Resumo: O presente artigo objetiva analisar a influência de convicções religiosas e morais no Direito e na Política.
Palavras-chave: Filosofia. Política. Religião. Moral. Neutralidade.
Abstract: This article aims to analyze the influence of religious and moral beliefs in law and policy.
Keywords: Philosophy. Policy. Religion. Moral. Neutrality.
Sumário: Introdução. 1. Política, Religião e Moralidade: a trajetória histórica norte-americana. 2. A Filosofia Liberal da Neutralidade. 3. Análise sobre aborto e células-tronco. Conclusão. Referências.
Introdução
As convicções religiosas e morais estão carregadas de valores que compõe o pensamento de cada ser humano e sociedade e acabam por refletir na política e no direito.
No entanto, qual a medida de influência dos conceitos religiosos e das regras morais na elaboração do sistema jurídico e no desenvolvimento das decisões políticas?
Para responder a esta questão será necessário o estudo aprofundado dos seguintes itens: (a) trajetória política norte-americana, analisando o posicionamento de dois Presidentes em relação às questões religiosas e morais durante suas campanhas eleitorais em busca de votos; (b) os posicionamentos de John Rawls ao longo da história a respeito da neutralidade entre direito, política, religião e moral; (c) análise de dois assuntos reconhecidamente polêmicos que não podem ser discutidos sem que se aborde a questão moral e religiosa implícita – o aborto e as pesquisas com células-tronco embrionárias.
1. Política, Religião e Moralidade: a trajetória histórica norte-americana
Em 1960, o candidato democrata a presidência dos Estados Unidos, John Kennedy, abordou em seus discursos o papel da religião na política.
O candidato enfrentava dificuldades na campanha à presidência, já que as suas convicções religiosas haviam se tornado politicamente relevantes para a população americana.
Kennedy era católico, em um país predominantemente protestante, razão pela qual a questão religiosa se revelou inevitável para alguns eleitores.
Os argumentos contra a candidatura de Kennedy se baseavam no receio de que o Presidente dos Estados Unidos se submetesse a uma autoridade externa (Papa) no desempenho das suas funções ou que impusesse preceitos católicos nas politicas públicas.[1]
A fim de tranquilizar os eleitores receosos, Kennedy se posicionou perante uma plateia de ministros protestantes sobre o papel que sua crença religiosa teria na presidência, se fosse eleito. A resposta foi direta: nenhum.
O candidato foi claro ao declarar que era a favor de uma separação absoluta entre a Igreja e o Estado, posicionamento que pôs fim à campanha contra o candidato católico: “Quaisquer que sejam as questões que se apresentem a mim como presidente – controle de natalidade, divorcio, censura, jogo ou qualquer outro – minha decisão será tomada (…) de acordo com o que minha consciência disser que é do interesse da nação, desconsiderando pressões ou determinações religiosas externas.”[2]
De maneira cautelosa, Kennedy não se pronunciou se, ou até que ponto, sua consciência havia sido estabelecida por suas crenças religiosas, contudo, ele indicava que a visão sobre o interesse nacional não refletia na religião.
A postura de Kennedy obteve credibilidade perante os eleitores e ele foi eleito o primeiro Presidente católico dos Estados Unidos.
Por outro lado, após 46 anos da separação entre a crença religiosa e o interesse nacional sustentado por Kennedy, Barack Obama, então futuro candidato a presidência dos Estados Unidos, inovou e fez um discurso totalmente distinto sobre o papel da religião na política.
Obama iniciou o discurso relembrando a abordagem que havia dado a questão religiosa em sua campanha para o Senado dos Estados Unidos, aproximadamente dois anos antes. O concorrente de Barack Obama, que era considerado um religioso conservador, criticou o apoio de Obama aos direitos dos homossexuais e ao aborto, sustentando que Jesus Cristo não votaria nele, pois ele não era um bom cristão. Obama contestou o seu adversário com um pensamento tipicamente liberal: “Disse que vivemos em uma sociedade pluralista, que não posso impor minha crença religiosa aos demais cidadãos e que estava concorrendo a uma vaga no Senado dos Estados Unidos pelo estado de Illinois, e não a uma vaga de ministro da Igreja em Illinois.”[3]
Apesar de Obama ter sido eleito Senador sem grandes dificuldades, como candidato a presidência, ele acreditava que a resposta dada ao ataque do seu adversário durante a campanha eleitoral anterior não tinha sido adequada e “que ela não havia expressado devidamente o papel que minha fé representa na formação de meus valores e de minhas crenças”[4].
