretativo e permitir ao Fisco dispensar in casu o contribuinte do pagamento do tributo.
Para respondermos a esta questão é adequado expormos inicialmente qual é o conteúdo dos referidos princípios e como se dá a sua aplicação no Direito Público.
3.2. O conteúdo dos princípios da boa-fé objetiva, segurança jurídica e proteção à confiança
É comum autores contemporâneos de Direito Público se referirem aos termos boa-fé objetiva, segurança jurídica e proteção à confiança como se fossem conceitos intercambiáveis ou expressões sinônimas. Todavia, apesar de todos estes conceitos pertencerem a uma mesma constelação de valores, com o passar do tempo, construções doutrinárias e jurisprudenciais lhes deram caracteres que permite a diferenciação de cada um deles, sem que se distanciem completamente[220].
A boa-fé objetiva se relaciona com a lealdade, a honestidade e a probidade que o indivíduo deve manter em suas interações com outros sujeitos de direito. É conceito tradicionalmente considerado como de pertinência exclusiva ao Direito Civil[221], cuja origem se encontra no Direito Romano[222], que impõe uma espécie de guia moral a ser seguida na conclusão e execução de negócios jurídicos[223].
O instituto começou a se desenvolver de forma plena e a influenciar as demais codificações modernas a partir da entrada em vigor do Código Civil alemão (Bürgerliches Gesetzbuch – BGB) em 1900, que fazia distinção entre a boa-fé subjetiva (guter Glauben) e a boa-fé objetiva (Treu und Glauben)[224] .
A boa-fé subjetiva se reflete no estado psicológico da pessoa, consistente na consciência da justiça e licitude de seus atos ou na ignorância escusável de sua antijuridicidade, o que é extremamente importante nas questões possessórias e na construção da teoria da aparência[225].
De outro lado, a boa-fé objetiva constitui um princípio geral que produz nova delimitação do conteúdo objetivo do negócio jurídico, por meio da inserção de normas de conduta a serem seguidas pelos contratantes, ou produzindo a restrição do exercício de direitos subjetivos, ou, ainda, como método hermenêutico para interpretar a declaração da vontade a fim de ajustar a relação jurídica à função econômico-social de cada caso concreto[226].
O traço diferenciador entre a boa-fé subjetiva e a boa-fé objetiva é que nesta o elemento vontade cede espaço à comparação entre a atitude tomada pelos contratantes e aquela que se poderia esperar de um homem médio. Daí afirmar-se que é objetiva, pois não se funda na vontade dos contratantes, sendo, por conseguinte, exterior aos sujeitos[227].
Ao ser positivada a boa-fé deixa de constituir um imperativo ético abstrato e se torna norma condicionante e legitimadora de toda a experiência jurídica, desde a interpretação das leis e cláusulas contratuais, até as suas últimas consequências[228]. Além de permitir flexibilidade e mobilidade à interpretação do sistema de Direito Privado, autorizando o juiz a libertar-se dos grilhões da letra fria da lei e fazer justiça, de forma particular, em cada caso concreto[229].
O marco legislativo alemão influenciou diversas codificações de países seguidores do modelo jurídico romano-germânico tais como o Código Civil italiano (1942), o Código Civil português (1966) e o Código Civil espanhol (1974), adotaram expressamente a boa-fé objetiva.
No Brasil a primeira manifestação da boa-fé objetiva encontra-se no art. 131 do Código Comercial de 1850, que a ela se referia como marco interpretativo dos contratos comerciais. Mas a doutrina entendeu que a boa-fé nele aludida era subjetiva e não desenvolveu a regra contida no artigo, tendo permanecido praticamente sem aplicação pelos tribunais[230].
O Código Civil de 1916 não a previa, mas isto não impediu que alguma doutrina e jurisprudência iniciasse um processo de construção, no direito brasileiro, com destaque para Clóvis do Couto e Silva.
Em 1990, o Código de Defesa do Consumidor, finalmente consagrou positivamente a boa-fé objetiva no Brasil, sendo confirmada como princípio geral do direito, linha teleológica para a interpretação das normas de defesa do consumidor (artigo 4º, III, do CDC), cláusula geral para a definição do abuso contratual (artigo 51, IV do CDC), instrumento legal para a realização da harmonia e equidade das relações entre consumidores e fornecedores (artigo 4º, I e II, do CDC) e paradigma objetivo limitador da livre iniciativa e da autonomia da vontade (artigo 4º, III, do CDC combinado com artigo 5º, XXXII, e artigo 170, caput e inc. V, da Constituição Federal).
Mas somente com o advento Código Civil de 2002 a boa-fé objetiva alcançou seu apogeu no ordenamento jurídico pátrio, passando a figurar como fonte de deveres autônomos sobre todos os contratos, sejam eles civis ou empresariais, não ficando mais restrita às relações contratuais consumeristas[231].
Embora sua presença seja mais marcante no Direito Privado a sua influência também se estende ao Direito Público, o que já era reconhecido até mesmo pelo Direito Romano[232].
A aplicabilidade do princípio da boa-fé objetiva ao Direito Público apresenta, todavia, certa complexidade[233]. Primeiro, a ideia de expectativas geradas pelo comportamento alheio seria mais concebível no âmbito de relações paritárias, como aquelas entre entes privados, fundadas na liberdade e igualdade. Já nas relações publicísticas, em que imperam as noções de competência e soberania, as expectativas do particular não teriam muito espaço, porquanto a ação administrativa é guiada pelo imperativo do interesse público, ao qual as expectativas de interesse do particular tende a ceder. Há ainda de ser considerado o estrito vínculo do agir administrativo à legalidade, que dificulta o surgimento de comportamentos e situações que, mesmo mais compatíveis com a boa-fé não estejam previstas em lei[234].
Por estas razões, por muito tempo a doutrina administrativista tradicional negou a aplicação do princípio da boa-fé objetiva às relações que a Administração trava sob regime de Direito Público. Para esta escola doutrinária, a boa-fé representaria, ademais, uma inútil duplicação do conceito de interesse público, dado que agir segundo os ditames da honestidade e lealdade, estaria implícito na obrigação de perseguir o interesse prefigurado pelo ordenamento[235].
