Resumo: Dentre os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988, o direito à saúde figura entre os mais debatidos nos âmbitos acadêmico, doutrinário e judicial. Após a inserção desse direito na Constituição Federal de 1988, a sociedade brasileira tem se conscientizado que, efetivamente, é a destinatária final da proteção conferida pelo Estado. Com efeito, a Constituição Federal de 1988 constitui-se marco histórico da proteção constitucional à saúde, de modo que, antes da sua promulgação, os serviços e ações de saúde eram destinados apenas a determinados grupos, os que poderiam, de alguma forma, contribuir, ficando de fora as pessoas quem não possuíam condições financeiras para custear o seu tratamento de forma particular e os que não contribuíam para a Previdência Social. Não obstante a proteção constitucional ao direito à saúde, a ausência de especificação do objeto desse direito e de definição dos princípios constitucionais relacionados à saúde tem dificultado a concretização desse direito fundamental.
Palavras-chaves: Direito à saúde. Constituição Federal de 1988. Sistema Único de Saúde.
Sumário: Introdução; 1- A saúde na Constituição Federal de 1988; 2 – O caminho da universalização dos serviços de saúde; 3 – A Assistência terapêutica integral no SUS; 4 – Financiamento da saúde: apontamentos sobre o mínimo constitucional; Conclusão.
Introdução
O presente artigo tem o escopo de analisar a saúde sob a ótica da Constituição Federal de 1988. De início, pretende-se abordar o conceito de saúde trazido pela Constituição Federal, partindo-se para o estudo sobre as principais diretrizes constitucionais envolvendo a saúde. Ao final, tratar-se-á sobre a previsão do mínimo constitucional no financiamento da saúde como mais uma garantia constitucional para efetivação desse direito fundamental.
1 – A saúde na Constituição Federal de 1988
O direito à saúde foi inserido na Constituição Federal de 1988 no título destinado à ordem social, que tem como objetivo o bem-estar e a justiça social. Nessa perspectiva, a Constituição Federal de 1988, no seu Art. 6º, estabelece como direitos sociais fundamentais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância[1].
Em seguida, no Art. 196, a Constituição Federal de 1988 reconhece a saúde como direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Dentre os direitos sociais, o direito à saúde foi eleito pelo constituinte como de peculiar importância[2]. A forma como foi tratada, em capítulo próprio, demonstra o cuidado que se teve com esse bem jurídico. Com efeito, o direito à saúde, por estar intimamente atrelado ao direito à vida, manifesta a proteção constitucional à dignidade da pessoa humana.
A saúde, consagrada na Constituição Federal de 1988 como direito social fundamental[3], recebe, deste modo, proteção jurídica diferenciada na ordem jurídico-constitucional brasileira[4].
Ao reconhecer a saúde como direito social fundamental[5], o Estado obrigou-se a prestações positivas, e, por conseguinte, à formulação de políticas públicas sociais e econômicas destinadas à promoção, à proteção e à recuperação da saúde.
A proteção constitucional à saúde seguiu a trilha do Direito Internacional[6], abrangendo a perspectiva promocional, preventiva e curativa da saúde, impondo ao Estado o dever de tornar possível e acessível à população o tratamento que garanta senão a cura da doença, ao menos, uma melhor qualidade de vida.
O conceito de saúde evoluiu, hoje não mais é considerada como ausência de doença, mas como o completo bem-estar físico, mental e social do homem. Contudo, o debate sobre o direito à saúde ainda segue no sentido do combate às enfermidades e consequentemente ao acesso aos medicamentos. Em última análise, há de se concordar com as palavras de Schwartz[7], para quem o escopo do direito sanitário é a libertação de doenças.
A importância de delimitar o tema exsurge quando se tem em vista que a Constituição Federal, no Art. 196, adotou o conceito amplo de saúde ao incumbir o Estado do dever de elaborar políticas sociais e econômicas que permitam o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde.
A par de assegurar o direito à saúde, a Constituição Federal de 1988 não delimitou objeto desse direito fundamental, não especificando “se o direito à saúde como direito a prestações abrange todo e qualquer tipo de prestação relacionada à saúde humana”[8].
Discute-se se o Estado, em seu dever de prestação dos serviços de saúde, obriga-se a disponibilizar o atendimento médico-hospitalar e odontológico, o fornecimento de todo tipo de medicamento indicado para o tratamento de saúde, a realização de exames médicos de qualquer natureza, o fornecimento de aparelhos dentários, próteses, óculos, dentre outras possibilidades.
Para Ingo Sarlet[9] é o Legislador federal, estadual e municipal, a depender da competência legislativa prevista na própria Constituição, quem irá concretizar o direito à saúde, devendo o Poder Judiciário, quando acionado, interpretar as normas da Constituição e as normas infraconstitucionais que a concretizarem[10]. Com a indefinição do que seria o objeto do direito à saúde, o legislador foi incumbido do dever de elaborar normas em consonância com a Constituição Federal de 1988.
Sabe-se que a aplicação da norma constitucional depende intrinsicamente de procedimentos a serem executados pelo Estado, bem como criação de estruturas organizacionais para o cumprimento do escopo constitucional de promover, preservar e recuperar a saúde e a própria vida humana.
Há, portanto, um claro dever do Estado de criar e fomentar a criação de órgãos aptos a atuarem na tutela dos direitos e procedimentos adequados à proteção e promoção dos direitos.
Como bem acentua Robert Alexy[11], “as normas de organização e procedimento devem ser criadas de forma que o resultado seja, com suficiente probabilidade e em suficiente medida, conforme os direitos fundamentais.” Do mesmo modo, orienta Ingo Sarlet,
“Se os direitos fundamentais são, sempre e de certa forma, dependentes da organização e do procedimento, sobre estes também exercem uma influência que, dentre outros aspectos, se manifesta na medida em que os direitos fundamentais podem ser considerados como parâmetro para a formatação das estruturas organizatórias e dos procedimentos, servindo, para além disso, como diretrizes para a aplicação e interpretação das normas procedimentais.”[12]
Ainda sobre a íntima vinculação entre direitos fundamentais, organização e procedimento, pontua Ingo Sarlet que “os direitos fundamentais são, ao mesmo tempo e de certa forma, dependentes de organização e do procedimento, mas simultaneamente também atuam sobre o direito procedimental e as estruturas organizacionais”[13]. Significa dizer que, ao mesmo tempo em que os deveres de proteção do Estado devem concretizar-se mediante normas administrativas e com a criação de órgãos destinados ao cumprimento da tutela e promoção de direitos, a extensão e limites dessas normas e órgãos são impostos pela própria Constituição.
