Palavras-chave: União Europeia; Direito Internacional Westfaliano; direito comunitário; supranacionalidade; integração regional.
Abstract: European Union, yielded of a post-war geopolitical arrangement, has reached, after more than 60 years, as an international organization a novel institutional interdependence. According to a realist perspective of International Law and International Relations, this articles aims at addressing concepts of intergovernability and supranationality in order to deconstruct overvaluation in relation to European Union Law, that is a regional sector of International Law.
Keywords: European Union; Westphalian International Law; communitarian law; suprantionality; regional integration.
Sumário: I- Introdução; II- O Processo de Formação e Desenvolvimento da União Europeia; III- O ordenamento jurídico e a pretensa supranacionalidade do Direito Comunitário; IV- Conclusão: o Direito Comunitário como um ramo regional do Direito Internacional Westfaliano.
I. Introdução
Os processos de integração não são novidades no mundo, principalmente na Europa[1] (TREIN, 2008). As iniciativas de integração regional liderada pelo vetor econômico também não são pioneiras no cenário europeu; projetos relevantes foram promovidos durante o século XIX[2]. O projeto europeu do pós-Segunda Guerra conseguiu, entretanto, criar um arcabouço institucional e uma coesão monetária entre os membros inéditos para uma organização internacional. Seus alardeados êxitos no aprofundamento da cooperação interestatal serviram de inspiração a iniciativas integradoras em outras regiões, sobretudo na América do Sul, no tocante à teoria que justificou o projeto comunitário.
Influenciado por teorias liberais que emergiram no contexto do pós- Segunda Guerra Mundial, o projeto europeu, capitaneado por Robert Schuman e Jean Monnet, tinha forte inspiração no funcionalismo. Construto teórico, cujo maior expoente foi David Mitrany[3], que enfatizava a via econômica como o cunho prioritário para diminuição das discrepâncias comerciais entre os membros, harmonizando as economias nacionais e expandindo a prosperidade local. Estas visões liberais ou idealistas entediam que os grandes conflitos do século XX haviam ocorrido em função das rivalidades e das desigualdades econômicas, da não cooperação política e da intransigente postura soberana dos Estados na defesa de seus interesses, sobretudo, comerciais. Estas percepções foram modificando-se até se alcançar o neofuncionalismo[4], que advoga a cooperação econômica pela via comercial pode espraiar seus efeitos positivos para outras áreas e pode levar a integração a estágios considerados avançados, como no caminho para se atingir a união política (federalismo), por meio da complexificação da integração e da transferência de competências soberanas do Estado (que não era confiável para gerar estabilidade isoladamente, tendo em vista sua política interna e suas rivalidades históricas) à uma organização internacional. Uma solução duradoura para o alcance da paz perpétua seria a interdependência econômica, cujo êxito seria responsável por espalhar os benefícios a outras áreas, expandindo e setorizando a cooperação, o que é chamado de efeito spillover. Logo, a integração seria vista como um processo composto por etapas evolutivas. A mais desenvolvida, após se iniciar com uma área de preferências tarifárias, área de livre comércio, união aduaneira, mercado comum e união econômica, seria uma união política.
Analistas, entusiastas desta dinâmica[5], veriam na centralidade econômica, irradiadora de efeitos prósperos para outras áreas, a razão do alegado estágio avançado da União Europeia, o qual serviria de inspiração para as iniciativas de cooperação menos desenvolvidas, ideia que ganhou ainda mais relevo após a guinada europeia ao neoliberalismo, concretizada pelo Tratado de Maastricht.
Com as mudanças sistêmicas durante as décadas de 1970 e de 1980, a estratégia comunitária sofreu forte guinada. Abandonou a concepção do bem-estar social e direcionou-se pela ideologia neoliberal a seguir o caminho do privilégio aos capitais privados. Neste momento, a relativa paz, a prosperidade econômica e o fortalecimento institucional comunitário, alcançados pela Europa e alardeados por entusiastas neoliberais, criaram uma sensação ilusória de um modelo exitoso a ser utilizado por outras regiões. O funcionalismo deveria prevalecer, agora, todavia, capitaneado por um modelo econômico que abandonava o regionalismo fechado[6] para ingressar em uma lógica de regionalismo aberto[7], sem barreiras ao comércio mundial, escancarado ao mercado internacional, pressupondo que todos os países teriam condições iguais de competitividade e, se não o tivesse, poderiam se juntar aos vizinhos com os mesmo níveis de desenvolvimento para aumentar seu poder de barganha.
