A inconstitucionalidade e a ilegalidade da alta programada

Resumo: O objetivo do presente trabalho foi demonstrar a inconstitucionalidade e a ilegalidade do sistema da alta programada. A inconstitucionalidade é cristalina, posto que, a alta programada acaba por ferir diversos diplomas legais, tendo em vista que é direito do segurado ter sua capacidade aferida por nova perícia médica, a fim de verificar se essa reabilitação foi parcial, total, ou se persiste a incapacidade. A alta programada afronta a Constituição Federal em vários aspectos, inclusive ferindo o princípio da dignidade da pessoa humana, e os direitos sociais fundamentais nela previstos. A alta programada é ilegal, por violar a Lei 8.213/91, e ao mesmo tempo inconstitucional por afrontar as garantias constitucionais de prevalência à vida, à saúde e a incolumidade física e mental de todos e em especial da classe trabalhadora. Por fim, a Lei 8.213/91 não permite alta programada enquanto persistir a incapacitação que motivou a concessão do benefício, tendo em vista tratar-se de grave ofensa e violação aos princípios constitucionais prevalentes de fiel observância da Reserva Legal na hierarquização das Leis em nosso País.

Palavras-chave: Alta Programada, Inconstitucionalidade, Ilegalidade.

Abstract: The aim of this study was to demonstrate the unconstitutionality and illegality of the system of scheduled high. The crystal is unconstitutional, since the high programmed ends up hurting several legal, considering that the insured is entitled to have their capacity measured by new medical expertise in order to verify that this healing was partial, full, or if it persists disability. The scheduled high affront to the Federal Constitution in several respects, including injuring the principle of the dignity of the human person and fundamental social rights therein. The scheduled high is illegal for violating the Law 8.213/91, while confronting unconstitutional constitutional guarantees of prevalence to life, health and physical safety and mental health of all and especially the working class. Finally, Law 8.213/91 does not allow high programmed while persisting disability which led to granting the benefit, considering that it is a serious offense and violation of constitutional principles prevalent faithful observance of the legal reserve in the hierarchy of laws in our country.

Keywords: High Programmed unconstitutionality, illegality.

Sumário: Introdução. 1. Definição e Sistemática da Alta Programada. 2. A Inconstitucionalidade e a Ilegalidade da Alta Programada. 3. Considerações Finais.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho terá como escopo o procedimento da Cobertura Previdenciária Estimada (COPES), também conhecida por programa data certa ou alta programada, que surgiu com a alteração do artigo 78, do Decreto nº. 3.048/99, promovida pelo artigo 1º, do Decreto nº. 5.844, de 13 de julho de 2006.

O procedimento da alta programada surgiu com o crescente número de trabalhadores que necessitavam ficar afastados de suas atividades habituais, consoante a problemas de saúde, percebendo o benefício de Auxílio-Doença, aliado a necessidade da autarquia em somente manter ativos os benefícios dos segurados que realmente encontram-se incapazes para o trabalho.

Consiste, tal procedimento, em determinar, já na data da perícia inicial, uma data provável em que o trabalhador possa retornar ao seu labor habitual, ou seja, de acordo com o diagnóstico apontado pelo Médico Perito do INSS, o próprio sistema irá determinar uma data futura em que o benefício do segurado será cessado, independentemente da realização de nova perícia médica. Logo, um procedimento inconstitucional e ilegal.

E a grande ironia do sistema é que tudo isso acontece justamente na área que tem por finalidade principal a proteção dos cidadãos hipossuficientes contra os riscos sociais. Deveriam criar um benefício que protege/indeniza os cidadãos hipossuficientes vitimados por atos arbitrários e ilegais do Estado. Isso porque os entes estatais são os maiores violadores dos direitos fundamentais, sejam individuais, sejam sociais.

O presente trabalho está dividido em dois capítulos, o primeiro abordou os aspectos gerais da alta programada, bem como sua definição e sistemática, no segundo capítulo fora analisado os aspectos inconstitucionais e ilegais do sistema, ressaltando os princípios, normas constitucionais e leis que são efetivamente contrariados por tal sistema, destacando por fim, no tópico da conclusão, a questão da constitucionalidade e ilegalidade do sistema e possíveis soluções para o caso em concreto.

2. DEFINIÇÃO E SISTEMÁTICA DA ALTA PROGRAMADA

A alta programada está prevista no artigo 1º, do Decreto nº. 5.844, de 13 de julho de 2.006, que alterou o artigo 78, do Decreto nº. 3.048/99. O citado procedimento era adotado administrativamente independente de qualquer normativa legal específica. Decorre do programa conhecido como COPES (Cobertura Previdenciária Estimada), atualmente denominado DCB (Data de Cessação do Benefício) e popularmente conhecido como data certa ou alta programada.

Como explica Marcel Thiago de Oliveira:

“Na prática, a alta programada dá-se da seguinte forma: o trabalhador passa por uma perícia na qual o médico confronta o código da enfermidade ou lesão diagnosticada com o tempo estimado de permanência em gozo do benefício apresentado pelo programa de computador utilizado pela autarquia e que se baseia em estudos estatísticos de diagnóstico, tratamento e tempo de recuperação de milhares de benefícios concedidos, sendo lançado no sistema informatizado do INSS a data de alta do segurado e o consequente encerramento do benefício”.

Os fundamentos do órgão previdenciário para implantação do programa não convencem. A alta programada, que em nada corresponde com a evolução do quadro clínico do paciente, ocorre tão somente por conta do transcurso do prazo que o médico perito entendeu suficiente para a recuperação da capacidade de trabalho do beneficiário, ou seja, por mero rigor burocrático.

Segundo dispõe o Decreto nº. 5.844/06, na perícia inicial, assim que confirmado o diagnóstico de doença incapacitante do exercício de atividade laboral e concedido o benefício de auxílio-doença (comum ou acidentário), o médico perito, mediante avaliação, estipula o prazo que entender necessário para a recuperação da capacidade para o trabalho do segurado, ao término do qual será suspenso automaticamente o pagamento do benefício, dispensada, nessa hipótese, a realização de nova perícia.

