Resumo: Esse artigo tem por objetivo abordar a relação entre a mídia sensacionalista e o Direito Penal, visitando o fenômeno do Direito Penal de Emergência, observado na inflação legislativa de leis penais duras e nas condenações sumárias de suspeitos de crimes. Ainda, este ensaio irá relatar o caso verídico de suspeitas de abuso sexual na Escola Base no ano de 1994, em São Paulo, indicando os abusos cometidos pela imprensa, e as conseqüências trazidas pela informação sem limites.[1] [2]
Palavras-chave: Mídia. Direito Penal. Emergência. Escola Base. Abusos.
Abstract: This article aims to address the relationship between the media and tabloid Criminal Law, visiting the phenomenon of Criminal Law Emergency, observed in legislative inflation and harsh criminal laws in summary convictions of criminal suspects. Still, this paper will report the true case of suspected sexual abuse in the School Base in 1994, in Sao Paulo, indicating the abuses committed by the press, and the consequences brought about by information without limits.
Keywords: Media. Criminal Law. Emergency. School Base. Abuses.
Sumário: Introdução. 1. Desenvolvimento: A relação mídia e direito penal. 1.1. Populismo penal e inflação legislativa. 1.2. Violações à presunção de inocência. 2.Denúncias de abuso sexual infantil na Escola Base: a punição sem volta. 2.1. Breve relato sobre os fatos. 2.2. Motivos que tornam o caso Escola Base um modelo: os abusos da imprensa. 2.3. Criminologia Midiática: lições de Eugenio Raúl Zaffaroni. Conclusão. Referências.
Introdução
A mídia possui papel determinante na maximização do direito penal e na condenação antecipada de suspeitos de crimes. Há muito se pode notar que os meios de comunicação, afora seus papéis meritórios de publicizar, informar e fiscalizar assuntos de interesse comum (função garantida pela Constituição Federal em seu artigo 220), pressionam a opinião publica ao escandalizar com manchetes apelativas sobre crimes de notoriedade. A influência midiática é tanta que possibilita a inflação legislativa, com criação de leis penais mais severas e até mesmo com a tipificação de condutas, sem olvidar do massacre social de acusados que protagoniza.
Desprovida de consciência garantista, exigível quando desempenhada atividade informativa, e até mesmo de ética profissional do jornalismo, a mídia sensacionalista, quando publica jornais, grava telejornais, escreve reportagens online sobre crimes de repercussão, antecipadamente provoca a ira da sociedade, despertando a vingança e o horror. Foi neste contexto que o caso da Escola Base, em São Paulo, no ano de 1995, culminou pela prisão ilegal de quatro suspeitos de abuso sexual de crianças de 4 anos, com a conseqüente depredação da Escola, e sua ulterior falência financeira (RIBEIRO, 1995). Somente posteriormente à condenação das autoridades e da população é que ficou firmado que não haviam provas de delitos, sendo o inquérito policial devidamente arquivado.
Ocorre que a mídia foi a principal motivadora deste processo de condenação e exclusão, gerando conseqüências, até a atualidade, irreversíveis. E assim ocorre em diversos casos semelhantes, em que indivíduos suspeitos de delitos são linchados, tem suas casas pichadas e precisam se refugiar com parentes. Diante desta realidade de emergência e de pressão popular, o Direito não pode se excusar de além de limitar a atividade dos meios de imprensa, conscientizar a todos de que a Justiça é a responsável pelo processo de acusação, o qual obedecerá ao devido processo penal e o contraditório, não se admitindo condenações sumárias e sem direito à defesa.
É sobre esta alarmante realidade que irá ensaiar este artigo, utilizando-se das metodologias de revisão bibliográfica de ensaios como os de Eugênio Raul Zaffaroni (2012), Luiz Flávio Gomes (2009) e Fábio Martins de Andrade (2010) e estudo de caso, em especial discorrendo sobre o caso “Escola Base”. O presente trabalho se dividirá em três capítulos: primeiramente relatará a relação da mídia com o direito penal e processual penal no contexto atual, incluindo exemplos de alterações legislativas recentes; posteriormente discorrerá sobre o caso verídico de denúncias de abuso sexual na Escola Base, em São Paulo, no ano de 1995; e por fim concluirá pautando sobre as graves conseqüências de exclusão social perpetradas pela mídia sensacionalista e qual postura deve ser adotada diante do Estado Midiático e de Emergência em que vivemos.