É neste panorama de relativização da soberania estatal, enfraquecimento do Estado-nação e fortalecimento da cooperação mundial via organizações internacionais[8] que o direito internacional alcançaria sua efetividade máxima e a paz e a estabilidade internacionais seriam garantidas. O conceito de supranacional[9] emerge nesta época e ganha prestígio a partir do espraiamento do ideário da globalização. Os defensores do direito cosmopolita[10] viam no direito comunitário sua maior expressão, dadas a operacionalidade e a dinamicidade atribuídas ao direito secundário da União Europeia, o qual não precisa passar pelo procedimento de incorporação interna dos Estados para vincular os destinatários da norma nos territórios nacionais, ou seja, possui efeito direto, o que motivou doutrina e jurisprudência comunitárias a desenvolver ainda mais teorizações sobre seu direito. Seu elevado grau de desenvolvimento normativo e regulatório, quando analisado pela via purista do Direito e liberal das Relações Internacionais, é superestimado, chegando ao ponto de gerar confusões conceituais ao ser classificar o direito comunitário como um direito supranacional, ou seja, funcionaria independentemente da vontade soberana do Estado-nação, lógica que deveria servir de exemplo para outras iniciativas de cooperação regional.
Esta particularidade pareceu inovadora ao direito internacional contemporâneo, pensado e difundido pelos ditames da Paz de Westfália[11], constituídos sob o postulado maior da soberania estatal. Inicialmente difundida na França (BODIN, 2011)[12], para resolver o conflito interno em torno da centralização, o valor fundamental da soberania veio a constituir o pilar das relações internacionais. Seria a premissa maior da qual irradiariam dois princípios básicos, o da igualdade (jurídica, formal) entre os Estados e o da inexistência de um poder central que detivesse o monopólio do uso da força, a conhecida anarquia sistêmica. De acordo com este sistema, os Estados seriam os principais detentores de direitos e de deveres, cujas fontes seriam oriunda do direito positivo (tratados internacionais) e do direito natural (costumes e princípios gerais de direito), devendo ter sua integridade respeitada por seus pares (não intervenção), a não ser em caso de conflito, no qual a guerra poderia ser considerada um meio legítimo de solução de controvérsias.
Em virtude da manutenção da vigência desta lógica hodiernamente, a visão realista[13] entende que as organizações internacionais e suas normas são, por essência, intergovernamentais, não podendo estar acima da vontade do Estado, se este assim não consentir. Logo, uma série de contradições será levantada sobre as peculiaridades da institucionalidade comunitário, de sorte questionar a suposta supranacionalidade do direito e da organização, afirmando que não há que se falar em um direito supranacional, mas sim em um direito internacional regional, podendo este ser efetivo ou não.
Desta forma, para a compreensão deste raciocínio, este trabalho será divido em uma primeira parte que contextualizará histórica e politicamente a formação e desenvolvimento da organização internacional europeia; em um segundo trecho que abordará as peculiaridades e o desenvolvimento do direito comunitário, bem como sua caracterização como supranacional; em uma terceira e última seção, que discutirá a estrutura do direito internacional westfaliano e concluirá a pesquisa com as observações sobre o direito comunitário enquanto um regional do direito internacional westfaliano.
II. O Processo de Formação e Desenvolvimento da União Europeia
O atual estágio alcançado pela Europa em seu processo de integração regional pode ser explicado a partir de uma análise crítica, que situa o processo como resultado, não exclusivo, mas considerável, das transformações internas e do sistema internacional. Construída pela interação de fatores internos (pacificação e recuperação econômica) e externos (projeção autônoma e contenção da influência soviética), o projeto integracionista foi desenvolvido a partir dos vetores de prevalência do capital e do desenvolvimento socioeconômico, com forte apoio e considerável complacência do poder hegemônico (TAVARES E BELLUZZO, 2004) [14]. Hodiernamente, acumula mais de 60 anos de experiência e um grau considerável de interdependência entre seus membros, além de uma vasta gama de instituições regionais, com foco em diversas áreas, o que não significa que todos os envolvidos são beneficiados[15].