Alcançada a data prevista, o sistema acusa a "capacidade" do beneficiário para retornar à sua atividade laborativa, independentemente de avaliação das condições subjetivas do trabalhador, ou seja, sem uma verdadeira verificação do atual estado do infortunado.

Diverge, assim, do tradicional procedimento em que se designam retornos periódicos até que o benefício seja cessado em razão das circunstâncias legais.

Para a autarquia a adoção da alta programada aprimora o sistema previdenciário, posto que disciplina a concessão do benefício temporário em todos os postos de atendimento do INSS, tornando mais rígidos e seguros os processos de concessão de auxílio-doença, extinguindo fraudes na obtenção de benefícios e racionalizando as perícias, de modo que o segurado não se submete a elas desnecessariamente.

Quanto ao tempo de afastamento estimado, a autarquia alega ser mais flexível à extensão e gravidade da doença ou lesão, conforme dados estatísticos da autarquia, sendo que coexistem prazos mais exíguos ou mais dilatados para recuperação e tratamento.

A autarquia garante, ainda, que a utilização do programa acarretaria, ainda, a vantagem de evitar que a concessão do benefício fique a critério do perito, além de possibilitar que a Previdência Social faça uma auditoria nos afastamentos.

Segundo o Decreto nº. 5.844/06 (que disciplina a alta programada) caso o prazo concedido para a recuperação seja insuficiente, o segurado poderá solicitar a realização de nova perícia médica, conforme estabelecido pelo Ministério da Previdência Social.

Num passado não muito distante (até agosto de 2005) o benefício auxílio-doença era concedido por prazo indeterminado, ou seja, o benefício seria devido enquanto perdurasse a incapacidade que lhe deu origem. Entretanto, o segurado deveria fazer perícia médica regularmente, a fim de que os médicos peritos do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) apurassem a incapacidade ou não do segurado para o trabalho.

Ocorre que após essa data o benefício passou a ser concedido por tempo determinado, sendo que o médico fixa a data de encerramento do benefício, estabelecendo o tempo necessário para a recuperação. Referido procedimento é chamado de alta programada ou data certa.

Na alta programada o computador avisa quando o segurado deve receber alta, o que é óbvio, nada tem a ver com a doença e sim com os custos com a manutenção do beneficio do auxílio-doença (que irão reduzir). Findo o prazo dado pela autarquia, o segurado é orientado para retornar dentro do prazo de 30 (trinta) dias, período em que pode ocorrer sua demissão, mas o problema não é do INSS.

Segundo o INSS a alta programada não só reduz o déficit, tendo em vista que o número de benefícios de auxílio-doença aumentou como também evita que o segurado retorne (a cada dois meses) para nova perícia, sobrecarregando o INSS. Logo, o segurado considerado incapacitado temporariamente irá receber o benefício por período determinado pelo médico perito como sendo suficiente para a sua recuperação. Findo o prazo, o pagamento será suspenso e o segurado que não se considerar apto ao trabalho, poderá agendar nova perícia para continuar recebendo o auxílio-doença.

Nesse sentido o art. 78, § 1º, do Regulamento da Previdência Social (aprovado pelo Decreto 3.048/99, com redação dada pelo Decreto 5.844/2006), dispõe que o INSS poderá estabelecer, mediante avaliação médico-pericial, o prazo que entender suficiente para a recuperação da capacidade para o trabalho do segurado, dispensada nessa hipótese a realização de nova perícia.

“Art. 78. O auxílio-doença cessa pela recuperação da capacidade para o trabalho, pela transformação em aposentadoria por invalidez ou auxílio-acidente de qualquer natureza, neste caso se resultar sequela que implique redução da capacidade para o trabalho que habitualmente exercia.

 § 1º O INSS poderá estabelecer, mediante avaliação médico-pericial, o prazo que entender suficiente para a recuperação da capacidade para o trabalho do segurado, dispensada nessa hipótese a realização de nova perícia”.

Com a referida alteração, ficam os segurados ainda mais vulneráveis, posto que, findo o prazo estabelecido, pelo médico perito do INSS, deverão retornar ao trabalho independentemente da situação em que se encontrem. O sistema, indubitavelmente, está dificultando o recebimento de um benefício do segurado. Frise-se que tal benefício possui íntima ligação ao direito à saúde, à vida e à dignidade da pessoa humana.

Destarte, o prazo máximo de licença passou a ser de um ano, dependendo somente da avaliação do médico perito, sendo que antes da citada alteração o prazo máximo era de 180 dias (de um modo geral) e dois anos para os casos mais graves.

Caso o segurado continue incapacitado após o término do prazo estabelecido pelo médico perito tem que requerer o Pedido de Prorrogação (PP) ou o Pedido de Reconsideração (PR), que gera uma nova perícia médica.

O PP pode ser requerido até 15 (quinze) dias antes do fim de cada período de licença. E caso o PP seja negado, o assegurado poderá entrar com o PR, podendo, inclusive, solicitar exame com outro médico perito. Caso ambos pedidos sejam negados restará, ainda, o recurso à Junta de Recursos da Previdência Social (JRPS).

Embora tenha avançado em relação à regra anterior, o INSS não solucionou o problema do pagamento do benefício referente ao período entre o término da alta programada e da nova perícia.

O fato é que ainda que o beneficiário possa se socorrer do PP e/ou PR, o agendamento, de um modo geral, não acontece dentro desse prazo, e caso a cessação do benefício seja mantida pelo perito do INSS, nem o órgão segurador, tampouco o empregador assumem o pagamento, sendo o ônus repassado ao trabalhador.

Segundo o art. 59, da Lei 8.213/91, o segurado fará jus ao auxílio-doença se, após cumprido, quando for o caso, o período de carência, ficar incapacitado para o trabalho ou para a sua atividade habitual por mais de 15 dias consecutivos.