Sendo assim, Obama divergiu daquele pensamento tipicamente liberal e inseriu em seu discurso sua crença cristã pessoal e a importância da religião no debate político.
Ele sustentava que fora uma falha dos progressistas abandonar o terreno do discurso religioso na política: “O desconforto demonstrado por alguns progressistas diante de qualquer menção a religião muitas vezes nos impediu de abordar assuntos realmente importantes em termos morais”.[5]
Obama prosseguiu o discurso alegando que, caso os liberais tivessem um discurso político livre de qualquer doutrina religiosa, estariam “se privando da imagem e da terminologia por meio das quais milhões de americanos compreendem tanto o próprio comportamento moral quanto a justiça social”.[6]
A questão religiosa não era somente fonte de oratória politica. Obama verificou que determinados problemas sociais demandavam uma transformação moral.
“O medo de cairmos em um ‘sermão moral’ pode (…) levar-nos a minimizar o papel que os valores e a cultura desempenham em alguns de nossos mais prementes problemas sociais”[7], alegou Obama.
Para Obama, discutir problemas como pobreza e racismo, falta de assistência medica e desemprego exigiria mudanças no coração e na consciência.
Desse modo, Obama concluiu que era um equívoco insistir na ideia de que visões religiosas e morais não exercem nenhuma influência na política ou na lei: “Os secularistas estão errados quando pedem aos crentes que deixem sua religião para trás antes de entrar na vida pública. Frederick Douglass, Abraham Lincoln, William Jennings Bryan, Dorothy Day, Martin Luther King – na verdade, a maioria dos grandes reformistas da história dos Estados Unidos – não somente eram movidos pela fé como frequentemente usavam a linguagem da religião para defender suas causas. Assim, dizer que homens e mulheres não deveriam levar sua ‘moral pessoal’ para os debates sobre políticas públicas é um absurdo. Nossa lei é, por definição, uma codificação da moralidade, grande parte dela fundamentada na tradição judaico-cristã.”[8]
2. A Filosofia Liberal da Neutralidade
A filosofia pública da separação entre a religião e o Estado apregoada por Kennedy apontava mais do que a necessidade de diminuir o preconceito contra o catolicismo.
Ela retratava uma nova filosofia pública, a qual o governo se manteria neutro às questões morais e religiosas para que todos os cidadãos escolhessem livremente as noções de vida boa.
Em 1971, John Rawls, no livro Uma Teoria de Justiça, apoiou a filosofia liberal da neutralidade levantada por Kennedy.[9]
Em 1980, críticos da filosofia liberal da neutralidade questionaram a teoria de Rawls, isso porque eles defendiam uma concepção mais forte de comunidade e solidariedade, assim como um compromisso público mais forte com as convicções morais e religiosas.
Em 1993, no livro O Liberalismo Politico, Rawls revisou sua teoria em determinados pontos. Ele admitiu que as pessoas, no âmbito da vida privada, tem “afetos, devoções e lealdades dos quais elas acreditam que não poderiam, ou na verdade não deveriam, afastar-se (…) As pessoas podem achar simplesmente inimaginável viver sem determinadas convicções religiosas, filosóficas e morais ou sem determinados apegos e lealdades duradouros.” [10]
Desse modo, Rawls reconheceu a possibilidade de um indivíduo, em sua vida privada, ser moralmente comprometido, porém ele persistia no argumento que as lealdades morais e religiosas não deveriam servir de fundamento na identidade das pessoas como cidadãos.