Destruída materialmente, arrasada pelas perdas humanas e ocupada por tropas estrangeiras, a região, que, por pelo menos desde o século XVI, foi o epicentro mundial, viu-se uma posição ímpar dentro do sistema interestatal capitalista[16]. Como a oeste foi invadida pelos americanos e a leste, pelos soviéticos, a Europa tornou-se o centro da disputa de poder entre as duas grandes potências vitoriosas do conflito. Dividido o continente, as diferentes porções seguiram estratégias alinhadas com interesses externos. Enquanto que a parte oriental adotou a lógica soviética, a ocidental buscou enquadrar suas demandas à hegemonia estadunidense. Esta, por fazer parte da constituição da União Europeia, será alvo de maior aprofundamento deste estudo.
Desde a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, preparada pela Carta do Atlântico[17], em 1941, na qual a Grã-Bretanha reconheceu a hegemonia americana, os Aliados já começaram a pensar na reorganização mundial após o final do conflito[18]. A iminência da vitória aliada levou os países capitalistas a discutir o gerenciamento econômico internacional sob a égide da hegemonia estadunidense[19]. A ordem monetária foi instalada pelos Estados Unidos, como forma de organizar a configuração mundial do pós-guerra, sempre de acordo com seus interesses nacionais. O dólar foi alçado à condição de moeda internacional, única a ser conversível em ouro, enquanto as outras somente tinham o recurso de converterem-se em dólar. Ademais, criou-se o Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento, BIRD, conhecido posteriormente como Banco Mundial, e o Fundo Monetário Internacional, o FMI, responsável pela correção do desequilíbrio na balança de pagamentos dos países. Desta reorganização mundial deriva ainda a Organização das Nações Unidas[20], que ratificou a força política e diplomática dos americanos, com o apoio dos europeus. A estes não cabiam uma opção de enfrentamento, mas de consentimento com o poderio americano, devido às condições internas de cada país.
Assim, à Europa Ocidental foi disponibilizada uma estratégia diferenciada, em relação a outras regiões, dentro do sistema hegemônico de poder, a qual foi, inevitavelmente consentida pelas elites locais ante a conjuntura internacional da época. Fiori explica a benevolência hegemônica aos europeus[21].
A questão interna gravitava em torno da situação econômica catastrófica, sendo necessário encontrar uma solução para sua reconstrução e pacificação, mantendo a remuneração satisfatória das elites liberais e impedindo a ascensão dos partidos socialistas internos. Os países europeus encontravam-se numa encruzilhada, desgastados pelo conflito, com perdas humanas, deterioração social e grande parte de sua cadeia produtiva e de sua infraestrutura comprometidas e, muitos, ainda, ocupados por potências estrangeiras, no Ocidente, pelos Estados Unidos, e no Oriente, pela União Soviética. O factível crescimento das ideias socialistas em meio à crise e a escassez de divisas motivaram o pragmatismo das elites capitalistas dos países ocidentais que aceitaram a ajuda financeira estadunidense e por meio dela criar um ambiente seguro e estável para a reconstrução econômica e social pela proliferação do capital, o qual foi obrigado a compor com os interesses do trabalho, articulando o Estado de bem-estar social e promovendo a cooperação entre as economias regionais, tanto no viés comercial quanto no aspecto socioeconômico.
