Resumo: É cediço que a Legislação Consumerista inaugurou uma nova realidade, conjugando, por meio das flâmulas desfraldadas pela Constituição Federal, um sistema normativo pautado na proteção e defesa do consumidor. Ao lado disso, gize-se, por carecido, que o Direito do Consumidor passou a gozar de irrecusável e sólida importância que influencia as órbitas jurídica, econômica e política, detendo aspecto robusto de inovação. No mais, insta sublinhar, com grossos traços, que a Legislação Consumerista elevou a defesa do consumidor ao degrau de direito fundamental, sendo-lhe conferido o status de axioma estruturador e conformador da própria ordem econômica, sendo, inclusive, um dos pilares estruturante da ordem econômica, conforme se infere da redação do inciso V do artigo 170 da Carta de Outubro. Necessário faz-se traçar uma análise acerca da possibilidade daquele, notadamente no que se refere à possibilidade de resolução extrajudicial de conflitos. Neste aspecto, a autocomposição apresenta-se como interessante, e cada vez mais popular, forma de resolução de conflitos, sem que haja a interferência da jurisdição, estando alicerçada no sacrifício integral ou parcial de interesse das partes envolvidas no conflito, por meio da vontade unilateral ou bilateral de tais sujeitos. Neste passo, o que determina a solução do conflito não é o exercício da força, como ocorre na autotutela, mas a vontade das partes, o que é muito mais condizente com o Estado democrático de direito. No mais, o mecanismo em comento é considerado, atualmente, como excelente instrumento de pacificação social, porquanto, no caso concreto, inexiste uma decisão impositiva, emanada de um terceiro (Estado-juiz), alheio às peculiaridades da situação concreta, mas sim há uma valorização da autonomia da vontade das partes na solução dos conflitos.
Palavras-chaves: Consumidor. Fornecedor. Relação de Consumo. Autocomposição de Conflitos.
Sumário: 1 A Proteção do Consumidor como Direito Fundamental: Moldura Constitucional acerca do Tema; 2 Aspectos Conceituais do Consumidor; 3 A Figura do Consumidor por Equiparação; 4 Conceito de Fornecedor; 5 A Aplicação da Autocomposição no Direito do Consumidor: O Empoderamento dos Atores Consumeristas como mecanismo para a resolução de conflitos
1 A Proteção do Consumidor como Direito Fundamental: Moldura Constitucional acerca do Tema
In primo loco, releva-se imperioso salientar que, em decorrência dos feixes albergados na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[1], verifica-se que o consumidor passou a ser revestido de grande relevo no Ordenamento Pátrio, culminando, ulteriormente, na elaboração e promulgação do Código de Defesa do Consumidor[2], compêndio de dispositivos que sagram em suas linhas, como fito maior, a proteção daquele. Ao lado disso, gize-se, por carecido, que o Direito do Consumidor passou a gozar de irrecusável e sólida importância que influencia as órbitas jurídica, econômica e política, detendo aspecto robusto de inovação. No mais, insta sublinhar, com grossos traços que a Legislação Consumerista elevou a defesa do consumidor ao degrau de direito fundamental, sendo-lhe conferida o status de axioma estruturador e conformador da própria ordem econômica, sendo, inclusive, um dos pilares estruturante da ordem econômica, conforme se infere do inciso V do artigo 170 da Carta de Outubro[3].
Denota-se, desta sorte, que, em razão do manancial de inovações trazido à baila pela Constituição Cidadã, os consumidores foram erigidos à condição de detentores de direitos constitucionais enumerados como fundamentais, conjugando, de sobremaneira, com o maciço fito de legitimar todas as medidas de intervenção estatal carecidas, a fim de salvaguardar tal escopo. À luz do expendido, em um contato primitivo com o tema, salta aos olhos que o Código de Defesa do Consumidor, enquanto diploma legislativo impregnado de essência constitucional clama por uma interpretação sustentada pela tábua principiológica consagrada, de modo expresso, na Carta da República. Nesta senda de raciocínio, impõe ao Arquiteto do Direito, de maneira cogente, atentar-se para os corolários, desfraldados como flâmula orientadora, para conferir amoldagem as normas que versam acerca das relações de consumo a situações concretas, revestidas de nuances e particularidades singulares que oscilam de maneira saliente.
