Resumo: Teses e antíteses analisam o modelo de controle às drogas que adota a criminalização de condutas. Levando em conta aspectos históricos, culturais, políticos e de saúde pública, é inevitável chegarmos a uma síntese diferente da ineficiente e autofágica tutela do Direito Penal.[1]
Palavras-chave: drogas. Guerra às drogas. Fracasso da política de repressão.verdades inglórias. Direito penal.
Abstract: Theses and antitheses analyze the control model to drugs that adopts the criminalization of conduct. Taking into account the historical, cultural, political and public health, it is inevitable we get a different synthesis of inefficient and autophagic tutelage of Criminal Law.
Keywords: Drugs. War on Drugs. Failure of political repression. Truths inglorious. Criminal Law.
O “fenômeno drogas” é observado em todos os países do mundo e, inquestionavelmente, multifacetário. Os efeitos diretos e indiretos que emergem deste “fenômeno” dependem mais da espécie de controle escolhido pelos governos do que da farmacologia das substâncias. A história das drogas nos mostra que diversos foram os métodos de abordagem, desde o fomento à comercialização de substâncias que hoje são ilícitas (ópio, cocaína, morfina etc.), como a proibição de outras que atualmente são lícitas (álcool e maconha[2] por exemplo). No decurso da existência humana foram vários os discursos que alteraram as políticas sobre drogas, dentre os principais destacam-se a abordagem religiosa, mercantil, sanitarista, racista e a intervencionista. Nos dias atuais ainda prepondera, lamentavelmente, na maior parte do mundo, a política Norte Americana de Guerra às Drogas que, basicamente, criminaliza e demoniza as condutas do usuário e vendedor de substâncias que, não se sabe o porquê, são ilícitas. Opiniões distintas, dos mais variados profissionais e de muitas ciências, principalmente sob a ótica do Direito Penal-Constitucional, convergem no sentido do fracasso da política de repressão, neste sentido, recentemente, Claus Roxin, na Escola da Magistratura do Rio de Janeiro, defendeu, sob a ótima da Teoria do Bem Jurídico, que tipos penais incriminadores como o de consumir drogas Podem chegar a ser inconstitucionais enquanto intervenção inadequada, excessiva e desproporcionada à liberdade do ser humano.[3] Ao realizar uma análise mais aprofundada nos argumentos empregados para justificar a utilização do Direito Penal como ferramenta legítima e eficaz no “combate às drogas”, bem como examinar a real aplicação das leis penais, podemos encontrar muitos equívocos e, sobretudo, muitas fábulas, extraordinárias lendas que ocultam verdades inglórias, como por exemplo: a hipócrita e autofágica tutela à saúde pública; incongruência do objeto material da lei de drogas[4]; seletividade do sujeito ativo do crime de tráfico; vitimização recíproca entre policias, traficantes e população; receita do Estado com o branqueamento do capital. O efeito colateral deste tipo de política, pautada em termos militares como “combate”,“guerra”,“força-tarefa” e “antidrogas”, não poderia ser diferente desta tragédia social que estamos experimentando ao longo de décadas. A ininteligência do proibicionismo por meio do Direito Penal vem sendo substituída em outros países por políticas alternativas como a redução de danos, despenalização e descriminalização das condutas de usar e vender, sem perder de vista a política de prevenção e investimento na educação, esta sim, legítima e eficaz.
Parece lugar-comum, mas não é, começar a falar do tema “drogas” com o discurso de que as civilizações sempre consumiram essas substâncias. Na verdade é essencial fazer esta abordagem, aliás, vale apena esboçar uma primeira crítica, no que tange aos “contra-argumentos” habitualmente utilizados por quem se opõe ao pensamento de que “sempre usamos e sempre usaremos drogas”. Muitos afirmam que o fato da humanidade sempre ter feito uso de substâncias psicoativas não seria o bastante para cogitarmos a descriminalização das drogas, pelo contrário, que este discurso seria “carente” demais e justificam fazendo uma comparação com outros crimes, no sentido de que a mesma humanidade sempre roubou, matou, estuprou, e, nem por isso, pensa-se em descriminalizar essas condutas. Concessa maxima venia, é esta antítese que carece de fundamento, pois, ao contrário das drogas, a sociedade nunca fomentou a morte, o roubo e o estupro, no máximo, em ocasiões extremas (guerra, beligerância, insurgência) as duas primeiras condutas foram toleradas, apenas.
Outra retórica que se ouve por aí é que já temos problemas demais com o álcool e o tabaco, razão pela qual pensar em mais drogas tornando-se lícitas seria um contrassenso, que a coletividade merece ser protegida pelo Direito Penal. Este argumento parece ser idôneo e necessário, por isso mesmo é o mais nocivo e merece uma abordagem mais ampla. Há tempos aplica-se este discurso, “em prol da sociedade”, restringindo direitos e liberdades “em prol da tão esperada segurança”, típico de políticas reducionistas que prometem resolver vários problemas com uma única atitude/ferramenta. Na inquisição os hereges e pagãos eram executados sob o argumento da “vontade de Deus” porque contrariavam qualquer dogma imposto pela igreja católica, cita-se como exemplo Pelágio da Bretanha[5] que defendia a capacidade que o homem possui de decidir o seu futuro por livre-arbítrio, sem necessariamente depender da graça de Deus, baseando-se no fato de pessoas resistirem por sua própria vontade a tudo que se refere a Deus, ao Criador e à necessidade de pertencer a Ele. Por esses pensamentos, Pelágio foi excomungado e condenado como herege. A inquisição estava para Igreja Católica assim como o Direito Penal está para os Governos atuais, ferramenta aparentemente útil e eficaz que, na verdade, serve para oprimir e penitenciar os que descumprem as políticas escusas determinadas por quem governa. Cesare Beccaria, já em 1764, nos ensinava sobre as “falsas ideias de utilidade”, in verbis: “Falsa ideia de utilidade é a que sacrifica mil vantagens reais por um inconveniente imaginário ou de pequena importância; a que tiraria dos homens o fogo porque incendeia, e a água porque afoga; que só destruindo repara os males. Denominam-se leis temerosas dos crimes e não leis preventivas; nascem da impressão tumultuária de alguns fatos particulares e não de meditação ponderada dos inconvenientes e vantagens de um decreto universal[6].” O sacrifício de uma liberdade que, se exercida, pode trazer enfermidades para sociedade tem que ser ponderado com os males que emergem deste sacrifício. Basta compararmos o raciocínio supracitado, substituindo drogas por outro tema análogo e também delicado, que veremos o quão frustrado se torna aquele tipo de contra-argumento. Exemplificando: Se já temos problemas demais com o casamento entre homens e mulheres (crimes contra a vida, contra a incolumidade física, moral, desdobramentos previdenciários, sucessórios, Direito de família, e por aí vai) seria um contrassenso reconhecer a licitude do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Sendo assim, para evitar mais inconvenientes, restringe-se a liberdade em prol da segurança. Neste exemplo falamos apenas sob a ótica da restrição civil e já podemos perceber o absurdo que se quer defender com as “falsas ideias de utilidade”, quiçá com o Direito Penal.