A questão externa da integração foi determinada pelos rumos do embate entre Estados Unidos e União Soviética, que culminou na Guerra Fria. Era necessário retomar a proeminente projeção internacional e, ao mesmo tempo, às economias europeias ocidentais criar uma barreira de contenção à influência e aos capitais estatais soviéticos, os quais já haviam tomado a porção oriental do continente. A ameaça vinda do modelo político e econômico adotado pelo Leste Europeu ao capitalismo liberal estadunidense alterou a estratégia hegemônica quanto à situação dos antigos inimigos de guerra, em meados de 1947, sobretudo em relação à solução dada à questão alemã[22]. Cogitada para ser desindustrializada e tornar-se uma grande colônia agrícola[23], foi transformada na grande vitrine do capitalismo ocidental, por meio do projeto americano de desenvolvimento a convite[24] dos outrora inimigos de guerra[25]. Assim, mesclando os motivos internos e externos, a integração europeia passou a ser construída a partir da Alemanha Ocidental como o polo irradiador do crescimento econômico regional, em uma estratégia hegemônica de europeizar os interesses alemães[26].
Este arranjo inicial, responsável por dimensionar o projeto integracionista em duas vertentes: a de promoção dos capitais nacionais conjuntamente com a de fomento ao desenvolvimento socioeconômico, passou a ser refeito a partir das transformações na economia e na geopolítica mundiais. As transformações sistêmicas ocorridas, principalmente nas décadas de 1970 e 1980 levaram o processo europeu a ser repensado. Em um contexto de rompimento do padrão monetário internacional, bem como de questionamentos à hegemonia americana, e de desgaste e crescentes tensões na composição entre capital e trabalho, os Estados Unidos, com o auxílio britânico, lideraram uma ofensiva política e ideológica em favor do capital financeiro, livrando-o das amarras estatais, fortalecendo-o e, em contrapartida, enfraquecendo os pleitos trabalhistas, representados pelos sindicatos. Este movimento emergiu a crise mundial proporcionada pelo Choque de Juros estadunidense[27], o qual afirmou o padrão dólar flexível[28] e elevou a contestação do Estado de bem-estar social, propondo uma reforma neoliberal[29] às funções estatais. Este novo panorama arrefeceu o ímpeto comercial alemão e restringiu sua área de influência ao continente europeu, além de minar as bases do Estado de bem-estar social do pós-guerra, como bem sintetiza Carlos Medeiros[30].
Sentindo a necessidade de sair da inércia e de adotar uma postura reativa às transformações da época, os líderes europeus relançaram a integração, com o Ato Único Europeu, articulado por Jacques Delors, em 1985. O ideário globalizante impregnava o pensamento das elites, que romperam a acomodação do capital com o trabalho pelo bem-estar social para impor seus interesses ao bloco. A pressão pela abertura das economias ao capital financeiro era latente e considerada retoricamente como inevitável. A reunificação da Alemanha e a dissolução da União Soviética aceleram a remodelagem europeia, que culminou no Tratado de Maastricht, de 1992. O tratado internacional estruturou a integração por meio da formação da União Europeia, que abarcaria todas as iniciativas comunitárias anteriores sob o mesmo teto, mas com uma lógica distinta, que priorizava somente o viés do capital, abandonando o desenvolvimento socioeconômico[31]. Além disso, no documento, ficou expressa a intenção de transformação do mercado comum europeu em mercado único por meio da previsão de uma moeda comum para a zona comunitária. A integração europeia mostrava adaptabilidade ante a conjuntura internacional e, baseada na lógica neoliberal do regionalismo aberto, viria a servir de parâmetro para outras iniciativas de integração econômica no sistema mundial.
III. O ordenamento jurídico e a pretensa supranacionalidade do Direito Comunitário
Tendo em vista o processo que permitiu a constituição da União Europeia, cabe, neste momento, especificar o tema, dando ênfase particular à arquitetura jurídica do direito comunitário[32]. Criou-se a partir da jurisprudência do outrora Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, um ordenamento jurídico internacional autônomo em relação ao direito interno dos Estados e com uma lógica distinta daquela que rege a interação entre o direito internacional público e o direito nacional. Dentro desta construção, destacam-se os sujeitos (Estados e seus indivíduos são os destinatários das normas) e as fontes do direito comunitário, oriundas da jurisprudência (do Tribunal de Justiça da União Europeia e sua interação com os tribunais internos dos Estados-membros), dos princípios consagrados (pela jurisprudência, pela doutrina e por cartas) e do direito positivo, notadamente dos tratados internacionais e das decisões orgânicas internas (que compõe o direito primário e o secundário respectivamente).