Além disso, com destaque, a proteção conferida pelo Ente Estatal ao consumidor, quer seja enquanto figura dotada de direito fundamental que foi positivada no próprio texto da Lei Maior, quer seja como mola propulsora da formulação e execução de políticas públicas, como também do exercício das atividades econômicas em geral. Plus ultra, acrescer se faz mister que ao se conferir tratamento robusto ao consumidor, ambicionou o Constituinte atribuir essência de meio instrumental, com vista a neutralizar o abuso do poder econômico praticado em detrimento de pessoas e de seu direito ao desenvolvimento, sem olvidar de uma existência considerada como digna e justa. Neste sentido, há que se trazer a lume o entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça:
“Ementa: Processo Civil e Consumidor. Agravo de Instrumento. Concessão de Efeito Suspensivo. Mandado de Segurança. (…) Relação de Consumo. Caracterização. Destinação Final Fática e Econômica do Produto ou Serviço. Atividade Empresarial. Mitigação da Regra. Vulnerabilidade da Pessoa Jurídica. Presunção Relativa. […] Uma interpretação sistemática e teleológica do CDC aponta para a existência de uma vulnerabilidade presumida do consumidor, inclusive pessoas jurídicas, visto que a imposição de limites à presunção de vulnerabilidade implicaria restrição excessiva, incompatível com o próprio espírito de facilitação da defesa do consumidor e do reconhecimento de sua hipossuficiência, circunstância que não se coaduna com o princípio constitucional de defesa do consumidor, previsto nos arts. 5º, XXXII, e 170, V, da CF. […]”( Superior Tribunal de Justiça – Terceira Turma/ RMS 27512/BA/ Relatora Ministra Nancy Andrighi/ Julgado em 20.08.2009/ Publicado no DJe em 23.09.2009)
Saliente-se, com ênfase, que a proteção do consumidor e o desenvolvimento de instrumentos rotundos aptos a fomentar tal fito se revelam como característicos de assegurar a concretude e significado as proclamações contidas na Carta de 1988. Nesta esteira, evidencia-se, ainda, que a Lex Fundamentallis estabeleceu um estado de comunhão solidária entre as diversas órbitas políticas, que constituem a estrutura institucional da Federação Brasileira, agrupando-as ao redor de um escopo comum, detendo o mais elevado sentido social. Afora isso, os direitos do consumidor, conquanto despidos de caráter absoluto, qualificam-se, porém, como valores essenciais e condicionantes de qualquer processo decisório.
Além disso, os corolários de proteção ao consumidor, hasteados como flâmulas orientadoras, buscam neutralizar situações de antagonismos oriundos das relações de consumo que se processam, na esfera da vida social, de modo tão desigual, caracterizado corriqueiramente pela conflituosidade, opondo, por extensão, fornecedores e produtores, de um lado, a consumidores, do outro. No mais, o reconhecimento da proteção constitucional da figura como consumidor, traduz em verdadeira prerrogativa fundamental do cidadão, estando inerente à própria acepção do Estado Democrático e Social de Direito, motivo pelo qual cabe a toda coletividade extrair, dos direitos assegurados ao consumidor, a sua máxima eficácia.
2 Aspectos Conceituais do Consumidor
Em uma acepção ampla, tem-se o consumidor é aquele que adquire mercadorias, independente da natureza que possuam, como particular, e para uso doméstico ou mesmo profissional, sem intuito de revenda. Segundo Gama, consumidor é “aquele que consome alguma coisa”[4]. A partir de um viés jurídico, consumidor é qualquer pessoa física ou jurídica que, isolada ou coletivamente, contrate para consumo final, em benefício próprio ou de outrem, a aquisição ou locação de bens, tal como a prestação de serviço. “Vislumbrando-se o seu enquadramento inicial, o consumidor pode ser, pelo texto expresso, uma pessoa natural ou jurídica, sem qualquer distinção”[5]. Nesta esteira, para que a pessoa jurídica seja considerada como consumidor, mister se faz a demonstração de sua vulnerabilidade e a utilização do produto ou do serviço como destinatário final. A compreensão do vocábulo consumidor, para fins de definição do âmbito de incidência da legislação consumerista, deve partir da expressão destinatário final, entendido como aquele destinatário fático e econômico do bem ou do serviço, sem que objetive o incremento ou fomento de outra atividade negocial.
