Resumo: O presente artigo tem como tema a prescrição da pretensão punitiva estatal na hipótese de superveniência de nova deserção após reincorporação ao serviço militar, a partir de um cotejo entre as jurisprudências divergentes do Superior Tribunal Militar e do Supremo Tribunal Federal.
Abstract: This article focuses on the prescription of the claim punitive state in the event of occurrence of new defection reinstatement after military service, from a comparison between the divergent jurisprudence of the Superior Military Court and the Supreme Court.
Palavras-chave: prescrição, deserção, Superior Tribunal Militar, Supremo Tribunal Federal.
Keywords: prescription, desertion, Superior Military Tribunal, Supreme Court.
Sumário: Introdução. 1. Do conjunto normativo objeto da controvérsia. 2. Da divergência entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal Militar. Conclusão
Introdução
Na seara do direito processual penal militar, uma questão que vem recebendo tratamento diferenciado por parte do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal Militar é a prescrição da pretensão punitiva estatal na hipótese de superveniência de nova deserção após reincorporação ao serviço militar.
A questão se situa no seguinte contexto fático: o acusado, em processo penal pela prática do crime militar de deserção (artigo 187 do CPM), após ser capturado e recolhido à prisão, comete nova deserção. Pergunta-se: o cometimento de um segundo crime de deserção interfere na contagem do prazo prescricional do primeiro delito?
No presente artigo, buscaremos demonstrar que a contagem do prazo prescricional do primeiro delito de deserção não sofre interferência pelo cometimento de uma segunda deserção, tese que vem sendo acolhida pelo Supremo Tribunal Federal, em divergência ao entendimento consolidado pelo Superior Tribunal Militar.
1. Do conjunto normativo objeto da controvérsia
A controvérsia em exame envolve, em suma, a interpretação dos artigos 125 e 132 do Código Penal Militar (CPM), que tratam, respectivamente, de regra geral de prescrição da pretensão punitiva estatal e de regra aplicável apenas ao crime de deserção.
Antes de passarmos a uma análise específica dos artigos 125 e 132 do CPM, convém recordar que a deserção propriamente dita é tipificada pelo artigo 187 do CPM nos seguintes termos:
“Art. 187. Ausentar-se o militar, sem licença, da unidade em que serve, ou do lugar em que deve permanecer, por mais de oito dias:
Pena – detenção, de seis meses a dois anos; se oficial, a pena é agravada”.
O Capítulo III do CPM disciplina, ainda, outros delitos relacionados com a deserção propriamente dita, além de prever regras relativas ao aumento ou diminuição da pena.
A deserção é crime militar próprio, nos termos do artigo 9º, I, do CPM, ou seja, somente pode ser praticado por quem detenha a condição de militar, não tendo previsão na legislação penal comum.
Por se tratar de crime militar próprio, aliás, o Superior Tribunal Militar entende ser condição de procedibilidade do processo penal pelo crime de deserção a qualidade de militar do acusado. Assim, o curso do processo fica suspenso enquanto não capturado o desertor ou enquanto este não se apresentar.
Pois bem. Feitas essas breves considerações acerca do delito de deserção, passemos ao exame das normas inscritas nos artigos 125 e 132 do CPM.
O artigo 125 do CPM disciplina a regra geral de prescrição aplicável aos crimes militares, nos seguintes termos:
“Art. 125. A prescrição da ação penal, salvo o disposto no § 1º dêste artigo, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se:
I – em trinta anos, se a pena é de morte;
II – em vinte anos, se o máximo da pena é superior a doze;
III – em dezesseis anos, se o máximo da pena é superior a oito e não excede a doze;
IV – em doze anos, se o máximo da pena é superior a quatro e não excede a oito;
V – em oito anos, se o máximo da pena é superior a dois e não excede a quatro;
VI – em quatro anos, se o máximo da pena é igual a um ano ou, sendo superior, não excede a dois;
VII – em dois anos, se o máximo da pena é inferior a um ano.
Superveniência de sentença condenatória de que sòmente o réu recorre
§ 1º Sobrevindo sentença condenatória, de que sòmente o réu tenha recorrido, a prescrição passa a regular-se pela pena imposta, e deve ser logo declarada, sem prejuízo do andamento do recurso se, entre a última causa interruptiva do curso da prescrição (§ 5°) e a sentença, já decorreu tempo suficiente”.
Já o artigo 132 do CPM contém regra de prescrição aplicável especificamente ao crime de deserção, com a seguinte redação:
“Art. 132. No crime de deserção, embora decorrido o prazo da prescrição, esta só extingue a punibilidade quando o desertor atinge a idade de quarenta e cinco anos, e, se oficial, a de sessenta”.
Na hipótese em que o desertor é capturado ou se apresenta, provocando o curso processual, não tem havido controvérsia jurisprudencial: tanto o STM como o STF entendem que se aplica a regra prescricional do artigo 125 do CPM. Igualmente pacífico é o entendimento de que não tendo o desertor, aqui chamado trânsfuga, jamais sido capturado ou se apresentado, aplica-se a regra do art. 132 do CPM.
A esse respeito, a doutrina do penalista Célio Lobão (2011, p. 330):
“Segundo reiteradas decisões dos Tribunais, dois são os critérios para determinar a prescrição no crime permanente de deserção: desertor se apresenta ou é capturado, prazo prescricional contado nos termos do art. 125, VI, e § 1º, do COM; militar que permanece no estado de deserção, sem retornar à unidade militar voluntária ou coercitivamente (pela prisão), crime prescrito no dia em que o militar completar 45 ou 60 anos, a praça ou o oficial, respectivamente (art. 132 do CPM)”
No mesmo sentido, lecionam Coimbra Neves e Streinfinger (2012, p. 687), ao argumentar que:
“Dessa maneira, entendemos que o critério etário se aplica tão somente ao trânsfuga, não aproveitando àquele que, arrependido ou capturado, figure em ação penal pelo crime de deserção, para quem valerá o critério temporal. Para este desertor, o termo inicial da prescrição da pretensão punitiva é a data da captura ou da apresentação, ou seja, o momento em que cessou a dilação da consumação do crime de deserção, majoritariamente reconhecido como um crime permanente”.
A controvérsia que tem se apresentado diz respeito à hipótese em que acusado, em processo penal pela prática do crime militar de deserção, após ser capturado e recolhido à prisão, comete nova deserção. Pergunta-se: o cometimento de um segundo crime de deserção interfere na contagem do prazo prescricional do primeiro delito?
2. Da divergência entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal Militar
Acerca do tema, o Superior Tribunal Militar firmou sua jurisprudência no sentido de que o processo penal referente à primeira deserção permanece suspenso na hipótese de nova deserção do acusado, sofrendo a incidência da regra prescricional do artigo 132 do CPM, e não da regra geral prevista no artigo 125 do mesmo diploma legislativo.
Em outras palavras, na interpretação do Superior Tribunal Militar, o cometimento de um segundo crime de deserção interfere na contagem do prazo prescricional do primeiro delito.
A título de ilustração desse entendimento, podem ser citados os seguintes julgados do STM:
“CORREIÇÃO PARCIAL. JUIZ-AUDITOR CORREGEDOR. DESERÇÃO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PELA OCORRÊNCIA DA PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA EM FACE DO ARTIGO 125 DO CPM. RÉU TRÂNSFUGA EM NOVA DESERÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE CONDIÇÃO DE PROSSEGUIBILIDADE. APLICAÇÃO DO ARTIGO 132 DO CPM. PLEITO DEFERIDO. Correição Parcial requerida pelo Juiz-Auditor Corregedor da JMU contra sentença do CPJ que decretou a extinção da punibilidade de Desertor em situação de trânsfuga, pela ocorrência da prescrição da pretensão punitiva com fulcro na regra geral do artigo 125 do CPM. A teor da jurisprudência desta Corte, mantem-se suspenso o processo diante da perda da condição de militar do trânsfuga em nova deserção, já que também impede o prosseguimento da ação penal cujo objeto é a primeira deserção e, como consequência, impede também a aplicação da regra geral de prescrição prevista no art. 125 do CPM, ensejando a aplicação, no presente caso, da regra especial ínsita no art. 132 do mesmo diploma legal. Padece de nulidade a sentença por ter sido prolatada sem condição de procedibilidade, uma vez que o acusado, à época, encontrava-se na condição de trânsfuga, excluído do serviço ativo. Correição Parcial Deferida. Maioria.” (Ministro Relator Olympio Pereira da Silva Junior Num: 0000004-94.2003.7.01.0201 UF: DF Decisão: 13/09/2012 Proc: CP – CORREIÇÃO PARCIAL Cód. 105 Publicação Data da Publicação: 30/11/2012 Vol: Veículo: DJE).
“RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. RECORRENTE MPM. DESERÇÃO. TRÂNSFUGA. DECLARAÇÃO EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PELA PRESCRIÇÃO DA PENA EM ABSTRATO. REGRA DO ART. 132, DO CPM. INOCORRÊNCIA. 1. Nos casos em que depois da captura ou apresentação, o militar voltar a desertar, a contagem do prazo prescricional da primeira deserção, continua inalterada, nos termos do art. 125 do CPM. 2. RECURSO DESPROVIDO. DECISÃO UNÂNIME”. (Ministro Relator Alvaro Luiz Pinto Acórdão Num: 0000010-73.2009.7.01.0401 UF: RJ Decisão: 07/05/2013, Proc: RSE – RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Cód. 310 Publicação Data da Publicação: 14/05/2013 Vol: Veículo: DJE)
O Supremo Tribunal Federal, contudo, por suas duas Turmas julgadoras, confere solução distinta à questão.
Segundo a Suprema Corte tem decidido em reiterados julgados, na hipótese de nova deserção, a regra prescricional aplicável ao primeiro delito é a geral, prevista no artigo 125 do CPM. Assim, uma vez ocorrida a captura ou a apresentação do desertor, independentemente de nova deserção, a prescrição da pretensão punitiva estatal é regulada pelo artigo 125 do CPM. A regra prevista no artigo 132 do CPM só deverá ser aplicada, portanto, ao desertor que não foi capturado ou que não se apresentou.
Com efeito, não há previsão legal para a interrupção/suspensão da contagem da prescrição na hipótese de o desertor se apresentar e ser capturado e, após, desertar novamente. A regra do artigo 132 do CPM não pode ser invocada como suporte para essa interrupção/suspensão, pois se destina a regular situação fática diversa, na qual, vale repetir, o desertor nunca foi capturado ou se apresentou.
Podem ser citados, como ilustração desse entendimento, os seguintes julgados, entre inúmeros outros:
“Habeas corpus. Processual Penal Militar. Correição parcial (CPPM, art. 498). Descabimento contra decisão que declara extinta a punibilidade do agente e contra a qual não há recurso voluntário das partes, fazendo, assim, coisa julgada. A coisa julgada, seja formal ou material, conforme o fundamento da decisão, impede que a inércia da parte, no caso o MPM, seja suprida pelo órgão judiciário legitimado para proceder à correição parcial. Precedentes. Prescrição. Reincorporação ao serviço militar. Superveniência de nova deserção. Prescrição do primeiro delito. Incidência da regra do art. 125 do CPM. Inaplicabilidade da regra do art. 132 do mesmo codex. Ordem concedida. 1. Não cabe a interposição pelo Juiz-Auditor Corregedor da Justiça Militar da União de correição parcial contra a decisão que declara extinta a punibilidade de desertor em face da consumação da prescrição da pretensão punitiva, a qual não se confunde com o simples deferimento do arquivamento de inquérito requerido pelo Ministério Público. 2. A coisa julgada, seja formal ou material conforme o fundamento da decisão, impede que a inércia da parte, no caso, o MPM, seja suprida pelo órgão judiciário legitimado para proceder à correição parcial. 3. Há, no CPM, duas hipóteses de prescrição em caso de deserção. A primeira se refere ao militar que deserta e é, posteriormente, reincorporado, em virtude de se apresentar voluntariamente ou de ser preso. A esse é aplicável uma norma geral relativa à prescrição prevista no CPM, art. 125. A segunda hipótese de prescrição é dirigida ao trânsfuga, ou seja, àquele que permanece no estado de deserção. A ele é aplicável a norma especial do CPM contida no art. 132. 4. A norma geral do art. 125 do CPM é aplicável ao militar desertor que se apresenta ou é capturado, contando-se daí o prazo prescricional. Precedentes. 5. Ordem concedida.” (HC 116364/DF, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Julgamento: 28/5/2013)
“Habeas corpus. 2. Militar. Deserção. Reincorporação. Cometimento de novas deserções. 3. Prescrição quanto ao primeiro delito. Incidência do art. 125, VI, do CPM. A regra do art. 132 do CPM somente se aplica àquele que não foi capturado ou que não se apresentou. 4. Extinção da punibilidade. Ocorrência. 5. Ordem concedida.” (HC 112007/RJ, Rel. Min. GILMAR MENDES, Julgamento: 11/9/2012).
“HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL MILITAR. CRIME DE DESERÇÃO. REINCORPORAÇÃO AO SERVIÇO MILITAR. SUPERVENIÊNCIA DE NOVA DESERÇÃO. PRESCRIÇÃO DO PRIMEIRO DELITO. INAPLICABILIDADE DA REGRA DO ART. 132 DO CÓDIGO PENAL MILITAR. ORDEM CONCEDIDA.
1. É firme a orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal no sentido de que a prática de novo crime de deserção não interfere no cômputo do delito militar antecedente. À falta de previsão legal, a superveniência de um segundo delito de deserção não é de ser tratada como causa de suspensão ou mesmo de interrupção do lapso prescricional.
2. Ordem concedida, para restabelecer a decisão da 2ª Auditoria da 1ª Circunscrição Judiciária Militar, que declarou extinta a punibilidade do paciente, pela ocorrência da prescrição da pretensão punitiva, nos exatos termos do inciso IV do art. 123, c/c o inciso VI do art. 125, ambos do Código Penal Militar.” (HC 102.008/RJ – Rel.: Min. Ayres Britto – Julgamento: 13/12/2011).
“HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL MILITAR. CRIMES DE DESERÇÃO. REINCORPORAÇÃO AO SERVIÇO MILITAR ATIVO. CAUSAS SUSPENSIVAS E INTERRUPTIVAS DA PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. TAXATIVIDADE DO ART. 125 DO CÓDIGO PENAL MILITAR. PRESCRIÇÃO CONSUMADA. ORDEM CONCEDIDA.
A prática de um segundo crime de deserção não suspende nem interrompe o prazo prescricional atinente à ação penal movida em razão de crime de deserção antecedente(dentre outros, HC 106.545, rel. min. Cármen Lúcia, DJe nº 70, de 13.04.2011). Declaração de extinção da punibilidade ante o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva. Conceder a ordem.” (HC 100.802/RJ – Rel.: Min. Joaquim Barbosa – Julgamento: 24/05/2011).
Na doutrina, citamos o posicionamento externado por Célio Lobão, fazendo referência à jurisprudência do STF, nos seguintes termos (2011, p. 331):
“Portanto, se depois da captura ou apresentação o militar volta a desertar, a contagem do prazo prescricional da primeira deserção continua inalterada, isto é, nos termos do art. 125 do COM. Na segunda deserção, se não houver captura ou apresentação, incide o art. 132 do COM, ou seja, o crime prescreve aos 45 ou 60 anos, conforme se trate de praça ou de oficial. Cessando a segunda deserção, pela apresentação ou captura do desertor, a prescrição passa a regular-se, igualmente, pelo art. 125, citado”.
Como a jurisprudência sobre o tema está suficientemente consolidada no Supremo Tribunal Federal, a Corte tem proferido decisões monocráticas concedendo a ordem em habeas corpus para declarar extinta a punibilidade do paciente, pedido que fora indeferido pelo Superior Tribunal Militar.
A Corte Castrense, aliás, mesmo diante do firme posicionamento do STF, tem mantido seu entendimento e indeferido os pleitos de declaração da extinção da punibilidade. Postura essa que está na contramão do princípio da economia processual, ao protelar a solução do processo e sobrecarregar o STF, que certamente reformará a decisão.
A propósito, a prescrição, por ser matéria de ordem pública, deve ser reconhecida, até mesmo de ofício, a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, conforme previsão expressa do próprio Código Penal Militar, em seu artigo 133, segundo o qual “a prescrição, embora não alegada, deve ser declarada de ofício”.
Além de ir na contramão do princípio da economia processual, o entendimento do STM gera uma ameaça concreta de constrangimento ilegal à liberdade do paciente, o qual pode ser preso a qualquer momento, em decorrência da ação penal militar existente contra ele, não obstante já estar caracterizada a prescrição da pretensão punitiva estatal.
Conclusão
No contexto do que foi exposto, entendemos que o cometimento de um segundo crime de deserção não interfere na contagem do prazo prescricional do primeiro delito, ou seja, na esteira do que tem sido reiteradamente decidido pelo Supremo Tribunal Federal, em contraposição ao Superior Tribunal Militar, uma vez ocorrida a captura ou a apresentação do desertor, independentemente de nova deserção, a prescrição da pretensão punitiva estatal é regulada pelo artigo 125 do CPM.
Informações Sobre o Autor
Mariana Lucena Nascimento
Defensora Pública Federal