Na linha dos autores citados, Konrad Hesse[14] defende que a organização e o procedimento podem ser considerados o único meio de alcançar um resultado conforme aos direitos fundamentais e de assegurar a sua eficácia. Do outro lado, é direito do cidadão
“obter do Estado prestações positivas, as quais, pela importância que detém, ultrapassam o campo da discricionariedade administrativa para uma inafastável vinculação de índole e força constitucionais, de modo que as pautas de atuação governamental estabelecidas no próprio seio da Lei de Outubro, jamais poderão ser relegadas a conceitos de oportunidade ou conveniência do agente público, eis que não podem transformar-se em mero jogo de palavras, pois, como visto, são indispensáveis à manutenção do “status” de dignidade da pessoa humana”[15].
No que toca ao direito à saúde, foram inseridos, no próprio texto constitucional, relevantes matizes da dimensão organizatória e procedimental. A Constituição Federal de 1988, nos Arts. 198 a 200, atribuiu ao Sistema Único de Saúde a coordenação e a execução das políticas para proteção e promoção da saúde no Brasil.
A Constituição Federal de 1988 não se limitou a prever a criação de uma estrutura organizacional para garantir o direito à saúde, indicou, ainda, como seria atuação desse órgão administrativo e os objetivos que deveria perseguir, conferindo o esboço do que seria o Sistema Único de Saúde. Mesmo com a previsão constitucional, os procedimentos para o adequado funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS), bem como as atribuições específicas dos órgãos, só puderam ser concretizadas a partir da elaboração das Leis específicas da Saúde.
Nesse propósito, foi criada a Lei Federal 8080, de 19 de setembro de 1990, que dispõe sobre as atribuições e funcionamento do Sistema Único de Saúde, bem como a Lei Federal 8142, de 28 de dezembro de 1990, que trata sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde.
Há procedimentos do SUS que são veiculados por meio de regulamentos, decretos, portarias, especificados no capítulo a seguir. Essas normas infralegais devem adequar-se à moldura constitucional que impõe a observância dos procedimentos à efetivação dos direitos fundamentais.
Desse modo, integra o chamado direito sanitário não apenas a Constituição Federal de 1988 e leis específicas atinentes à saúde, mas também as portarias e protocolos dos SUS, sendo imperioso que todas as normas atendam à finalidade constitucional do direito à saúde.
Cabe ao Estado, por ser o responsável pela consecução da saúde, a regulamentação, fiscalização e controle das ações e serviços de saúde. Desse modo, o amplo acesso aos medicamentos, por integrar a política sanitária, insere-se no contexto da efetivação do direito à saúde, de modo que as políticas e ações atinentes aos produtos farmacêuticos devem sempre atender ao mandamento constitucional de relevância pública.
A Constituição Federal de 1988, em seu Art. 198, estabelece como diretrizes do Sistema Único de Saúde (i) a descentralização, com direção única em cada esfera de governo, (ii) o atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais e (iii) a participação da comunidade.
Importante observar que as diretrizes do SUS não se esgotam nessas três diretrizes, porquanto ao longo da seção destinada à saúde observam-se alguns fundamentos desse direito, que servem de norte para a conduta da Administração Pública no tocante ao direito à saúde.
O presente tópico se dedicará aos pontos cujo conhecimento revela-se imprescindível ao estudo dos medicamentos do câncer, tais como a universalidade no acesso à saúde, a integralidade no atendimento, a descentralização dos serviços e ações de saúde e, por fim, o financiamento do SUS.
A universalidade não só constitui uma diretriz do Sistema Único de Saúde, mas também a base de toda a estrutura administrativa da saúde. A integralidade, por sua vez, relaciona-se sensivelmente com a política de fornecimento de medicamento, porque diz respeito à assistência terapêutica fornecida ao usuário do SUS. Em relação à descentralização dos serviços e ações de saúde e ao financiamento, apesar de serem analisados separadamente, há uma estreita interferência de um assunto sobre o outro, devendo-se analisar se a transferência de obrigações dá-se com o correspondente repasse financeiro em favor da saúde. É o que se verá nas linhas a seguir.
2 – O caminho da universalização dos serviços de saúde
Na primeira oportunidade em que mencionou o direito à saúde, a Constituição Federal de 1988 já apontou a diferença do tratamento dispensado a esse direito diferenciando-o da previdência social[16].
O que parece um detalhe, em verdade, é um importante marco histórico, porquanto, apenas após a Constituição Federal de 1988, foi reconhecido o direito de todos de obter os serviços e ações de saúde independentemente de contribuição, diferentemente do que ocorre no sistema de previdência social, essencialmente contributivo.
O estudo sobre a história da saúde pública revela o tratamento desigual a que esteve submetida a população brasileira, caracterizando-se pela ausente ou pouca intervenção do Poder Público e a restrição de serviços de saúde a determinadas classes sociais.[17]
O Sistema Único de Saúde substituiu o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), autarquia responsável pela saúde dos contribuintes da Previdência desde 1974, quando foi desmembrado o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) até 1990, ano em que foi aprovada a Lei 8080, que implementou o Sistema Único de Saúde (SUS).
Importante salientar que os beneficiários da saúde eram apenas as pessoas que contribuíam com a Previdência Social, em regra, pessoas com vínculo empregatício. Aos excluídos da Previdência Social restava a prestação dos serviços de saúde apenas na forma preventiva, estando à mercê dos serviços de instituições filantrópicas de saúde para os demais serviços médicos.