Neste passo, rememorar se faz imprescindível que o emolduramento da pessoa jurídica como consumidora advém da aquisição ou mesmo utilização de produtos ou serviços em benefício próprio. Id est, trata-se de situação em que se objetiva a satisfação das necessidades pessoais, sem que subsista o interesse de transferi-los a terceiros, nem empregá-los na produção de outros bens ou serviços. Nesta trilha de raciocínio, pode-se assinalar que “se a pessoa jurídica contrata o seguro visando a proteção contra roubo e furto do patrimônio próprio dela e não o dos clientes que se utilizam dos seus serviços, ela é considerada consumidora nos termos do art. 2.° do CDC”[6]. Logo, tão somente a utilização do serviço ou do produto como insumo, integrando a cadeia produtiva, pela pessoa jurídica tem o condão de desnaturar a relação de consumo existente. Ao lado disso, colhe-se o paradigmático entendimento:
“Ementa: Direito do Consumidor. Pessoa Jurídica. Não ocorrência de violação ao art. 535 do CPC. Utilização dos produtos e serviços adquiridos como insumos. Ausência de vulnerabilidade. Não incidência das normas consumeristas. […] 2. O art. 2º do Código de Defesa do Consumidor abarca expressamente a possibilidade de as pessoas jurídicas figurarem como consumidores, sendo relevante saber se a pessoa – física ou jurídica – é "destinatária final" do produto ou serviço. Nesse passo, somente se desnatura a relação consumerista se o bem ou serviço passa a integrar a cadeia produtiva do adquirente, ou seja, torna-se objeto de revenda ou de transformação por meio de beneficiamento ou montagem, ou, ainda, quando demonstrada sua vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica frente à outra parte. 3. No caso em julgamento, trata-se de sociedade empresária do ramo de indústria, comércio, importação e exportação de cordas para instrumentos musicais e afins, acessórios para veículos, ferragens e ferramentas, serralheria em geral e trefilação de arames, sendo certo que não utiliza os produtos e serviços prestados pela recorrente como destinatária final, mas como insumos dos produtos que manufatura, não se verificando, outrossim, situação de vulnerabilidade a ensejar a aplicação do Código de Defesa do Consumidor. 4. Recurso especial provido.” (Superior Tribunal de Justiça – Quarta Turma/ REsp 932.557/SP/ Relator Ministro Luís Felipe Salomão/ Julgado em 07.02.2012) (grifou-se).
Depreende-se, pois, que a acepção conceitual que reveste a figurado do consumidor foi construída a partir de um visão essencialmente objetiva, porquanto volvida para o ato de retirar o produto ou serviço do mercado, na condição de seu destinatário final. Nessa linha, afastando-se do critério pessoal de definição de consumidor, o legislador infraconstitucional possibilita às pessoas jurídicas a assunção dessa qualidade, desde que adquiram ou utilizem o produto ou serviço como destinatário final. Dessarte, consoante doutrina abalizada sobre o tema, o destinatário final é aquele que retira o produto da cadeia produtiva – destinatário fático -, mas não para revendê-lo ou utilizá-lo como insumo na sua atividade profissional -, destinatário econômico.
Ao lado disso, com o escopo de robustecer as ponderações aventadas, quadra anotar o entendimento do Ministro Fernando Gonçalves, ao relatoriar o Conflito de Competência Nº. 92.519/SP, quando firmou entendimento robusto que “para que o consumidor seja considerado destinatário econômico final, o produto ou serviço adquirido ou utilizado não pode guardar qualquer conexão, direta ou indireta, com a atividade econômica por ele desenvolvida”,[7] logo o serviço ou produto deve ser empregado com o fio de atender uma necessidade própria, pessoal do consumidor. “Na linha da jurisprudência predominante no STJ, aplica-se o Código de Defesa do Consumidor, ainda que se trate de pessoa jurídica a dita consumidora, desde que se sirva dos bens ou serviços prestados pelo fornecedor como destinatária final”[8]. Desta feita, para que se opere a caracterização do consumidor, basta que o indivíduo adquira ou utilize o produto ou serviço como destinatário final. Esse o entendimento de Cláudia Lima Marques:
“Destinatário final seria aquele destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa física ou jurídica. Logo, segundo esta interpretação teleológica, não basta ser destinatário fático do produto, retirá-lo da cadeia de produção, levá-lo para o escritório ou residência – é necessário ser destinatário final econômico do bem, não adquiri-lo para revenda, não adquiri-lo para uso profissional, pois o bem seria novamente um instrumento de produção cujo preço será incluído no preço final do profissional que o adquiriu. Neste caso, não haveria a exigida "destinação final" do produto ou serviço, ou, como afirma o STJ, haveria consumo intermediário, ainda dentro das cadeias de produção e distribuição”[9].