O art. 62, da Lei 8.213/91, por sua vez, prevê que o benefício somente cessará quando o segurado for considerado apto para o desempenho de nova atividade que lhe garanta a subsistência ou, caso seja considerado irrecuperável, seja aposentado por invalidez.

“Art. 62. O segurado em gozo de auxílio-doença, insusceptível de recuperação para sua atividade habitual, deverá submeter-se a processo de reabilitação profissional para o exercício de outra atividade. Não cessará o benefício até que seja dado como habilitado para o desempenho de nova atividade que lhe garanta a subsistência ou, quando considerado não-recuperável, for aposentado por invalidez”.

A alta programada afronta o art. 62, da Lei 8.213/91, posto que não permite a efetiva aferição da capacidade de retorno ao trabalho. Tendo em vista que a medicina não é uma ciência exata, não existe a possibilidade de o médico prever com segurança e exatidão o prazo em que a patologia que comprometeu a capacidade de trabalho do segurado estará curada, ou a data exata em que o segurado estará apto a retornar às suas atividades habituais.

Segundo o art. 101, da Lei 8.213/91 o segurado em gozo de auxílio-doença deve submeter-se a exames médicos periódicos para manutenção do benefício:

“Art. 101. O segurado em gozo de auxílio-doença, aposentadoria por invalidez e o pensionista inválido estão obrigados, sob pena de suspensão do benefício, a submeter-se a exame médico a cargo da Previdência Social, processo de reabilitação profissional por ela prescrito e custeado, e tratamento dispensado gratuitamente, exceto o cirúrgico e a transfusão de sangue, que são facultativos”.

Logo, se o artigo supracitado prevê a necessidade da realização de nova perícia para averiguação da manutenção ou não da situação de incapacidade, não é admissível sua dispensa para fins de cancelamento da prestação.

Perante a ilegalidade inquestionável do Decreto que instituiu a Alta Programada o judiciário tem concedido várias medidas liminares determinando a suspensão deste procedimento:

“PREVIDENCIÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. AUXÍLIO-DOENÇA. ALTA MÉDICA PROGRAMADA. SUA FIXAÇÃO INDEPENDENTEMENTE DE PERÍCIA. Se, à luz do disposto no art. 101 da Lei n.º 8.213/91, o segurado em gozo de auxílio-doença é obrigado a submeter-se a exame médico a cargo da Previdência Social, isto significa que o aludido exame é necessário para averiguar-se se ele está ou não em condições de retornar ao trabalho. Logo, não se pode presumir a recuperação de sua capacidade laborativa, pura e simplesmente em razão do decurso de determinado prazo. (TRF da 4ª Região, AC n. 2006.70.00.017889-9, 6ª Turma, Rel. Des. Sebastião Ogê Muniz, j. 02/05/2007, DJ 18/05/2007 – sem grifo no original)”.

“PREVIDENCIÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. RESTABELECIMENTO DE BENEFÍCIO. AUXÍLIO-DOENÇA. ALTA PROGRAMADA. AUSÊNCIA DE PERÍCIA MÉDICA. ILEGALIDADE.É incompatível com a lei previdenciária a adoção, em casos semelhantes ao ora analisado, do procedimento da “alta programada”, tendo em vista que fere direito subjetivo do segurado de ver sua capacidade laborativa aferida através do meio idôneo a tal fim, que é a perícia médica. (TRF da 4ª Região, AC n. 2006.70.00.010597-5, Turma Suplementar, Rel. Des. Luciane Amaral Correa Minch, j. 28.02.2007, DJ 19/04/2007 – sem grifo no original)”.

Segundo Eduardo Chamecki, dentre as decisões que suspenderam a alta programada, pode-se citar a determinada pela 1ª Vara Federal de São José dos Campos, no processo 2006.61.03.00.2070-3, solicitada pelo Sindicato dos Químicos e Condutores e pelo Ministério Público Federal, cuja liminar suspendeu a alta programada em todo território nacional. A decisão foi suspensa por força da determinação da presidente do TRF 3ª Região (Processo SL 2006.03.00.052706-3).

Logo, caso o benefício seja cancelado sem a realização de exame-médico que confirme a cessação da incapacidade, ou que indique a exigência de encaminhamento para processo de reabilitação, o segurado poderá ingressar com ação judicial para solicitar o restabelecimento do auxílio-doença.

3 A INCONSTITUCIONALIDADE E A ILEGALIDADE DA ALTA PROGRAMADA

Tendo em vista que o benefício (regulamentado pela Lei n.º 9.784/99) é concedido por meio de processo administrativo, deverá também ser cessado por processo administrativo, respeitando, dessa forma, o contraditório e a ampla defesa, posto que para o início do recebimento do benefício necessário se faz a perícia realizada pela autarquia, logo, para a cessação do benefício deve ser adotado o mesmo procedimento.

Portanto, o cancelamento do benefício sem o devido processo administrativo, sem ao menos realização de nova perícia, não tem validade jurídica, por revestir-se de vício, tendo em vista seu caráter arbitrário e abusivo, além de afrontar princípios inerentes ao Estado Democrático de Direito.

Nesse diapasão, merece transcrição o voto do Desembargador do TRF 1ª Região, MS 2006.33.07.000632-1/BA:

“Como se sabe, a garantia constitucional, em seu sentido processual, tal como inserta no art. 5º, LV, da Constituição Federal de 1988, que tem como consectários a ampla defesa e o contraditório, exige que a autoridade administrativa, no exercício de suas atividades, atue de maneira não abusiva e não arbitrária, para que seus atos tenham, assim, legitimidade ético-jurídica. Deste modo, em tendo havido o ato de suspensão sem que tenham sido assegurados ao prejudicado o devido contraditório e ampla defesa, deve ser restabelecido o pagamento ao benefício, sendo este o pedido formulado no mandamus e devendo nestes lindes manter-se a segurança concedida em primeiro grau. (TRF 1ª Região, MS 2006.33.07.000632-1/BA)”.