Do ponto de vista de Rawls, na discussão sobre justiça e direitos, todos devem se abster das convicções morais e religiosas que pregam e discutir segundo uma concepção política do indivíduo.
A insistência para deixar de lado as convicções morais e religiosas no discurso público sobre justiça e direitos é justificada por Rawls no dever de respeito ao “pluralismo sensato” sobre a vida boa que predomina no mundo moderno.
Com efeito, os indivíduos das sociedades democráticas modernas divergem sobre assuntos morais e religiosos, sendo que essas divergências são justificáveis: “Não se pode esperar que pessoas cônscias e com plenos poderes de raciocino, mesmo depois de um debate livre, cheguem à mesma conclusão.”[11]
Sendo assim, o argumento de Rawls sobre a neutralidade liberal surge da necessidade de haver tolerância entre as distintas crenças religiosas e diferentes noções morais.
Rawls alega que depois de todas as considerações, definir quais julgamentos morais são verdadeiros não é uma questão de liberalismo político.
A separação entre a identidade de cidadão e as convicções morais e religiosas de cada indivíduo deve se pautar nos limites da razão pública liberal.
Os cidadãos não podem endossar as próprias crenças religiosas e as concepções morais no debate público sobre justiça e direitos, sob pena de impor a seus compatriotas uma lei baseada em uma determinada teoria religiosa ou moral, caso os seus argumentos preponderem.
No entanto, como saber se os argumentos políticos cumprem os requisitos da razão pública, devidamente despidos de concepções religiosas ou morais?
Rawls orienta: “Para saber se estamos seguindo a razão pública, devemos perguntar: Como veríamos nosso argumento se ele nos fosse apresentado como uma opinião da Suprema Corte?”[12]
A orientação apresentada por Rawls é uma maneira de assegurar a neutralidade dos argumentos dos cidadãos, como requer o entendimento público liberal: “Os juízes não podem, evidentemente, invocar as próprias noções pessoais de moralidade, tampouco os ideais e virtudes da moralidade em geral. Estes devem ser considerados irrelevantes. Eles não podem, da mesma forma, invocar visões religiosas ou filosóficas, deles próprios ou de outras pessoas.”[13]
Como os juízes, os cidadãos devem obedecer às mesmas limitações, se abstendo de sustentar as convicções morais e religiosas nos debates públicos e se prender aos argumentos que os demais cidadãos devam admitir.
Entretanto, a tentativa de Rawls em separar os argumentos de justiça e direitos dos argumentos da vida boa é equivocada, já que nem sempre é possível decidir questões sobre justiça e direitos sem solucionar questões morais relevantes ou, mesmo quando isso é possível, pode não ser desejável.
3. Análise sobre aborto e células-tronco
Há dois assuntos reconhecidamente polêmicos que não podem ser discutidos sem que se aborde a questão moral e religiosa implícita: o aborto e as pesquisas com células-tronco embrionárias.
Há pessoas que são contra a interrupção da gravidez em qualquer fase, porque entendem que tal prática tira à vida de um ser humano inocente.
Por outro lado, os defensores do aborto alegam que a lei não deveria se posicionar sobre a controvérsia moral e religiosa do inicio da vida humana. Para essa corrente, o status existencial do feto em desenvolvimento é um assunto de carga religiosa e moral, por isso o Estado deveria se manter imparcial sobre o tema e permitir a cada mulher a decisão de fazer ou não um aborto.
Não há dúvidas de que a segunda corrente reflete um argumento tipicamente liberal, já que sustenta a neutralidade do Estado e a liberdade de escolha, sem ingressar na questão moral e religiosa.
Contudo, os argumentos liberais não se mostram convincentes, isso porque, caso seja real que o feto em desenvolvimento é moralmente equivalente a uma criança, o aborto seria moralmente equivalente ao infanticídio.
Assim, a minoria da população concordaria com o governo se ele autorizasse que os pais decidissem se deveriam ou não matar seus filhos.
Verifica-se que o argumento da liberdade de escolha em relação ao aborto não é realmente imparcial no tocante as controvérsias morais e religiosas implícitas.