Para Grasso, a opinião que exclui a relevância do princípio da boa-fé em âmbitos alheios ao Direito Privado é fruto de um conceito ultrapassado, autoritário e auto-referencial do Poder Público e de seu agir, ao qual corresponde um conceito puramente formalista da lei, que coloca o seu imprescindível respeito à frente da função primária do Estado de buscar promover justiça material, incongruente com a ordem democrática atual, em que o governo da coisa pública se faz sempre em atenção ao interesse dos cidadãos[236]..
Opinião análoga é a de Almiro do Couto e Silva, que ressalta, que a moderna noção de Estado de Direito, pressupõe a necessidade de defesa dos particulares em certas circunstâncias da fria e mecânica aplicação da lei[237]. E a de Mattern, que anota que administrar conforme a lei é, antes de tudo administrar conforme o Direito razão pela qual a boa-fé é um componente indivisível da legalidade, do Estado de Direito e da Justiça[238];
De fato, já há décadas a aplicabilidade da boa-fé objetiva ao Direito Público encontra previsão no ordenamento jurídico de vários países que adotaram o sistema jurídico romano-germânico. Dentre eles Itália, Espanha, Alemanha, e Uruguai[239].
No Brasil alguns doutrinadores o princípio da boa-fé objetiva encontra-se implícito no princípio da moralidade a que está submetida a Administração Pública conforme dita o caput do art. 36 da Constituição Federal[240]. Ele também é previsto expressamente no inciso IV do art. 2º da Lei 9.783/99, que dispõe sobre a necessidade de observância da boa-fé nos processos administrativos de âmbito federal[241] e na Lei do Estado de São Paulo nº 10.177/98, que regula o procedimento administrativo no âmbito estadual.
A influência do princípio se estende notadamente no Direito Administrativo, em especial nos contratos administrativos e na responsabilidade pré-negocial do Estado[242]·. Na seara do Direito Tributário a aplicabilidade do princípio da boa-fé objetiva encontra guarida no art. 108 do CTN, cujo inciso III prevê expressamente o recurso aos princípios gerais do Direito Público para a interpretação e a integração da legislação tributária[243].
Essa mesma concepção proposta pelo princípio da boa-fé objetiva de que, nas relações jurídicas, as partes envolvidas devam proceder com correção, lealdade e lisura, e em conformidade à palavra empenhada dá, em última análise, conteúdo ao princípio da segurança jurídica, porquanto este também visa dotar de certeza e previsibilidade determinadas situações jurídicas, evitando surpresas causadas por mudanças que atinjam estas situações[244].
Contemporaneamente a ciência jurídica divide este princípio em seu aspecto objetivo e subjetivo. O primeiro diz respeito à garantia de estabilidade das relações jurídicas, envolvendo a proteção contra a retroatividade das leis e o respeito ao direito adquirido, à coisa julgada e ao jurídico perfeito. Já o segundo diz respeito à proteção à confiança do cidadão na retidão dos procedimentos e condutas do Estado, nos mais diferentes aspectos da sua atuação[245].
Apesar de estreitamente associados a ponto de alguns autores de direito comparado considerarem o princípio da proteção à confiança como um subprincípio da segurança jurídica, a doutrina mais atual de direito comparado prefere insistir existência de dois princípios distintos[246].
Deste modo, fazem referência ao princípio da segurança jurídica (Rechtssicherheit) quando designam o que prestigia o aspecto objetivo da estabilidade das relações jurídicas, e mencionam o princípio da proteção à confiança (Vertrauenschutz), também chamado de princípio da confiança legítima (principio di legittimo affidamento), quando se atenta para o aspecto subjetivo.
O princípio da proteção à confiança, por sua vez, leva em conta a boa-fé do administrado, que tem expectativa de licitude e legitimidade dos atos da Administração, impondo limitações, ou atribuindo consequências patrimoniais, à prerrogativa estatal de alterar sua conduta e de modificar atos administrativos que conferiram vantagens ao administrado e que, mesmo eivados de ilegalidade, consolidaram pelo decurso do tempo o sentimento de que seriam mantidos[247].
No Direito Tributário, reconhece-se a sua aplicação primordialmente nos casos de benefícios fiscais concedidos inicialmente de forma irregular, mas que em virtude do longo tempo em que estiveram vigentes, cobrar o tributo devido em obediência à legalidade seria menos justo do que ignorar a ocorrência do fato gerador
3.3. Regulação principiológica do efeito retroativo da modificação do critério jurídico da resposta
Em que pese ser reconhecida a aplicação do princípio da boa-fé objetiva e seus correlatos ao Direito Tributário e que a contradição entre o critério de interpretação da norma tributária fornecido pelo Fisco na resposta à consulta e o adotado do lançamento viola os liames por eles estabelecidos por trair a legítima expectativa do contribuinte que o teve por paradigma orientador de sua conduta, não se pode olvidar que o lançamento do tributo é um ato vinculado e obrigatório, não podendo a autoridade administrativa abster-se de realizá-lo quando verificada a ocorrência do fato gerador de obrigação tributária, sob pena de responsabilidade funcional (parágrafo único do art. 142 do CTN). O que quer dizer que não compete ao Fisco operar um sopesamento principiológico da situação e decidir sobre a conveniência ou Justiça do lançamento, resumindo-se a sua atividade à verificação da ocorrência do fato gerador e a projeção sobre ele dos valores previamente sopesados e condensados na norma jurídica constituindo o crédito tributário.
A principal razão dessa acentuada “praticidade”[248] na aplicação da norma reside no fato de que o Direito Tributário enseja aplicação em massa de suas normas, a cargo da Administração, ex officio, e de forma contínua ou a fiscalização em massa da aplicação dessas normas (nas hipóteses de tributos lançados por homologação)[249].
Desta maneira o administrador não poderia, na falta de previsão legal, deixar de cobrar o tributo por mais que sua abstenção seja produto de uma interpretação holística do ordenamento que atenda melhor aos ditames da boa-fé.