Doutro modo, o Código de Defesa do Consumidor não possui incidência em situações nas quais, embora seja possível a identificação de um destinatário final, o produto ou serviço é entregue com o fito específico de servir de bem de produção para outro produto ou serviço e, comumente, não está disponibilizado no mercado de consumo como bem passível de aquisição, mas como de produção. Verifica-se, nesta situação, que o consumidor comum não o adquire[10]. “É preciso considerar a excepcionalidade da aplicação das medidas protetivas do CDC em favor de quem utiliza o produto ou serviço em sua atividade comercial. Em regra, a aquisição de bens ou a utilização de serviços para implementar ou incrementar a atividade negocial descaracteriza a relação como de consumo”[11].
3 A Figura do Consumidor por Equiparação
A Legislação Consumerista, além da figura do consumidor em sentido estrito, consoante definição apresentada pelo artigo 2º do mencionado diploma, identifica o terceiro que não participa diretamente da relação de consumo, isto é, todo aquele que se encontre na condição de consumidor equiparado. Desta feita, a Lei Nº. 8.078/1990 passa a ostentar múltiplos conceitos do consumidor, um geral e três outros por equiparação. Afiguram-se como consumidores a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo, consoante dicção do parágrafo único do artigo 2º; todas as vítimas do evento, segundo disposição contida no artigo 17; e, todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas previstas no capítulo V do Código de Defesa do Consumidor, conforme estatui o artigo 29.
Imperioso se faz frisar que “o Código, ao tratar do consumidor por equiparação não o coloca em desvantagem ou em nível inferior aos demais consumidores”[12]. Consequentemente, além do consumidor stricto sensu, podem ser também alcançadas pelas atividades desenvolvidas no mercado de consumo pelos fornecedores de produtos e serviços outras que, conquanto não integrem uma relação de consumo, passam a gozar da mesma posição de consumidor legalmente abrigado nas normas da Legislação Consumerista, independente de ter usado ou consumido, de maneira direta, qualquer produto ou serviço na condição de consumidor final. Nesse contexto, destaca-se a figura do consumidor por equiparação, inserida pelo legislador no art. 17 do Código de Defesa do Consumidor, sujeitando à proteção daquele diploma também as vítimas de acidentes derivados do fato do produto ou do serviço.
Em outras palavras, o sujeito da relação de consumo não precisa necessariamente ser parte contratante, podendo também ser um terceiro vitimado por essa relação, que o direito norte-americano – onde o instituto teve origem – chama de bystander. Desta maneira, em acidente de trânsito envolvendo fornecedor de serviço de transporte, terceiro vitimado em decorrência dessa relação de consumo existente deve ser considerado consumidor por equiparação. “A vítima de acidente de consumo que de qualquer forma sofre os efeitos do evento é consumidor por equiparação ou bystanders (art. 17 do CDC)”[13]. Colaciona-se o paradigmático aresto do Superior Tribunal de Justiça, que, com bastante pertinência, aponta que:
“Ementa: Civil, Processo Civil e Consumidor. Reparação Civil. Prescrição. Prazo. Conflito Intertemporal. CC/16 e CC/02. Acidente de trânsito envolvendo fornecedor de serviço de transporte de pessoas. Terceiro, alheio à relação de consumo, envolvido no acidente. Consumidor por equiparação. Embargos de declaração. Decisão omissa. Intuito protelatório. Inexistência. […] 3. O art. 17 do CDC prevê a figura do consumidor por equiparação (bystander), sujeitando à proteção do CDC aqueles que, embora não tenham participado diretamente da relação de consumo, sejam vítimas de evento danoso decorrente dessa relação. 4. Em acidente de trânsito envolvendo fornecedor de serviço de transporte, o terceiro vitimado em decorrência dessa relação de consumo deve ser considerado consumidor por equiparação. Excepciona-se essa regra se, no momento do acidente, o fornecedor não estiver prestando o serviço, inexistindo, pois, qualquer relação de consumo de onde se possa extrair, por equiparação, a condição de consumidor do terceiro. […] 6. Recurso especial parcialmente provido.” (Superior Tribunal de Justiça – Terceira Turma/ REsp 1125276/RJ/ Relatora: Ministra Nancy Andrighi/ Julgado em 28.02.2012/ Publicado no DJe em 07.03.2012) (realçou-se).