Diferentemente do que acontece no Direito Internacional Público e de maneira próxima a que ocorre no direito interno, a jurisprudência assume um papel central nesta dinâmica. O Tribunal de Justiça da União Europeia foi criado pelo Tratado de Roma, em 1957, como Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, cujo objetivo é garantir o respeito ao direito na interpretação e aplicação dos tratados. Ao longo dos anos sofreu modificações estruturais, passando a contar, após o Tratado de Lisboa, de 2007, com três instâncias de julgamento, sendo a primeira referente a tribunais especializados, a segunda, ao tribunal geral, e a terceira, ao Tribunal de Justiça. O órgão como um todo exerce competência na verificação do cumprimento do direito comunitário (primário e secundário), na garantia de efetividade e construindo a hermenêutica das normas comunitárias. Suas decisões são importantes para a consolidação e o desenvolvimento deste ramo jurídico. Logo, a jurisprudência[33] europeia exerce papel bem além daquele esclarecedor de controvérsias dentro deste ordenamento, pois é conformador do ordenamento jurídico, bem como consagrador de princípios[34], os quais possuem, de acordo com a doutrina (ESPADA et ali, 2012), precedência hierárquica, com status jurídico semelhante ao do direito primário.
Atuando independentemente e harmonicamente com os tribunais europeus, estão os tribunais internos de cada Estado-membro. Estes interagirão com aqueles quando realizarem o controle de constitucionalidade do direito primário, após o procedimento de incorporação ao direito interno, e, principalmente, na efetivação do direito secundário e nos casos do reenvio prejudicial, instituto jurídico que permite o julgador nacional remeter o processo ou consultar a corte comunitária, quando surgir dúvidas em relação à lide julgada internamente quanto à aplicação e interpretação do direito comunitário (primário e secundário).
As regras e valores aplicados pelos órgãos jurisdicionais originam-se em sua grande maioria das manifestações do direito positivo, dos tratados internacionais[35]. O direito primário é hierarquicamente superior ao secundário, estando no topo do direito regional, como as normas constitucionais são no direito interno. Compõe-se pelos tratados internacionais celebrados entre os Estados- membros[36]. Por exemplo, engloba o Tratado de Paris, de 1951, que criou a Comunidade Europeia de Carvão e do Aço[37]; os Tratados de Roma[38], em 1957, que criaram a Comunidade Econômica Europeia e a EURATOM; o Tratado de Maastricht[39], de 1992; o Tratado de Amsterdã[40], de 1997; o Tratado de Nice[41], de 2001; e os Tratados de Lisboa[42], de 2007. Para que as normas oriundas destes documentos vinculem os Estados signatários é necessário que estes sejam incorporados pelo direito interno estatal, no qual cada Estado determina seu procedimento (a maioria prescinde do crivo parlamentar). O direito primário[43] europeu é bem complexo em seu nível de cooperação entre Estados, visto que, além de regras conjuntas, é responsável por criar órgãos que regerão a institucionalidade comunitária. A estas instituições serão atribuídas competências pelos Estados signatários, as quais poderão ser exclusivas, compartilhadas e de coordenação. Em seu funcionamento emitirão documentos, os quais poderão ter valor jurídico.
O direito primário ou fundamental determina quais gozam desta prerrogativa: o Parlamento Europeu, o Banco Central Europeu (nos países que aderiram à moeda única) o Conselho da União Europeia (ou de Ministros) e a Comissão Europeia. As manifestações expressas dos três constituem o direito secundário ou derivado da União Europeia, o qual obedece aos procedimentos e competências previstos pelo direito primário, sendo composto por regulamento (que traz normas de caráter geral, sendo obrigatório em todos seus elementos e diretamente aplicável aos Estados-membros); diretiva (a qual vincula o Estado em relação ao resultado alcançar um objetivo geral, relegando às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios de efetivá-lo); decisão (específica e obrigatória às partes que envolver em todos seus elementos); e, por fim, pareceres e recomendações (manifestações consultivas que não são vinculantes, que só terão valor jurídico para colmatar as lacunas das normas obrigatórias).
