Resumo: A relação de trabalho do jornalista internacional (enviado especial e correspondente internacional) tem elementos de conexão com mais de um ordenamento jurídico, seja em função do domicílio ou da nacionalidade das partes, seja em função do local da execução dos serviços. O presente estudo objetiva discutir os critérios de solução de conflitos de leis no espaço, à luz do Direito Privado Internacional previsto na legislação interna (critérios do local em que se constituem as obrigações, na forma do art. 9º, da LINDB, e da norma mais favorável, previsto na Lei nº 7.064/1982) e internacional (critérios da lex loci executionis, conforme art. 198 do Código de Bustamante, e da autonomia da vontade), de acordo com a peculiaridade da profissão em debate.
Palavras-Chave: Conflito de leis. Contrato de Trabalho. Jornalismo Internacional. Direito Privado Internacional.
Abstract: Working relationships of international journalists (foreign correspondents and special envoys) hold elements from diverse legal systems, depending on the nationality or current residence of these professionals, but also associated to the place where journalistic activities take place. This study aims to discuss some of the norms used to resolve conflicts of laws, considering both local (location that constitute obligations, in accordance with art. 9, LINDB, and generally more favorable provisions of Law 7.064/1982) and international legislations (lex loci executionis as art. 198 of the Code of Bustamante, and the autonomy of the will), according to the peculiarity of the profession in debate.
Keywords: Conflict of laws. Employment Contract. International Journalism. Private International Law.
Sumário: 1. Introdução. 2. O Jornalista Internacional: Correspondente Internacional e Enviado Especial. 3. Os elementos de conexão e a importância do Direito Privado Internacional. 4. Normas de Direito Privado Internacional previstas no ordenamento internacional. 5. Normas de Direito Privado Internacional previstas no ordenamento interno. 6. Análise dos critérios de fixação em relação às especificidades das profissões objeto do estudo. 7. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
Internacionalizam-se as relações entre Estados e entre pessoas, físicas ou jurídicas. O nível de intercâmbio além das fronteiras nacionais nunca foi tão efetivo, culminando em uma conjugação de atenção instantânea de todos os povos a quase tudo o que ocorre no globo. O tempo e o espaço foram relativizados por um fenômeno que tem sido utilizado para explicar o atual estágio histórico da globalização: a globalização da informação.
Um país que pretenda se isolar da comunidade internacional para praticar condutas violadoras dos bens jurídicos mais caros ao atual estágio de evolução humana certamente não sairá ileso da primeira punição: a desaprovação da opinião pública internacional.
E a opinião pública internacional pressupõe a existência de um elemento imprescindível para a sua existência: informação. Com efeito, a informação tem sido o elemento basilar da sociedade atual, chegando a ser caracterizada como um direito fundamental de quarta dimensão pela doutrina constitucional mais abalizada (BONAVIDES, 2012, p. 589-591).
A circulação da informação além das fronteiras dos países demanda a atuação de um grupo cada vez maior de pessoas que se dispõem a fazer desse ofício uma profissão: os jornalistas internacionais.
E se a própria natureza da profissão está ligada a um elemento de conexão internacional, como se dá a regulação do contrato de trabalho firmado por este profissional?
O Direito Internacional Privado é a seara cabível para fornecer resposta a essa pergunta, considerando que é este o ramo do direito que dispõe das ferramentas necessárias para solucionar conflitos de leis no espaço, estabelecendo critérios de fixação da lei material aplicáveis aos litígios decorrentes de relações jurídicas que tenham algum elemento de conexão internacional.
Analisaremos, a seguir, os critérios de fixação da lei de regência desse contrato, à luz do Direito Privado Internacional, após especificar as características da profissão abordada.
2. O JORNALISTA INTERNACIONAL: CORRESPONDENTE INTERNACIONAL E ENVIADO ESPECIAL
O jornalista que atua em países estrangeiros é comumente tratado com generalização pelos operadores jurídicos, o que, a nosso ver, termina prejudicando a delimitação das características contratuais e, por consequência, a análise jurídica da lei material aplicável.
Torna-se imprescindível distinguir as principais figuras encontradas nessa profissão, que já é especializada, por se destacar da ampla maioria dos jornalistas que atuam no país: o correspondente internacional e o enviado internacional. O jornalismo internacional analisado no presente estudo está delimitado, pois, ao âmbito dessas duas carreiras.