“Ementa: Responsabilidade Civil. Acidente Aéreo. Pessoa em superfície que alega abalo moral em razão do cenário trágico. Queda de avião nas cercanias de sua residência. Consumidor por equiparação. Art. 17 do CDC. Prazo prescricional. Código Civil de 1916. Inaplicabilidade. Conflito entre prazo previsto no Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA) e no CDC. Prevalência deste. Prescrição, todavia, reconhecida. […] 2. As vítimas de acidentes aéreos localizadas em superfície são consumidores por equiparação (bystanders), devendo ser a elas estendidas as normas do Código de Defesa do Consumidor relativas a danos por fato do serviço (art. 17, CDC). 3. O conflito entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Brasileiro de Aeronáutica – que é anterior à CF/88 e, por isso mesmo, não se harmoniza em diversos aspectos com a diretriz constitucional protetiva do consumidor -, deve ser solucionado com prevalência daquele (CDC), porquanto é a norma que melhor materializa as perspectivas do constituinte no seu desígnio de conferir especial proteção ao polo hipossuficiente da relação consumerista. Precedente do STF. 4. Recurso especial provido.” (Superior Tribunal de Justiça – Quarta Turma/ REsp 1281090/SP/ Relator: Ministro Luís Felipe Salomão/ Julgado em 07.02.2012/ Publicado no DJe em 15.03.2012) (destacou-se).
O artigo 29 do Código de Defesa do Consumidor, por sua vez, supera, portanto, os estritos limites da definição jurídica de consumidor para imprimir uma definição de política legislativa. Com o escopo de harmonizar os interesses presentes no mercado de consumo, com o escopo de reprimir eficazmente os abusos de poder econômico, com o fito de proteger os interesses econômicos dos consumidores finais, o legislador cunhou um poderoso instrumento nas mãos das pessoas expostas às práticas abusivas. Estas, mesmo não sendo "consumidores stricto sensu", poderão utilizar as normas especiais do Estatuto Consumerista, seus princípios, sua ética de responsabilidade social no mercado, sua nova ordem pública, para combater as práticas comerciais abusivas. Ao lado disso, “a pessoa jurídica exposta à prática comercial abusiva equipara-se ao consumidor (art. 29 do CDC), o que atrai a incidência das normas consumeristas e a competência do Procon para a imposição da penalidade”[14].
Ao lado disso, a situação prevista em que a coletividade se encontra, de maneira potencial, na iminência de sofrer dano não provocado, traz, com clareza solar, a incidência das normas protetivas entalhadas no Código de Defesa do Consumidor. Desta maneira, os diversos desastres tecnológicos decorrentes da atuação antrópica, a exemplo da contaminação das águas, do ar e a ameaça à camada de ozônio, tal como os problemas advindos do âmbito da saúde e segurança alimentar, têm reclamado a atenção de todos acerca da necessidade de ser adotada uma atitude maior de prudência no uso das tecnologias disponibilizadas. “Observa-se a relevância do bem jurídico tutelado, no interesse da coletividade, visando a anulação de cláusulas abusivas contidas em Cédulas de Crédito Rural, firmadas pelos sindicalizados perante instituição financeira, em desacordo com o Código de Defesa do Consumidor”[15].
4 Conceito de Fornecedor
Em linhas introdutórias, fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, tal como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços, consoante definição insculpida no caput do artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor[16]. “É, em síntese, todo aquele que oferta, a título singular e com caráter profissionalidade – exercício habitual do comércio – produtos e serviços ao mercado de consumo, atendendo, assim, às suas necessidades”[17]. Pela dicção apresentada, é denotável que não importa a tarefa assumida pelo fornecedor no universo das relações consumeristas, sendo irrelevante o papel que ele desempenha, quando se trata da afirmação dos direitos do consumidor.