A universalização dos serviços públicos de saúde foi resultado da influência do movimento sanitarista na Assembleia Constituinte de 1987. Um dos mais importantes atos políticos do chamado movimento sanitarista ocorreu entre 17 a 21 de março de 1986, em Brasília – DF, onde se realizou a VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS), tendo discutido, dentre outros temas, a reformulação do sistema nacional de saúde pública, sobretudo, com a ampliação da cobertura e dos beneficiários dos serviços de saúde.
Após a VIII Conferência Nacional de Saúde, formulou-se o Sistema Unificado e Descentralizado da Saúde (SUDS) a partir de convênios entre o INAMPS e os Estados, esboço do Sistema Único de Saúde (SUS), trazido pela Constituição Federal de 1988.
O Sistema Único de Saúde (SUS), organização administrativa destinada à promoção da saúde pública brasileira, cujo acesso deve ser universal e igualitário, constitui-se como uma rede regionalizada e hierarquizada, organizando-se de acordo com as diretrizes estabelecidas pela própria Constituição Federal de 1988, consoante se registra a seguir:
“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
III – participação da comunidade.”
O princípio da universalidade não está expresso em dispositivo constitucional, mas é norma facilmente extraído do Art. 196 da Constituição Federal de 1988, que prevê o acesso universal às ações e serviços de saúde, o que possibilita o ingresso de qualquer pessoa no Sistema Único de Saúde (SUS).
Além de universal, o acesso deve ser igualitário, não devendo haver distinção em relação a grupo de pessoas, nem de serviços prestados.
Para que o acesso seja universal e igualitário, impõe-se a gratuidade dos serviços, porquanto não se pode considerar universal, serviço público que exija contrapartida pecuniária[18].
Para conseguir atender à população, o SUS conta com rede própria e contratada, sendo que a participação da iniciativa privada dá-se apenas de forma complementar, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fim lucrativo.
Consoante se lê no Art. 200 da Constituição Federal de 1988, as atribuições do SUS variam da competência fiscalizatória e de controle das atividades que envolvam a saúde, passando pela produção de medicamentos e insumos, preparação dos profissionais e a busca pela inovação na saúde.
Apesar de ter dado os contornos procedimentais do SUS, a Constituição Federal de 1988 reservou à Lei específica a regulamentação do modelo estabelecido para prestação do serviço de saúde pública.
Em obediência à norma constitucional, foi publicada a Lei Federal n. 8080/90, que trata da organização do SUS, bem como a Lei Federal 8142/90, que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde, ambas formando a Lei Orgânica da Saúde.
A Lei Federal 8.080/90, em seu Art. 2º, reconhece a saúde como direito fundamental do ser humano, sendo do Estado o dever de prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.
Em seguida, o Art. 5º estabelece os principais objetivos do SUS: (i) identificar e divulgar os fatores condicionantes e determinantes da saúde; (ii) formular política de saúde; (iii) promover, proteger e recuperar a saúde a partir de ações assistenciais e de atividades preventivas.
No tocante às atribuições do Sistema Único de Saúde, a Lei Federal 8.080/90 reitera os dispositivos constitucionais e acrescenta outras obrigações no Art. 6º, sendo que uma se destaca em razão da pertinência com este trabalho, a assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica, disposta no inciso I, alínea d, do mesmo artigo.
Destacam-se, ainda, os incisos VI e X, ambos incumbindo ao SUS a formulação da política de medicamentos e incentivo ao desenvolvimento científico e tecnológico na área de saúde.
A Lei Federal 8.080/90 trata, ainda, do financiamento da saúde, sendo este tema, posteriormente, objeto da Lei Complementar 141/2011, que será estudada em tópico específico. Antes disso, alguns apontamentos serão realizados sobre a assistência terapêutica integral no SUS e a descentralização na saúde, temas importantes por direcionarem a política pública de saúde no Brasil.
3 – A Assistência terapêutica integral no SUS
O termo “atendimento integral”, inserido na Constituição Federal como um dos princípios norteadores da saúde, foi emprestado da medicina integral que propunha uma conduta médica que não se reduzisse às dimensões exclusivamente biológicas, em detrimento das considerações psicológicas e sociais[19]. Segundo Ruben Araújo Matos[20], a noção de medicina integral foi adaptada ao Brasil no sentido de prevenção de moléstias com enfoque na saúde coletiva.
Com efeito, o Art. 198, II, da Constituição Federal de 1988 registra a importância das ações de prevenção quando determina que o atendimento integral deva dar prioridade às atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais.
O atendimento integral abrange apenas prestações exigíveis dos serviços do SUS, de caráter preventivo ou curativo, relacionadas a ações de promoção, proteção e recuperação da saúde.
Mesmo sendo fatores que influenciam e são importantes para saúde, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o lazer não devem ser considerados como ações e serviços de saúde a serem exigidos do SUS[21].
A propósito, o atendimento integral foi assegurado pelo Art. 198, II, da Constituição Federal de 1988, sendo definido pela Lei 8080/90, em seu artigo 7º, inciso II, como “conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema”.
De se registrar que a Constituição Federal de 1988 e a Lei Federal 8080/90 não esclarecem quem deve ser considerado usuário do SUS e que ação pode ser reputada adequada.
Para Lenir Santos[22], a assistência integral somente é garantida àqueles que estão no SUS. Dessa feita, quem optou pela assistência privada, não poderia pleitear parcela da assistência pública, porque esta pressupõe a integralidade da atenção, devendo o paciente estar sob a terapêutica pública.[23]Nesse raciocínio, a assistência farmacêutica restringir-se-ia às pessoas que integralmente tenham optado pelo sistema público de saúde.