O correspondente internacional é designado para atuar no país estrangeiro de forma abrangente (matérias jornalísticas variadas), fixa (permanece radicado no país enquanto durar os efeitos do contrato) e regular (há uma frequência mínima estipulada para o envio de trabalhos a serem publicados).
Por sua vez, o contrato do enviado especial, diferentemente do correspondente internacional, é pautado pela especificidade (tema específico de cobertura jornalística), temporariedade (enquanto durar o evento a ser coberto) e irregularidade (inexiste regularidade no envio da produção).
Essa diferenciação já demonstra que o contrato de trabalho do enviado especial tende a evidenciar laços mais fortes com o ordenamento jurídico da sede da empresa de jornalismo, pois no território nacional é que é normalmente desenvolvida a sua principal atividade, havendo apenas momentos intercalados de prestações de serviços no estrangeiro, com data marcada para o retorno após a cobertura do evento.
Vale lembrar que não há regra para a nacionalidade do jornalista contratado, seja ele correspondente ou enviado, embora seja requisito a facilidade de comunicação em ambos os idiomas: do país onde os serviços serão executados e do país para onde as informações serão enviadas.
Pode haver o caso em que há diversidade de nacionalidade da empresa, do trabalhador e do local do serviço a ser executado.
A característica fundamental e definidora do jornalismo internacional é a prestação de serviços em local diverso do país para onde serão enviadas as informações. Em outras palavras, a matéria a ser objeto da reportagem deverá ser estrangeira ao país para onde ela deverá ser enviada.
O correspondente internacional e o enviado especial, independente da sua própria nacionalidade e da nacionalidade da empresa que os contrata, trabalhará com informações e notícias que extrapolam o território do lugar onde serão veiculadas essas informações. Desse modo, a hipótese de contratação de jornalista estrangeiro por empresa nacional para prestar serviços no território nacional não será analisada no presente estudo, pois não houve extrapolação do território onde serão publicadas ou utilizadas as notícias.
Em resumo, a começar pelo primeiro elemento de conexão internacional – nacionalidade das partes contratantes do jornalismo internacional – já podem existir cinco hipóteses diversas:
“a) empresa nacional que contrata estrangeiro para prestar serviços no exterior;
b) empresa nacional que contrata nacional para prestar serviços no exterior;
c) empresa estrangeira que contrata estrangeiro para prestar serviços no território nacional;
d) empresa estrangeira que contrata nacional para prestar serviços no exterior;
e) empresa estrangeira que contrata nacional para prestar serviços no território nacional.”
Essas possibilidades já demonstram que, em tese, haverá pelo menos três critérios de definição da lei material aplicável, de acordo com o local de: nacionalidade das partes, domicílio das partes e execução dos serviços.
De todo modo, o jornalista, seja ele nacional ou estrangeiro à empresa que contrata os seus serviços, e, ainda, empregado subordinado ou trabalhador autônomo, possui direitos contratuais inerentes à contrapartida do exercício do trabalho.
Direitos esses que, na maioria dos ordenamentos jurídicos dos países que respeitam as normas internacionais da OIT, possuem um núcleo de inderrogabilidade inalterável pela vontades das partes.
É interessante notar, também, que o local de execução dos serviços (lex loci executionis), critério mais uniformemente defendido pelos internacionalistas, nem sempre é o elemento de maior vínculo contratual, seja porque o enviado especial tem estadia precária no local da prestação dos serviços, seja porque o correspondente internacional tem um período contratual curto em cada país diferente, lembrando sempre que a repercussão do resultado do trabalho (notícias publicadas na mída) ocorrerá em país diferente da prestação dos serviços, o que já denota que o trabalhador tem inserida na própria natureza do contrato a relação de proximidade com o país onde as informações serão enviadas, ainda que esteja distante fisicamente.
3. OS ELEMENTOS DE CONEXÃO E A IMPORTÂNCIA DO DIREITO PRIVADO INTERNACIONAL
Os elementos de conexão com mais de um ordenamento jurídico podem decorrer da nacionalidade das partes, do objeto do contrato, do local da contratação, do local da prestação de serviços ou do local do cumprimento da obrigação. A realização de contratos internacionais de trabalho é rodeada por certa insegurança jurídica em se estabelecer as normas aplicáveis de acordo com os elementos de conexão.