Nesta esteira, a remuneração é a nota essencial à caracterização do fornecedor, sendo que a remuneração dá o tom do exercício profissional, não se aplicando apenas aos serviços. Igualmente, o fornecedor de produtos, para ser caracterizado como tal, deve atuar no curso de sua atividade-fim. “As rés, na condição de prestadoras de serviços, enquadram-se no conceito de fornecedor do art. 3º, do Diploma Consumerista”[18]. Ao traçar os aspectos característicos da figura do fornecedor, alude o legislador ao vocábulo atividade, sendo esta considerando como a prática reiterada de atos de cunho negocial, de maneira organizada e unificada, por um mesmo indivíduo, objetivando um escopo econômico unitário e permanente. Consoante o magistério de Carvalho:
“Essas atividades, assim indicadas no Código, são: produção (atividade que conduz ao produto qualquer bem móvel ou imóvel, material ou imaterial); montagem (a combinação de peças que, no conjunto, vão formar o produto); criação (desenvolvimento da atividade espiritual ou física do homem que constitui novidade); construção (com ou sem criatividade); transformação (mudança ou alteração de estrutura ou forma de produto já existente em outro); importação e exportação (aquisição de produtos do exterior e venda de produtos para o exterior); distribuição (ato de concretizar a traditio da res); comercialização (prática habitual de atos de comercial); prestação de serviços (aquele que presta serviços a outras entidades)”[19].
Nesta trilha de exposição, revela-se imprescindível distinguir o fornecedor imediato do fornecedor mediato, ambicionando, por conseguinte, fixar a responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço. Ao lado disso, mister se faz sublinhar que o fornecedor mediato é todo aquele que não celebrou o contrato, tendo, contudo, integrado a cadeia econômica como fornecedor do produto ou do serviço. Já o fornecedor imediato, também denominado fornecedor direto, é aquele que comercializa o produto ou, ainda, presta diretamente o serviço, mesmo que venha a se utilizar de mandatário, preposto ou empregado. Com espeque no artigo 13 do Estatuto de Defesa e Proteção do Consumidor[20], a responsabilidade do fornecedor direta será sucessiva e subsidiária, quando desconhecida ou insuficiente à identificação do fornecedor indireto ou mediato.
Em havendo dano puramente patrimonial, a responsabilidade será de todos os fornecedores que integram a cadeia econômica, a título de solidariedade, excetuada exceção em sentido contrário. No sistema inaugurado pela Legislação Consumerista, em especial nas hipóteses contidas nos artigos 18 e 20, respondem pelo vício do produto todos aqueles que ajudaram a colocá-lo no mercado, desde o fabricante (que elaborou o produto e o rótulo de identificação), o distribuidor, ao comerciante (que contratou com o consumidor). A cada um deles é imputada a responsabilidade pela garantia de qualidade-adequação do produto. Salta aos olhos que a cada um deles a Legislação Consumerista de regência impôs, de maneira expressa, um dever específico, respectivamente, de fabricação adequada, de distribuição somente de produtos adequados, de comercialização somente de produtos adequados e com as informações devidas.