Não se pode dizer, entretanto, que o ordenamento jurídico brasileiro tenha desprestigiado a boa-fé do contribuinte. Afinal, o art. 100 do CTN exclui a aplicação de penalidades, juros de mora e a correção monetária da base de cálculo do tributo, àquele que tenha orientado sua conduta de acordo com as informações prestadas pelo Fisco. Destaque-se que para gozar destes efeitos o contribuinte sequer necessita comprovar a sua boa-fé, sendo que, conforme afirma Humberto Ávila baseando-se na lição de Kreibich, o recurso à doutrina da boa-fé objetiva no intuito de proteger o contribuinte contra atos contraditórios da Administração somente é possível caso verificada a concorrência dos seguintes requisitos: (i) que a relação entre o Fisco e o contribuinte seja baseada em ato administrativo cuja validade seja presumida; (ii) relação concreta envolvendo uma repetição de comportamentos, de forma continuada, uniforme e racional por uma pluralidade de agentes fiscais que executam o ato como se válido fosse; (iii) relação de confiança envolvendo as partes e terceiros; (iv) relação de causalidade entre a confiança e os atos praticados pelo Poder Público; (v) situação de conflito entre o comportamento anterior e o atual por parte do Poder Público; (vi) continuidade da relação por período inversamente proporcional à importância do ato administrativo[250].
Ademais, ao contribuinte que se se sinta injustiçado pela cobrança do tributo de forma contrária à exposta na resposta, resta a impugnação do lançamento pela via judicial.
O Judiciário, por sua vez, não poderia se socorrer da referida “praticidade” para determinar a solução jurídica do caso, efetuando a mesma execução simplificadora da lei facultada ao administrador[251].
Isto em função do seu comprometimento institucional com a proteção individual, a sua missão constitucional de encontrar a justiça para o caso isolado, que lhe veda o uso de tipificações e o obriga a esgotar a potencialidade da norma legal que aplica, buscando por meio do aquilatamento dos princípios confluentes in casu e fundamentação, a extração de uma norma profundamente densificada, que haverá de reger o direito em um caso concreto visando a concreção do mais alto grau possível de justiça material[252].
Quanto à questão colocada em juízo, esta parece suscitar um inconciliável conflito entre o princípio da legalidade e o da boa-fé objetiva (como vetor da proteção à confiança e da segurança jurídica).
Celso Antônio Bandeira de Mello, afirma que, na verdade, o conflito entre a boa-fé objetiva e o princípio da legalidade é meramente aparente, pois o Estado se vincula em cada ato de aplicação de normas ao ordenamento jurídico como um todo. Se este privilegia a boa-fé como cânone hermenêutico, então esta deve integrar o feixe de considerações necessário à interpretação da qualquer norma jurídica. Assim, valorizando a boa-fé na aplicação da norma, o Estado atende ao próprio sistema jurídico[253].
No mesmo sentido Gilmar Mendes, mencionando o magistério de Hans-Uwe Erichsen, professor da saudosa Universidade de Münster, assevera que o princípio da legalidade da Administração é apenas um dentre os vários elementos do Estado de Direito, disso resultando que uma solução adequada para o caso concreto depende de um juízo de ponderação que leve em conta todas as circunstâncias que caracterizam a situação singular[254].
A ponderação[255] se faz imperativa, porque a preferência à estrita observância da forma (ao princípio da legalidade), em detrimento da observância de retidão nas relações jurídicas e a manutenção das expectativas legítimas das partes destas relações, pode instalar a arbitrariedade, acarretando soluções, como afirma Almiro do Couto e Silva, com base na lição de Bernard Schwartz, com “toda a beleza da lógica e toda a hediondez da iniquidade” [256].
O sopesamento entre o princípio da legalidade e o princípio boa-fé permitiria que o último corrigisse os defeitos e preenchesse as lacunas das previsões genéricas contidas nas normas, de modo a ajustá-las ao critério de justiça que subjaz da boa-fé.[257].
Isto, pois a ênfase excessiva ao princípio da legalidade da Administração Pública nos casos em que o interesse público demande a proteção da boa-fé dos cidadãos representaria a retirada de um dos pilares de sustentação do Estado Democrático de Direito, qual seja, o da segurança jurídica, negando-se a própria justiça[258].
Deve-se, assim reconhecer, que o princípio da legalidade, longe de ser dogma para a orientação da administração pública no exercício de suas funções, pode encontrar, em certos casos, limites na proteção da confiança que os administrados depositam nos atos do Poder Público[259]. Sendo lícito concluir, neste passo, que em determinados casos cabe ao Judiciário afastar a incidência retroativa do novo critério jurídico, conforme pressupõe a boa-fé objetiva[260].
Resta discorrer sobre a possibilidade de o administrado pleitear ao Judiciário, além da anulação do lançamento, indenização por eventuais danos que tenha sofrido em virtude de ter orientado a sua conduta pela resposta posteriormente modificada.
Outra questão relevante acerca da abrangência da proteção conferida ao consulente que segue a orientação veiculada através do ato de resposta diz respeito à possibilidade de ele pleitear indenização por danos causados em função dela, seja na hipótese de esta ter sido modificada em seu prejuízo, seja na de ele ter recebido uma orientação diversa da de outros contribuintes em situação análoga, que o coloque em desvantagem.
A responsabilidade do Estado por atos violadores de direito praticados por seus agentes e que acarretem prejuízo para os administrados foi por longo tempo recusada pela doutrina administrativista. Prevalecia, então, o preceito da irresponsabilidade da administração, que ditava que os particulares teriam que suportar os prejuízos que os servidores públicos eventualmente lhes causavam, quando no exercício regular de suas funções[261].
Atualmente a teoria da irresponsabilidade do Estado encontra-se totalmente superada, tendo sido banida dos ordenamentos jurídicos da maioria dos Estados[262].
No Brasil, ao longo da história a responsabilidade do Estado sempre teve guarida constitucional, sendo prevista na Constituição do Império (art. 24), Constituição de 1891 (art. 89), Constituição de 1934 (art. 171), Constituição de 1937 (art. 158), Constituição de 1946 (art. 194), Constituição de 1967 (art. 105) e Constituição de 1969 (art. 107).
