Sumário: I Contexto histórico. II O sistema de capitanias hereditárias instrumentos jurídicos e suas características. III Conclusão. IV Referências
I) Contexto histórico
O descobrimento do Brasil em 1500, pela expedição marítima de Pedro Álvares Cabral, enquadra-se no período da “Era dos descobrimentos” ou “Período das grandes navegações”, que compreendeu os primórdios do século XV até princípios do século XVII. Nessa fase histórica, Portugal e Espanha despontaram como as grandes potências europeias que custearam as grandes navegações marítimas, com o objetivo de descobrir rotas alternativas para alcançar o comércio com a Ásia, então dominado por árabes e italianos.
Em 1498, a expedição portuguesa de Vasco da Gama chega às Índias. Já a Espanha apostou no caminho oposto, navegando na direção oeste em relação à Europa, quando em 1492 chegou à então desconhecida América. Para evitar confrontos com relação às novas descobertas, Portugal e Espanha recorreram ao Vaticano, que procedeu à arbitragem do conflito; desse modo, em 1493 foi editada a Bula Intercoetera, que dividia as novas terras a oeste e a leste de uma linha imaginária traçada a 100 léguas ao oeste das ilhas de Açores. Devido ao inconformismo de Portugal com a solução apresentada, foi celebrado em 1494 o Tratado de Tordesilhas, pelo qual as terras descobertas estariam divididas por uma linha imaginária traçada desta vez a 370 léguas a oeste da Ilha de Cabo Verde. Assim sendo, as terras a oeste dessa linha, pertencentes a Portugal, deram origem ao que atualmente é o Brasil, naquela ocasião aproximadamente três vezes menor em termos territoriais.
Portugal anuncia a chegada oficialmente ao Brasil e aqui firma sua bandeira em 22 de abril 1500. Naquela época, a nação lusa dirigia suas forças ao lucrativo comércio de especiarias trazidas das Índias à Europa; entretanto, a ameaça de invasões às novas terras indicaram a urgente necessidade de criação de um sistema de povoamento, defesa e controle do enorme território dominado pela coroa portuguesa: as capitanias hereditárias.
II) O sistema de capitanias hereditárias, instrumentos jurídicos e suas características
A estratégia de Portugal foi transferir tamanho empreendimento à iniciativa privada. Deste modo, o rei Dom João III estabeleceu em 1543 o primeiro sistema de divisão territorial do país, qual seja, o sistema das capitanias hereditárias, que também funcionou como um sistema administrativo; note-se que tal experiência já havia sido realizada em outras possessões portuguesas, Madeira e Cabo Verde. As terras do país foram divididas e quinze grandes fatias longitudinais imaginárias, que se originavam do limite acordado pelo Tratado de Tordesilhas, e seguiam em direção ao litoral.
As quinze capitanias foram então doadas a doze personagens de confiança do rei (nobres, burocratas e comerciantes), em caráter vitalício, hereditário e inalienável. A missão primordial do donatário era colonizar, proteger e administrar sua capitania; por outro lado, detinha o direito de explorar os recursos minerais das novas terras.
A relação jurídica entre os donatários e a coroa portuguesa era fundamentadas em dois documentos jurídicos, quais sejam, a “carta foral” e a “carta de doação”. Pela carta de doação, como já indica o próprio nome, era atribuída ao donatário a posse da terra em caráter vitalício e de transmissão hereditária, estando proibida a sua venda ou doação. Ali se estabeleciam os limites territoriais e a jurisdição civil e criminal do capitão sobre suas terras.
Já a carta foral detalhava os direitos e deveres dos donatários, e dentre eles se destacavam: a) incentivar e promover o povoamento da terra, seja fundando vilas, seja por intermédio das “sesmarias” (fatias de terras que que eram oferecidas a quem se dispusesse a cultivá-las e torná-las produtivas, desde que o fizesse no prazo máximo de 5 anos); b) era responsável pela organização administrativa e pela Justiça na sua capitania, sendo que detinha poderes inclusive para determinar a pena de morte; c) escravizar índios, que seriam utilizados como mão-de-obra no cultivo e exploração da terra; d) extrair o pau-brasil, competindo-lhe 1/20 dos lucros com ele obtidos; e) pagar à coroa portuguesa o equivalente a 20% dos metais preciosos encontrados e 10% da renda obtida com a exploração comercial da terra.
Como visto, o conjunto de deveres sobrepujava o de direitos conferidos ao donatário, enquanto a coroa se beneficiava de grande parte dos lucros com a exploração da terra, e mais, não teria o ônus de colonizá-la; por isso, não é de espantar o fato de que tal sistema não logrou êxito. De todas, apenas duas capitanias, quais sejam, Pernambuco e São Vicente, prosperaram. À medida que as demais fracassavam, voltavam ao domínio da coroa (denominadas “capitanias gerais”), que seguia com a preocupante ameaça por parte de outros países (como Franca e Holanda), que se recusavam a reconhecer o Tratado de Tordesilhas, e defendiam o princípio do “uti possidetis”, pelo qual as terras pertenceriam a quem as dominasse e colonizasse.
Portugal decidiu então modificar o sistema colonizatório, de forma a centralizar o governo nas mãos de um representante direto da coroa no Brasil; assim sendo, em 1548 foi nomeado o primeiro Governador-Geral do Brasil, sendo que as capitanias estavam subordinadas ao poder central. Por fim, em 1821 o sistema das capitanias hereditárias foi formalmente extinto.
III) Conclusão
A importância do sistema das capitanias não é somente histórica, senão jurídica e política; tal sistema deixou marcas profundas na divisão geográfica, política, e na distribuição das terras no país. Essas capitanias se expandiram e subdividiram, evoluindo posteriormente para as províncias; as províncias eram unidades expressamente reconhecidas na Constituição Imperial de 1824[1]e, mais tarde, denominadas estados pela Constituição Republicana de 1891[2].
Percebe-se que grande parte dos atuais estados federados brasileiros, sobretudo os costeiros, na faixa que vai atualmente do Maranhão ao Rio de Janeiro, remontam à divisão e ao nome conferidos na época das capitanias. E mais, além dessa configuração geopolítica, o caráter de República Federativa atualmente consagrado pela Constituição Federal de 1988[3] possui alguns elementos comuns àquele sistema[4], qual seja, a divisão entre competências centrais (da União[5], em paralelo à coroa portuguesa), e descentralizadas (estados[6] e municípios[7], em paralelo às capitanias), ou seja, nota-se uma descentralização do poder (de forma centrípeta), com a concentração das competências no poder central.
Informações Sobre o Autor
Marco Aurélio Mellucci e Figueiredo
Procurador Federal. Graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – Universidade de São Paulo USP. Mestre em Direito Público pela Universidad Complutense de Madrid