O Código de Defesa do Consumidor adota, assim, uma imputação, ou, atribuição objetiva, pois todos são responsáveis solidários, responsáveis, porém, em última análise, por seu descumprimento do dever de qualidade, ao ajudar na introdução do bem viciado no mercado. A legitimação passiva se amplia com a responsabilidade solidária e com um dever de qualidade que ultrapassa os limites do vínculo contratual consumidor/fornecedor direto. Considerando que a responsabilidade é solidária tanto do fabricante, distribuidor e comerciante, é facultada ao consumidor a escolha de contra quem irá demandar, podendo ser contra um dos integrantes da cadeia de consumo como todos. Colhe-se, por imperioso, o entendimento jurisprudencial que tem o condão de abalizar o acimado:
“Ementa: Apelação Cível. Direito Privado não especificado. Pretensão de indenização por dano material. Vício do produto ("Notebook"). Agravo retido. Legitimidade passiva da loja onde o bem foi adquirido. Fornecedor – para fins de imputar a responsabilidade solidária pelos vícios de qualidade ou quantidade que tornem os produtos impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam (art. 18 do CDC), na linha do que dispõe o art. 3º do CDC – é todo aquele que participa da cadeia de fornecimento de produtos e/ou serviços, pouco importa sua relação direta ou indireta, contratual ou extracontratual com o consumidor. Do aparecimento plural dos sujeitos-fornecedores resulta a solidariedade dentre os participantes da cadeia mencionada nos arts. 18 e 20 do CDC e indicada na expressão genérica "fornecedor de serviços" do art. 14, caput, do CDC, restando, assim, afastada a alegação de ilegitimidade passiva. […] Negaram provimento ao Agravo Retido e a Apelação. Unânime”. (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – Vigésima Câmara Cível/ Apelação Cível Nº 70041693920/ Relator: Desembargador Rubem Duarte/ Julgado em 26.09.2012) (destacou-se).
“Ementa: Consumidor. Aparelho celular. Vício de qualidade do produto. Comerciante. Legitimidade Passiva. Em se tratando de responsabilidade por vício de qualidade do produto, todos os fornecedores respondem pelo ressarcimento dos vícios, como coobrigados e solidariamente. Tanto o fabricante como o comerciante possuem deveres perante o consumidor quanto à garantia de qualidade dos produtos, e ambos podem ser acionados judicialmente. […] Apelação desprovida.” (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – Décima Câmara Cível/ Apelação Cível Nº 70047064365/ Relator: Desembargador Túlio de Oliveira Martins/ Julgado em 29.03.2012) (sublinhou-se).
Ademais, são também considerados fornecedores as pessoas jurídicas de direito público interno, compreendendo-se a administração direta e indireta, bem como os denominados entes despersonalizados. Neste sentido, cuida salientar que “a empresa concessionária de serviço público afigura-se responsável pelos danos causados em razão da suspensão do fornecimento de energia elétrica e pela demora no seu restabelecimento”[21]. Verifica-se, assim, que as concessionárias de serviço público, para incidência das disposições protecionistas em relação ao consumidor contidas no Diploma Consumerista, são consideradas como fornecedores. A responsabilidade civil, por consequência, é objetiva e igualmente tem previsão no art. 14, caput, do Código de Defesa do Consumidor, somente podendo ser afastada quando comprovado que o defeito inexiste ou que o dano decorreu de culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
5 A Aplicação da Autocomposição no Direito do Consumidor: O Empoderamento dos Atores Consumeristas como mecanismo para a resolução de conflitos
Diante do cenário apresentado, no qual o preceito da vulnerabilidade do consumidor, alçado ao status de pavilhão orientador da aplicação da legislação de regência, necessário faz-se traçar uma análise acerca da possibilidade daquele, notadamente no que se refere à possibilidade de resolução extrajudicial de conflitos. Neste aspecto, a autocomposição apresenta-se como interessante, e cada vez mais popular, forma de resolução de conflitos, sem que haja a interferência da jurisdição, estando alicerçada no sacrifício integral ou parcial de interesse das partes envolvidas no conflito, por meio da vontade unilateral ou bilateral de tais sujeitos. Neste passo, “o que determina a solução do conflito não é o exercício da força, como ocorre na autotutela, mas a vontade das partes, o que é muito mais condizente com o Estado democrático de direito”[22]. No mais, o mecanismo em comento é considerado, atualmente, como excelente instrumento de pacificação social, porquanto, no caso concreto, inexiste uma decisão impositiva, emanada de um terceiro (Estado-juiz), alheio às peculiaridades da situação concreta, mas sim há uma valorização da autonomia da vontade das partes na solução dos conflitos.