A alta programada acaba por ferir diversos diplomas legais abaixo citados, posto que, é direito do segurado ter sua capacidade aferida por nova perícia médica, a fim de verificar se essa reabilitação foi parcial, total, ou se persiste a incapacidade.

Acerca do tema, é importante transcrever parte do Voto da Desembargadora Federal Luciane Amaral Corrêa Münch, in verbis:

“Como se percebe da leitura dos dispositivos acima (no voto, são os arts. 60 e 62 da Lei 8.213/91), é incompatível com a lei previdenciária a adoção, em casos desse jaez, do procedimento de ''alta programada'', tendo em vista que fere o direito subjetivo do segurado de ver sua capacidade laborativa aferida através do meio idôneo a tal fim, que é a perícia médica. De fato, revela-se incabível que o Instituto preveja com antecedência, por meio de mero prognóstico, que em determinada data o segurado esteja apto ao retorno ao trabalho, sem avaliar efetivamente o estado de saúde em que se encontra, tendo em vista que tal prognóstico pode não corresponder à evolução da doença, o que não é difícil de acontecer em casos mais complexos, como é o versado nos autos. (TRF 4ª Região, MS 2006.70.00.010597-5/PR)”.

 Muito embora a Administração Pública tenha o direito de racionalizar seus serviços e economizar recursos financeiros, o segurado tem o direito de garantir a continuidade do benefício até a sua total reabilitação, e o Estado tem o dever de garantir à população o devido processo legal. Nesse conflito de interesses, argumentos de ordem meramente financeira não podem suprimir a primazia da dignidade da pessoa humana, princípio básico do Estado Democrático de Direito e pilar de todo o ordenamento jurídico em vigor.

Os fundamentos do órgão previdenciário para implantação do programa não convencem, tendo em vista que muitas enfermidades, especialmente as de menor complexidade, podem ter o prazo de tratamento e recuperação previsto pelo profissional competente, porém, cada caso é um caso, sendo indispensável a análise do caso concreto, tendo em vista  que o quadro clínico pode não evoluir da forma esperada.

Portanto, a finalidade do procedimento administrativo que deveria ser a de habilitar o segurado para a percepção do auxílio-doença passou a ser a de impor obstáculos para a obtenção do benefício, posto que a finalidade deste instituto atualmente é tão somente manter o segurado o menor tempo possível afastado, desonerando os cofres previdenciários e fazendo com que o trabalhador retorne ao mercado de trabalho, ainda que não esteja apto para tanto.

A alta programada é indubitavelmente ilegal e inconstitucional, pois seus efeitos são nefastos aos trabalhadores, tendo em vista que com a alta médica e a cessação do benefício, a única alternativa do segurado é retornar a sua atividade habitual devido a necessidade de manter sua subsistência e de sua família.

Caso o segurado não tenha condições de desempenhar seu labor de forma adequada e em igualdade de condições com os demais trabalhadores da empresa, o resultado, muito provavelmente, será sua dispensa.

Do mesmo modo, o segurado poderá sentir-se apto ao trabalho e ao retornar poderá haver uma piora em seu quadro clínico e o problema que antes poderia ser resolvido pelo afastamento por período irrisório, poderá se converter num quadro mais difícil e duradouro, necessitando assim do pagamento de benefícios que onerarão de forma significativamente maior os cofres previdenciários.

Nesse diapasão, dispõe Marcel Thiago de Oliveira:

“O problema antes restrito à seara previdenciária assume agora contornos de comprometimento da saúde pública, isso porque a cessação do benefício em decorrência do transcurso do prazo de recuperação e tratamento estimado sem que o segurado esteja efetivamente apto ao retorno à sua atividade laboral acarreta, invariavelmente, o exercício do trabalho de forma a agravar sua enfermidade ou lesão, piorando seu estado de saúde”.

Não rara as vezes, o próprio empregador acaba recusando o retorno do trabalhador, com base no laudo médico produzido pelo médico assistente da empresa, quando este acusa a incapacidade do trabalhador para assumir o trabalho e sugere a continuidade do afastamento, nesses casos, o segurado não receberá seus proventos do INSS, tampouco do empregador.

O Estado que custearia a princípio apenas a incapacidade laboral do trabalhador (arcando com o pagando do período de afastamento do trabalhador, através da Previdência Social), passa a ser responsável também, devido sua omissão, pela saúde do trabalhador (através do Sistema Único de Saúde – SUS), tendo em vista que o exercício da atividade sem que o trabalhador esteja realmente apto para tanto, contribui para o agravamento de suas condições de saúde.

Não restam dúvidas de que o procedimento adotado ocasiona o aumento do alegado e duvidoso déficit da Seguridade Social, tendo em vista o descaso da Previdência Social em proporcionar os meios indispensáveis à subsistência do trabalhador, quando este se encontra inapto para o trabalho, pelo lapso temporal necessário para sua recuperação.

Logo, cai por terra a alegação de que tal procedimento desonera os cofres públicos, posto que o procedimento adotado é totalmente incoerente com a atual legislação pátria.

A alta programada afronta a Constituição Federal em vários aspectos, primeiramente, fere o princípio da dignidade da pessoa humana, elencado no artigo 1º da CF, fere, ainda, os direitos sociais fundamentais previstos no artigo 6º do referido diploma.

A alta programada encontra-se, também, em desacordo com o artigo 196 da CF, posto que o referido artigo trata do dever do Estado de garantir a todo cidadão a saúde e a permanência do benefício do trabalhador que ainda encontra-se incapacitado, pois o meio ambiente do trabalho ocasiona o desgaste físico e psicológico do trabalhador.

Ao estabelecer uma data provável para o retorno do trabalhador sem que o mesmo esteja realmente apto para tanto, o INSS acaba por descumprir com seu dever de propiciar aos seus segurados os meios necessários de subsistência até sua total e comprovada recuperação para o trabalho, ou mesmo habilitação para o desempenho de outra atividade que tenha aptidão.