Superados estes primeiros obstáculos, vale consignar uma breve iniciação histórica; como afirma BUCHER (1992)[7], há inúmeros registros evidenciando o uso de drogas no cotidiano da história da humanidade. Segue afirmando que as drogas, na Antiguidade, já eram utilizadas em cerimônias e rituais para se obter prazer, diversão e experiências místicas (transcendência). Os indígenas utilizavam as bebidas fermentadas – álcool – em rituais sagrados e/ou em festivais sociais. Os egípcios usavam o vinho e a cerveja para tratamento de uma série de doenças, como meio para amenizar a dor e como abortivo. O ópio era utilizado pelos gregos e árabes para fins medicinais, para alívio da dor e como tranquilizante. O cogumelo era considerado sagrado por certas tribos no México, que o usavam em rituais religiosos, induzindo alucinações. Os gregos e romanos usavam o álcool em festividades sociais e religiosas. Ainda hoje, o vinho é utilizado em cerimônias católicas e protestantes, bem como no judaísmo, no candomblé e em outras práticas espirituais. Embora as sociedades apresentem diferenças culturais em relação à utilização e às finalidades do álcool e outras drogas, essas substâncias apresentam algumas funções presentes em todos os lugares: elas oferecem a possibilidade de alterar as percepções, o humor e as sensações.
As vicissitudes históricas alteraram o curso do controle sobre as drogas de muitas maneiras e em muitas épocas diferentes. Como bem resumiu Antônio Fernando de Lima Moreira da Silva[8], citando Orlando Zacone[9], “paulatinamente, da expansão Europeia à revolução industrial, as substâncias psicoativas deixaram de ser ministradas segundo preceitos culturais, ritualísticos e litúrgicos, para se converterem em mercadorias, bens de consumo. O marco definitivo desse processo foram as Guerras do Ópio (1839 e 1865), pelas quais os ingleses, que declararam guerra à China em favor do ´livre comércio`[10], garantiram o monopólio internacional, consolidaram o domínio no Extremo Oriente e implementaram a prática comercial de substâncias psicoativas em larga escala.” Além do ópio, a cocaína foi utilizada comumente em batalhas e na medicina. Ou seja, o tráfico de drogas que hoje são ilícitas, além de ter sido atividade eminentemente comercial de alguns países, foi defendido por guerras e disponibilizado em guerras.
Do marco comercial para o marco intervencionista e racista, ocultado por fundamentos sanitários, humanísticos e até religiosos. Ainda nas palavras de Antônio Fernando de Lima Moreira da Silva, “os Estados Unidos foram o principal expoente na cruzada moral contra o consumo de drogas. Passaram a tentar, em nível internacional, controlar o comércio de ópio para fins não medicinais. Haveria, por parte dos americanos, dois motivos, que se sobreporiam aos aspectos sanitários: adaptar os imigrantes do século XIX ao estereótipo moral da elite anglo-saxônica protestante, penalizando os desviantes; e conquistar espaço de manobra e poder econômico nos mercados do oriente, então dominado pelos ingleses.” Fato é que essa pressão Americana ganhou controles Internacionais, passando pela Conferência Internacional do Ópio realizada em Shangai (1909) com representantes de países com colônias no Oriente e na Pérsia; em 1911 realizou-se a Conferência Internacional do Ópio, em Haia. Dessa conferência resultou a "Convenção do Ópio", em 1912, pela qual os países signatários criaram o compromisso de tomar medidas de controle da comercialização da morfina, heroína e cocaína nos seus próprios sistemas legais. No mesmo ano, o Brasil subscreveu o protocolo suplementar de assinaturas da Conferência Internacional do Ópio, com as pressões internacionais que até hoje perduram.
Como afirmou Nilo Batista[11], neste momento a política criminal brasileira começou a adquirir uma configuração definida como "modelo sanitário", caracterizada pela aplicação das sabedorias e técnicas higienistas, com as autoridades policiais, jurídicas e sanitárias. O viciado era tratado como doente, com técnicas similares às do contagio e infecção da febre amarela e varíola e não era criminalizado, mas objeto de notificações compulsórias para internação com decisão judicial informada com parecer médico – o que ressurge hoje com as propostas “modernas” de internação compulsória.
Mesmo antes de ser signatário daquele protocolo, o Brasil já se “destacava” no cenário internacional. Como explicam os professores Andre Barros e Marta Peres[12], ainda em 1830, era editada a primeira lei contra a maconha do mundo: a Câmara Municipal do Rio de Janeiro, através do código de posturas penalizou o “pito de pango”[13], no § 7º que regulamentava a venda de gêneros e remédios pelos boticários, à época, aplicando pena de prisão de 03 (três) dias a “negros e outras pessoas”. Ainda parafraseando os professores, as raízes da criminalização da maconha no Brasil, quando não era nem objeto nas Convenções Internacionais, estão ligadas à diáspora africana e à violência contra um hábito dos negros. De fato, os cerca de 15 mil portugueses que chegaram ao Brasil com D. João VI, fugindo de Napoleão, assustaram-se com a ideia de viver numa cidade cuja maioria da população era de escravos. Em 1809, foi criada a Guarda Real de Polícia, que viria a substituir a atuação dos capitães-do-mato no que diz respeito à “polícia de costumes”: repressão de festas com cachaça, música afro-brasileira e, evidentemente, maconha.
