Resumo: O trabalho tem como objetivo traçar linhas principais sobre a promessa de doação. O tema em questão também aborda com afinco as controvérsias doutrinárias no Direito Civil brasileiro e comparado no que diz respeito a promessa doação. A doação está prevista e disciplinada no artigo 538 do Código Civil brasileiro.
Palavras-chave: Doação. Promessa. Controvérsias. Direito Civil. Doutrina. Jurisprudência.
Abstract: The work aims to trace the main lines on the promise of giving. The theme in question also addresses hard doctrinal controversies in the Brazilian Civil Law and compared with regard to donation promise. The donation is planned and disciplined in Article 538 of the brazilian Civil Code
Keywords: Donation. Promise. Controversies. Civil Law. Doctrine. Jurisprudence.
Sumário: Introdução. I. Aspectos gerais da doação. II. Da liberalidade. III. Do contrato preliminar. IV. A controvérsia doutrinária sobre a promessa de doação. 4.1 Desenvolvimento do tema e divergências doutrinárias e jurisprudenciais. 4.2 A questão no direito comparado. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
A introdução do regramento específico dos contratos preliminares no Código Civil de 2002 colaborou para o desfazimento de muitas questões doutrinárias e jurisprudenciais.
Contudo, é indiscutível o fato de que muitas lacunas permanecem no ordenamento jurídico pátrio, entre elas, existência e possibilidade jurídica da promessa de doação, também conhecida por contrato preliminar de doação.
É sobre esta questão que se propõe tratar nos tópicos seguintes, ressaltando a dificuldade em esgotar o tema, que será adstrito a posições doutrinárias existentes no direito brasileiro e comparado, com a respectiva reflexão acerca de sua eficácia.
I. ASPECTOS GERAIS DA DOAÇÃO
A doação está prevista no artigo 538 do Código Civil, que a conceitua como “[…] o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra”. Daí se observa a inegável intenção do legislador em dirimir qualquer controvérsia acerca da contratualidade da doação.
Da simples análise do comando legislativo é possível extrair as primeiras conclusões em torno do contrato de doação. Será doador, aquele que transferir gratuitamente um bem de sua propriedade para outrem, o donatário, que deverá aceitá-lo.
Conforme explica Orlando Gomes (1998, p. 211), “também é possível concluir que as obrigações são contraídas apenas pelo doador, ainda que seja uma doação modal ou com encargo, visto que, nestes casos, não há sinalagma entre as prestações”, portanto, guarda como característica a unilateralidade. É consensual por que não requer a entrega da coisa ao donatário para que o negócio se perfaça. É gratuito, visto que o doador enriquece o donatário a suas expensas. Por fim, é formal exigindo forma escrita para sua celebração, nos termos do artigo 541, do Código Civil.
Diversas são as espécies de doações aceitas pelo direito brasileiro, sendo as principais para o objetivo deste trabalho, segundo Maria Helena Diniz (2002, p. 57):
“a) Doação pura e simples: neste caso, não são impostas restrições ou encargos ao donatário. Seria a doação em seu estado de perfeita e plena liberalidade;
b) Onerosa, com encargo ou modal: nas doações onerosas existe uma prestação imposta ao donatário, inferior ao total da doação, por esta razão não prejudica a ideia de gratuidade da espécie. Configura uma incumbência, como a doação de um imóvel para a implantação de uma escola; e
c) Remuneratória: nesta modalidade, o doador se sente na obrigação moral de pagar serviços prestados, contudo, a dívida não é exigível, por exemplo, uma dívida prescrita.”
“Das primeiras conclusões é possível extrair quatro elementos indispensáveis à doação: a contratualidade, a transferência de bens do doador ao donatário, a necessidade de aceitação do donatário e, por fim, o desejo de praticar a liberalidade por parte do doador” (DINIZ, 2002, p. 44-48).
No presente trabalho restringir-se-á ao animus donandi nas doações puras, para a correta compreensão e análise da possibilidade da promessa de doação e suas implicações.
II. DA LIBERALIDADE
Segundo explica Orlando Gomes (1998, p. 213), “a intenção de praticar uma liberalidade, enriquecendo outrem às próprias expensas é característica fundamental para o conceito de doação. Esta se reproduz na atitude altruísta do doador”.
Traço decisivo da doação é a liberalidade, a vontade desinteressada de fazer benefício a alguém, empobrecendo-se ao proporcionar a outra parte uma aquisição lucrativa causa. A intenção liberal concretiza-se, em suma, no intuito de enriquecer o beneficiário.
Mister salientar, portanto, que não é a gratuidade em si que caracteriza o contrato de doação, mas a intenção de gratificar outrem espontaneamente.