Do mesmo pensamento partilha Marlon Alberto Weichert[24], para quem o princípio da integralidade não confere, por si só, direito aos pacientes dos serviços privados de obter os insumos do SUS. Segundo entende,
“As estruturas e as ações do sistema público são afetas aos usuários efetivos do SUS, que as acessam conforme regras e procedimentos específico. Assim, o usuário potencial do SUS que optou pela assistência sob uma relação jurídica de direito privado não é titular de pretensões subjetivas em relação ao sistema público naquele tratamento. […]
É ao cidadão que acessou ao SUS para receber a assistência integral que se devem prestações de tratamento de todas as suas demandas. O SUS não está –como regra constitucional – obrigado a fornecer insumos isolados àqueles que optaram pelo uso de serviços privados.”[25]
A noção de integralidade restrita apenas àqueles que estiverem utilizando o serviço público foi eleita pelo Decreto Federal nº 7.508, de 28 de junho de 2011, que regulamentou a Lei Federal 8080/90, para definir a assistência farmacêutica do SUS.
“Art. 28. O acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica pressupõe, cumulativamente:
I – estar o usuário assistido por ações e serviços de saúde do SUS;
II – ter o medicamento sido prescrito por profissional de saúde, no exercício regular de suas funções no SUS;
III – estar a prescrição em conformidade com a RENAME e os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas ou com a relação específica complementar estadual, distrital ou municipal de medicamentos; e
IV – ter a dispensação ocorrido em unidades indicadas pela direção do SUS.
§ 1º Os entes federativos poderão ampliar o acesso do usuário à assistência farmacêutica, desde que questões de saúde pública o justifiquem.
§ 2º O Ministério da Saúde poderá estabelecer regras diferenciadas de acesso a medicamentos de caráter especializado.”
O Decreto Federal nº 7.508/11 condiciona o acesso de determinada pessoa à assistência farmacêutica à comprovação de que o usuário seja assistido do SUS. Contudo, essa ressalva não foi feita na Constituição Federal, nem na Lei Federal 8080/90, devendo ser tida como ilegal. Da mesma forma, não atende à finalidade constitucional.
A Constituição Federal de 1988 distingue bem a saúde da assistência social, prevendo, no Art. 203, que a assistência social será prestada a quem dela necessitar. Identificam-se apenas quanto à independência da contribuição à seguridade social.
No tocante ao direito à saúde, qualquer pessoa tem direito a obter os serviços do SUS, tenha ou não condições econômicas para arcar com os gastos da saúde de forma privada. Há quem contrate um plano privado de saúde, pagando-o com muito esforço por entendê-lo prioritário e quem possua contrato de assistência médica adquirida com incentivo financeiro do empregador, não sendo razoável negar a essas pessoas a assistência farmacêutica do SUS punindo-as por ter assistência médica privada, até porque a distinção não tem fundamento legal, sequer constitucional.
Em verdade, a Constituição Federal, em seu Art. 196, dispõe que a saúde é direito de todos e dever do Estado, não cabendo à Lei restringir a extensão desse direito fundamental. Do mesmo modo, não se autoriza interpretação que reduza o direito à saúde às prestações de saúde a apenas uma categoria de pessoas, as que estejam sendo atendidas pelos profissionais do SUS.
Além de não ter embasamento jurídico, a exclusão de que possui assistência médica dos serviços do SUS é medida sem propósito. Isso porque o SUS, quando atende beneficiário de assistência médica privada, poderá ser ressarcido das despesas subsequentes, conduta que tem lastro no Art. 35 da Lei n. 9.656, de 03 de junho de 1998, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, in verbis:
“Art. 32. Serão ressarcidos pelas operadoras dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, de acordo com normas a serem definidas pela ANS, os serviços de atendimento à saúde previstos nos respectivos contratos, prestados a seus consumidores e respectivos dependentes, em instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do Sistema Único de Saúde – SUS”.
Com o objetivo de impugnar o dispositivo legal que permite o ressarcimento ao SUS pelas empresas operadoras de saúde, a Confederação Nacional de Saúde ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1931/98, contudo, a medida cautelar requerida foi negada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), não tendo havido, até o presente momento, o julgamento final da demanda[26].
Mesmo sem uma posição derradeira sobre o pedido de declaração de inconstitucionalidade do dispositivo legal que permite o ressarcimento ao SUS, há de se destacar que o STF tem entendido, em demandas individuais com o mesmo pedido, que não haveria inconstitucionalidade a ser declarada, estando autorizada a cobrança do ressarcimento pelo serviço prestado, pois medida visaria, a um só tempo, recompor o patrimônio público e impedir o enriquecimento sem causa[27].
O Decreto Federal n. 7.508/11 quanto à restrição da assistência farmacêutica a apenas os usuários efetivos do SUS revela-se inconstitucional, porque inova no ordenamento jurídico sem ter base legal e afronta o direito fundamental à saúde da população que necessita de assistência terapêutica.
Por se tratar de regulamento, o Decreto Federal n. 7.508/11 não pode restringir as possibilidades existentes na Lei Federal 8080/90, pois possui apenas a função de explicitar o teor da norma legal ou explicar didaticamente seus termos a fim de facilitar a execução da Lei[28]. Celso Antônio Bandeira de Mello adverte que
“Opostamente às leis, os regulamentos são elaborados em gabinetes fechados, sem publicidade alguma, libertos de qualquer fiscalização ou controle da sociedade, ou mesmo dos segmentos sociais interessados na matéria. Sua produção se faz apenas em função da vontade, isto é, da diretriz estabelecida por uma pessoa, o Chefe do Pode Executivo, sendo composto por um ou poucos auxiliares diretos seus ou de seus imediatos. Não necessitar passar, portanto, nem pelo embate de tendências políticas e ideológicas diferentes, nem mesmo pelo crivo técnico de uma pluralidade de pessoas instrumentadas por formação ou preparo profissional variado ou comprometido com orientações técnicas ou científicas discrepantes. Sobremais, irrompe da noite para o dia, e assim também pode ser alterado ou suprimido.”[29]
Em relação ao conteúdo, a integralidade deve ser interpretada de modo a incluir atividades de prevenção epidemiológica, como vacinação, além dos atendimentos e consultas médicas, cirurgias, internações e de assistência farmacêutica, incluindo fornecimento de medicamento e de outros insumos como próteses, dentre outros.
Para Mônica de Almeida Magalhães Serrano o atendimento deve ser adequado, independentemente da complexidade da doença ou do custo do tratamento, mesmo que seja necessário o fornecimento de medicamentos não incluídos na lista de remédios elaborada pelo SUS[30].