A mobilidade de trabalhadores além das fronteiras dos seus países de origem ou de domicílio pode ocasionar a conflitante situação em que o contrato é regido por dois ordenamentos jurídicos distintos (o de país de origem e o do país da execução de serviços), considerando a hipótese em que os países disponham de forma diversa sobre a matéria, coincidindo, porém, quanto à regulação daquele trabalhador.
Cada país tem soberania legislativa e judiciária, o que implica na possibilidade de choque ou conflito sobre a lei material aplicável.
A solução para esse conflito é encontrada tanto nas regras de disciplina interna quanto nas normas internacionais.
Há quem disponha que, em último caso, por mais poderoso que seja um Estado, este não poderá impor a aplicação de suas próprias leis em território sob jurisdição de outro (CASTRO, 2005, p. X).
O papel primordial do Direito Internacional do Trabalho é definir as regras de conflito de leis no espaço, visto que indica como se deve solucionar o conflito, em vez de regular o mérito do litígio. Em outras palavras, o mérito do litígio continuará sendo regido por uma lei nacional de algum Estado, encontrando-se a resposta de qual deles (dos Estado envolvidos) através das ferramentas oferecidas pelo Direito Internacional Privado.
A harmonização do Direito Internacional Privado previsto nas legislações nacionais busca atingir uma certa uniformização de regras para solucionar o conflito de leis, a fim de dissipar soluções soberanas díspares e incompatíveis.
É válido ressaltar, ainda, a nossa posição de que a Organização Internacional do Trabalho, embora seja uma Organização pertencente ao ramo do Direito Internacional Público, tem importante papel para o Direito Internacional Privado, pois estabelece patamares civilizatórios mínimos a serem observados na proteção do trabalhador de qualquer país pertencente à Organização (são 185 Estados Membros, num universo de 193 países atualmente existentes).
De acordo com o art. 2º da Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho de 1998, todos os Estados Membros da OIT, ainda que não tenham ratificado as convenções nela previstas, têm um compromisso derivado do fato de pertencer à Organização de respeitar, promover e tornar realidade, de boa fé e de conformidade com a Constituição, os princípios relativos aos direitos fundamentais que são objeto dessas convenções, isto é: a) a liberdade sindical e o reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; b) a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório; c) a abolição efetiva do trabalho infantil; e d) a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação.
Portanto, se o país for membro da OIT mas não disponha de uma legislação básica protetiva do trabalhador em seu território, e seja esta a legislação escolhida para regular o contrato de trabalho do jornalista internacional, pensamos que as normas da OIT poderão ser utilizadas subsidiariamente para regular esta relação.
4. NORMAS DE DIREITO PRIVADO INTERNACIONAL PREVISTAS NO ORDENAMENTO INTERNACIONAL
O Código de Bustamante (Convenção de Havana de 1928), autodesignado como Código de Direito Internacional Privado (art. 1º), é o mais conhecido Tradado Internacional sobre a resolução de conflitos de leis no espaço.
Ele foi internalizado pelo ordenamento brasileiro através do Decreto18.871/29 e estabelece, em seu art. 198, que deve ser aplicado o princípio da lex loci executionis para a solução do conflito de leis no espaço.
A título de informação, uma vez que não foi adotada no país, a Convenção de Roma de 1980 (que estabelece regras uniformes em matéria de lei aplicável às obrigações contratuais na União Europeia) privilegia a autonomia da vontade no seu art. 3º, exceto quando houver normas imperativas do local da execução do contrato em sentido contrário (art. 6º). Há uma peculiar disposição no final do art. 6º, estabelecendo que os critérios de fixação podem ser relativizados quando resultar do conjunto das circunstâncias que o contrato de trabalho apresenta uma conexão mais estreita com um outro país. Observe-se a redação:
“Artigo 6º. Contrato individual de trabalho
1. Sem prejuízo do disposto no artigo 3º, a escolha pelas partes da lei aplicável ao contrato de trabalho, não pode ter como consequência privar o trabalhador da proteção que lhe garantem as disposições imperativas da lei que seria aplicável, na falta de escolha, por força do nº 2 do presente artigo.