 Neste mesmo sentido, a Lei nº. 8.213/91 (Plano de Benefícios da Previdência Social) em seu artigo 1º, prescreve que é dever da Previdência Social garantir aos seus beneficiários os meios indispensáveis de manutenção, por motivo de incapacidade, desemprego involuntário, idade avançada, tempo de serviço, entre outras situações, complementando ainda em seu artigo 62 que:

“Art. 62. O segurado em gozo de auxílio-doença, insusceptível de recuperação para sua atividade habitual, deverá submeter-se a processo de reabilitação profissional para o exercício de outra atividade. Não cessará o benefício até que seja dado como habilitado para o desempenho de nova atividade que lhe garanta a subsistência ou, quando considerado não-recuperável, for aposentado por invalidez”.

É cristalino o impacto negativo da alta programada sobre a vida dos trabalhadores e consequentemente de toda a sociedade, tendo em vista as suas consequências socioeconômicas.

Para ter noção da gravidade do problema é só observar a conduta dos médicos peritos que não dispensam a atenção devida quando da análise das patologias, limitando-se a examinar de forma fria e superficial o paciente, a ponto de permanecerem mais tempo preenchendo os formulários próprios do INSS do que diagnosticando o caso.

E como se não bastasse o descaso com os trabalhadores, os médicos peritos do INSS (na maioria dos casos) sequer apreciam ou analisam os exames feitos por médicos ou clínicas particulares, por vezes nem os levam em consideração, dando parecer contrário à prova dos laudos.

Logo, o procedimento administrativo do INSS perdeu o escopo de habilitar o segurado para percepção do auxílio-doença (comum ou acidentário) e passou a ser um empecilho para a obtenção do benefício, posto que, independentemente da inaptidão, a finalidade do processo passou a ser, pura e simplesmente, a não renovação do benefício, a fim de que o segurado permaneça o menor tempo possível afastado, desonerando, dessa forma, os cofres previdenciários, fazendo com que os trabalhadores retornem ao labor sem condições para exercer sua atividade.

Devido a ineficiência administrativa, o beneficiário que ficou afastado durante anos do serviço, e que não teve seu benefício de auxílio-doença convertido em aposentadoria por invalidez, se vê obrigado a retornar ao trabalho após a alta.

Geralmente o trabalhador já fora substituído, devido o enorme lapso temporal em que ficara afastado da empresa, em gozo do auxílio doença, nesse caso, o trabalhador será sumariamente demitido, porém se fizer jus à estabilidade (acidente do trabalho), ao término dessa estabilidade também será dispensado, logo, enfermo, e sem condições de trabalhar, o trabalhador não consegue novo emprego, tendo em vista que sequer passará no exame admissional.

Conclui-se, portanto, que o déficit da Seguridade Social advém, quase que em sua totalidade, da desídia da Previdência Social que deixa de propiciar os meios indispensáveis à subsistência do trabalhador, quando inapto ao trabalho, pelo tempo necessário para seu restabelecimento.

A alta programada afronta, ainda, o art. 170, caput, da CF, tendo em vista, que o exercício da atividade pelo trabalhador lesionado ou enfermo afronta o desígnio da norma de assegurar a todos existência digna, segundo os ditames da justiça social.

A manutenção da política interna do INSS em conceder a ALTA PROGRAMADA é ilegal, por violar a Lei 8.213/91, e ao mesmo tempo inconstitucional por afrontar as garantias constitucionais de prevalência à vida, à saúde e a incolumidade física e mental de todos e em especial da classe trabalhadora.

Tanto a Lei 8.213/91, como a Lei 8.212/91 visam garantir constitucionalmente os ditames previstos nos artigos 196 e seguintes da CF, quais sejam: garantia ao trabalho, à vida, à saúde, e a uma vida digna com qualidade.

Nesse sentido dispõe o Tribunal Superior do Trabalho:

“O trabalhador tem o direito a ter assegurado trabalhar num meio ambiente ergonomicamente equilibrado, sem risco, visando assegurar sua incolumidade física e mental, para que continue podendo extrair da venda de sua força de trabalho, o suporte econômico necessário à sua mantença, bem como a de seus familiares. Em caso de adoecimento e ou acidente e em gozo de auxílio-doença será considerado pela empresa como licenciado, a teor do disposto no art. 63 da Lei 8.213/91. Examinando esse dispositivo, recentemente o TRT-TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO, decidiu: “Estando suspenso o contrato de trabalho, em virtude de o empregado haver sido acometido de doença profissional, com percepção de auxílio-doença, opera-se igualmente a suspensão do fluxo do prazo prescricional” (RR-424/2001-069-09-00.5) (Fonte: TST)”.

Analisando as garantias constitucionais e legais acima descritas, recentemente em Minas Gerais o juiz da 10ª VF de BH suspendeu a aplicação do DCB – Data de Cessação do Benefício – para toda MG ao entendimento seguinte: “cabe ao INSS o ônus de comprovar a recuperação da capacidade para o trabalho do beneficiário. Em outras palavras, a cessação da incapacidade não pode ser presumida pelo mero decurso de um prazo predeterminado” (Processo 2006.38.00.019240-3).

Diversas medidas liminares determinaram a suspensão da ALTA PROGRAMADA:

“Processo 2006.61.03.00.2070-3 1ª Vara São José dos Campos Autores: Sindicatos Químicos e Condutores + MPF Liminar concedida para suspender a alta programada em todo território nacional.Decisão suspensa por força da determinação da Presidente do TRF 3ª Região (Processo SL 2006.03.00.052706-3)”.

“2ª Vara de Bauru-SP Processo 2006.61.08.003405-9 Autores: Assoc. Lesados (ALERB), Sindicatos Químicos, Gráficos, Alimentação, Construção Civil, Comércio e Hotéis. Liminar concedia para suspender a alta programada no raio de atuação dos autores. Aguarda decisão de efeito suspensivo em agravo de instrumento já interposto, porém ainda sequer recebido/autuado”.