Na atual Constituição Federal de 1988 tal entendimento foi cristalizado pelo legislador no art. 37, §6[263] que, segundo Hely Lopes Meirelles, estabelece para todas as entidades do Estado, bem como seus desmembramentos administrativos, a obrigação de indenizar o dano causado a terceiros por seus servidores, independentemente da prova de culpa no cometimento da lesão[264]. Firmou, em outras palavras, a responsabilidade objetiva da Administração pela atuação lesiva dos seus agentes e delegados, sem prejuízo da competente ação de regresso, em seu favor, contra o servidor que tenha agido com dolo ou culpa. Desta maneira, para que se caracterize o dever de indenizar basta que se constate a simples existência de nexo causal, ou, mais tecnicamente, a “causalidade adequada”, entre a ação do Poder Público e o dano produzido no particular, para determinar a responsabilidade do Estado[265].
A responsabilização do Estado por danos advindos da adesão do contribuinte à quando esta for modificada em seu prejuízo é razoável. Já dissemos que não há óbice a que o Fisco modifique o seu posicionamento, porquanto o particular não tem qualquer direito subjetivo a que se mantenha infinitamente uma orientação e tampouco tem direito a uma tributação dita “favorável. Entretanto, em certas ocasiões a modificação representa de tal forma uma quebra da “promessa” firmemente feita pelo Poder Público, que não reconhecer o direito à reparação pela quebra da confiança do administrado importaria em grave injustiça[266], correndo-se o risco de a consulta se tornar mais uma experiência frustrada nas tentativas de melhorar a comunicação e o relacionamento entre fisco e contribuinte[267]. Ao mesmo tempo, a responsabilização do Estado impede que se empreste à decisão que responde à consulta um caráter plenamente volátil, que seria o mesmo que admitir a Administração pudesse emitir a resposta que mais lhe agradasse e a alterasse livremente conforme sua conveniência, simplesmente alegando que a evolução da hermenêutica forçou uma mudança de posicionamento, sem prestar cuidado algum ao contribuinte afetado[268].
Da mesma forma seria aceitável que o Estado fosse responsabilizado pelos prejuízos sofridos pelo contribuinte orientado de divergente de outros em situação análoga, já que patente a ofensa tanto à sua confiança nos atos estatais quanto aos princípios da igualdade e da capacidade contributiva.
Deve-se reforçar, entretanto, que a responsabilidade do Estado é objetiva no caso, o que não quer dizer integral. Destarte, é imprescindível para a sua geração que se demonstre o dano sofrido[269], assim como não se cogita do “dever de reparação” sem a comprovação do nexo de causalidade entre resposta e prejuízo, sob pena, como alerta José Wilson Ferreira Sobrinho, de se iniciar uma verdadeira histeria da responsabilidade estatal[270].
Faleiro acredita que o Estado somente poderia ser responsabilizado nas hipóteses em que o entendimento conferido não fosse efetivamente o entendimento da Administração no momento do questionamento, por exemplo, quando divergisse de respostas reiteradas dadas a outros consulentes, como no caso julgado pelo STF, o que caracterizaria ato ilícito, expedido em razão de erro funcional[271]. A verdade é que com a objetivação da responsabilidade do Estado na modalidade do risco administrativo, não mais havendo necessidade de prova da ilicitude ou culpabilidade para que se verifique a responsabilização do Estado, a distinção entre atos lícitos e ilícitos perde sua relevância imediata para que se caracterize o dever de indenizar[272].
Tendo em vista a reciprocidade inerente à boa-fé objetiva também do contribuinte se exige conduta adequada para que tenha direito à indenização. Desta forma, como afirma a doutrina alemã, caberia ao contribuinte comprovar que, baseado na resposta à consulta, tenha tomado medidas com efeito econômico que não teriam sentido caso a orientação fornecida pelo Fisco fosse outra. Assim, não poderia pleitear indenização por negócios que tenha efetuado ou fatos econômicos em que tenha incorrido enquanto não revelada a opinião da Administração[273].
Flávio Rubinstein afirma que, também o contribuinte que tenha plena consciência de que a reposta é errada não poderia pleitear indenização por segui-la[274]. Circunstância esta que soa paradoxal, já que se o contribuinte tivesse certeza sobre a interpretação que o Fisco normalmente adota sobre a norma, a ponto de notar que a autoridade se equivocou ao responder à sua consulta, sequer estaria legitimado a propô-la[275].
A indenização deve abranger que a vítima efetivamente perdeu, o que despendeu e o que deixou de ganhar em consequência direta e imediata do ato lesivo da Administração. Em outras palavras, deve abranger o dano emergente, os lucros cessantes, bem como honorários advocatícios, correção monetária e juros de mora se houver atraso no pagamento[276]. Assim, caberia ao Estado indenizar o consulente não somente pelo excesso de tributos pagos em função de resposta errada ou modificada supervenientemente, mas também indenizá-lo por negócios que realizou (ou deixou de realizar) ou fatos econômicos em que incorreu, os quais não se justificariam caso a resposta do Fisco não fosse aquela[277].
A liquidação dos prejuízos será feita de acordo com o procedimento previsto pelo art.. 100 da Constituição Federal e arts. 730 e 731 do Código de Processo Civil, seguindo-se a requisição do pagamento devido pela Fazenda Pública[278]. Também a indenização por dano moral é cabível, apesar das dificuldades que sua quantificação apresenta[279].
A ação indenizatória é intentada pelas vítimas contra as pessoas jurídicas de Direito Público que lhe causaram o dano, podendo os agentes públicos atuar na lide, facultativamente, como terceiros interessados, já que devem sofrer a ação de regresso. É o que defende Hely Lopes Meirelles, quando afirma que o causador direto do dano não poderia ser obrigado a integrar a ação que a vítima intenta contra a Administração, mas pode, voluntariamente, intervir como assistente da Administração[280].
Todavia, na opinião de Hugo de Brito Machado, a indenização pode ser cobrada diretamente do agente público causador do dano, em ação promovida contra ele e contra o ente público, com pedido de condenação dos dois por serem solidariamente responsáveis, e com pedido subsidiário de condenação do ente público[281].
O autor sustenta que a ação contra o agente público teria o mérito de fazer valer o efeito punitivo da indenização, contribuindo à prevenção de práticas abusivas contra o contribuinte. Ademais, a execução da sentença condenatória não dependeria de precatório, sendo provável, inclusive, que o réu pagasse o valor determinado em sentença para evitar o constrangimento da execução[282].