2. Não obstante o disposto no artigo 4º e na falta de escolha feita nos termos do artigo 3º, o contrato de trabalho é regulado:
a) Pela lei do país em que o trabalhador, no cumprimento do contrato, presta habitualmente o seu trabalho, mesmo que tenha sido destacado temporariamente para outro país, ou
b) Se o trabalhador não prestar habitualmente o seu trabalho no mesmo país, pela lei do país em que esteja situado o estabelecimento que contratou o trabalhador, a não ser que resulte do conjunto das circunstâncias que o contrato de trabalho apresenta uma conexão mais estreita com um outro país, sendo em tal caso aplicável a lei desse outro país.”[1]
É interessante notar que este último critério – contrato com conexão mais estreita com um país – não obstante possa representar certa insegurança jurídica, é valioso instrumento da justiça do caso concreto, pois releva a rigidez de critérios que possam tornar insubsistente a proteção social do trabalhador.
Há também os Acordos Multi e Bilaterais firmados entre os países, podendo-se mencionar, no caso do Brasil, o Acordo Multilateral Iberoamericano sobre Seguridade Social de 2011 e os Acordos Bilaterais sobre Previdência Social firmados entre Brasil-Alemanha, Brasil-Cabo Verde, Brasil-Chile, Brasil-Espanha, Brasil-Grécia, Brasil-Itália, Brasil-Japão, Brasil-Luxemburgo, Brasil-Portugal.[2] Esses acordos visam conferir proteção social aos trabalhadores que prestam serviços além das fronteiras, normalmente aproveitando a contagem do tempo de serviço para aposentadoria e disponibilizando benefícios em igualdade de condições aos nacionais, como a assistência à saúde.
Embora também seja comum blocos regionais editarem normas sobre o tema, tal como a Diretiva nº 23 da Comunidade Europeia, o Mercosul ainda não dispôs expressamente acerca da solução de conflitos espaciais de leis em matéria trabalhista. O que há é a livre circulação de fatores produtivos estabelecida pelo Tratado de Assunção de 1991 e tentativas de edição de normas através de grupos de trabalho criados para este fim (Grupo de Trabalho de Assuntos Laborais, Emprego e Seguridade Social), conforme detalhado por Maria Cristina Mattioli.[3]
5. NORMAS DE DIREITO PRIVADO INTERNACIONAL PREVISTAS NO ORDENAMENTO INTERNO
A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lei nº 4.657/42, com nomenclatura dada pela Lei nº 12.376/2010), prevê que é aplicável a lei do país em que se constituírem as obrigações (art. 9º). Não há eficácia no território do Brasil, no entanto, das declarações de vontade que ofendam a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes (art. 17).
De acordo com essas disposições, constata-se que, havendo contratação no Brasil, lugar da constituição das obrigações, a lei aplicável é a brasileira. Porém, ainda que a contratação e execução do contrato sejam no estrangeiro, as declarações de vontade que ofenderem a ordem pública não terão eficácia no Brasil.
A principal questão a ser decidida na aplicação do art. 17 da LINDB é saber se as normas de direito do trabalho são de ordem pública.
Não é fácil responder a esta pergunta, considerando que inexiste em nosso ordenamento a descrição dos direitos trabalhistas dotados de indisponibilidade absoluta, não obstante os arts. 9º, 444 e 468, da CLT, apregoarem a nulidade da autonomia da vontade quando esta disponha sobre normas sociais de proteção:
“Art. 9º – Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação.
Art. 444 – As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes.
Art. 468 – Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia.”
Maurício Godinho Delgado (2013, p. 208) diferencia normas de direito individual do trabalho de indisponibilidade relativa e de indisponibilidade absoluta:
“Absoluta será a indisponibilidade, do ponto de vista do Direito Individual do Trabalho, quando o direito enfocado merecer uma tutela de nível de interesse público, por traduzir um patamar civilizatório mínimo firmado pela sociedade política em um dado momento histórico. É o que ocorre, como já apontado, ilustrativamente, com o direito à assinatura de CTPS, ao salário mínimo, à incidência das normas de proteção à saúde e segurança do trabalhador. (…) Relativa será a indisponibilidade, do ponto de vista do Direito Individual do Trabalho, quando o direito enfocado traduzir interesse individual ou bilateral simples, que não caracterize um padrão civilizatório geral mínimo firmado pela sociedade política em um dado momento histórico. É o que se passa, ilustrativamente, com a modalidade de salário para ao empregado ao longo da relação de emprego (salário fixo versus salário variável, por exemplo): essa modalidade salarial pode se alterar, licitamente, desde que a alteração não produza prejuízo efetivo ao trabalhador.”