“Processo 200661080006921 – Vara Federal de Bauru-SP Isso posto, defiro, em parte, a liminar, e determino à autoridade impetrada que somente decida pela manutenção ou cessação do benefício do impetrante após a realização de perícia médica, ficando proibida a cessação com base em perícia realizada em data diversa da em que analisada a manutenção do benefício”.

Ao deferir a suspensão, o juiz declarou entender que “afigura-se manifestamente ilegal o ato da autarquia previdenciária por cujo intermédio resta cancelado o pagamento do benefício, sem que o segurado seja submetido a perícia médica que demonstre a sua completa recuperação”.

O juiz federal Roberto Lemos dos Santos Filho, de Bauru (SP), ao deferir a liminar, garantindo o direito à manutenção de auxílio-doença até o efetivo restabelecimento da capacidade de trabalho da segurada, examinando a questão debatida, concluiu com propriedade:

“O auxílio-doença é devido ao segurado desde a perda de sua força de trabalho até o momento em que ele permanecer incapacitado para exercer sua função. A alta médica programada afronta o disposto no artigo 60 da Lei 8.213/1991. O artigo estabelece que o auxílio-doença ao segurado passa a contar da data do início da incapacidade enquanto ele permanecer incapaz. A segurada recebeu o auxílio-doença após realização de perícia, a partir de laudo que atestou sua incapacidade para trabalhar. Porém, no mesmo laudo foi pré-estabelecida data para o fim do benefício. Me parece curiosa a situação colocada nestes, vale dizer, como é possível alguém constatar que uma pessoa está incapacitada para o trabalho, e no mesmo ato antever data específica na qual o doente estará habilitado a trabalhar? Tenho que essa forma de agir não pode prevalecer sob pena de afronta aos arts. 1º, inciso III, 6º, 194 e 201, inciso I, todos da Constituição Federal”.Vara Federal de Brusque Processo 2006.72.15.004360-8”.

O fato é que a Lei 8.213/91 não permite alta programada enquanto persistir a incapacitação que motivou a concessão do benefício, tendo em vista tratar-se de grave ofensa e violação aos princípios constitucionais prevalentes de fiel observância da Reserva Legal na hierarquização das Leis em nosso País.

O artigo 1º da CF consagra a dignidade da pessoa humana, trata-se de viga-mestra que imanta toda a Constituição, projetando-se sobre todo o ordenamento jurídico, é mais que um direito fundamental, é a razão de existir do próprio Estado e das leis.

Os princípios constitucionais são normas de hierarquia superlativa, e submetem todo o conjunto normativo inferior às suas disposições expressas e aos intentos dos valores consagrados em seu bojo, ainda que implicitamente.

Quando da elaboração da norma o legislador considera o homem como o centro do universo jurídico, posto que o Estado existe em função da pessoa humana, que constitui sua finalidade precípua, e não meio da atividade estatal.

Segundo Ingo Wolfgang Sarlet (2003, pag.106/107) o ente dignidade possui íntima relação com o ente dos direitos fundamentais, pois a dignidade da pessoa humana deve servir como limite e função do Estado e da sociedade, na medida em que ambos devem respeitar (função negativa) e promover (função positiva ou prestacional) a dignidade, manifestações essas sentidas pelo respeito e promoção dos direitos constitucionais da pessoa e do cidadão.

Conforme salienta Comparato (1999, pág. 30) a dignidade do ser humano é fonte e medida de todos os valores, sendo assim, deve estar sempre acima da lei, ou seja, de todo direito positivo.

Ainda, segundo Ingo Wolgang Sarlet forçoso seria concluir que a dignidade da pessoa humana se constitui no principal valor constitucional, sendo fundamento e fim dos direitos fundamentais, sem o qual se faz impossível a consolidação do Estado Social e Democrático de Direito. Nesse sentido dispõe (2006. p. 60):

“A dignidade da pessoa humana consiste na qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existentes mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”.

E é exatamente por ser considerado como valor intrínseco do ser humano que se torna impossível compatibilizar o princípio da dignidade da pessoa humana com o Decreto nº. 5.844/06, tendo em vista a força axiológico-normativa daquele princípio, posto que é considerado a principal fonte hermenêutica de qualquer Estado Democrático de Direito.

Ao lançar à própria sorte um interminável número de trabalhadores incapacitados para o labor ou enfermos inaptos para o exercício de sua atividade habitual, devido a uma pretensa racionalização e otimização do sistema previdenciário, o mecanismo em comento, antes mesmo de ser incompatível com o modelo de Estado adotado pelo Brasil, se mostra em total desacerto como próprio ser humano entendido como fim e epicentro da ordem jurídica, e não como meio.

Frise-se que nenhum decreto tem poder suficiente para derrogar ou inibir o exercício de um direito fundamental, donde se pode concluir que o Decreto da Alta Programada não tem força suficiente para impedir o recebimento do auxílio-doença por uma pessoa que ainda não se recuperou.

Desse modo, para que o auxílio-doença seja suspenso, necessário se faz a ocorrência de nova perícia a fim de se verificar se o beneficiário encontra-se ou não apto ao trabalho, tendo em vista que o INSS deve proceder de forma contundente e não por mera presunção.

O instituto da alta programada acaba por ferir, ainda, um dos princípios mais importantes e protegidos em nosso ordenamento jurídico, qual seja a Dignidade da Pessoa Humana.

Nas palavras de Marcelo Leonardo Tavares, a dignidade da pessoa humana é um valor moral prévio à própria organização social, uma qualidade natural dos seres humanos que os coloca como destinatários de respeito e merecedores de igual atenção por parte do Estado e de seus semelhantes, de modo que não percam a possibilidade de exercer autonomia. (2009, p. 29)

Logo, segundo Martins (2003) dignidade da pessoa humana trata-se de um atributo da pessoa humana, que existe pelo simples fato de "ser" humana, a pessoa faz jus ao respeito, independentemente de sua origem, raça, sexo, idade, estado civil e condição social ou econômica.