A assistência terapêutica integral, nos termos do Art. 19-M, inciso I, da Lei Federal 8080/90, consiste na dispensação de medicamentos, cuja prescrição esteja em conformidade com as diretrizes terapêuticas definidas em protocolo clínico para a doença.
O usuário de serviço público de saúde tem direito a obter o tratamento integral para doença que lhe acomete, todavia o tratamento dispensado para sua enfermidade deve estar previsto em protocolo clínico e diretriz terapêutica, documento utilizado no SUS que estabelece os critérios para o diagnóstico da doença, bem como os medicamentos e posologias recomendadas com o fim de padronizar o atendimento médico, com condutas terapêuticas fundamentadas em estudos científicos.
Marlon Alberto Weichert[31] considera legítimos os protocolos e esquemas terapêuticos, contudo, adverte que a vinculação a esses protocolos deve ser relativa, porquanto, algumas vezes, a situação concreta do paciente recomenda alterações no tratamento não previstas no protocolo, tornando-se indispensável que os serviços de saúde tenham disponível um canal apto a analisar e aprovar prescrições de medicamentos que fujam ao padrão.
Para o autor citado[32], deve haver revisão por uma câmara técnica preparada para reanalisar o caso, sempre que for possível ao profissional do SUS responsável pelo atendimento do paciente concluir a necessidade de aplicação de um tratamento ou esquema terapêutico distinto do preconizado nos protocolos.
Parcela das demandas judiciais tem como causa a ausência de medicamento, nos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas, para determinada moléstia ou indicação terapêutica inapropriada para o usuário.
A Administração Pública, nesse caso, deve individualizar o tratamento de saúde, justificando sua decisão em parecer de equipe médica. A relação oficial de medicamentos traz segurança e previsibilidade de gastos com a saúde, mas não pode servir de obstáculo ao atendimento integral.
Do mesmo modo, entendem Sueli Gandolfi Dallari e Vidal Serrano Nunes Júnior[33]:
“É evidente que os órgãos responsáveis podem, e devem, criar padrões de atendimento, objetivando não só a econômica de recursos, como também o aperfeiçoamento das modalidades de atenção. Faz parte de qualquer grande estrutura, pública ou privada, um intento de racionalização do sistema, o que frequentemente se realiza por meio de padronizações de processos e expedientes. Todavia, como dito, a questão é de fundo e não de forma. Assim, é evidentemente impossível que, por meio desses processos de padronização, o Poder Público venha a, direta ou indiretamente, limitar direitos que estejam enraizados na Constituição, especialmente o da saúde. admiti-lo constituiria autêntica burla a premissas essenciais do Estado de Direito, pois se concederia ao administrador público a possibilidade de anular um comando constitucional, o qual, além de reunido à norma fundante de nossa ordem jurídica, cuida, na espécie, de veículo de direitos fundamentais, quais sejam, o direito à vida e, especificamente, o direito à saúde.”
O tratamento fornecido pelo Sistema Único de Saúde deve ser privilegiado, mas sem impedir a Administração de decidir de forma diversa, caso se comprove que o tratamento oferecido não é eficaz em determinada situação[34].
Desse modo, decidiu o Supremo Tribunal Federal, com voto de relatoria do ministro Gilmar Mendes, concluindo que a ausência de Protocolo Clínico no SUS não pode violar o princípio constitucional da integralidade, não justificando a distinção entre as opções acessíveis aos usuários da rede pública e as disponíveis aos usuários da rede privada[35].
Encerra-se esse tópico sem esgotar a discussão sobre o princípio da integralidade. A discussão que permeia o atendimento integral do SUS seguirá em todos os capítulos dessa dissertação, uma vez que se constitui o âmago da presente pesquisa que é voltada ao acesso a medicamentos antineoplásicos para os pacientes de câncer.
A seguir outra importante diretriz do Sistema Único de Saúde, a descentralização das ações e serviços de saúde, cujo conhecimento é imprescindível à compreensão do organograma administrativo da saúde no Brasil.
4 – Financiamento da saúde: apontamentos sobre o mínimo constitucional
De início, é de se esclarecer que o conceito sobre o mínimo constitucional diz respeito à garantia constitucional relacionada ao direito fundamental à saúde. Nas precisas palavras de Paulo Bonavides,
“De nada valeriam os direitos ou as declarações de direitos se não houvesse pois as garantias constitucionais para fazer reais e efetivos esses direitos. A mais alta das garantias de um ordenamento jurídico, em razão da superioridade hierárquica das regras da Constituição, perante as quais se curvam, tanto o legislador comum, como os titulares de qualquer dos Poderes, obrigados ao respeito e acabamento de direitos que a norma suprema protege”[36].
Desde a sua promulgação, a Constituição Federal de 1988 demonstrou preocupação com a garantia do financiamento da saúde, tanto que reconheceu que as ações e serviços de saúde, considerados relevantes pelo ordenamento constitucional, deveriam ser financiados com os recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes[37].
Ao mesmo tempo, o Art. 55 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias dispôs que, até que fosse aprovada a Lei de Diretrizes Orçamentárias, trinta por cento, no mínimo, do orçamento da seguridade social, excluído o seguro-desemprego, seriam destinados ao setor de saúde.
A obrigatoriedade de aplicação de uma quantia mínima expressa no percentual de trinta por cento do orçamento da seguridade social expressa a relevância dada às ações e serviços de saúde.
A vinculação do financiamento ao mínimo constitucional permitido significa, sem dúvida, uma garantia conferida pela Constituição Federal de 1988 ao direito fundamental à saúde, sendo difícil o cumprimento dos deveres estatais relacionados à saúde se não houver uma vinculação mínima do orçamento público.
A garantia conferida pela Constituição Federal de 1988 fica ainda mais clara quando se tem em vista o disposto no Art. 34, inciso VII, alínea e, bem como do Art. 35, inciso III, normas que autorizam a intervenção da União nos Estados, bem como a intervenção dos Estados nos municípios em razão da ausência de repasse do mínimo constitucional.