A própria Constituição da República relativiza alguns direitos sociais fundamentais, diante da presença de convenção ou acordo coletivo em sentido contrário, tais como ocorre com a irredutibilidade do salário (art. 7º, inciso VI), a duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada (art. 7º, inciso XIII) e jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento (art. 7º, inciso XIV).
Vale registrar que o instituto da negociação coletiva de trabalho de que tratam os incisos do art. 7º da Constituição tem como requisito imprescindível a participação, no mínimo, do sindicato da categoria dos trabalhadores (art. 8º, VI) – quando firmado entre empresa e sindicato laboral será acordo coletivo de trabalho e quando firmado entre sindicatos patronal e laboral será convenção coletiva de trabalho.
Desse modo, não é válido um acordo coletivo firmado diretamente entre os trabalhadores e a empresa, para fins de relativização dos direitos sociais previstos na Carta Magna.
Observa-se, da mera aplicação do art. 17 da LINDB, que a autonomia da vontade não terá eficácia no Brasil quando ofenderem normas de indisponibilidade absoluta de direito do trabalho, cuja definição, enquanto não legislado em numerus clausulus, ficará a cargo do Poder Judiciário competente na análise do caso concreto.
Além da LINDB, podemos destacar uma lei interna especial e mais recente, a Lei nº 7.064/1982, que regulamentou o contrato de trabalhadores contratados no Brasil e transferidos para prestar serviços no exterior, mas apenas quando fossem contratados por empresas prestadoras de serviços de engenharia, consultoria, projetos e obras, montagens, gerenciamento e congêneres.
Após a edição da Lei nº 11.962/2009, houve o alargamento de trabalhadores cobertos por esta Lei, pois alterou-se o art. 1º para abranger todo e qualquer trabalhador contratado no Brasil ou transferido por seus empregadores para prestar serviços no exterior.
Dois são os critérios para aplicação dessa lei: trabalhador contratado no Brasil ou, trabalhando no Brasil, foi transferido para o exterior.
Os empregados designados para prestar serviços de natureza transitória, por período não superior a 90 (noventa) dias, estão excluídos do regime desta lei, desde que tenha ciência expressa dessa transitoriedade e receba, além da passagem de ida e volta, diárias durante o período de trabalho no exterior, que não terão natureza salarial (art. 1º, § ún., alíneas “a” e “b”).
O art. 3º dessa lei prevê a aplicação de uma série de direitos trabalhistas nela prevista, independentemente do que estabeleça a lei do local da execução dos serviços. Observe-se o seu teor:
“Art. 3º – A empresa responsável pelo contrato de trabalho do empregado transferido assegurar-lhe-á, independentemente da observância da legislação do local da execução dos serviços:
I – os direitos previstos nesta Lei;
II – a aplicação da legislação brasileira de proteção ao trabalho, naquilo que não for incompatível com o disposto nesta Lei, quando mais favorável do que a legislação territorial, no conjunto de normas e em relação a cada matéria.
Parágrafo único. Respeitadas as disposições especiais desta Lei, aplicar-se-á a legislação brasileira sobre Previdência Social, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS e Programa de Integração Social – PIS/PASEP.”
Observa-se, da leitura do texto da lei, que, independentemente da autonomia da vontade ou da lex loci executionis, a lei brasileira ultrapassará os seus limites territoriais para ser aplicada em outro país se ela for mais vantajosa, “no conjunto de normas e em relação a cada matéria”, e, sendo ou não mais vantajosa, será obrigatória quanto à Previdência Social, ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS e ao Programa de Integração Social – PIS/PASEP.
Os artigos seguintes preveem: a possibilidade de acordo sobre salário-base e adicional de transferência (arts. 4º e 5º), a obrigatoriedade de gozo de férias (art. 6º), as circunstâncias e custeio de retorno ao Brasil (arts. 7º e 8º), a contagem do tempo de serviço para efeitos da lei brasileira (art. 9º), a instituição de seguro de vida e acidentes pessoais, cujo valor não ser inferior a 12 (doze) vezes o valor da remuneração mensal do trabalhador (art. 21) e os serviços gratuitos e adequados de assistência médica e social (art. 22).
A contratação de trabalhador domiciliado no Brasil por empresa estrangeira também está regido pela lei em comento (Capítulo III), inclusive com a advertência de que o aliciamento de trabalhador domiciliado no Brasil, para trabalhar no exterior, fora do regime da lei, configurará o crime de aliciamento para o fim de emigração (art. 20).