No direito secundário da União Europeia reside uma particularidade que, aparentemente, não é comum a outras organizações internacionais voltadas à integração regional. A jurisprudência do Tribunal de Justiça Comunitário e a doutrina especializada, com base nesta, foram responsáveis por pensar a relação do ordenamento regional e das disposições nacionais de uma forma que viabilizasse e dinamizasse o funcionamento das instituições europeias. Com fulcro nos julgados Caso Van Gend em Loos[44], Caso Walrave[45], Caso Simmenthal[46], Caso Ratti[47], Caso Francovich[48] e Caso Costa/ENEL[49] o tribunal europeu consolidou dois princípios fundamentais: a primazia do direito secundário sobre o interno nas competências que lhe forem exclusivas, podendo torná-las inaplicáveis ou anulá-las, bem como afirmou o princípio do efeito direto, que possibilita a invocação das normas comunitárias perante os tribunais internos, sem necessidade de incorporação das normas estrangeiras (regulamentos, diretivas e decisões não precisariam passar pelo procedimento de incorporação ao direito interno, surtindo efeitos jurídicos a partir de sua publicação) nos ordenamentos nacionais.
Este direito derivado comunitário regido pelos princípios do efeito direto e da primazia, e, por isto, diferente em relação ao direito internacional, e autônomo ao direito interno, seria um novo gênero dentro do mundo jurídico. Este conjunto de características serve para que se atribua o adjetivo de supranacional ao direito comunitário. Logo, o direito comunitário seria supranacional, visto que seria aplicado à revelia da vontade dos governos nacionais. Seu funcionamento e operacionalidade não poderiam ser afetados por questões políticas internas. Pelo mesmo raciocínio os órgãos que elaboram as normas jurídicas secundárias seriam classificados como supranacionais, com uma vontade própria que não se confunde com a dos Estados. Este distanciamento das instâncias técnicas comunitárias em relação à política interna de cada membro é vista pelas teorias liberais neofuncionalistas[50] como um fator positivo e de elevado grau de desenvolvimento dentro das escalas evolutivas de um processo de integração pela via comercial. Em contrapartida do avanço da supranacionalidade, a intergovernabilidade é vista como um modelo atrasado e pouco eficiente. O direito supranacional manifesta a cooperação estatal na área jurídica, de maneira próxima à de um Estado federal, ou seja, é hierarquizado, efetivo (com efeito e aplicação diretos, em princípio), mas não conta com um ente central soberano, dotado, em última instância do monopólio do poder de coerção.
A semelhança do direito regional com a lógica jurídica interna dos Estados é explicada por Daniel Sarmento quando aborda sua lógica estrutural, em analogia com a relação entre normas federais e estaduais em uma federação[51]. Em virtude desta construção peculiar e da relativa independência de sua aplicação da soberania estatal, autores liberais entusiastas do pensamento kantiano[52] afirmam ser o direito comunitário o modelo mais próximo ao ideal jurídico do direito cosmopolita[53], um dos fatores principais para a promoção da paz perpétua entre os Estados, que deixariam as prerrogativas soberanas para tornarem-se uma grande federação que compartilhasse valores comuns[54].
A situação idealizada por Kant parecia próxima após a emergência da globalização financeira e seu ideário homogeneizador. O estreitamento das comunicações e das relações comerciais proporcionados pelo avanço tecnológico gerou entre os pensadores do direito[55] uma euforia desmedida a ponto de sustentar um gradual enfraquecimento do Estado-nação, com a consequente, extinção das fronteiras nacionais. Com a remodelação e organização da União Europeia pós-Tratado de Maastricht, nos moldes da ideologia neoliberal, autores, como Jürgen Habermas entendiam ser o formato supranacional do direito comunitário a solução para os impasses entre os interesses do indivíduo e a soberania estatal[56].
Esta aparente decadência do Estado-nação, perdendo espaço para organizações internacionais, de normas e funcionamento imunes à política das nações, não se coaduna com a estrutura e a realidade do Direito Internacional Público, a qual ainda não foi modificada substancialmente, mas, como envolve um conteúdo com forte influência político, foi adaptada às novas condicionantes do sistema internacional.