Apesar de louvável a tese não parece cumprir os requisitos de legitimidade ad causam que autorizariam a presença do agente público no polo passivo da ação indenizatória. Isto porque, em decorrência do princípio da impessoalidade, a personalidade do agente se dissolve dentro do ente estatal em que atua, de modo que o prejudicado deve promover a ação contra a Fazenda Pública respectiva e não contra o agente causador. Como doutrina José Afonso da Silva “a culpa ou dolo do agente é culpa problema das relações funcionais que escapa à indagação do prejudicado”[283].
Da mesma forma pronunciou-se o STF, que em julgamento de relatoria do Ministro Carlos Britto, reconheceu que a norma do §6º do art. 37 da CF consagra dupla garantia: uma, em favor do particular, possibilitando-lhe ação indenizatória contra a pessoa jurídica de direito público, ou de direito privado que preste serviço público, dado que amplia consideravelmente a possibilidade de pagamento do dano objetivamente sofrido; outra garantia, no entanto, em prol do servidor estatal, que somente responde administrativa e civilmente perante a pessoa jurídica a cujo quadro funcional se vincular[284].
A este respeito Hely Lopes Meirelles afirma incisivamente que o legislador constituinte bem segregou as responsabilidades: O Estado indeniza a vítima; o agente indeniza o Estado regressivamente[285].
Na jurisprudência do STF encontra-se um caso paradigmático de responsabilização estatal em virtude de prejuízos causados por uma consulta fiscal. Nele a corte constitucional reconheceu à empresa que formulou consulta fiscal perante a Administração Estadual Paulista o direito à indenização por danos provocados em virtude da observância da resposta.
Uma destilaria havia apresentado questionamento à Secretaria da Fazenda do Estado sobre o exato momento da ocorrência do fato gerador do ICMS nas saídas para entregas futuras, se no momento da emissão da nota ou na efetiva saída dos produtos, tendo obtido como resposta que a ocorrência se daria no momento da emissão da nota para entrega futura. Tomando a empresa posteriormente o conhecimento de que concorrentes adotavam postura diversa e que a mesma autoridade havia proferido respostas em sentido divergente, tornou a formular consulta. Desta vez a resposta veio no sentido de que a norma geradora da obrigação principal incidiria no momento da saída dos produtos. Dado que à época os índices inflacionários eram galopantes, o pagamento antecipado do tributo fez a empresa suportar ônus financeiros indevido. Para ser ressarcida dos danos relativos à corrosão inflacionária do valor pago antecipadamente a título de imposto, a empresa ingressou com ação ordinária de ressarcimento de danos contra a Fazenda do Estado de São Paulo[286].
Em primeira instância a ação foi julgada improcedente, sob a motivação de que o consulente não era obrigado a seguir a orientação fiscal oferecida pela Administração em consulta. Daí que, não sendo imperativa, não seria a causa única do equívoco pagamento antecipado do tributo, o que descaracterizaria o nexo causal. Afirmou-se também que o dano não havia sido efetivamente comprovado, tendo os cálculos apresentados se baseado em meras hipóteses.[287].
Em parecer proferido quando o caso ainda se encontrava na segunda instância, Eros Grau defendeu a responsabilização do Estado. Afirmou que a orientação dada pelo Fisco era, sem prejuízo do recurso ao Judiciário, vinculante para o consulente, dado que seu desacatamento é passível de gerar autuações e penalizações e que autor a hipótese não era de “modificação superveniente de orientação”, mas sim de “erro da Consultoria Tributária”, de modo que tendo a Administração orientado equivocadamente a consulente, infringiu o princípio da boa-fé, rompeu o seu dever de correção e comprometeu o valor ético da confiança, portanto, comprovado o prejuízo causado ao consulente deveria ser responsabilizada pela sua recomposição[288].
A questão foi decidida de forma análoga pelo tribunal ao acolher o voto lavrado pelo Min. Marco Aurélio, cujo entendimento foi de que houve equívoco por parte da Administração na resposta à consulta, que implicou em prejuízo para o consulente, era passível de indenização. O ministro sustentou que a responsabilização do Estado era imperativa, pois ao propor seu questionamento assumiu a consulente “postura de absoluta boa-fé” e demonstrou “inegável confiança no Fisco” ao seguir a orientação proposta, o que não poderia ser ignorado. Disse ainda que era o caso de a Corte assumir postura que estimulasse os contribuintes a se valerem do instituto da consulta, ao mesmo tempo em que se atribuísse uma maior responsabilidade ao Estado ao respondê-la, não se concebendo que o equívoco, que implicou em inegável vantagem para a Administração, deixasse de ser indenizado.
Ferreira Sobrinho afirma que a tese vencedora do julgamento, que impôs ao Estado o dever de responsabilização por danos causados em função da modificação da resposta não era nova, mas tida por muitos autores como heresia jurídica. De acordo com o autor, os defensores deste posicionamento se baseavam em uma visão irrestrita da discricionariedade da ação estatal na qual, em prol do “interesse público” os maiores absurdos jurídicos poderiam ser perpetuados, sem acarretar qualquer responsabilidade ao ente causador[289].
SÍNTESE CONCLUSIVA
1. A tributação se presta a instrumentalizar a consecução dos fins do Estado declarados constitucionalmente, sendo das opções de que ele poderia dispor para obter a indispensável colaboração dos indivíduos na consecução de suas finalidades, a que menos grava direitos fundamentais. O exercício desta prerrogativa enfrenta, contudo grande rejeição social, dado o o fato de que, com o fim de garanti-los, a tributação acaba por interferir em dois dos direitos fundamentais mais caros ao indivíduo na sociedade capitalista: a liberdade e a propriedade privada.
2. Ao Estado cabe buscar constantemente maior legitimidade para o exercício da atividade tributária, aumentando a sua aceitação pela sociedade. Pois quanto maior a eficácia social da norma tributária, maior a eficiência do instrumento para a consecução dos fins estatais constitucionais.
3. O exercício do poder tributário só é legítimo enquanto instrumental, de modo que no Estado Democrático de Direito não pode ser arbitrário e deve ser sempre atrelado às exigências constitucionais de moralidade e legalidade e ser orientado ao cumprimento dos fins do Estado nos termos da Constituição.
4. A cobrança e a arrecadação dos tributos deve ser feita em consonância com a igualdade e a legalidade. As autoridades devem garantir que os impostos não sejam objeto de elusão ou que se apliquem de modo contrário ao Direito, não em função do interesse do Fisco em arrecadar, mas sim em respeito ao direito que tem o contribuinte de que todos os demais também paguem os impostos. Não cabe ao funcionário da Administração buscar o máximo de arrecadação, mas sim aplicar o direito material com Justiça. O exercício da função pública pelo agente fiscal deve ser guiada pela ética, cabendo a ele orientar e oferecer oportunidades de correção aos contribuintes de boa-fé se deparem com incerteza diante de leis dúbias, sendo reservadas as punições para os contribuintes de má-fé.
5. Com o fim de se orientar o contribuinte no cumprimento de seus deveres fiscais são abertos canais de comunicação entre a Administração e o administrado. Meios de comunicação estes que tanto serão mais produtivos quanto maior a confiança que o indivíduo deposite no Estado. É neste contexto que se encaixa o processo administrativo de consulta fiscal.
6. A consulta fiscal é processo administrativo através do qual, o sujeito passivo, efetivo ou potencial de relação jurídica tributária, ou entidade que o represente, indaga formalmente à autoridade tributária competente sobre a aplicação da legislação tributária a fato determinado. Ela vem dar ao cidadão a oportunidade de sanar dúvidas ocasionadas em decorrência da complexidade da legislação tributária, bem como a sua praxe e, assim, poder , dirimi-las antes mesmo da fiscalização ou da autuação do Fisco, permitindo agir em consonância com a legislação, evitando equívocos e sanções. Para o Fisco é chance de educar o contribuinte, reduzindo das práticas elusivas e sonegatórias.
7. Contemporaneamente a importância do instituto se avulta na medida em que a legislação tributária se torna mais vasta, complexa, intricada, e, não raro, conflitante, contraditória e obscura, como se o próprio legislador se tivesse perdido no emaranhado de diplomas que criou. A dificuldade enfrentada pelos cidadãos para compreender seus deveres fiscais é notória e ressaltada por diversos doutrinadores.
8. A complexidade das normas tributárias não é necessariamente ruim, ela acompanha a complexização das relações econômicas e busca captar as suas sutilezas para distribuir de forma mais equânime os encargos financeiros dentre os cidadãos.
9. Também da própria natureza abstrata e plurissignificativa da linguagem jurídica decorrem algumas dificuldades na sua interpretação e aplicação aos casos concretos, sendo fundamental neste sentido a coerência e a previsibilidade dos atos hermenêuticos estatais.
10. A ínsita plurivocidade da linguagem jurídica não exclui o dever do Estado de buscar legislar de forma clara e coesa, sendo uma das expressões mais elementares da segurança jurídica a exigência de que as normas sejam formuladas de modo claro sob a perspectiva formal. A norma pouco clara faz surgir dúvida, consequentemente gerando insegurança jurídica.
11. Sendo linguagem, o Direito só é funcional quando o destinatário do mandamento legal tem ciência da existência da mensagem e quando esta atinge o destinatário com o menor ruído possível, quer dizer, o mais próximo da pretensão do emissor.
12. O esclarecimento do sentido das normas proporcionado pela consulta fiscal preserva a funcionalidade do comando normativo e se relaciona com a legalidade, a legitimidade, e a eficiência da atuação estatal.
13. No que se refere à tributação, o estado mental de incerteza do particular lhe tolhe garantias fundamentais como a liberdade fiscal. Impede o seu planejamento tributário, já que fica sem saber se suas ações cumprem com as expectativas do ordenamento jurídico ao qual está submetido, correndo sempre o risco de ser surpreendido por anulação dos negócios que tenha praticado, ou por uma ação punitiva do Fisco. A incerteza é também prejudicial ao Fisco que enfrenta entraves à arrecadação como a sonegação e a corrupção e longos debates judiciais relativos ao pagamento de tributos, o que afeta diretamente a eficiência arrecadatória.
14. A consulta fiscal, como atividade estatal de eliminação da incerteza quanto à interpretação da norma, pode ser considerada instrumento de consecução de Justiça Fiscal, pois, como canal de comunicação entre Administração e administrado apto a orientá-lo sobre seus direitos e deveres, pode corrigir a desigualdade no acesso à informação jurídica fiscal, que faz com que os contribuintes com recursos para pagar por uma consultoria fiscal possam pagar menos tributos do que aqueles com menos recursos (Dummensteuereffekt).
15. A resposta que o Fisco oferece, por ser o legítimo intérprete da norma é capaz de clarificar melhor do que qualquer tributarista ou contabilista os ônus tributários a que estão sujeitos os particulares lhes possibilitando o adequado planejamento da sua vida fiscal.
16. O fundamento jurídico-constitucional da consulta fiscal não é o direito à informação e e nem o direito de petição, mas sim o direito à preservação da segurança jurídica, que se instrumentaliza através do direito de petição. O conteúdo da resposta à consulta configura uma “informação”, porém, em decorrência de sua função para o Direito Tributário, a informação que se visa obter através da consulta fiscal apresenta conteúdo, pressupostos de legitimidade à sua obtenção e efeitos jurídicos que são demasiadamente específicos para que se enquadre o instituto no vago “direito à informação”. O consulente busca, ao expor sua dúvida, ato oficial de interpretação que lhe traga a certeza necessária ao planejamento seguro de sua vida fiscal, sem medo de ser surpreendido por autuações, ou seja, busca informação apta a lhe trazer segurança jurídica.
17. Responder adequadamente à consulta é dever do Estado, pois, se este em razão de sua soberania tem o direito de exigir o imposto que previamente estabeleceu em lei, por outro, tem a obrigação, quando solicitado, de instruir o contribuinte, esclarecendo, com segurança, quando e como deve pagar o mesmo tributo. ou como cumprir determinada obrigação legal ou regulamentar
18. Ao responder às consultas e garantir a segurança jurídica ao administrado, eliminando sua dúvida quanto à interpretação de uma norma, a Administração acaba por tutelar o seu próprio interesse. Isto, pois ao oferecer o entendimento oficial quanto ao sentido da norma, o órgão emissor do comando normativo estabiliza o seu espectro semântico no caso concreto, garantindo a sua correta compreensão pelo destinatário e permitindo a adesão voluntária à norma, a sua efetividade ou eficácia social atendendo aos anseios do legislador.