Dessa forma, os direitos sociais são extremamente necessários para uma existência digna da humanidade, acabando por assumir função fundamental e sendo intitulados como direitos sociais do mínimo existencial, evidenciando, assim, a existência de direitos sociais fundamentais intimamente vinculados ao valor da dignidade, levando-se em consideração que não é possível existir essa dignidade na miséria.

É dever do Estado garantir a preservação da dignidade da pessoa humana sob pena de romper com o próprio pacto social proposto na Constituição Federal que assevera que o direito à proteção social é um direito humano fundamental.

Todavia, visando desonerar os cofres previdenciários e utilizando-se, dessa forma, da alta programada o Estado sacrifica o fundamento da dignidade da pessoa humana, e acaba por retroceder em importante conquista social, consistente na proteção contra o risco social ao possibilitar o retorno do trabalhador efetivamente incapacitado ao trabalho, condições mínimas de sobrevivência, desrespeitando-o na sua existência e degradando-o na sua condição de pessoa humana.

A CF/88 consagrou a dignidade da pessoa humana como princípio fundante do Estado Democrático de Direito e um dos pilares estruturais da organização do Estado brasileiro (artigo 1º, CF), consistindo na razão de existir do próprio Estado e das leis, considerado a viga-mestra que imanta toda a Constituição, ou seja, projetando-se sobre todo o ordenamento jurídico.

O ato administrativo do INSS que estabelece a Alta Programada é ilegal e inconstitucional, pois contraria tanto a Lei 8.213/91, quanto a Constituição Federal que institui as garantias de prevalência à vida, à saúde e a incolumidade física e mental de todos e em especial da classe trabalhadora.

Nesse diapasão leciona Orione (2006, p.120) assinala que a leitura do sistema da seguridade social deve ser feita a partir da Constituição e não a partir dos atos normativos infraconstitucionais ou mesmo dos atos administrativos que, aparentemente, possuem efeito normativo. Em especial em matéria previdenciária, não é possível ceder a primeira tentação de dizer o direito apenas a partir daquilo que dizem as instruções normativas, as portarias e os demais atos administrativos.

Entretanto, destaca Orione (2006, p.121), de que há uma grande dificuldade dos operadores do direito na utilização do sistema constitucional. Por isso, muitas vezes, esses profissionais do direito embasam suas interpretações nos atos administrativos e, quando muito, chegam às leis ordinárias e, se restar fôlego, alguns ainda conseguem visitar o texto constitucional. Portanto, a essência está no estudo da interpretação constitucional da seguridade social.

Ressalta, ainda, Orione (2006, p.127), que as decisões devem ter como patamar a preservação do princípio da dignidade humana/democracia. Estes postulados são fundamentais para a compreensão de um sistema de segurança social. Assim, os princípios fazem revelar os conceitos constitucionais ou os conceitos constitucionais são subtraídos ou extraídos dos princípios informadores daquele conceito. Logo, havendo um conceito de previdência social, este deve ser extraído do texto constitucional, o mesmo ocorrendo com a saúde e a assistência social. Portanto, esta tríade que forma o direito da segurança social é revelada pela própria Constituição por meio dos princípios, ou seja, estes conceitos somente são formados a partir daquilo que o legislador constituinte deseja que eles sejam.

O primeiro dispositivo da constituição a ser violado é o Art. 196 que diz: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

O instituto da Alta Programada ignora o elemento proteção e recuperação, pois o benefício é cortado subitamente, sem nem ao menos realizar a perícia médica, ou seja, o INSS estipula o dia em que o benefício cessará independentemente da recuperação do segurado.

O INSS estabeleceu a técnica da alta programada através de uma Orientação Interna e essa Orientação não tem o poder de inibir um direito do trabalhador. Pensando nessa situação o governo federal, diante das decisões do Poder Judiciário que declararam nulas e ineficazes a prática reiterada de Alta Programada, transformou a Orientação Interna em um decreto (Decreto 5.844), com o intuito de dar legalidade ao regulamento interno do INSS e visando manter a continuidade do procedimento de concessão de alta programada, porém com outra denominação: DCB — Data de Cessação do Benefício.

Entretanto, o executivo não levou em consideração a questão constitucional que trata da reserva legal na hierarquização das leis, bem como as restrições impostas à administração pública no uso do poder normativo ou regulamentar.

Portanto, os atos administrativos normativos, não se confundem com as leis (que emanam do Poder Legislativo e expressam a vontade geral) pois  os atos administrativos normativos são derivados, ou seja, apenas especificam ou complementam as leis, são atos infra legais, expedidos tão somente para a fiel execução da lei.

O poder normativo tende a orientar os Órgãos da Administração no que tange a interpretação e aplicação da lei, buscando sempre a uniformidade. Os atos administrativos normativos têm eficácia interna (restrita), pois os destinatários são os órgãos e agentes públicos. Porém, na prática, atingem o administrado, violando, dessa forma, o Princípio da Legalidade, tendo em vista que somente a lei obriga as pessoas. Os Administrados não deveriam, a rigor, ter a obrigação de conhecer o teor de resoluções, portarias, instruções, pois não são os seus destinatários.

Segundo leciona Di Pietro (2002, p.88) os atos administrativos normativos não podem inovar na ordem jurídica, criando direitos, obrigações, proibições, medidas punitivas, até porque ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, conforme artigo 5°-, II, da Constituição; ele tem que se limitar a estabelecer normas sobre a forma como a lei vai ser cumprida pela Administração.

Desse modo, os decretos não podem contrariar a lei, criar direitos, impor obrigações ou penalidades, pois "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (Princípio da Legalidade).