As garantias constitucionais, como é a obrigatoriedade do repasse mínimo para ações e serviços de saúde, legitimam sempre a ação do Estado, “em prol da sustentação, integridade e observância dos direitos fundamentais”[38].
A fim de garantir a aplicação do mínimo constitucional para saúde, foi elaborada a Emenda Constitucional n. 29, de 13 de setembro de 2000, que trouxe a redação do Art. 77 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), estabelecendo ainda mudança na sistemática do financiamento, consoante se extrai da leitura do dispositivo constitucional a seguir:
“Art. 198. […]
§ 1º. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes.
§ 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre:
I – no caso da União, na forma definida nos termos da lei complementar prevista no § 3º;
II – no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios;
III – no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º.
§ 3º Lei complementar, que será reavaliada pelo menos a cada cinco anos, estabelecerá:
I – os percentuais de que trata o § 2º;
II – os critérios de rateio dos recursos da União vinculados à saúde destinados aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, e dos Estados destinados a seus respectivos Municípios, objetivando a progressiva redução das disparidades regionais;
III – as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas esferas federal, estadual, distrital e municipal;
IV – as normas de cálculo do montante a ser aplicado pela União.”
Segundo dispõe a norma constitucional transcrita, até que fosse promulgada a Lei Complementar prevista no §3º do artigo 198, o financiamento da saúde dar-se-ia na forma preconizada no artigo 77 do ADCT, cabendo aos Estados o repasse mínimo de 12% (doze por cento) da arrecadação própria, além das transferências do Fundo de Participação dos Estados. Aos municípios, o repasse de, no mínimo, 15% (quinze por cento) da arrecadação própria, além das transferências do Fundo de Participação dos Municípios e à União, o valor empenhando no exercício financeiro anterior acrescido da variação nominal do PIB.
Gilson Carvalho[39] analisou os gastos do Ministério da Saúde entre os anos 1999 a 2009 e encontrou divergências entre o investimento real na saúde e a proposta trazida pela Emenda Constitucional n. 29/2000. Em sua opinião, alguns gastos foram compatibilizados como se fossem relacionados à saúde, mas o objetivo era diverso, como os gastos com os programas Farmácia Popular[40] e Bolsa Família e com o pagamento de assistência médica e odontológica dos servidores exclusivos do Ministério da Saúde, dentre outros. Para o citado autor, os gastos com os programas sociais mencionados foram incluídos nos gastos com a saúde, mesmo não havendo relação alguma com o tema[41].
A crítica também é direcionada aos recursos destinados ao Programa Bolsa Família, cujos gastos teriam sido debitados da conta da saúde desde 2002, quando se instituiu o Programa da Bolsa Alimentação, beneficio social anterior ao Programa Bolsa Família. O autor citado afirma, ainda, que, entre os anos de 2000 a 2009, mais de dois bilhões de reais foram destinados ao pagamento de assistência médica e odontológica dos servidores do Ministério da Saúde e seus familiares[42].
Em janeiro de 2012, foi publicada a Lei Complementar Federal n. 141, que dispõe sobre os valores mínimos a serem anualmente aplicados na saúde pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, estabelecendo, ainda, os critérios de rateio dos recursos de transferências para a saúde e as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde.
Em relação aos repasses mínimos para os serviços de saúde, a Lei Complementar 141/12 repetiu o disposto no ADCT, não havendo qualquer alteração a ser apontada. Em relação ao descumprimento pelos Estados e municípios do repasse mínimo para saúde, pode a União restringir o repasse do rateio dos recursos da União vinculados à saúde destinados aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, devendo esse valor ser depositado na conta vinculada ao Fundo de Saúde.
A Lei Complementar 141/12 trouxe, ainda, a relação de ações e serviços de saúde que devem ser considerados para aplicação dos recursos percentuais mínimos:
“Art. 3º […]
I – vigilância em saúde, incluindo a epidemiológica e a sanitária;
II – atenção integral e universal à saúde em todos os níveis de complexidade, incluindo assistência terapêutica e recuperação de deficiências nutricionais;
III – capacitação do pessoal de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS);
IV – desenvolvimento científico e tecnológico e controle de qualidade promovidos por instituições do SUS;
V – produção, aquisição e distribuição de insumos específicos dos serviços de saúde do SUS, tais como: imunobiológicos, sangue e hemoderivados, medicamentos e equipamentos médico-odontológicos;
VI – saneamento básico de domicílios ou de pequenas comunidades, desde que seja aprovado pelo Conselho de Saúde do ente da Federação financiador da ação e esteja de acordo com as diretrizes das demais determinações previstas nesta Lei Complementar;
VII – saneamento básico dos distritos sanitários especiais indígenas e de comunidades remanescentes de quilombos;
VIII – manejo ambiental vinculado diretamente ao controle de vetores de doenças;
IX – investimento na rede física do SUS, incluindo a execução de obras de recuperação, reforma, ampliação e construção de estabelecimentos públicos de saúde;
X – remuneração do pessoal ativo da área de saúde em atividade nas ações de que trata este artigo, incluindo os encargos sociais;
XI – ações de apoio administrativo realizadas pelas instituições públicas do SUS e imprescindíveis à execução das ações e serviços públicos de saúde; e
XII – gestão do sistema público de saúde e operação de unidades prestadoras de serviços públicos de saúde”
Para Lenir Santos[43], ao relacionar os serviços de saúde que devem ser levados em consideração para o repasse mínimo dos entes da Federação, a LC141/12 distingue duas dimensões do direito à saúde:
“a primeira que trata das políticas sociais e econômicas que se referem aos determinantes e condicionantes da saúde e a segunda que se refere à garantia de ações e serviços de saúde para promoção, proteção e recuperação da saúde”[44].