Na verdade, o entendimento liberal sustenta tacitamente que os mandamentos da Igreja Católica sobre o status moral do feto[14] são falsos.
O raciocínio liberal reconhece que a imparcialidade do Estado e a liberdade de escolha da mulher não são suficientes para que se defenda o direito ao aborto, isso porque a corrente liberal deveria enfrentar o argumento de que o feto em desenvolvimento é equivalente a uma pessoa e tentar demostrar por que tal argumento é equivocado.
Portanto, não é suficiente sustentar que a lei deve ser imparcial no tocante as controvérsias morais e religiosas. O argumento para que a lei autorize o aborto não é mais neutro do que o argumento para proibi-lo. As duas correntes devem dar uma resposta à questão moral e religiosa implícita.
Da mesma maneira se aborda a discussão sobre as pesquisas com células-tronco embrionárias. Aquelas pessoas que defendem a proibição alegam que, quaisquer que sejam os progressos da medicina resultantes das pesquisas com células-tronco embrionárias, a destruição de embriões humanos não pode ser moralmente admissível.
Os defensores desse ponto de vista acreditam que a vida começa no momento da concepção, razão pela qual destruir um embrião, ainda que em fase inicial, equivale moralmente a matar uma criança.
Por outro lado, os adeptos das pesquisas com células-tronco embrionárias sustentam os benefícios médicos que a medida pode trazer para a humanidade, entre as quais se inclui o tratamento e cura para o diabetes, o mal de Parkinson e lesões na coluna.
Essa corrente entende que a ciência médica não pode ser prejudicada por influências morais e religiosas. Para eles, os indivíduos que levantam objeções morais e religiosas não deveriam impor suas crenças por meio de leis que proibissem pesquisas científicas promissoras.
É importante destacar que a discussão sobre a permissão para pesquisas com células-tronco embrionárias deve ser analisada sob a ótica moral e religiosa do início da vida.
Desse modo, se o embrião em fase inicial for moralmente considerado indivíduo, as pessoas que rejeitam as pesquisas teriam razão, de modo que as pesquisas científicas mais promissoras não justificariam o aniquilamento de um ser humano.
Vale dizer que a maioria das pessoas não aceitariam que a lei autorizasse a retirada de órgãos de uma criança de cinco anos para proporcionar pesquisas promissoras, razão pela qual o argumento que permite as pesquisas com células-tronco embrionárias não é imparcial quanto a controvérsia moral e religiosa sobre o momento do início da vida humana.
De todo o exposto, verifica-se que não é possível solucionar a questão legal sem considerar as controvérsias morais e religiosas implícitas que abarcam o tema do aborto e das pesquisas com células-tronco embrionárias.
Nos dois casos, não é possível manter a neutralidade, isso porque a questão central versa sobre tirar a vida de um ser humano.
Conclusão
O trabalho de pesquisa desenvolvido permite concluir que a filosofia de John Rawls reconhece a possibilidade de um indivíduo, em sua vida privada, ser moral e religiosamente comprometido, porém as lealdades morais e religiosas não devem servir de fundamento na identidade das pessoas como cidadãos.
Do ponto de vista de Rawls, na discussão sobre justiça e direitos, todos devem se abster das convicções morais e religiosas que pregam e discutir segundo uma concepção política do indivíduo.
No entanto, há casos reconhecidamente polêmicos que não podem ser discutidos sem que se aborde a questão moral e religiosa implícita, como o aborto e as pesquisas com células-tronco embrionárias.
Grande parte das questões morais e religiosas não envolve assuntos de vida ou morte, logo, os casos de aborto e células-tronco são diferenciados. Nos casos que não abordam a definição de ser humano, as discussões sobre justiça, direito e politica podem ser resolvidas fora do âmbito das controvérsias morais e religiosas.
Informações Sobre o Autor
Ana Luiza Sawaya de Castro Pereira do Vale
Mestranda em Direito Difusos e Coletivos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP. Advogada em São Paulo