19. Quanto aos sujeitos da consulta, legítimo consulente é todo aquele todo aquele que demonstre interesse pessoal relacionado com o fato determinado que pode gerar a tributação. Tal interesse pessoal que figura como condição de legitimidade não diz respeito apenas àquele que está diretamente relacionado com a hipótese de incidência descrita pela norma, como também o responsável ou o representante de categoria econômica ou profissional.
20. A legitimidade para responder à consulta fiscal (legitimidade passiva) não é dada a quem edita a norma geral e abstrata que motiva a consulta, mas sim a quem irá aplica-la, ou seja, a Administração Pública direta ou indireta.
21. Todo assunto exacional pode ser objeto de consulta fiscal, sem barreiras. São portanto inaceitáveis decisões que restrinjam a amplitude dos assuntos consultáveis-, o que é inclusive prejudicial à própria Administração, dadas as vantagens que a resposta à consulta lhe agrega
22. Em função da garantia constitucional de representação o legislador ordinário não pode impor óbice à consulta coletiva em relação à consulta individual.
23. Quanto ao fato descrito, não há impedimento que seja uma situação já ocorrida, ou de ocorrência certa ou possível; basta que seja determinada, isto é, descrita de maneira a permitir sua individualização. A identificação dos fatos necessita ser o mais precisa e completa possível, pois é fundamental para a delimitação dos efeitos do ato de resposta à consulta
24. Em que pese o posicionamento contrário da Receita Federal, a consulta é instrumento apto ao questionamento da legalidade/constitucionalidade das normas tributárias.
25. A convicção íntima do consulente sobre o sentido da norma não retira a legitimidade de sua dúvida, pois lhe restará a dúvida sobre a interpretação do Fisco.
26. A apresentação de consulta fiscal produz efeitos próprios típicos da sua característica de instrumento de leal cooperação entre Administração e administrado, essenciais à sua efetividade prática. É por isso que se atribui certas vantagens àquele que consulta o Fisco em busca de orientação para cumprir devidamente o comando da norma. Em todos os efeitos decorrentes da proposição de consulta refletem os princípios da moralidade, lealdade, impessoalidade e boa-fé aos quais está sujeita a Administração Pública no exercício de suas funções.
27. A moralidade com a qual deve se portar o Fisco é contrapartida à boa-fé que se requer do consulente, assim deve o órgão proceder de forma leal e impessoal, não se valendo da exposição que o consulente faz de suas operações em seu desfavor, transformando a consultaem armadilha para o consulente.
28. Sendo traços predominantes da consulta a espontaneidade e a boa-fé, e devendo tratar de assunto sobre o qual existe fundadas dúvidas, é evidente que não se poderia aplicar penalidade ao contribuinte, ou agravar-lhe, de qualquer modo, a situação quando se decide pela tributação, como também não se poderia deixar de suspender quaisquer ações fiscais contra o consulente.
29. Somente a consulta formulada em consonância aos ditames legais será apta a gerar efeitos. A declaração de eficácia da consulta é feita pela autoridade consultada em de forma expressa ou tácita e não tem natureza de resposta, já que não resolve a dúvida apresentada. Desta decisão não é cabível pedido de reconsideração (art. 58 do mesmo Decreto), restando ao contribuinte inconformado valer-se do remédio constitucional do mandado de segurança.
30. Os efeitos preventivos da proposição da consulta (efeitos imediatos preventivos) são previstos no art. 48 do Decreto n. 70.235/72 e art. 161, §2º do CTN e passam a valer a partir do ato de proposição do consulente, que gera para a Administração obrigação de não fazer
31. A resposta à consulta é o ato através do qual a Administração expõe o seu entendimento sobre a matéria questionada provocando modificação na esfera jurídica do contribuinte e da Administração e configura o dever correspondente da Administração ao direito que tem o administrado de apresentar consulta fiscal.
32. Dado que a resposta à consulta introduz um mandamento de justaposição revelador do conteúdo do enunciado consultado, permitindo ao consulente a compreensão da norma tributária, bem como orientando o órgão aplicador quando do lançamento, podemos classificar a resposta à consulta como um ato normativo regulamentar expedido por autoridade administrativa, que introduz norma complementar à legislação tributária (art. 100, I do CTN).
33. Como ato administrativo, para ser válida a resposta deve atender a requisitos de competência, finalidade, forma, motivo e objeto e também aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência aos quais está sujeita a Administração Pública no exercício de qualquer atividade (art. 36 caput da CF). Deve ser publicada, para que contribuintes em situação equivalente dela possam se valer ou impugná-la na hipótese de terem recebido resposta diversa para o mesmo questionamento.
34. Ela deve também ser motivada, para permitir o seu controle pelo administrado. A motivação demonstrará o atendimento da legalidade, impessoalidade e moralidade administrativa. Contudo, por não se tratar de procedimento litigioso, a Administração não necessitará comprovar que levou em consideração a eventual opinião fornecida pelo contribuinte para proferir decisão.
35. A resposta à consulta introduz um mandamento de justaposição revelador do conteúdo do enunciado consultado, permitindo ao consulente a compreensão da norma tributária, bem como orientando o órgão aplicador quando do lançamento, podemos classificar a resposta à consulta como um ato normativo regulamentar expedido por autoridade administrativa, que introduz norma complementar à legislação tributária (art. 100, I do CTN).
36. O conteúdo da resposta vincula o órgão emissor, é seu “efeito mediato normativo”, que não é disciplinado de forma expressa pelo Decreto n. 70.235/72.
37. A vinculação se restringe somente ao Fisco, pois ao consulente sempre restará a via judicial para contestá-la, assim como poderá ignorar a orientação conferida e impugná-la administrativamente no momento em que for autuado.