Lenir Santos entende, com acerto, que, ainda que haja relação com a saúde, ao Sistema Único de Saúde caberia apenas garantir as ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde, devendo o Estado ser impelido a proporcionar os fatores que se relacionam com o bem-estar social e interferem na saúde da população.[45]
Mesmo representando política pública benéfica à saúde, o saneamento básico, de uma forma geral, foi excluído dos serviços de saúde para fins de aplicação do mínimo legal, com exceção do saneamento de domicílios ou de pequenas comunidades e dos distritos sanitários especiais indígenas e de comunidades remanescentes de quilombos, desde que haja concordância do Conselho de Saúde do ente financiador do projeto.
Os demais serviços excluídos do mínimo legal da saúde foram relacionados no Art. 4º da LC 141/12, dentre os quais se destacam o pagamento de aposentadorias e pensões, inclusive, dos servidores da saúde, bem como o pagamento do pessoal ativo da área de saúde em atividade diversa da área de saúde e ações de assistência social, incluindo-se programas de alimentação, e em benefício do meio ambiente em geral.
Para o rateio dos recursos da União em favor dos Estados e municípios, será utilizada a metodologia indicada pela Comissão Intergestores Tripartite, obtida mediante consenso e aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde, respeitando-se as necessidades de saúde da população, as dimensões epidemiológica, demográfica, socioeconômica, espacial e de capacidade de oferta de ações e de serviços de saúde.
A transferência dos recursos será realizada de forma direta e automática do Fundo Nacional de Saúde para os demais fundos de saúde e terá como principal escopo a redução das desigualdades regionais no âmbito da saúde.
Os recursos da saúde devem ser movimentados por meio de fundos de saúde, sendo condição para que os entes federativos recebam os recursos transferidos por outro ente o funcionamento do fundo, plano e conselho de saúde.
Para verificar a aplicação dos recursos mínimos com a saúde, o Ministério da Saúde deve manter, obrigatoriamente, um sistema de registro eletrônico centralizado contendo informações orçamentárias relativas aos recursos da saúde, garantindo o acesso público às informações ali contidas.
Em verdade, a ideia de um sistema de informação dos gastos com a saúde já existe desde a publicação da Portaria Conjunta MS/PGR nº 1163, de 11 de outubro de 2000, que estabeleceu as diretrizes do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS), cujo banco de dados é atualizado pelos Estados, Distrito Federal e municípios, os quais, a fim de tornarem públicas as receitas totais e as despesas em ações e serviços públicos de saúde, preenchem formulário em software desenvolvido pelo Departamento de Informática do SUS (DATASUS)[46].
Caso haja descumprimento do repasse dos mínimos pelos Estados, a União poderá restringir o repasse dos recursos até o valor da parcela do mínimo que deixou de ser aplicada em exercícios anteriores, mediante depósito direto na conta corrente vinculada ao Fundo de Saúde. A mesma providência pode ser tomada pelos Estados em relação aos municípios.
Em sua análise sobre a LC 141/12, Gilson Carvalho[47]critica o veto presidencial ao artigo. da Lei Complementar, que destinava à saúde o produto de taxas, tarifas ou multas arrecadadas pela própria área. Da mesma forma, tece críticas ao veto do § 1º do Art. 5º que previa correção das verbas à saúde, sempre que houvesse revisão do PIB, e ao veto do Art. 13, que determinava que, enquanto os recursos da saúde não fossem empregados, deveriam ser aplicados em conta específica, cujos rendimentos seriam investidos na área.
O repasse mínimo pela União permaneceu vinculado ao PIB, o que motivou a Associação Médica Brasileira a elaborar minuta de projeto de lei de iniciativa popular em que se determina o repasse mínimo da União para saúde da quantia equivalente a 10% (dez por cento) da arrecadação da União de suas receitas correntes brutas[48].
Com efeito, se forem analisados os gastos realizados pela União com a saúde, observa-se que o decréscimo da contribuição da União em relação à saúde, o que ficou demonstrado no gráfico a seguir colacionado[49].
Embora os Entes da Federação sejam solidariamente responsáveis pelos serviços e ações de saúde, a normatização referente ao repasse mínimo constitucional de verbas relativas à saúde tratou-os de modo diferenciado.
Em uma perspectiva voltada para a melhor prestação de serviço de saúde, com participação da comunidade na política sanitária, deve haver o reforço dos municípios, uma vez que se encontram mais próximos da população e da vida local.
A transferência de responsabilidade sem o equivalente repasse financeiro é, nas palavras de Marta Arretche uma “descentralização por ausência”[50], porquanto apenas retira da União a responsabilidade de efetivar a política pública, esvaziando-a desse encargo e transfere irresponsavelmente aos municípios o dever de promover os direitos sociais. Como bem observou por Gilberto Bercovici,
“após a Constituição de 1988, de modo lento, inconstante e descoordenado, os Estados e municípios vem substituindo a União em várias áreas de atuação (especialmente nas áreas de saúde, educação, habitação e saneamento)”[51].
No que se refere à política pública de oncologia, consoante se verá em capítulo próprio, a União, através do Ministério da Saúde, é o Ente responsável pelas diretrizes dessa política, bem como pela fiscalização pelo efetivo cumprimento do dever de prestação desse serviço.
Apesar de a Constituição Federal de 1988 estabelecer o mínimo a ser investido na saúde, a União pode, e deve, aplicar os recursos necessários à saúde no que lhe toca como direcionador das políticas públicas de saúde, em especial, da voltada aos problemas de câncer.
A abstenção da União de cumprir o dever de prestação imposto pela Constituição implica violação negativa da Lei Fundamental. Concordando com o entendimento exarado pelo Ministro do STF Celso de Mello no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 45/04, verifica-se que a omissão do Ente da Federação, em verdade, apresenta-se como comportamento de maior gravidade político-jurídica do que uma atuação positiva inconstitucional, uma vez que prejudica, por escassez ou ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade do postulado constitucional.
Apesar de ter julgado prejudicado o pedido contido na ADPF n. 45/04, em virtude da perda superveniente de seu objeto[52], o Ministro Celso de Mello fez algumas considerações que merecem, por sua lucidez, a devida transcrição:
“O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em um facere (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação.
Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exequíveis, abstendo-se, em consequência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional.
Desse non facere ou non praestare resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público.