Como tipo penal previsto no art. 206 do Código Penal (aliciamento para o fim de emigração), após a redação dada pela Lei nº 8.683/1993, exige a elementar “mediante fraude”, o que não foi ressalvado no art. 20 da Lei nº 7.064/1982, mesmo após a edição da Lei nº 11.962/2009, conclui-se que a lei considera a presunção de fraude quando não forem assegurados os direitos previstos na Lei nº 7.064/1982, ainda que com o consentimento do trabalhador.
6. ANÁLISE DOS CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO EM RELAÇÃO ÀS ESPECIFICIDADES DAS PROFISSÕES OBJETO DO ESTUDO
Pelo critério fixado pelo Código de Bustamante (art. 198), da lex loci executionis, o jornalista internacional teria o seu contrato regido pela lei do país da execução dos serviços.
De acordo com a nossa opinião, esse critério é razoável apenas na hipótese em que o correspondente internacional tenha se estabelecido no país da prestação de serviços através de um contrato que estabeleça um período longo, contínuo e pré-fixado, pois nesse caso ele se fixará no local e constituirá vínculos com o ordenamento jurídico desse país.
Nos casos em que o correspondente internacional não detenha esses elementos contratuais e em qualquer hipótese de prestação de serviços do enviado especial, pela própria da natureza da carreira, o critério da lex loci executionis pode não ser o mais indicado.
Imagine-se períodos intercalados de prestação de serviços em inúmeros países diferentes, de forma sucessiva e sem solução de continuidade contratual, onde o contrato seria regido por uma infinidade de leis materiais estrangeiras, como uma colcha de retalhos nem sempre bem costurada, diante da diversidade de valores e princípios vigentes no ordenamento jurídico de cada Nação.
Se haverá a concessão de férias, décimo terceiro salário, recolhimento previdenciário, contagem de tempo de serviço, seguro contra acidentes de trabalho e outras vantagens, tudo dependerá da (im)previsão legal dos ordenamentos jurídicos estrangeiros.
Aliás, é válido ressaltar, quanto a este tema, que o princípio da segurança jurídica, tão ser buscado por alguns defensores de critérios rígidos, neste caso terminaria por cometer uma autoimolação, pois é difícil imaginar uma série de lei conflitantes regulem um mesmo contrato de trabalho.
Isto porque, diferentemente das relações comerciais, onde o foco e a importância se restringem aos efeitos econômicos, as relações de trabalho abrangem, além dos efeitos econômicos, os sociais.
Os efeitos sociais do contrato de trabalho estão relacionados, por exemplo, com a integridade físico-psicológica do trabalhador e com a contagem do tempo de serviços para fins previdenciários, que podem não ser objeto imediato de previsão contratual, mas certamente serão objeto de preocupação das partes contratantes a depender das circunstâncias fáticas.
A questão da nacionalidade ou do domicílio também é relevante, sob esta perspectiva, pois é a partir dela que o trabalhador já não mais tão jovem buscará proteção previdenciária para sobreviver, e, a depender da lei de regência do contrato de trabalho, esta proteção será inexistente.
Não podemos deixar de levar em consideração que é frequente o exercício de trabalho do enviado especial em países em conflito (guerras internas, terrorismo, movimentos de protesto popular em massa, etc.) ou em estado de catástrofe natural ou induzida (terremotos, tsunamis, atividade vulcânica, energia nuclear, etc.), o que implica no alto potencial de riscos à integridade física e psicológica do trabalhador.
Essas condições de trabalho destacam a imperiosidade da preocupação acerca da cobertura previdenciária e assistencial deste trabalhador.
O status quo do momento da realização do contrato não é o mesmo quando ocorre um acidente, doença ou invalidez decorrentes da execução do trabalho contratado. Geralmente, diante das hipóteses de dano à integridade física, à vida ou à saúde do trabalhador ou, ainda, de ausência de contagem ou validade do tempo de serviço para fins de aposentadoria, verifica-se que a contraprestação pecuniária não atende à finalidade da proteção social do trabalhador.
Neste pórtico, se o critério da lex loci executionis não atende a justiça do caso concreto do jornalista intelectual, o critério da autonomia da vontade também gera inconvenientes.
A autonomia da vontade das partes na eleição da lei aplicável ao contrato, critério largamente utilizado em contratos comerciais, parte do pressuposto de que as partes gozam de liberdade contratual e devem ser protegidas de leis que não retratem os interesses que melhor as atendam.