Mais à frente, com o fim da primeira guerra mundial e a posterior formação da Liga das Nações, ocorreram outras convenções, sendo a Convenção de Genebra de 1925 a mais importante. Todas subscritas pelo Brasil e promulgadas internamente [14]. Configurava-se o que Salo de Carvalho [15] denominou de transnacionalização do controle. Em 1961, surge a Convenção Única Sobre Entorpecentes de Nova York – ratificada por cerca de cem países, liderados pelos Estados Unidos – unificando e fortalecendo os anteriores tratados sobre drogas.
No Brasil, com o golpe militar de 1964, há o ingresso definitivo de nosso país no cenário internacional de combate às drogas. Sobrando o modelo sanitário para quem se encaixasse no estereótipo da dependência, isto é, os jovens de classe média e alta [16]. Significa que o modelo sanitarista deixa de ser primordial para ser implementado o modelo intervencionista. “É necessária uma breve análise do contexto histórico que favoreceu a mudança do modelo sanitário para o modelo bélico. Estava-se na época da ´guerra fria´, com ´uma aliança de setores militares e industriais para a qual a iminência da guerra era condição de desenvolvimento´[17]. .Havia gastos bilionários com armamentos por parte dos dois blocos antagônicos (Estados Unidos e União Soviética), sendo fundamental para ambos a militarização das relações internacionais e também em nível interno. Com o suporte ideológico da doutrina de segurança nacional, criou-se a figura do inimigo interno – que transbordou os limites da guerra fria, perdurando até hoje -, antes os criminosos políticos, depois os comuns. Por outro lado, a década de 60 era a década dos movimentos de contracultura, como os ´hippies´; dos movimentos de protesto político, como as guerrilhas na América Latina. Especialmente, era o momento do estouro da droga, aumentando o consumo da maconha também entre jovens de classe média e alta, e estourava também a indústria farmacêutica, que criou drogas sintéticas, como o LSD. Como o consumo já não era apenas dos guetos, passou a se mostrar um problema moral, uma ´luta entre o bem e o mal´. O mal, representado pelo pequeno distribuidor, vindo dos guetos, que incitaria o consumo, qualificado como delinqüente. O bem, pelo consumidor, ´filho de boa família´, corrompido pelos traficantes, qualificado como doente/dependente, merecendo tratamento por médicos, psicólogos e assistentes sociais.”[18] A política Norte Americana, camuflando os verdadeiros desígnios intervencionistas, não podia aceitar que tantos jovens americanos fossem desprovidos de virtude, passando a questão do consumo de substâncias psicoativas para ordem internacional, sob o argumento de segurança nacional.[19] “Assim, os EUA colocaram em marcha uma prática efetiva de intervenções diplomático-militares [20], transferindo para os países marginais a responsabilidade pelo consumo interno, com a teoria de países-vítimas e países-agressores. Deste lado, os países produtores, como Colômbia, Bolívia e China. Do lado das vítimas, Estados Unidos e os países da Europa Ocidental. Ou seja, ´a criminalização do estrangeiro aplaca a vitimização doméstica´ [21]. Foi dado o passo para transnacionalizar o controle, com a globalização da repressão às drogas. Reunia-se o elemento religioso-moral com o elemento bélico – com cada vez mais verbas para o capitalismo industrial de guerra -, que resulta numa ´guerra santa´ contra as drogas, que tem a vantagem de não ter restrições nem padrões regulativos, com os fins justificando os meios .”[22]
Concluída a Convenção de Viena de 1988, prevendo medidas abrangentes contra o tráfico de droga, incluindo disposições contra a lavagem de capitais e o desvio de precursores químicos. No mesmo ano, seguindo as “determinações” internacionais, foi promulgada a Constituição Federal de 1988. Nela encontramos, no título dos direitos fundamentais, o art. 5º, inciso XLIII, equiparando o tráfico de drogas aos tais crimes hediondos, ao nível da tortura e terrorismo, prevendo a inafiançabilidade e a proibição de graça ou anistia.
Ultrapassando a cansativa abordagem histórica, passamos à exposição das lendas que permeiam o sustento da política criminal proibicionista no Brasil. Sob a ótica do Direito Penal, uma vez declarada “War on Drog” (guerra às drogas) por Nixon na década de 70, nosso país teve sucessões de leis especiais criminalizando o consumo e mercancia. Entre as mais importantes destacam-se a imediatamente anterior Lei 6.368/1976 e a atual 11.343/2006.
Para criminalizar uma conduta, criando um tipo penal, com premissa primária (conduta) e secundária (pena/sanção), não basta a vontade do legislador pura e simples, é preciso fundamentar as razões da tutela – por meio do Direito Penal – de um bem jurídico e que este seja Constitucionalmente previsto, daí falar-se da “Teoria do bem jurídico”. Em termos práticos, toda infração penal (crime/delito e contravenção penal), tutela (protege) um bem jurídico “apontado” pela Constituição. Como por exemplo, furto e roubo protegem o patrimônio; homicídio e aborto protegem a vida; calúnia e difamação protegem a honra. Sendo assim, as leis de drogas, tendo que proteger um bem jurídico Constitucionalmente previsto, “escolheram” a Saúde Pública. Surgem assim as fábulas que encobrem a hipócrita e autofágica tutela à saúde pública, primeira verdade inglória. Evidente que só poderia ser a saúde “pública” porque o Direito Penal não cuida da autolesão – a não ser em caso de fraude para recebimento de alguma vantagem, art. 171, §2º, IV C.P.B -. A hipocrisia deste argumento é “gritante”, o Estado não investe, e parece que nunca irá investir, na saúde pública de forma minimamente suficiente para os cidadãos viverem dignamente, e isso tem uma fundamentação capitalista, a iniciativa privada movimenta bilhões de reais com os planos de saúde. Não é economicamente viável prestar um serviço público de qualidade, o que ocasionaria a falência de empresas do ramo, acarretando um efeito cascata indesejado; só lembrarmos quantos times de futebol, eventos festivos e ações governamentais sobrevivem pelo patrocínio destas empresas. Adiantando uma conclusão, já exposta pelo sempre lúcido professor Juarez Cirino dos Santos[23], o legislador tem, muitas vezes, como finalidade, utilizar a lei penal para o capitalismo funcionar.
Além de ser hipócrita, é também autofágica. Assim como ocorreu nos Estados Unidos, quando da aplicação da “lei seca”, a qualidade dos produtos que são vendidos de forma ilegal é cada vez pior. Logicamente que, como em qualquer atividade lícita ou ilícita, aumentar o lucro é o desejo de todo segmento mercantil. Mais lógico do que isso é que se o Estado não regula as condições na prestação de um serviço ou de um produto, a qualidade fatalmente irá diminuir. Vale dizer que mesmo nas atividades reguladas pelo Estado é corriqueiro ver a péssima condição de produtos e serviços; no Rio de Janeiro podemos citar as lamúrias dos transportes públicos e das constantes autuações[24] em restaurantes por manter e vender produtos inadequados.
Se for sobre a ótica da saúde pública que devemos falar, algumas acepções precisam ser conhecidas. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a definição de droga é: qualquer substância não produzida pelo organismo que tem propriedade de atuar sobre um ou mais sistemas, causando alterações em seu funcionamento. Tecnicamente é mais correto falarmos em substâncias psicoativas / psicotrópicos, ou seja, drogas utilizadas para alterar o funcionamento cerebral, causando alterações no estado mental, no psiquismo. São exemplos de substâncias psicoativas (CID-10 – Classificação Internacional de Doenças): álcool, tabaco, cafeína, opioides (morfina, heronia, codeína e diversas substâncias sintéticas), canabinoides (maconha), sedativos ou hipnóticos (barbitúricos, benzodiazepínicos), cocaína, alucinógenos, e solventes voláteis[25].
Em uma primeira análise já é estranho tomar conhecimento que café, cerveja, cigarro e ansiolíticos (benzodiazepínicos) são psicotrópicos, ou seja, somos um “bando de drogados”. Este é o ponto de partida para segunda verdade inglória, a incongruência do objeto material da lei de drogas. No Direito Penal objeto material é a pessoa ou coisa sobre a qual recai a conduta criminosa, não se confundindo com o supracitado “bem jurídico” (vida, patrimônio, honra etc). Aquele constitui o objeto corpóreo (coisa ou pessoa), incluído na definição do delito, sobre o qual recai a ação punível, por exemplo, a coisa móvel, no furto (o objeto que foi furtado). Há crimes em que o sujeito passivo identifica-se com o objeto material, como, por exemplo, no homicídio. Como é óbvio, os crimes de simples atividade ou formais, pode não haver objeto material (calúnia, difamação e injúria)[26]. A lei 11.343/2006 tem a “droga” como objeto material, ou seja, um gênero que tem inúmeras espécies. Quais dessas espécies são consideradas ilícitas do ponto de vista criminal? O art. 1º, p. único da atual lei de drogas define: Para fins desta Lei, consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União. [destacou-se]
O artigo 66 do mesmo diploma legal completa: Para fins do disposto no parágrafo único do art. 1o desta Lei, até que seja atualizada a terminologia da lista mencionada no preceito, denominam-se drogas substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outras sob controle especial, da Portaria SVS/MS no 344, de 12 de maio de 1998. [destacou-se]
Daí extraímos uma segunda indagação: No Brasil há alguma lei (genérica, abstrata e impessoal, produzida pelo legislador) penal vigente que proíba expressamente, dentre outras, a maconha, cocaía e heroína? A resposta é negativa[27]. A lei 11.343/2006 em nenhum momento cita o nome das substâncias que são proibidas. Quem estabelece quais são estas substâncias, completando a norma penal (norma penal em branco), é a portaria nº 344 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Dessa forma, à margem do princípio da reserva legal, quem institui e aboli crimes é um ato do Poder Executivo, traduzindo, a política ao invés do legislador.
Antes de analisar quais substâncias a ANVISA “tipifica” como drogas (ilícitas), vale adiantar que o álcool não é uma delas, apesar de, parafraseando a lei, ser um psicotrópico e capaz de causar dependência. Ainda sobre o álcool e rememorando o “pretexto” da saúde pública, vale consignar os dados da Organização Mundial da Saúde[28], aduzindo que a cada ano, cerca de dois milhões de pessoas morrem em decorrência das consequências negativas do uso do álcool.
A portaria 344 da ANVISA engloba os psicotrópicos (entorpecentes, tóxicos e outras espécies) na classificação de SUBSTÂNCIA CONTROLADA ou DE CONTROLE ESPECIAL e ainda explica[29]: “As chamadas substâncias controladas ou sujeitas a controle especial são substâncias com ação no sistema nervoso central e capazes de causar dependência física ou psíquica, motivo pelo qual necessitam de um controle mais rígido do que o controle existente para as substâncias comuns. Também se enquadram na classificação de medicamentos controlados, segundo a Portaria SVS / MS nº 344 / 1998, as substâncias anabolizantes, substâncias abortivas ou que causam má-formação fetal, substâncias que podem originar psicotrópicos, insumos utilizados na fabricação de entorpecentes e psicotrópicos, plantas utilizadas na fabricação de entorpecentes, bem como os entorpecentes, além de substâncias químicas de uso das forças armadas e as substâncias de uso proibido no Brasil.”.
Que nós somos “um bando de drogados” (café, álcool, tabaco e outras drogas lícitas) já foi exposto; mas será que também usamos drogas ilícitas? E mais, sem tomar conhecimento disso? Vasculhando a portaria que “criminaliza” condutas, apesar de apresentar apenas o princípio ativo das substâncias controladas, verdadeiros hieróglifos, faz-se a descoberta assustadora que sim, consumimos substâncias ilícitas sem saber, como por exemplo, recentemente a dimethylamylamine (DMAA) foi proibida no Brasil[30], essa substância está presente em vários suplementos alimentares tais como, Jack3d, Oxy Elite Pro, Lipo-6 Black, entre outros. Produtos facilmente adquiridos na rede mundial de computadores[31]. Outro produto popular, especialmente para o público feminino, a sibutramina, foi reclassificada em 2010 pela ANVISA [32]como psicotrópico anorexígeno. Sabe-se que este produto é largamente utilizado pelas mulheres como alternativa para o emagrecimento uma vez que inibe o apetite. Cabe fazer um esclarecimento, algumas substâncias de controle especial podem ser consumidas, desde que o usuário necessite, como é o caso dos próprios anorexígenos e os anabolizantes. Se o usuário consumir a substância controlada sem haver carência e prescrição média comete o mesmo crime do sujeito que faz uso de maconha cocaína, heroína ou outra droga ilícita. Isso está estipulado no próprio artigo 28 da lei 11.343/2006, in verbis: Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: (…). [destacou-se]
No que tange aos ansiolíticos e inibidores de apetite (substâncias controladas): “Estudos mais recentes mostram que os ansiolíticos (benzodiazepínicos) compõem a classe de medicamentos psicotrópicos mais prescritos, com base na análise das receitas médicas retidas em estabelecimentos farmacêuticos. São mulheres as maiores consumidoras dessas substâncias e os médicos sem especialização são os maiores prescritores. Há a prescrição indiscriminada de anfetaminas (inibidores de apetite), com fins estéticos, para pacientes sem evidência de indicação clínica – índice de massa corporal (IMC) maior que 30 kg/m².”[33]
Esta é a incongruência acerca do objeto material, tanto no que se refere a forma lícita que se tratam substâncias com periculosidade social evidente, como no desprezo proposital da conduta de usuários de substâncias ilícitas que não são o “público alvo” da política de repressão.
Semelhante ao que ocorre com os usuários, também há o público alvo entre os traficantes. O artigo 33 da Lei 11.343/2006 que tipifica a conduta de tráfico, igualmente estipula, à semelhança do artigo 28, in verbis: Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. [destacou-se]
A conduta do médico que receita psicotrópicos incluídos no rol de substâncias controladas, como sibutramina ou anfetaminas inibidoras de apetite, para pessoas que não são obesas, com IMC menor que 30 kg/m², prescrevendo droga em desacordo com determinação regulamentar, é típica de algum crime? Da mesma forma, os médicos sem especialização que prescrevem de forma indiscriminada o uso de ansiolíticos (Valium® , Lexotam®, Rivotril®), ainda que gratuitamente, praticam alguma conduta criminosa? Como já foi exposto, o uso dessas substâncias é corriqueiro e cada vez maior, a fármaco-dependência alcança números alarmantes e são, junto com o álcool, as verdadeiras “drogas de entrada”. No Brasil existe uma cifra enorme de médicos e farmacêuticos praticando a conduta típica do tráfico de drogas prevista no artigo 33, mas essa cifra é negra[34].
A seletividade do sujeito ativo do crime de tráfico (terceira verdade inglória) no Brasil é talvez o pior efeito colateral da política de repressão; um pensamento do Juiz Espanhol Penalista Javier Martinez Lázzaro define o que será o futuro: Algum dia, quando a descriminalização das drogas for uma realidade, os historiadores olharão para trás e sentirão o mesmo arrepio que hoje nos produz a inquisição.[35]
Além da seletividade omissiva feita através da cifra negra, existe a seletividade ativa que demoniza e estigmatiza determinadas pessoas, em determinadas localidade, com determinadas etnias. Esta seletividade começa pela polícia militar que, muitas vezes, é o 1º juiz da causa, passa pela polícia judiciária (estadual e federal), continua no poder judiciário e se perpetua na mídia, gerando um ciclo vicioso que é primoroso na manutenção do controle social através do senso comum criminológico. Um sujeito não branco, pobre e sem grandes instruções, abordado por um policial em uma localidade carente com alguns gramas de cocaía é tratado com a presunção de tráfico. Em contra partida, um caucasiano, de boa condição financeira e plenamente instruído, abordado por um policial na zona sul do Rio de Janeiro com alguns quilos de maconha, muito provavelmente será tratado com a presunção de usuário.
Para sair do campo crítico teórico, traz-se à baila uma história real. A biografia de Janderson Pereira da Silva[36] escrita nos autos do processo criminal 0026774-02.2013.8.19.0004. Janderson foi preso nas redondezas do morro do Salgueiro na cidade onde reside (São Gonçalo/RJ) ao acabar de comprar 7,8 gramas de cocaína para seu consumo. No ato de abordagem pela política militar não ofereceu resistência e prontamente afirmou que teria droga na mochila que carregava, ato contínuo os policiais militares o conduziram para delegacia de polícia civil com circunscrição correspondente. Janderson foi autuado pelo delegado de polícia como traficante de drogas. Se a autoridade policial tivesse atentando ao depoimento dos policias bem como à folha de antecedentes criminais, que não tinha anotações, poderia ter feito justiça. Poderia ainda tomar conhecimento de que o acusado possui trabalho e residência fixos; é casado; há comprovantes de internação para tratamento de dependência química; recebera o salário no dia em que adquiriu a droga, havendo comprovante através de extrato bancário do saque de toda quantia horas antes da prisão. Ou seja, todas as evidências de consumo ao invés da mercancia. Consigna-se que essa cautela não é absurda, pelo contrário, a própria lei no artigo 28, §2º exige que, para determinar se a droga destina-se a consumo pessoal, serão observados a natureza e a quantidade da substância apreendida, o local e as condições em que se desenvolveu a ação, as circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta e aos antecedentes do agente. Enquanto o auto da prisão em flagrante era enviado para o promotor de justiça e juiz se manifestarem acerca da legalidade e necessidade da prisão, Janderson já estava no complexo penitenciário de Gericinó (Bangu). Quando enfim chega a vez do promotor de justiça reparar o erro, ele “despacha”, à mão, nos autos (fls.22), in verbis: Pela conversão do flagrante em prisão preventiva (art 313, I, CPP). Janderson estava em atitude suspeita, trazendo droga, em tese, para venda. Deve ficar preso, pois a ordem pública está abalada com a venda da droga. Mais a frente no processo a Juíza concedeu liberdade provisória, analisando justamento a determinação do artigo 28, §2º da lei de drogas. Resultado final, Janderson ficou quase dois longos meses preso e, após a liberdade provisória, ainda se defende da acusação de tráfico.
Não tem como negar que uma pessoa branca, com mínima condição financeira, em um caso similar, não passaria nem algumas horas na delegacia, isso se fosse conduzida até lá. Muito dificilmente a autoridade policial decidiria arbitrariamente no mesmo sentido. E se assim o fizesse, a contratação de um advogado criminal resolveria a questão em pouco tempo. A lei 11.343/2006 surgiu com o contexto de que o usuário não seria mais penalizado criminalmente, o que parecia uma evolução significativa, se não houvessem casos como o do Janderson.
Na prática, a lei melhorou a vida de muitos “mauricinhos” que puderam experimentar livremente a opção pelo uso de drogas ilícitas, mas para a maioria, que vive à margem da sociedade, apenas foram elevados da categoria de usuário para traficante. E mesmo os “mauricinhos”, quando são verdadeiramente traficantes, tem um tratamento diferente. Caso clássico, também narrado em autos processuais (processo nº 95.0032967-0 / 1995 – 13ª Vara Federal do Rio de Janeiro), do sujeito que foi preso em flagrante, juntamente com outras pessoas, em virtude de mandado de busca e apreensão, no imóvel situado à rua Raimundo Correa, Copacabana – RJ, com mais de 05kg de cocaína e outros petrechos para manuseio e empacotamento da substância; após longa investigação da polícia federal que apontava sua ligação com traficantes de outros países, caracterizando não só o tráfico nacional como o internacional, bem como sua associação com outros agentes para prática desses crimes. O sujeito foi processado junto com os demais presos e no decorrer da instrução processual todos alegaram quadro de dependência química. Tendo os advogados particulares, inclusive, juntado aos autos parecer de perito, também particular, que confirmava o alegado. Os experts do juízo, através de laudos médicos (fls.276/289 dos autos), analisando a imputabilidade[37] dos réus, atestaram que à época dos fatos os acusados tinham inteira capacidade de entender o caráter ilícito do fato, mas que apenas o sujeito principal era parcialmente incapaz de determinar-se de outra forma, em razão de sua dependência à cocaína, enquanto os outros tinham completamente abolida a capacidade de autodeterminação pelo grau avançado da mesma dependência. A Juíza, em sede de sentença, acompanhou o entendimento dos peritos judiciais, absolvendo os acusados que não tinham nenhuma capacidade de determinação e quanto ao sujeito principal, apesar de condenado por tráfico, sua pena privativa de liberdade foi substituída para tratamento em Hospital de Custódia. Quanto à prática do crime de “associação para o tráfico”, a Juíza rejeitou, in verbis[38]: Exige-se como corolário natural da expressão associarem-se a ideia da habitualidade da estabilidade da sociedade criminosa. Fica difícil imaginar um punhado de pessoas com graves problemas de dependência a entorpecente, martirizados por dolorosos problemas sociais, conseguirem no delito, a estabilidade que jamais conseguiram em suas vidas. [destacou-se]
A história desse sujeito principal foi narrada em livro e filme; que o nome dele não era Johnny todos sabem, Janderson que não seria, contudo, poucos tomam conhecimento que o grupo dos “martirizados por dolorosos problemas sociais, cuja estabilidade jamais conseguiram em suas vidas” é seleto. Quem alcança o tirocínio sabe perfeitamente que Janderson Pereira da Silva foi só mais um Silva, dentre muitos outros que enchem as penitenciárias Brasileiras.
Fazer leis é diferente de aplicar leis. Principalmente em nosso país que fomenta a vitimização recíproca entre policias, traficantes e população, quarta verdade inglória. A vitimização mútua é utilizada para manter fora da discussão o único responsável pelo efeito colateral da política de repressão, o próprio Estado. Ocorre de uma maneira muito simples, os policiais são treinados para uma guerra, sendo levados a crer que lutam pelo bem e que o mal emana do tráfico, cujo “reduto” é nas favelas, consequentemente, como em qualquer guerra, existem desastres que, sob a ótica policial são um “mal necessário”. Por sua vez o sujeito pobre que por qualquer razão, normalmente alheia à sua vontade, decidiu vender produtos considerados ilícitos, se torna o “demônio” da sociedade, enxergando no policial um executor, que só existe para matá-lo e ganhar a guerra. No meio disso tudo está a população dessas áreas de confronto, que alterna entre vítima de policiais e vítima de traficantes, não sabendo em quem confiar. Todos são algozes de todos. Nesse ínterim ninguém questiona o criador do problema, o Estado. Fica fácil enxergar essa política contando a parábola da mulher adúltera que, cansada do descaso e desprezo de seu marido, procura um amante, que mora do outro lado do rio. Para atravessar este rio ela tinha duas alternativas, pela ponte ou de barco. Como era público e notório a existência de um estuprador assassino que rondava as imediações da ponte quando anoitecia, a mulher comumente ia pela ponte de manhã, voltando no último horário em que o barqueiro fazia a travessia (18:00h). Certa vez, demorando mais do que o de costume com seu amante, a mulher se atrasou 02 minutos para pegar o último barco. E obteve como resposta do barqueiro que não efetuaria a travessia de volta porque seu ofício terminava impreterivelmente às 18:00h. Inconformada, solicitou a seu amante que a acompanhasse no retorno pela ponte, alegando cansaço e falta de necessidade o amante mandou a mulher ir sozinha. E ela assim o fez. Resultado: foi estuprada e morta. A grande pergunta que se faz: De quem é a culpa? Comumente as pessoas variam as respostas. As mulheres costumam alternar entre o marido que não foi atencioso ou o amante que foi preguiçoso. Para os homens a culpa é da mulher que foi adúltera e “teve o que mereceu” ou do barqueiro que foi burocrata. O verdadeiro culpado não é enxergado. O estuprador assassino. Inconscientemente considera-se normal matar. As circunstâncias paralelas ofuscam quem verdadeiramente deu causa a tragédia. Quando se discute acerca do problema das drogas acontece o mesmo ilusionismo, propositalmente criado, alguns argumentam que a culpa é do usuário, sem ele não haveria venda; outros que a culpa é do traficante, sem a venda não existiria usuário; há ainda os que culpam a família pelo desamparo e negligência na instrução dos filhos. Quando o verdadeiro culpado é o Estado que criminalizou esses comportamentos. Inconscientemente considera-se normal as condutas cotidianas convertendo-se em crimes.