A omissão do Estado – que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional – qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental.” (ADPF 45 MC, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, julgado em 29/04/2004, publicado em DJ 04/05/2004 PP-00012 RTJ VOL-00200-01 PP-00191)
O dever de atuar obriga o Estado a estabelecer os alvos prioritários dos gastos públicos tendo em vista os objetivos fundamentais da Constituição Federal de 1988. Consoante expõe Ana Paula Barcelos,
“não se pode esquecer que a finalidade do Estado ao obter recursos, para, em seguida, gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços, ou qualquer outra política pública, é exatamente realizar os objetivos fundamentais da Constituição. A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir.”[53]
A prioridade que deve ter o direito à saúde legitima, inclusive, a ausência de aplicação da regra constitucional do Art. 100 da Constituição Federal de 1988, justificando o bloqueio de recursos públicos a fim de garantir o fornecimento do medicamento de uso contínuo, conforme tem decidido o Superior Tribunal de Justiça (STJ):
“PROCESSO CIVIL. ADMINISTRATIVO. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. NEGATIVA DE SEGUIMENTO FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS PELO ESTADO. BLOQUEIO DE VERBAS PÚBLICAS. MEDIDA EXECUTIVA. POSSIBILIDADE, IN CASU. PEQUENO VALOR. ART. 461, § 5.º, DO CPC. ROL EXEMPLIFICATIVO DE MEDIDAS. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL À SAÚDE, À VIDA E À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PRIMAZIA SOBRE PRINCÍPIOS DE DIREITO FINANCEIRO E ADMINISTRATIVO. NOVEL ENTENDIMENTO DA E. PRIMEIRA TURMA.
1. A obrigação de fazer que encerra prestação de fornecer medicamentos admite como meio de sub-rogação, visando adimplemento de decisão judicial antecipatória dos efeitos da tutela proferida em desfavor do ente estatal, bloqueio ou sequestro de verbas depositadas em conta corrente.
2. Isto por que, sob o ângulo analógico, as quantias de pequeno valor podem ser pagas independentemente de precatório e a fortiori serem, também, entregues, por ato de império do Poder Judiciário.
3. Depreende-se do art. 461, §5.º do CPC, que o legislador, ao possibilitar ao juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas assecuratórias como a “imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial”, não o fez de forma taxativa, mas sim exemplificativa, pelo que, in casu, o sequestro ou bloqueio da verba necessária à aquisição dos medicamentos objetos da tutela deferida, providência excepcional adotada em face da urgência e imprescindibilidade da prestação dos mesmos, revela-se medida legítima, válida e razoável.
4. Deveras, é lícito ao julgador, à vista das circunstâncias do caso concreto, aferir o modo mais adequado para tornar efetiva a tutela, tendo em vista o fim da norma e a impossibilidade de previsão legal de todas as hipóteses fáticas. Máxime diante de situação fática, na qual a desídia do ente estatal, frente ao comando judicial emitido, pode resultar em grave lesão à saúde ou mesmo por em risco a vida do demandante.
5. Os direitos fundamentais à vida e à saúde são direitos subjetivos inalienáveis, constitucionalmente consagrados, cujo primado, em um Estado Democrático de Direito como o nosso, que reserva especial proteção à dignidade da pessoa humana, há de superar quaisquer espécies de restrições legais. Não obstante o fundamento constitucional, in casu, merece destaque a Lei Estadual n.º 9.908/93, do Estado do Rio Grande do Sul, que assim dispõe em seu art. 1.º: “Art. 1.º. O Estado deve fornecer, de forma gratuita, medicamentos excepcionais para pessoas que não puderem prover as despesas com os referidos medicamentos, sem privarem-se dos recurso indispensáveis ao próprio sustento e de sua família.
Parágrafo único. Consideram-se medicamentos excepcionais aqueles que devem ser usados com frequência e de forma permanente, sendo indispensáveis à vida do paciente.” 6. A Constituição não é ornamental, não se resume a um museu de princípios, não é meramente um ideário; reclama efetividade real de suas normas. Destarte, na aplicação das normas constitucionais, a exegese deve partir dos princípios fundamentais, para os princípios setoriais. E, sob esse ângulo, merece destaque o princípio fundante da República que destina especial proteção a dignidade da pessoa humana.
7. Outrossim, a tutela jurisdicional para ser efetiva deve dar ao lesado resultado prático equivalente ao que obteria se a prestação fosse cumprida voluntariamente. O meio de coerção tem validade quando capaz de subjugar a recalcitrância do devedor. O Poder Judiciário não deve compactuar com o proceder do Estado, que condenado pela urgência da situação a entregar medicamentos imprescindíveis proteção da saúde e da vida de cidadão necessitado, revela-se indiferente à tutela judicial deferida e aos valores fundamentais por ele eclipsados.
8. In casu, a decisão ora hostilizada pelo recorrente importa na negativa do bloqueio de valor em numerário suficiente à aquisição de medicamento equivalente a três meses de tratamento, que além de não comprometer as finanças do Estado do Rio Grande do Sul, revela-se indispensável à proteção da saúde do autor da demanda que originou a presente controvérsia, mercê de consistir em medida de apoio da decisão judicial em caráter de sub-rogação.
9.Agravo Regimental Desprovido.” (AgRg no REsp 888325/RS, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 15/03/2007, DJ 29/03/2007, p. 230)
Com essa explanação encerra-se breve exposição sobre os principais pontos da estrutura administrativa do Sistema Único de Saúde.
Conclusão
Embora se reconheça o avanço trazido pela Constituição Federal de 1988 no tocante ao direito à saúde, o caminho para a efetivação desse direito é longo, sendo relevante que o debate sobre o conceito da saúde e a abrangência desse direito seja realizado não apenas pelos juristas, mas por toda a sociedade brasileira, buscando-se o aperfeiçoamento das políticas públicas promovidas pelo Sistema Único de Saúde e por maior investimento governamental nesse setor.
Informações Sobre o Autor
Elisângela Santos de Moura
Defensora Pública Federal, Mestre em direito constitucional pela UFRN