Cuida mencionar que a autocomposição, em sede de métodos extrajudiciais de resolução de conflitos, afigura-se como um gênero, alcançando, como espécies, a transação, a submissão e a renúncia. No que concerne à transação, infere-se que há um sacrifício recíproco de interesses, sendo que cada um dos envolvidos abdica, parcialmente, de sua pretensão, a fim de alcançar a solução do conflito. Trata-se, com efeito, do exercício de vontade bilateral das partes, materializando a conjunção de esforços dos atores consumeristas, consumidor e fornecedor, para colocar termo ao conflito. Na transação, a construção do acordo decorre do esforço comum dos envolvidos, eis que, ao abdicarem de parte de seus interesses, conseguem, por meio do empoderamento, construírem um consenso que satisfaça o interesse de ambos. Doutro modo, na submissão e na renúncia o exercício da vontade é unilateral, podendo, em razão dos aspectos caracterizadores apresentados, como mecanismo altruístico de resolução de conflitos, eis que a solução alcançada decorre do ato da parte que abdica do exercício de um direito que, teoricamente, seria legítimo. Em sede de renúncia, o titular do pretenso direito abre mão de tal direito, fazendo-o desaparecer juntamente com o conflito existente, ao passo que na submissão o indivíduo submete-se à pretensão contrária, mesmo que fosse legítima sua resistência.
Insta colocar em destaque que, mesmo tratando-se de métodos extrajudiciais de resolução de conflitos, inexiste obstáculo para que se materializem no curso do processo judicial, sendo que a submissão, no cenário em comento, recebe a denominação de “reconhecimento jurídico do pedido”, enquanto os demais mantêm a mesma nomenclatura. Desta feita, verificando-se durante um processual judicial, o magistrado homologará por sentença de mérito a autocomposição, a qual fará coisa julgada material, conforme dicciona a Lei Processual Civil[23]. É importante, em tal situação, perceber que a solução do conflito ocorreu por autocomposição, oriunda da manifestação de vontade das partes, e não da aplicação do direito objetivo ao caso concreto, conquanto haja a participação homologatória do juiz emanando uma decisão com aptidão a produzir coisa julgada material. Tartuce e Neves destacam que em tal situação “tem-se certa hibridez: substancialmente, o conflito foi resolvido por autocomposição, mas formalmente, em razão da sentença judicial homologatória, há o exercício de jurisdição”[24]. Neste sentido, é possível transcrever os entendimentos jurisprudenciais:
“Ementa: Decisão monocrática. Apelação cível. Direito público não especificado. Fornecimento de energia elétrica. Recuperação de consumo. Acordo. Homologação. 1 – Homologação do acordo firmado entre as partes. 2 – Extinção do processo com julgamento de mérito (art. 269, III). Acordo homologado. Processo extinto.” (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – Segunda Câmara Cível/ Apelação Cível Nº 70035607076/ Relatora: Desembargadora Denise Oliveira Cezar/ Julgado em 24.05.2010).
“Ementa: Ação de cobrança – Transação após o julgamento do recurso – Pedido de homologação – Extinção do processo no mérito – Possibilidade – Exegese do artigo 840 do Código Civil e 269, inciso III, do Código de Processo Civil. “Admitindo o feito a transação extrajudicial pela partes, homologa-se para que susrtam jurídicos e legais efeitos, julgando extinto oprocesso, com o fulcro no art. 269, III, do Código de Processo Civil”.” (Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina/ Recurso Cível nº 5.076/ Relator: Des. Monteiro Rocha/ Data de Julgamento 25.09.2003).
Contemporaneamente, percebe-se um fomento à autocomposição, maiormente à transação, enquanto mecanismo de busca pela solução de conflitos que mais gera a pacificação social, eis que as partes, arrimadas em sua própria vontade, logram êxito em resolver o conflito, dele saindo satisfeitas. Com destaque, a cultura de pacificação social apresenta como escopo maior a solução da estrutura adversarial que orienta a aplicação da legislação processual de regência, erradicando o estado de beligerância entre os envolvidos. Nesta linha, a solução da demanda deve trazer consigo a pacificação no plano fático, em que os efeitos da jurisdição são suportados pela população jurisdicionada. Decorre da ótica em comento que a transação apresenta-se como uma excelente forma de resolver a cultura adversarial, eis que o conflito é resolvido sem que haja a necessidade de uma decisão impositiva decorrente do pronunciamento do Estado-juiz, o qual, corriqueiramente, a fim de atender dados estatísticos e metas colocadas pelo Conselho Nacional de Justiça, não se atém à peculiaridade que emoldura o caso concreto, atendo-se apenas a pronunciar o direito objetivo.
Informações Sobre o Autor
Tauã Lima Verdan Rangel
Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES