Resumo: O presente artigo científico tem por finalidade fazer uma análise concisa acerca das principais controvérsias acerca da liquidação ordinária no âmbito do mercado segurador, suas principais características e diferenças em relação à liquidação extrajudicial.
Palavras-chave: liquidação.ordinária.regulação.mercado.segurador.
Abstract. This research paper aims to make a concise analysis on the major controversies about the ordinary liquidation under the insurance market, its main characteristics and differences in relation to extrajudicial liquidation.
Keywords: ordinary.liquidation.regulating.insurance.market.
Sumário: Introdução. 1. Considerações iniciais. 2. Deveres e poderes inerentes ao liquidante ordinário. 3. Responsabilidade do liquidante ordinário. 4. Da aplicabilidade das disposições da Lei nº 6404/76 junto às sociedades anônimas reguladas pela SUSEP. 5. Da atuação da SUSEP na liquidação ordinária das seguradoras. Conclusão.
Introdução
O presente artigo visa contextualizar, em termos regulatórios, a liquidação ordinária no âmbito da regulação do mercado segurador, apontando as questões mais relevantes e diferenciando-a da liquidação extrajudicial.
1. Considerações iniciais
A liquidação ordinária de uma Sociedade Anônima é prevista no art. 208 da Lei nº 6404/76 (Lei das Sociedades Anônimas), a seguir transcrita:
“Art. 208. Silenciando o estatuto, compete à assembléia-geral, nos casos do número I do artigo 206, determinar o modo de liquidação e nomear o liquidante e o conselho fiscal que devam funcionar durante o período de liquidação.
§ 1º A companhia que tiver conselho de administração poderá mantê-lo, competindo-lhe nomear o liquidante; o funcionamento do conselho fiscal será permanente ou a pedido de acionistas, conforme dispuser o estatuto.
§ 2º O liquidante poderá ser destituído, a qualquer tempo, pelo órgão que o tiver nomeado.”
Verifica-se, portanto, que, nos casos de liquidação ordinária, o liquidante é nomeado pelos próprios acionistas (assembléia-geral) ou pelo conselho de administração da Sociedade Anônima, se houver, podendo ser destituído a qualquer tempo pelo mesmo órgão que o nomeou.
Dissertando acerca da natureza jurídica do liquidante nomeado pelos acionistas, Modesto Carvalhosa[1] afirma que:
“Atualmente, a doutrina é unânime ao considerar o liquidante como órgão da sociedade e, portanto, titular de direito originário e não delegado. Com efeito, o liquidante é o órgão de representação da companhia dissolvida, com todas as atribuições e responsabilidades de um diretor (art. 144). Nesse sentido, a maioria da doutrina continental considera o liquidante legalmente competente para representá-la (art. 211). (…) o liquidante é o órgão gestor e representativo da sociedade dissolvida, órgão necessário sem o qual não se pode realizar a liquidação, sendo indelegáveis as suas funções.” (Comentários à Lei de Sociedades Anônimas – Modesto Carvalhosa – Vol. 4 – Ed. Saraiva – sublinhei)
Da análise da doutrina e do preceito legal acima transcritos, podemos fixar as seguintes premissas:
– O liquidante ordinário (nomeado pela Sociedade Anônima) possui a natureza jurídica de órgão da sociedade, com amplos poderes de gestão e de representação;
– O liquidante ordinário equipara-se, na seara das atribuições e das responsabilidades, a um diretor de Sociedade Anônima;
– Os poderes do liquidante ordinário não é derivado ou delegado, porquanto o liquidante ordinário é titular de direito originário oriundo do ordenamento jurídico (Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº 6404/76); e
– Somente o órgão da própria Sociedade Anônima que nomeou o liquidante ordinário possui autorização legal para destituí-lo.
2. Deveres e poderes inerentes ao liquidante ordinário
Ao liquidante ordinário nomeado pela sociedade anônima são atribuídos uma série de prerrogativas e poderes necessários à execução de seu principal mister: a apuração do ativo e pagamento do passivo aos credores da S.A. Nesse sentido, os artigos 210 e 211 da lei nº 6404/74 enumera os deveres e os poderes atribuídos ao liquidante ordinário:
“ Art. 210. São deveres do liquidante:
I – arquivar e publicar a ata da assembléia-geral, ou certidão de sentença, que tiver deliberado ou decidido a liquidação;
II – arrecadar os bens, livros e documentos da companhia, onde quer que estejam;
III – fazer levantar de imediato, em prazo não superior ao fixado pela assembléia-geral ou pelo juiz, o balanço patrimonial da companhia;
IV – ultimar os negócios da companhia, realizar o ativo, pagar o passivo, e partilhar o remanescente entre os acionistas;
V – exigir dos acionistas, quando o ativo não bastar para a solução do passivo, a integralização de suas ações;
VI – convocar a assembléia-geral, nos casos previstos em lei ou quando julgar necessário;
VII – confessar a falência da companhia e pedir concordata, nos casos previstos em lei;
VIII – finda a liquidação, submeter à assembléia-geral relatório dos atos e operações da liquidação e suas contas finais;
IX – arquivar e publicar a ata da assembléia-geral que houver encerrado a liquidação.
Art. 211. Compete ao liquidante representar a companhia e praticar todos os atos necessários à liquidação, inclusive alienar bens móveis ou imóveis, transigir, receber e dar quitação.
Parágrafo único. Sem expressa autorização da assembléia-geral o liquidante não poderá gravar bens e contrair empréstimos, salvo quando indispensáveis ao pagamento de obrigações inadiáveis, nem prosseguir, ainda que para facilitar a liquidação, na atividade social.”
3. Responsabilidade do liquidante ordinário
Os amplos poderes de gestão e de representação conferidos ao liquidante ordinário nomeado pela própria Sociedade Anônima vem acompanhados das respectivas responsabilidades, consoante se constata da análise do art. 217 c.c. art. 158, ambos da Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº 6404/76):
“Art. 217. O liquidante terá as mesmas responsabilidades do administrador, e os deveres e responsabilidades dos administradores, fiscais e acionistas subsistirão até a extinção da companhia.”
“Art. 158. O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder:
I – dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo;
II – com violação da lei ou do estatuto.
§ 1º O administrador não é responsável por atos ilícitos de outros administradores, salvo se com eles for conivente, se negligenciar em descobri-los ou se, deles tendo conhecimento, deixar de agir para impedir a sua prática. Exime-se de responsabilidade o administrador dissidente que faça consignar sua divergência em ata de reunião do órgão de administração ou, não sendo possível, dela dê ciência imediata e por escrito ao órgão da administração, no conselho fiscal, se em funcionamento, ou à assembléia-geral.
§ 2º Os administradores são solidariamente responsáveis pelos prejuízos causados em virtude do não cumprimento dos deveres impostos por lei para assegurar o funcionamento normal da companhia, ainda que, pelo estatuto, tais deveres não caibam a todos eles.
§ 3º Nas companhias abertas, a responsabilidade de que trata o § 2º ficará restrita, ressalvado o disposto no § 4º, aos administradores que, por disposição do estatuto, tenham atribuição específica de dar cumprimento àqueles deveres.
§ 4º O administrador que, tendo conhecimento do não cumprimento desses deveres por seu predecessor, ou pelo administrador competente nos termos do § 3º, deixar de comunicar o fato a assembléia-geral, tornar-se-á por ele solidariamente responsável.
§ 5º Responderá solidariamente com o administrador quem, com o fim de obter vantagem para si ou para outrem, concorrer para a prática de ato com violação da lei ou do estatuto.”
No mesmo sentido, a doutrina de Modesto Carvalhosa[2]:
“O liquidante e os administradores, acionistas e conselheiros fiscais, têm responsabilidade ilimitada e, conforme o caso, solidária pelos atos que praticaram e de que participaram antes e depois da liquidação, na medida em que sejam lesivos à companhia dissolvida, a seus acionistas, a credores, ao poder público e ao interesse coletivo (Ministério Público). Ademais, respondem, os acima mencionados, pela regularidade do processo de liquidação e sua consonância com os preceitos da lei societária e do direito comum. O liquidante age como órgão da companhia dissolvida, com as mesmas funções dos diretores, ainda que com finalidade diversa daqueles. Assim, a sua responsabilidade é idêntica à do administrador pelos prejuízos causados aos acionistas, a credores, ao Poder Público, à comunidade, aos empregados e à própria companhia dissolvida. (…) Com respeito ao dever de lealdade, o liquidante deve rigorosamente observá-lo, em face da finalidade da liquidação, qual seja, a venda dos bens do ativo.” (Comentários à Lei de Sociedades Anônimas – Modesto Carvalhosa – Vol. 4 – Ed. Saraiva – sublinhei)
Da análise da doutrina e dos preceitos legais acima transcritos, podemos fixar as seguintes premissas:
– O liquidante ordinário possui responsabilidade ilimitada e solidária em relação à pratica de atos lesivos à Sociedade Anônima dissolvida, aos respectivos acionistas, aos credores, ao poder público e ao interesse coletivo;
– Os atos lesivos incluem todos aqueles que atentam contra a regularidade do processo de liquidação e contra os preceitos legais, mormente aqueles dispostos na Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº 6404/76); e
– O liquidante ordinário possui o dever de lealdade no que concerne à finalidade da Liquidação, ou seja, a venda do ativo da Sociedade Anônima para pagamento do respectivo passivo.
Ressalte-se que o liquidante ordinário poderá vir a ser demandado judicialmente pela própria Sociedade Anônima, caso atente contra à lei ou ao respectivo Estatuto, ou venha a praticar algum ato ilícito. Nesse sentido, o artigo 159 da Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº 6404/76):
“Art. 159. Compete à companhia, mediante prévia deliberação da assembléia-geral, a ação de responsabilidade civil contra o administrador, pelos prejuízos causados ao seu patrimônio.
§ 1º A deliberação poderá ser tomada em assembléia-geral ordinária e, se prevista na ordem do dia, ou for conseqüência direta de assunto nela incluído, em assembléia-geral extraordinária.
§ 2º O administrador ou administradores contra os quais deva ser proposta ação ficarão impedidos e deverão ser substituídos na mesma assembléia.
§ 3º Qualquer acionista poderá promover a ação, se não for proposta no prazo de 3 (três) meses da deliberação da assembléia-geral.
§ 4º Se a assembléia deliberar não promover a ação, poderá ela ser proposta por acionistas que representem 5% (cinco por cento), pelo menos, do capital social.
§ 5° Os resultados da ação promovida por acionista deferem-se à companhia, mas esta deverá indenizá-lo, até o limite daqueles resultados, de todas as despesas em que tiver incorrido, inclusive correção monetária e juros dos dispêndios realizados.
§ 6° O juiz poderá reconhecer a exclusão da responsabilidade do administrador, se convencido de que este agiu de boa-fé e visando ao interesse da companhia.
§ 7º A ação prevista neste artigo não exclui a que couber ao acionista ou terceiro diretamente prejudicado por ato de administrador.”
4. Da aplicabilidade das disposições da Lei nº 6404/76 junto às sociedades anônimas reguladas pela SUSEP
O art. 72 do Decreto-Lei nº 73/66 autoriza a utilização da Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº 6404/76), no que for aplicável, no que concerne às sociedades anônimas reguladas pela SUSEP, desde que não haja disposição em contrário no próprio Decreto-Lei nº 73/66. Nesse sentido:
“Art 72. As Sociedades Seguradoras serão reguladas pela legislação geral no que lhes for aplicável e, em especial, pelas disposições do presente decreto-lei.”
5. Da atuação da SUSEP na liquidação ordinária das seguradoras
O art. 97 do Decreto-Lei nº 73/66 dispõe que:
“Art 97. A liquidação voluntária ou compulsória das Sociedades Seguradoras será processada pela SUSEP.” (sublinhei)
Regulamentando o preceito legal acima transcrito, o art. 73 do Decreto nº 60459/67 estabelece que:
“Art 73. A liquidação voluntária ou compulsória das Sociedades Seguradoras será processada pela SUSEP que indicará o liquidante.” (sublinhei)
Inicialmente, entendo que o termo “liquidação voluntária” não é sinônimo ou não equivale ao termo “liquidação ordinária”.