Contudo, em matéria de trabalhador e empregador, inexiste total liberdade de manifestação de vontade, face à desigualdade jurídica entre os pólos contratantes da relação. Considerando que as empresas midiáticas formam blocos corporativos com faturamento líquido na casa dos bilhões de dólares anuais[4], o fato de o jornalista ser classificado como trabalhador intelectual não o torna detentor de paridade de forças com o seu contratante, máxime quando se sabe que as condições contratuais são previamente estabelecidas pela empresa, cabendo ao trabalhador a “autônoma vontade” de dizer “sim ou não” às condições contratuais pré-dispostas, o que está longe de representar a verdadeira autonomia de vontade na negociação das cláusulas do contrato.
Por essas razões, ousamos discordar de autores que defendem que os trabalhadores altamente qualificados não precisam de proteção, criticando o critério do princípio da norma mais favorável prevista na Lei nº 7.064/1982 (PAIVA, 2010, p. 93-97).
Para evitar todos os inconvenientes acima expostos, decorrentes da rígida aplicação do critério da lex loci execucionis e da autonomia das partes, filiamo-nos à posição que defende a aplicação dos critérios estabelecidos na Lei nº 7.064/1982.
Esta é a posição atual do Colendo Tribunal Superior do Trabalho, ao cancelar a Súmula nº 207, pela Resolução nº 181/2012, onde havia a previsão de aplicação do critério da aplicação das leis vigentes no país da prestação de serviço.[5]
Desse modo, sendo o jornalista contratado no Brasil para trabalhar no exterior ou, trabalhando no Brasil, foi para lá transferido, com período contratual superior a 90 (noventa) dias, aplica-se a lex loci executionis quando for mais favorável do que a legislação brasileira, havendo sempre a aplicação desta quando se tratar de Previdência Social, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS e Programa de Integração Social – PIS/PASEP.
Só assim o jornalista internacional estará sempre protegido socialmente, com a contagem do tempo de serviço para efeitos da lei brasileira (art. 9º), com a instituição de seguro de vida e acidentes pessoais, cujo valor não ser inferior a 12 (doze) vezes o valor da remuneração mensal do trabalhador (art. 21) e com os serviços gratuitos e adequados de assistência médica e social (art. 22).
7. CONCLUSÃO
O enviado especial e o correspondente internacional, com as peculiaridades de exercício profissional que devem ser consideradas pelo jurista, proporcionam às sociedades a relevante circulação da informação além das fronteiras dos países, mas tem em seus contratos elementos de conexão internacional que podem originar conflitos de leis no espaço acerca da regência do contrato.
O Direito Privado Internacional fornece alguns critérios de resolução desses conflitos, podendo-se citar o da lex loci executionis (art. 198 do Código de Bustamante) e da autonomia da vontade, no âmbito internacional, e o do local em que se constituírem as obrigações (art. 9º, da LINDB) e da norma mais favorável (Lei nº 7.064/1982), no âmbito interno.
Não obstante o critério da lex loci executionis seja o mais uniformemente aceito, em razão da segurança jurídica que propaga, este pode não ser o critério mais adequado à natureza da profissão ora analisada, em razão de inúmeros inconvenientes e prejuízo do valor da justiça social.
Defendemos que, no contrato de trabalho, inexiste liberdade e autonomia contratuais plenas, face à desigualdade jurídica entre os pólos contratantes da relação, e que o fato de o jornalista internacional ser um trabalhador qualificado não o torna detentor de paridade de forças com o seu contratante.
Entendemos ser mais justa a posição que defende a aplicação dos critérios estabelecidos na Lei nº 7.064/1982, ou seja, da lei mais favorável, desde que presentes os seus requisitos, havendo sempre a aplicação da lei brasileira quando se tratar de Previdência Social, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS e Programa de Integração Social – PIS/PASEP, pois somente assim o jornalista internacional estará protegido socialmente diante da exposição a riscos inerentes ao exercício dessa profissão.
Impõe-se não perder de vista a máxima de que o princípio da segurança jurídica deve ser aplicado em equilíbrio com o princípio da justiça social, valor este que justifica a própria existência do ordenamento jurídico.
Informações Sobre o Autor
Alyane Almeida de Araújo
Graduada em Direito pela UFRN 2006; Pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho pela UNIDERP 2007; Pós-graduanda em Direito Internacional pela UFRN em curso; Técnica Judiciária do TRT da 21 Região