III. DO CONTRATO PRELIMINAR
O contrato preliminar está tratado no Código Civil de 2002, especificamente entre os artigos 462 a 466. Não se confunde com as simples tratativas, visto que estas se limitam às discussões prévias, apresentação das intenções das partes, elaboração de minutas, constituindo uma etapa no processo de formação contratual. Na fase de pontuação não há contrato, mas mera responsabilidade civil.
Caio Mário da Silva Pereira (2004, p. 81) assim conceitua o compromisso ou o contrato preliminar: “aquele por via do qual ambas as partes ou uma delas se comprometem a celebrar mais tarde outro contrato, que será o contrato principal”.
Daí se conclui que o compromisso é contrato sem sombra de dúvidas, com relação jurídica própria e sujeitos ativo e passivo. O objeto do contrato preliminar consiste na obrigação de concluir outro contrato, sendo o definitivo uma prestação substancial.
Aqui, dentro deste contexto, faz-se necessária a alusão ao artigo 2932 do Código Civil Italiano, que em tradução livre dispõe: “se aquele que se obrigou a concluir um contrato descumpre a obrigação, a outra parte, se isto for possível e não seja excluído do título, pode obter uma sentença que produza os efeitos do contrato não firmado”.
Interessante fazer menção também à análise da codificação civil brasileira proposta por Alfredo Calderale (2005, p. 355-356), que em estudo da sistemática referente aos artigos 462, 463 e 464 conclui, “que a coercibilidade emergente do contrato preliminar nasce da ideia proposta pelo artigo 2932 do Código Civil italiano”.
Portanto, uma das principais características do contrato preliminar é possibilidade de execução direta. Esta constrição pode refletir uma obrigação de prestar declaração de vontade a ser suprida por sentença judicial nos casos de recusa na celebração do contrato definitivo.
IV. A CONTROVÉRSIA DOUTRINÁRIA SOBRE A PROMESSA DE DOAÇÃO
Estudados, ainda que em apertada síntese, os institutos da doação e do contrato preliminar, resta estabelecer a possibilidade da sua coexistência, ou seja, a eficácia jurídica da promessa de doação.
4.1 Desenvolvimento do tema e divergências doutrinárias e jurisprudenciais
Sobremaneira importante, para iniciar o desenvolvimento da polêmica que envolve a promessa de doação, é trazer seu aspecto conceitual, feito de maneira bastante clara por Marcos Catalan (2011, p. 51), Doutor pela Universidade de São Paulo, em artigo específico: “por promessa de doação deve ser compreendido o contrato por meio do qual alguém promete, no futuro, em razão do advento de termo ou condição, externalizar sua vontade e concluir contrato de doação”.
A grande discussão que envolve o tema seria a possibilidade de tornar exigível o cumprimento de uma liberalidade. Em pesquisa doutrinária e jurisprudencial é possível encontrar, ao menos, três interpretações distintas a que se dá relevo.
A primeira linha defende a nulidade nas promessas de doação. A corrente é encabeçada por autores como Agostinho Alvim (1972), Caio Mário da Silva Pereira (2004), Serpa Lopes (1993) e Maria Helena Diniz (2002). Para a autora, “a promessa de doação abriria margem à uma execução forçada, ou seja, uma doação coativa incompatível com o animus donandi” (DINIZ, 2002, p. 43).
A segunda corrente admitiria a promessa de doação com ressalvas. Esta posição aparece com frequência nos tribunais pátrios, especialmente em hipóteses de divórcios consensuais, nos quais os cônjuges se comprometem a doar determinado bem à prole.
A matéria foi objeto de importante discussão no Superior Tribunal de Justiça brasileiro.[1] Primeiramente, submetido o Recurso Especial n. 125859 à apreciação da 3ª Turma, restou decidido por unanimidade que “a promessa de doação obriga, se não foi feita por liberalidade, mas como condição do desquite”.[2] Parece-nos que nestes casos desaparece o caráter benéfico da doação, substituído por uma condição tratada entre os cônjuges no processo de separação ou divórcio consensual.
Em momento posterior, a 4ª Turma entendeu pela invalidade da promessa de doação em separação judicial no Recurso Especial n. 30647, sob o fundamento de que “tratando-se de mera liberalidade, uma promessa de doação sem encargo, é ela por natureza retratável; enquanto não formalizada a doação, é lícito ao promitente-doador arrepender-se”.
Por fim, a 2ª Seção encerrou o dilema no julgamento do EREsp 125859, por maioria de votos, dizendo que “o acordo celebrado quando do desquite amigável, homologado por sentença, que contém promessa de doação de bens do casal aos filhos, é exigível em ação cominatória”.
A terceira e última corrente tratada neste momento é encabeçada por autores como Washington de Barros Monteiro (2003, p. 137), Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda (1972, p. 261) e Paulo Nader (2005, p. 289), este último apresenta a seguinte linha de raciocínio:
“Penso que a espontaneidade deve estar presente no pactum de contrahendo, qualquer que seja a modalidade contratual. É naquele momento que as partes se vinculam jurídica e moralmente. O contrato definitivo é mera decorrência do ajuste anterior e não importa se a declaração de vontade não coincida com a razão íntima das partes no momento e seja uma consequência da pressão do contrato anterior.”