Com efeito, liquidação ordinária é aquela definida no artigo 208 da Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº 6404/76), ao passo que liquidação voluntária é a modalidade de liquidação extrajudicial decretada pela SUSEP após requerimento formulado pelos administradores da sociedade ou por proposta de eventual interventor. Da mesma forma, liquidação compulsória é a modalidade de liquidação extrajudicial decretada de ofício pela SUSEP. Nesse sentido, o artigo 15 da Lei nº 6024/74, cuja aplicação subsidiária (Lei nº 10190/2001) permite uma conclusão hermenêutica nessa direção:
“Art . 15. Decretar-se-á a liquidação extrajudicial da instituição financeira:
I – ex officio :
a) em razão de ocorrências que comprometam sua situação econômica ou financeira especialmente quando deixar de satisfazer, com pontualidade, seus compromissos ou quando se caracterizar qualquer dos motivos que autorizem a declararão de falência;
b) quando a administração violar gravemente as normas legais e estatutárias que disciplinam a atividade da instituição bem como as determinações do Conselho Monetário Nacional ou do Banco Central do Brasil, no uso de suas atribuições legais;
c) quando a instituição sofrer prejuízo que sujeite a risco anormal seus credores quirografários;
d) quando, cassada a autorização para funcionar, a instituição não iniciar, nos 90 (noventa) dias seguintes, sua liquidação ordinária, ou quando, iniciada esta, verificar o Banco Central do Brasil que a morosidade de sua administração pode acarretar prejuízos para os credores;
II – a requerimento dos administradores da instituição – se o respectivo estatuto social lhes conferir esta competência – ou por proposta do interventor, expostos circunstanciadamente os motivos justificadores da medida.” (sublinhei)
Corroborando com o entendimento acima esposado, no sentido de que a liquidação voluntária seria apenas uma modalidade de liquidação extrajudicial, o artigo 73 do Decreto nº 60459, o qual regulamentou o art. 97 do Decreto-Lei nº73/66, estipula que a SUSEP indicará o liquidante tanto na liquidação voluntária quanto na compulsória. Registre-se que na liquidação ordinária é a própria S.A. quem nomeia o liquidante.
Ademais, a aplicação do instituto da liquidação ordinária, prevista no artigo 208 da Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº 6404/76), no âmbito das sociedades anônimas seguradoras tem como fundamento legal o art. 72 do Decreto-Lei nº 73/66, o qual determina que as “Sociedades Seguradoras serão reguladas pela legislação geral no que lhes for aplicável (…)”.
Assim sendo, a liquidação extrajudicial (voluntária ou compulsória) possuiria natureza jurídica de exercício de poder de polícia pela SUSEP, ao passo que a liquidação ordinária possuiria natureza jurídica de ato societário.
Logo, em uma perspectiva fiscalizatória, a atuação da SUSEP na liquidação ordinária deve ser restrita à subsunção do ato societário aos ditames legais.
Nesse diapasão, como se trata de ato societário, a liquidação ordinária não sofre o mesmo nível de ingerência, ressalvado o poder-dever de fiscalizar, inerente ao procedimento de liquidação extrajudicial. Assim sendo, a SUSEP não possuiria autorização legal para definir o modo como a liquidação ordinária é conduzida, porquanto, nos termos do art. 208 da Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº 6404/76), é a própria sociedade que, além de nomear o liquidante, define o modo de liquidação. Nesse sentido, a doutrina[3]:
“Existem três modalidades de liquidação: liquidação ordinária, em que os próprios órgãos da companhia nomeiam o liquidante e supervisionam a sua atuação; (…) e liquidação extrajudicial, sob a responsabilidade do Banco Central do Brasil ou outros órgãos administrativos que, inclusive, têm a prerrogativa de nomear o liquidante.” (José Edwaldo Tavares Borba – Direito Societário – 12ª Edição- Ed. Renovar – sublinhei)
Da mesma forma, assim como a SUSEP não possui ingerência direta sobre um diretor de qualquer Sociedade Anônima, a autarquia não comanda a atuação do liquidante ordinário, porquanto este equipara-se àquele.
6. Conclusão
A liquidação ordinária não pode ser confundida, mormente em termo regulatórios, com a liquidação extrajudicial, ante a natureza jurídica diversa de tais institutos.
Por outro lado, desde que visto como ato societário, cabe a SUSEP efetuar a regulação da liquidação ordinária, tanto em termos normativos, quanto sob o aspecto do poder de polícia em sentido estrito.
Informações Sobre o Autor
Bruno Perrut Ferreira
Procurador Federal pós-graduado em Direito do Estado e da Regulação pela Fundação Getúlio Vargas