Com relação à polícia, em especial a Militar do Rio de Janeiro (PMERJ), vale consignar argumentos que, se não justificam, ao menos explicam sua característica letal. A história da PMERJ é muito parecida com a de Lucius Artorius Castus (Rei Arthur), pelo menos a que é narrada em seu filme[39]. A biografia, ou mito, não se sabe ao certo, contada sobre a Era das Trevas onde Arthur viveu (início do século VI) da conta de que ele foi um cristão que apostava na fé de sua religião, logo, consequentemente, acreditava em Roma e na Igreja que traçava as estratégias sob o crivo da “vontade de Deus”. Todas as conquistas realizadas por batalhas sangrentas e muitas vezes desumanas eram, para ele, justificadas através da prática de um bem maior, “cumprir seu dever com Roma”, estipulado pelos líderes da igreja, os quais ele cria serem “legítimos representantes das leis de Deus”. Arthur foi comandante dos notáveis Cavaleiros Sarmatianos, incorporados ao exército romano, obrigados a lutar por Roma durante décadas em troca da liberdade de seu povo. Arthur criou um grupo de elite, os Cavaleiros da Távola Redonda, dentre eles o famoso Lancelot. Aos poucos foi descobrindo o que os “porta-vozes” de Deus faziam com o povo (escravizavam e condenavam sumariamente hereges e pagãos que contrariavam os dogmas da igreja católica, como ocorrera a Pelágio) e percebeu que, juntamente com seus homens, empreendeu uma guerra para defender uma Roma que não existia. Chegando a conclusão que eles mesmos criaram as maldições, e as bênçãos. Apesar disso, após anos de batalhas, não havia como pedir a seus homens que abdicassem de seus ofícios como guerreiros, principalmente na iminência de uma guerra contra os saxões. O seu instinto e de seus comandados já se tornara imutável e continuou na guerra por uma Roma imaginária.
Séculos se passam e a história se repete, apenas os personagens são diferentes. As “vontades de Deus” e seus “legítimos representantes” foram substituídos pelo Estado e seus governantes, respectivamente. A PMERJ, assim como Arthur e seu exército, acreditou durante décadas que estava “cumprindo seu dever com o Estado”. Mesmo que ocorra uma revelação em massa do que os “porta-vozes” de nossa sociedade realmente fazem com as políticas públicas, principalmente as criminais, nossos soldados já se encontram igualmente imutáveis. Dependentes do inimigo. Como afirmou o Secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro em entrevista[40], ao falar da criação de delegacias de polícia civil em áreas pacificadas, complementando o plano de integração entre polícias civil e militar, afirma que nos mesmos moldes das UPPs, as novas delegacias vão contar com policiais recém- formados, completando, in verbis: Não vou fazer delegacias com a polícia que está aí. As novas unidades contarão com delegados e inspetores recém-formados, sem os vícios da guerra e da corrupção.
A última verdade inglória é referente a falsa argumentação de que perde-se dinheiro combatendo o tráfico, que a guerra às drogas só é lucrativa para os marginais. Lenda facilmente desmascarada ao aduzirmos que o Brasil tem uma empresa bélica[41] (IMBEL), empresa pública que, como qualquer empresa do ramo, necessita de guerra para sobreviver. Além disso, há a questão tributária, mais lucrativa que a questão armamentícia interna. No Direito Tributário vigora a máxima proferia pelo imperador Vespasiano em resposta a seu filho Tito: pecúnia non olet. O dinheiro não tem cheiro, significa dizer que para a ciência dos tributos, não importa da onde o dinheiro surge, de atividades lícitas ou ilícitas, ocorrendo o fato gerador da obrigação tributária o fisco tributa. Aliás, o tributo nem pode ser utilizado para constituir sanção de ato ilícito[42]. A atividade mais importante no tráfico de drogas é o branqueamento do capital ou lavagem de dinheiro, a maior parte do dinheiro que circula no tráfico é colocado, ocultado, e posteriormente integrado (fases da lavagem de dinheiro). No processo de integração, o “laranja”, “testa de ferro”, ou o próprio sujeito ativo da lavagem, mais cedo ou mais tarde vai adquirir um carro e pagar IPVA, uma casa e pagar IPTU, auferir renda e pagar IR, comprar um simples pacote de biscoito e pagar IPI, dentre muitas outras formas de tributação. O Estado tributa todo dinheiro que circula no tráfico de drogas, mesmo que de forma indireta. Se lembrarmos que espécies de tributos, como os impostos, não se vinculam à uma atividade estatal específica, podendo portanto o Estado distribuí-lo da maneira que entender melhor, não é tecnicamente incorreto afirmar que o dinheiro branqueado do tráfico pode estar pagando o salário de muitos indivíduos que são responsáveis por combatê-lo.
Como dito em epígrafe, e parece ter ficado claro, o fenômeno das drogas é multifacetário. Longe de querer dar uma solução mágica, deve-se entender que a prática de infrações penais é a forma não política e mais natural que os excluídos do contrato social encontraram para exprimir seu descontentamento[43]. Ao invés de incluir quem está à margem do sistema, desestimulando tal forma de manifestação, o que vemos é a alimentação das desigualdades, de uma forma muito simples: aumentando o número de infrações penais. O direito penal é um dos maiores instrumentos de exclusão social que temos e, ao mesmo tempo, o que parece ser mais simpático aos olhos da população, graças ao que se denomina populismo penal midiático[44].
Como dizia Cesare Beccaria (1764), a grandeza das penas deve ser relativa ao próprio estado da nação. Devem ser mais fortes e sensíveis as impressões sobre os ânimos endurecidos do povo que apenas saiu do estado de selvagem: requer-se um raio para abater um leão feroz que se agita ao tiro do fuzil. Porém, à medida que se abrandam os ânimos no estado de sociedade, cresce a sensibilidade e, crescendo ela, deve diminuir a força das penas, se se quiser manter constante a relação entre o objetivo e a sensação. As leis são as condições com que os homens independentes e isolados se uniram em sociedade, cansados de viverem num contínuo de guerra e de gozarem uma liberdade tornada inútil por causa da incerteza de sua conservação. A soma de todas essas porções de liberdade sacrificadas ao bem de cada um constitui a soberania de uma nação, e o soberano é o seu legítimo depositário e administrador. Foi, pois, a necessidade que obrigou os homens a cederam parte de sua liberdade; e é certo que cada um não quer colocar no depósito público senão a mínima porção possível que baste para induzir os demais a defendê-lo. O conjunto dessas mínimas porções possíveis forma o direito de punir, tudo mais é abuso e não justiça; é fato e não direito.[45]
Deve-se rememorar as lições básicas do Direito Penal, no sentido que essa ferramenta só deve ser utilizada em ultima ratio, é a última opção, quando todas as outras falharem (Direito Constitucional, Civil, Administrativo etc). Não é o que estamos experimentando, vemos a criminalização do cotidiano aumentar cada dia. O Direito Penal é comparado ao desfibrilador, emprega-se como última alternativa. Nessa acepção, fazendo uma singela analogia, é como se a nossa sociedade atual fosse um hospital, no qual nós cidadãos fossemos os paciente e os funcionários do hospital os agentes estatais; chegando ao serviço de emergência, com uma dor de cabeça ou até mesmo uma fratura grave, os pacientes são imediatamente levados ao desfibrilador, não há uma triagem, exames preliminares ou tratamentos proporcionais. Parece cômico, mas a realidade é trágica igual ao exemplo, o Direito Penal está executando as pessoas.
Mesmo após expor estas verdades inglórias, há uma expectativa de mudança, indícios na política interna parecem alterar os rumos de nossa sociedade. A partir do Seminário Internacional de Políticas Públicas Sobre Drogas (2004), observa-se uma alteração na política sobre o tema, como por exemplo, a retirada do prefixo “anti” pelo termo “sobre”. As Políticas Nacionais (PNAD), Sistema Nacional de Políticas Públicas (SISNAD), Secretaria Nacional de Políticas Públicas (SENAD) e Conselho Nacional de Políticas Públicas (CONAD) deixaram de ser “antidrogas” para serem “sobre drogas”. Na mesma linha de raciocínio, termos com “entorpecentes” e “tóxicos” deixam de ser utilizados de forma separada das drogas lícitas, atitude que aventava com desigualdade a abordagem, tratamento e reconhecimento de pessoas iguais. Hoje vê-se o emprego de termos como “álcool, tabaco e outras drogas”, em sentido oposto ao que foi anteriormente dito, aproximando substâncias “ilícitas” das “lícitas”. Primeiro passo, elementar, para uma caminhada com ênfase na política preventiva e restaurativa em contraponto a fracassada política repressiva e retributiva, baseada no castigo. No plano internacional há países que descriminalizaram as drogas e vem observando a queda no consumo, redução dos efeitos colaterais da guerra, aumento da qualidade das substâncias que antes eram ilícitas, causando menos afetação a saúde pública.
O professor Henrique Soares Carneiro[46] elucida: “Viciados em açúcar, em aguardente, em tabaco, em café, em chá, em chocolate, em ópio, assim as populações mundiais expandiram o comércio exterior, alimentaram os tributos estatais, foram estimuladas nas fábricas e nas grandes plantações. O álcool, o tabaco e as drogas da indústria farmacêutica continuam sendo estimulados licitamente com publicidade e incentivos diversos. Outras substâncias, muitas com danos comparáveis muito inferiores (como derivados de cânhamo), continuam proibidas, mas são os primeiros produtos agrícolas da Califórnia e do Canadá em faturamento. Alguns países, de governos fundamentalistas, proíbem o álcool. Outros, ditatoriais, como a China, fuzilam milhares de pessoas a cada ano por acusações de uso ou comércio de drogas. Como alternativa, devemos lembrar que, como já acontece, de forma registrada, há mais de dois milênios e meio, podem-se gerir as formas de uso das drogas, de forma a fazer prevalecer os valores da tolerância e da temperança, recusando assim a noção coercitiva totalitária da abstinência obrigatória para toda a sociedade. Todas as drogas deveriam ser legalizadas, com regras estritas de controle de sua venda e de seu uso, com abolição da propaganda e, em vez dela, exigência de informação científica precisa sobre composição, efeitos e validade. Algumas se equiparariam mais aos remédios de uso controlado à venda apenas em farmácias, outras, como ocorre hoje com a cerveja, por exemplo, poderiam ter uma distribuição mais ampla. Sobre todas deveria se praticar e se educar para um ideal de busca do autocontrole e da temperança, uma educação para o uso equilibrado com a maior redução possível dos danos eventuais, como ocorre em relação a todas as atividades de risco.” [destacou-se]
O equívoco da guerra às drogas acarretou inúmeras moléstias à sociedade mundial, mas, na ordem interna, o maior dos equívocos, que nos mantém de mãos atadas para realização de mudanças eficientes, foi a inclusão do tráfico de drogas na Constituição da República Federativa do Brasil como atribuição do Direito Penal – logo a Constituição Cidadã – estabelecendo no título que trata justamente de Direitos e Garantias Individuais (art. 5º XLII) que o tráfico de drogas será inafiançável, insuscetível de graça ou anistia (espécies de clemência Estatal), equiparando-o a tortura, terrorismo e aos crimes hediondos. Espera-se viver para ver o dia em que o Poder Constituinte Derivado Reformador enfim representar o poder que emana do povo e emendar a Constituição neste ponto que, sem querer – através do efeito colateral da citada Guerra às Drogas – acabou por restringir, se não extinguiu, muitos de nossos direitos e garantias realmente fundamentais (manifestação do pensamento, liberdade de consciência, intimidade, liberdade de locomoção, isonomia, segurança pública) inclusive o que ela se predispôs a tutelar, pois a qualidade das substâncias ilícitas diminui ao passo que a repressão – por meio do Direito Penal – aumenta, tornando a saúde pública mais alvejada dia após dia. Este é o “fogo amigo Constitucional”.
Informações Sobre o Autor
Felipi Martins
Advogado Criminalista. Delgado da Comissão de Políticas Sobre Drogas e Prevenção Criminal – OAB – Niterói/RJ. Autor do projeto audiovisual “Iniciação ao estudo das drogas