38. O Fisco não agiria de boa-fé quando, contrariando decisão proferida em consulta, surpreendesse o contribuinte que depositou confiança em sua orientação, alterando o seu entendimento anterior sobre a matéria consultada, com referência ao mesmo contribuinte e com eficácia retroativa. Não se prega que a Administração esteja ad aeternum adstrita a uma orientação emitida em resposta, o Direito é por sua natureza é mutável, sendo inclusive saudável que a interpretação das normas se altere, em especial quando orientada à consecução de um maior grau de justiça material. Ademais, a manutenção da aplicação de um critério jurídico para aquele que formulasse consulta, quando este já não mais representasse o entendimento do Fisco, poderia colocar tal contribuinte em situação de vantagem em relação aos demais submetidos à nova orientação, o que representaria séria afronta aos princípios da isonomia e capacidade contributiva, em contrariedade à Justiça Fiscal que se busca promover através do instituto. Por outro lado, admitir-se a tese da volatilidade da resposta, seria o mesmo que admitir que o Estado pudesse, à seu gosto emitir qualquer resposta, alternando-a conforme sua conveniência e simplesmente alegando que a evolução da hermenêutica forçou uma mudança de posicionamento, sem prestar cuidado algum ao contribuinte afetado.
39. Seria mais justo que novo critério jurídico do Fisco, que contrarie aquele emitido em resposta a consulta prévia, não seja aplicado de forma retroativa, mas devido à submissão da Administração à legalidade deve-se questionar, em primeiro lugar, como o ordenamento regula a eficácia retroativa da mudança de posicionamento da Administração.
40. A decisão que responde à consulta antecipa o motivo legal do ato de lançamento que possa decorrer da realização do fato, mas com este não se confunde. A decisão da consulta, ao informar o critério jurídico aplicável a determinado fato, delimita o motivo legal do lançamento que dele resulte, condicionando a Administração a adotálo em face de sua ocorrência. Trata-se de mandamento de concreção do dispositivo normativo posto em questão, verdadeiro ato normativo regulamentar., que introduz “norma complementar” à legislação tributária (art. 100, I do CTN).
41. A regulação legal da retroação da alteração do critério jurídico emitido na resposta se dá pelo art. 100 do CTN que prevê a proteção daquele que confia e segue a orientação dada pelo Fisco excluindo a imposição de penalidades, a cobrança de juros de mora e a atualização do valor monetário da base de cálculo do tributo, mas não afasta a constituição do crédito tributário referente ao respectivo fato gerador praticado.
42. Em que pese ser reconhecida a aplicação do princípio da boa-fé objetiva e seus correlatos ao Direito Tributário e que a contradição entre a orientação fornecida pelo Fisco em resposta e o critério que adote quando do lançamento contrariem os liames que eles estabelecem, não se pode olvidar que o lançamento é um ato vinculado e obrigatório, não podendo a autoridade administrativa, quando da ocorrência de fato gerador da obrigação correspondente, abster-se de realizar tal procedimento, sob pena de responsabilidade funcional (parágrafo único do art. 142 do CTN). O que quer dizer que não compete ao Fisco operar um sopesamento principiológico da situação e decidir sobre a conveniência ou Justiça do lançamento, resumindo-se a sua atividade à verificação da ocorrência do fato e a projeção sobre ele dos valores previamente sopesados e condensados na norma jurídica.
43. A principal razão dessa acentuada expressão da praticidade reside no fato de que o Direito Tributário enseja aplicação em massa de suas normas, a cargo da Administração, ex officio, e de forma contínua ou fiscalização em massa da aplicação dessas normas (nas hipóteses de tributos lançados por homologação).
44. Desta maneira o administrador não poderia na falta de previsão legal deixar de cobrar o tributo por mais que sua abstenção atenda melhor aos ditames da boa-fé.
45. Entretanto, não se pode dizer que o ordenamento jurídico tenha desprestigiado a boa-fé do contribuinte. Afinal, o art. 100 do CTN exclui a aplicação de penalidades, juros de mora e a correção monetária da base de cálculo do tributo, àquele que tenha orientado sua conduta de acordo com as informações prestadas pelo Fisco. Destaque-se que para gozar destes efeitos o contribuinte sequer necessita comprovar a sua boa-fé. Ademais, ao contribuinte que se sinta injustiçado pela cobrança do tributo de forma contrária à exposta na resposta, resta a impugnação do lançamento pela via judicial.
46. Em função do seu comprometimento institucional com a proteção individual, a sua missão constitucional de encontrar a justiça para o caso isolado, o Judiciário não pode se valer de tipificações ou simplificações para resolver o caso que lhe é submetido. Ele está obrigado a esgotar a potencialidade da norma legal que aplica, buscando por meio do sopesamento principiológico e fundamentação a extração de uma norma profundamente densificada, que haverá de reger o direito em um caso concreto visando a concreção do mais alto grau possível de justiça matéria..
47. O conflito na questão sub judice entre o princípio da legalidade e o da boa-fé objetiva (como vetor da proteção à confiança e da segurança jurídica).é apenas aparentemente inconciliável.
48. A ênfase excessiva no princípio da legalidade nos casos em que o interesse público demande a proteção da boa-fé dos cidadãos representaria a retirada de um dos pilares de sustentação do Estado Democrático de Direito, qual seja, o da segurança jurídica, negando-se a própria Justiça. O princípio da legalidade encontra em certos casos, limites na proteção da confiança que os administrados depositam nos atos do Poder Público. O sopesamento entre o princípio da legalidade e o princípio boa-fé permite que o último corrija os defeitos e preencha as lacunas das previsões genéricas contidas nas normas, de modo a ajustá-las ao critério de justiça que subjaz da boa-fé. Destarte é lícito ao Judiciário, caso a situação fática autorize, afastar in casu a incidência retroativa do novo critério jurídico, impedindo a cobrança do tributo.
49. O consulente lesado em função da mudança de critério jurídico do Fisco pode requerer reparação em ação judicial própria com base na responsabilidade objetiva da Administração por lesão a direitos dos administrados.
50. Cabe ao consulente comprovar o dano e o seu nexo de causalidade com a resposta. Demonstrando que, em função dela, promoveu negócio e incorreu em fatos econômicos que não se justificariam caso fosse diversa.
51. O servidor público responsável direto pela elaboração da resposta à consulta carece de legitimidade para figurar no polo passivo de ação indenizatória pleiteada pelo consulente, somente respondendo à ação regressiva proposta pela Administração quando incorreu em dolo ou culpa.
Informações Sobre o Autor
Ivo Hofmann Francisco Alves
Advogado, Bacharel em direito pela Universidade de São Paulo