IV Conclusão: o Direito Comunitário como um ramo regional do Direito Internacional Westfaliano
O Direito Internacional Público contemporâneo veio sendo construído a partir da transição entre Idade Média e Idade Moderna[57], período marcado pelo fim da influência da Igreja nas monarquias. Em meio à lógica feudal, desenvolvia-se o poder da burguesia, cujos interesses se contrapunham àqueles dos proprietários de terras. A concepção católica de mundo, que embasava o modo de produção feudal, já não atendia plenamente aos interesses comerciais da classe ascendente. Com isso, os Estados modernos foram sendo constituídos a partir da visão jurídica de mundo da burguesia, que secularizava a perspectiva teológica, libertando a monarquia da tutela do Papa[58].
O suporte jurídico deste movimento de enfraquecimento do direito divino e de fortalecimento do poder político foi o postulado da soberania dos Estados, de reflexos internos (dentro das fronteiras territoriais) e externos (sem questionamentos por outros monarcas). Este veio a constituir o pilar das relações internacionais e, consequentemente, do direito internacional após a Guerra dos Trinta Anos[59]. No sistema interestatal, seria a premissa maior da qual irradiariam dois princípios básicos, o da igualdade (jurídica, formal) entre os Estados[60] e o da inexistência de um poder central que detivesse o monopólio do uso da força, a conhecida anarquia sistêmica[61]. Internamente, legitimaria o poder de coerção do Estado, como um poder exclusivo, uno, supremo e indivisível (BODIN, 2011).
O Estado, portanto, é colocado no centro das discussões, sempre atuando em favor do interesse nacional, que imediatamente é o de sobreviver e impor sua vontade em um ambiente descentralizado e horizontal por meio do acúmulo de poder. Não há como pensar a sociedade internacional fora de um sistema de equilíbrio de poder, que coordena o ambiente anárquico (sem um poder hierarquicamente superior) dos Estados (FIORI, 2007). Com o passar do tempo, as mudanças sistêmicas determinaram uma maior complexidade da relação entre Estados, abrindo espaço para o surgimento de organizações internacionais e para a relativização do conceito absoluto de soberania, o qual foi adaptado às novas necessidades e aos novos temas da agenda global, valorizando a cooperação interestatal (KOSKENIEMMI, 2004).
Neste panorama é que se encontra a integração regional europeia. Resultado de um arranjo geopolítico do pós-Segunda Guerra Mundial, cujos rumos foram determinados por condicionantes internas e externas, seguiu e adaptou-se às transformações da sociedade internacional, sobretudo ao ideário neoliberal do final do século XX. Com uma estrutura remodelada pelo Tratado de Maastricht, a articulação peculiar do direito comunitário passou a ser defendida pelos pensadores liberais como modelo de um direito livre de interferência da política dos Estados, ante sua autonomia perante o direito interno e suas particularidades em relação ao direito internacional. Apesar de gozar de características próprias, o direito comunitário não está acima da vontade dos Estados e constitui uma manifestação específica regional do direito internacional público por diversas razões, as quais serão expostas a seguir.
A primeira e mais óbvia reside no fato da União Europeia não ser um Estado federal, mas uma organização internacional, como todas as outras que existem no direito internacional. Isto significa que pela definição doutrinária (TRINDADE, 2003 e PELLET et alli, 2003) a UE é composta por uma união de vontades dos Estados (soberanos), a qual lhe garante uma personalidade jurídica derivada (originária é a dos Estados) e própria (com a dos Estados não se confunde necessariamente), constituída por tratado internacionais (constitutivos) e instrumentalizada a um fim específico (econômico). Estas entidades são regidas pelos princípios da especialidade e da subsidiariedade. Em outras palavras, suas competências serão delegadas pelos Estados para que elas possam atingir seus objetivos. Ocorre que a distribuição de competências na União Europeia é bem complexa, envolvendo diversas áreas, ainda que, em sua maioria, voltadas a questões comerciais e econômicas, sem tocar na maior parte das prerrogativas soberanas do Estado[62]. O argentino Félix Peña rechaça a ideia evolucionista do processo de integração, ainda que dentro de uma visão funcionalista, situando-o como uma plataforma de efetivação do interesse nacional por meio da potencialização do interesse regional, em um sistema de ganhos recíprocos, o que o legitima teoricamente perante a sociedade[63].