A reflexão de Paulo Nader é complementada por Maria Celina Bodin de Moraes (2005, p. 19) que ressalta os princípios trazidos pelo Código Civil brasileiro e necessidade de respeito aos compromissos assumidos. A autora compreende que uma promessa não mantida não é uma promessa inexistente, mas sim uma falsa promessa. Complementa seu raciocínio afirmando que o ordenamento jurídico pátrio não coaduna para a inexecução de promessas sem sanções possíveis, no caso, a execução específica.
4.2 A questão no direito comparado
Destaca-se que a problemática também possui relevância no direito comparado. Na Alemanha, por exemplo, a possibilidade da promessa de doação parece questão pacífica, especialmente por fazer parte de comando legal (BGB, artigos 518, 523 e 2301). Inclusive, o direito alemão é um dos importantes fundamentos utilizados pela doutrina brasileira, especialmente Washington de Barros Monteiro (2003, p. 118) quando leciona:
“Inexiste, porém, razão para excluir tal promessa, cuja possibilidade jurídica é expressamente admitida pelo direito alemão (BGB, art. 2031). Ela não contraria qualquer princípio de ordem pública e dispositivo algum a proíbe.”
Por outro lado, o espanhol Luiz Diez-Picazo (1996, p. 337-338) manifesta-se contrariamente à hipótese, oportunidade na qual argumenta que “a especial estrutura e a causa liberal da doação não poderiam engendrar obrigações ou a exigibilidade do cumprimento, visto que a promessa aceita pelo donatário ou é uma doação perfeita ou mostra-se incapaz de gerar obrigação futura.”
Encontrou-se ainda, decisão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal com teor bastante interessante, na medida em que discute não apenas a validade da promessa de doação, mas também a possibilidade de execução específica. O Tribunal concordou pela possibilidade e validade da promessa de doação, contudo, considerou-a nula e impassível de execução específica por guardar característica peculiar inadmissível, que seria a nomeação de um donatário por terceiro.[3]
O magistrado português Ribeiro de Almeida faz menção a diversos doutrinadores conterrâneos favoráveis à promessa de doação, como Eridano de Abreu, Vaz Serra, Antunes Varela e Pires de Lima.
No direito italiano, por sua vez, Cosimo Sasso (1971, p. 11-13) alerta para a forte postura contrária à validade da promessa de doação, afirmando o autor, que “boa parte da doutrina sustenta que o contrato preliminar de doação contribuiria para um atentado à espontaneidade e a liberalidade da doação”.
CONCLUSÃO
Após a análise, ainda que sobremaneira sucinta, do contrato de doação, contrato preliminar e o imbróglio da promessa de doação, é preciso que algumas questões sejam pontuadas.
Primeiro. Tanto na disciplina dos contratos preliminares quanto na disciplina da doação, não há restrições quanto à possibilidade da promessa de doação, tampouco contrariedade com a ordem jurídica pátria como um todo. Ademais, não havendo qualquer impedimento, deve prevalecer a autonomia da vontade, que fora apenas mitigada, porém não afastada.
Segundo. Também não parece deveras complexo derrubar a tese de que a exigibilidade da promessa de doação implantaria uma espécie de doação coativa, isso porque a liberalidade encontra-se no momento da feitura do contrato preliminar. Assim, o magistrado não estaria impondo uma liberalidade, mas exigindo o cumprimento de liberalidade já contraída. Ao ser analisada enquanto contrato preliminar, contendo os elementos essenciais do contrato definitivo e ausente qualquer cláusula de arrependimento, não há razão nenhuma que justifique seu descabimento.
Terceiro. A principiologia do Código Civil brasileiro consagrou, entre outro princípios a eticidade, mostrando-se balizada pela Carta Magna, impondo uma interpretação solidarista. Destarte, não há como admitir o descumprimento de compromisso acertado de forma voluntária em prejuízo de beneficiário que criou legítima expectativa de se tornar donatário. Tal comportamento afrontaria de forma crassa a boa-fé objetiva, corolário da ordem jurídica privada, porquanto prestigiaria a deslealdade na quebra da expectativa do promissário-donatário.
Desta forma, conclui-se que a promessa de doação não apenas se mostra válida, como também exigível, na medida em que prestigia a autonomia da vontade das partes contratantes, sem ferir o ordenamento jurídico pátrio, garantindo assim a ordem jurídica justa em prestígio à boa-fé dos contratantes.
Informações Sobre o Autor
Danielle Portugal de Biazi
Advogada graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-Graduada em Direito Contratual pela Escola Paulista de Direito – EPD. Mestranda em Direito Civil Comparado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.