No que tange a hierarquização das leis, o saudoso Miguel Reale (1980, p.163) dispõe que não são leis os regulamentos ou decretos, porque estes não podem ultrapassar os limites postos pela norma legal que especificam ou a cuja execução se destina. Tudo o que nas normas regulamentares ou executivas esteja em conflito com o disposto na lei não tem validade, e é susceptível de impugnação por quem se sinta lesado. A ilegalidade de um regulamento importa, em última análise, num problema de inconstitucionalidade, pois é a Constituição que distribui as esferas e a extensão do poder de legislar, conferindo a cada categoria de ato normativo a força obrigatória que lhe é própria.

Portanto, o Decreto 5.844 é ilegal e inconstitucional, tendo em vista que restringe e inibe um direito do trabalhador, por isso, esse decreto em nada modifica a situação de ilegalidade já reconhecida pelo Poder Judiciário, deixando muito claro a nítida intenção do governo em negar vigência à Lei 8.213/91 posto que a mesma não admite a alta programada enquanto persistir a incapacidade que motivou a concessão do benefício.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A alta programada abandona a proteção e promoção dos direitos humanos, e afronta o ideal de justiça social, fraternidade e igualdade, anteriores e superiores a qualquer modelo de Estado, ignorando qualquer sentido filosófico, religioso ou moral do que se entende por respeito ao próximo omitindo-se, por completo, no desígnio de propiciar existência digna a todos.

Ante o exposto, mister se faz declarar que o programa implantado pelo INSS com fulcro na Orientação Interna Conjunta nº 01 Dirben/PFE, de 13 de setembro de 2.005, e posteriormente mantido com base no artigo 1º, do Decreto nº. 5.844, de 13 de julho de 2.006, que alterou o artigo 78, do Decreto nº. 3.048/99 é flagrantemente inconstitucional, representando implacável afronta aos princípios da dignidade da pessoa humana e valorização do trabalho como condição da dignidade humana, não excluindo a afronta aos direitos sociais à saúde e à previdência social.

O fato é que tal mecanismo, aplicado da forma como vem sendo aplicado, resulta no retorno ao trabalho de empregados que ainda não restabeleceram a capacidade laboral, e por consequência, na queda no rendimento e produtividade, originando não só o impacto econômico, mas também, o agravamento das lesões ou enfermidades, dilatando, dessa forma, o tempo do tratamento e recuperação desses trabalhadores;

A aplicação do mecanismo supracitado causará, ainda, o avanço das desigualdades sociais, com a propagação de camadas marginalizadas pelo Poder Público, sem prejuízo da onerosidade, ainda maior, aos cofres públicos, deixando de ser questão de ordem previdenciária e passando a ser problema de saúde pública.

A implantação da alta programada a fim de minimizar os custos, jamais poderá ser considerada uma medida racional, como almeja o INSS e sim uma evidencia notória acerca da incapacidade do Estado em implantar formas viáveis e socialmente responsáveis para equilibrar receitas e despesas.

 Os direitos econômicos não são considerados absolutos e jamais serão, a ponto de sobressaírem a efetivação dos direitos sociais, cujo intento principal está na efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana, sob pena de retrocesso nas conquistas sociais.

O Brasil somente será de fato um Estado Democrático de Direito, conforme preconiza a CF, quando práticas como a alta programada não exigirem determinação judicial para serem afastadas, tendo em vista que referidas cessações deveriam, obrigatoriamente, partir do próprio Estado, consciente que sua existência deve-se em função da pessoa humana.

Frise-se que o ato administrativo do INSS, em estabelecer a Alta Programada, é ilegal e inconstitucional, pois afronta a Lei 8.213/91 e a Constituição Federal, que institui as garantias de prevalência à vida, à saúde e a incolumidade física e mental de todos e em especial da classe trabalhadora.

O governo federal diante das decisões do Poder Judiciário de declarar nula e ineficaz a prática reiterada de Alta Programada, transformou a Orientação Interna em um decreto (Decreto 5.844), procurando dar legalidade ao regulamento interno do INSS e visando manter o procedimento de concessão de alta programada.

Logo, o Decreto 5.844 é ilegal e inconstitucional, uma vez que restringe e obsta um direito do trabalhador, tendo em vista que o auxílio doença é um benefício garantido pela lei e para o qual o trabalhador teve que contribuir previamente para ter o direito de percebê-lo. Logo, referido decreto em nada modifica a condição de ilegalidade já reconhecida pelo Poder Judiciário, ratificando a nítida intenção do governo em negar vigência à Lei 8.213/91 que não admite a Alta Programada enquanto permanecer a incapacidade que motivou a concessão do benefício.

Mesmo sendo um procedimento ilegal e inconstitucional, a alta programada continua sendo válida e aplicada, o que pode-se afirmar é mais uma faceta do capitalismo globalizado e da deterioração da ética.

Conclui-se, portanto,        que o instituto da alta programada é manifestamente inconstitucional e ilegal, por ferir vários dispositivos vigentes, inclusive a carta magna e seus princípios, amplamente difundidos nesse trabalho.

O ideal seria uma reforma desse sistema, capaz de conciliar os direitos sociais sem desequilibrar excessivamente os cofres públicos, uma opção seria a adoção de um mecanismo que estabelece uma data prevista para o fim do benefício, assim como na alta programada, porém que continue ativo, caso ocorra novo do pedido de prorrogação, até a realização da nova perícia médica, sendo que o trabalhador continuaria amparado até que fosse constatada, através de uma nova perícia, a capacidade plena do trabalhador para o retorno ao trabalho ao invés de lançá-lo a própria sorte em um mercado de trabalho cada vez mais competitivo sem as mínimas condições de disputar com igualdade as escassas vagas existentes.

 

Referências
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Informações Sobre o Autor

Daniela Bonadiman

Advogada, pós-graduada em: Direito Constitucional, Direito e Processo do Trabalho, Direito Civil, Direito Administrativo, Direito Previdenciário e Criminologia, Política Criminal e Segurança Pública


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