A segunda aborda a institucionalidade europeia, cuja sua composição difusa e complexa, que reúne a mescla de pilares supranacionais e intergovernamentais, como, respectivamente, o das Comunidades e o de Política e Segurança Externa Comum, a PESC[64]. A coordenação destes vetores é feita por intermédio do Conselho Europeu, o órgão executivo de cúpula, responsável por elaborar as diretrizes políticas gerais, composto pelos Chefes de Estado e de Governo dos países membros, pelo seu Presidente e pelo Presidente da Comissão Europeia (estes dois últimos não têm direito de voto), ainda segue a lógica intergovernamental e não supranacional, como outros da Comunidade[65]. Criado definitivamente na Cúpula de Paris, em dezembro de 1974, não nasce como um órgão comunitário e somente aparece pela primeira vez na arquitetura formal após a incorporação do Ato Único Europeu, em 1986. Ainda assim, é competente para debater e tomar decisões sobre o desenvolvimento e a coesão da União Europeia como um todo, sem, contudo, exercer função legislativa. Com o Tratado de Lisboa foi incorporado definitivamente no seio comunitário, tendo suas competências ampliadas e modificadas[66], sem perder a intergovernabilidade. Diante do exposto, parece um contrassenso celebrar a supranacionalidade da União Europeia, quando seu órgão norteador de rumos políticos segue ainda a lógica intergovernamental, o que só revela que a vontade dos governos influencia diretamente nas questões regionais.
A reserva de soberania do Estado é evidenciada também na terceira razão, atinente ao direito comunitário. Em primeiro lugar, o direito originário segue a lógica ordinária do direito internacional, ou seja, para ser aplicado internamente, precisa passar pela aprovação no procedimento de incorporação dos tratados internacionais. Em segundo lugar, o direito derivado, dele originado, ganha particularidade por não precisar novamente submeter-se ao procedimento de incorporação, tendo efeito direto nos tribunais nacionais. Isto garante operacionalidade e dinamicidade à organização dentro dos assuntos para os quais os órgãos comunitários são competentes. Estas competências foram transferidas pelos Estados e referem-se a assuntos específicos, os quais envolvem em sua maioria questões comerciais e econômicas. Logo, os Estados não perdem sua soberania ou são enfraquecidos, ao contrário, transferem prerrogativas e poderes para efetivar seu interesse nacional ou prioridades de suas elites, tornando por meio das normas as relações comerciais mais dinâmicas e estáveis[67]. Além do efeito direto, o direito secundário possui uma autoproclamada primazia sobre a legislação interna, feita pela jurisprudência do Tribunal de Justiça Europeu. Ainda que louvável na teoria, na prática dependerá de sua confirmação nos tribunais internos[68], os quais somente renunciaram a este controle, se o direito comunitário efetivar de forma satisfatória (conceito bastante subjetivo e de fácil manipulação) os direitos fundamentais (SARMENTO, 2006).
Portanto, vistas as três razões acima, percebe-se que o conceito de supranacionalidade exprime nada mais que duas particularidades do direito comunitário, as quais não são suficientes para colocá-lo acima da vontade soberana do Estado. O que há é um direito internacional regional[69], o qual respeita os ditames da soberania, ainda que se diferencie de outras manifestações jurídicas regionais. A noção de que o direito comunitário supera a soberania do Estado é datada e conveniente para suas elites controladoras e antidemocráticas[70], cujo intuito é a imposição da ideologia neoliberal que foi institucionalizada na União Europeia após o Tratado de Maastricht.
Informações Sobre o Autor
Luiz Felipe Brandão Osorio
Professor de Direito Internacional dos Cursos de Graduação em Defesa e Gestão Estratégica Internacional e em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social. Mestre e Doutorando em Economia Política Internacional