1. A relação mídia e direito penal
A relação entre o Direito e a obrigação da imprensa em informar pressupõe um contexto de influências jurídicas e sociais. A liberdade de expressão e de opinião, ao constituírem um pressuposto lógico da democracia dão ao cidadão o direito de ser informado e com isto de fiscalizar os acontecimentos de caráter público. Esta liberdade compreende a autorização de expressar livremente opiniões e idéias, bem como o direito de receber informações e comunicá-las de forma verdadeira, sem qualquer impedimento ou censura. É neste sentido que a imprensa livre desempenha funções sociais, políticas e culturais, conforme institui o inciso IX Do artigo 5° da Carta Magna (BRASIL, 1988): “(…) é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.”.
Note-se que afora a função de consolidar a democracia, instituindo uma sociedade pluralista e livre, a liberdade de expressão e informação se transfigurou com “um mundo eletronicamente globalizado.” (QUINAMO e ZENKNER, 2006, p. 56), principalmente a partir do ano de 1970. A propagação das informações com a evolução dos meios de imprensa hoje informam de forma difusa, rápida e versátil, estando em todos os lugares ao mesmo tempo. É o que bem resume Luiz Fernando Neto (2011, p. 105) quando diz: “Assim, a mídia, consegue estabelecer um senso comum para os fatos. Eles transmitem a todos a mesma informação, letrados ou analfabetos, basta uma simples ação do próprio homem, ligar seu aparelho de comunicação.”
Assim, ao veicular uma notícia a imprensa expõe o telespectador a processar o que foi recebido conforme suas convicções, a mídia é a mediadora entre a notícia e a realidade, muitas vezes construída conforme um jogo de interesses. É este o poder que tem a linguagem, o de legitimar o discurso produzido pela mídia, introduzindo comentaristas especialistas para impor autoridade nos assuntos veiculados. Não raras às vezes, figuras de advogados, professores, sociólogos aparecem nos noticiários para reforçar convicções, elevando o grau de credibilidade da notícia. Desse modo se criam “bandidos” e “mocinhos” a critério da conveniência de jogos políticos e de empresas interessadas no lucro das notícias bombásticas. Alerta Luiz Fernando Neto (2011, p. 107): “O poder dos meios de comunicação é tão grande que se manipula entre o “bem” e o “mal”, ou seja, os “bons” e os “maus”. O discurso jornalístico, sempre direcionado, articula-se com saber e com poder.”
Concomitantemente se impõe na ordem jurídica os direitos individuais de preservação à intimidade, à honra e à privacidade, os quais impedem a circulação desmedida de informações pessoais, seja através da imprensa falada ou escrita. Conforme lecionam Quinamo e Zenkner (2006) os direitos de personalidade são prerrogativas do indivíduo que possibilitam o gozo dos elementos provenientes de sua própria pessoa, sendo que a proteção de tais direitos, quando em conflito com a mídia, se dá com a preservação do indivíduo frente à exposição por uma imputação infundada. É preciso que o indivíduo “seja deixado em paz” em situações de exposição manipuladora da opinião pública, possibilitando um “isolamento moral do sujeito” frente aos excessos midiáticos.
Sob este contexto conflitivo, chamado de instrumentalização midiática por Luiza Flávio Gomes (2009), é que os abusos da imprensa sensacionalista veiculam informações sobre delitos e suspeitos mesmo sem saber a veracidade sobre as circunstâncias e autoria dos casos noticiados, “(…) o que contribui para embutir a idéia de que suspeitos e acusados não possuem o direito, nem mesmo, de preservar as garantias advindas da personalidade.” (QUINAMO e ZENKNER, 2006, P. 57) Assim, ao ferir os direitos do acusado com manchetes lucrativas, a imprensa policial, de um modo geral, afronta o princípio da presunção de inocência, preconizado no artigo 5°, inciso LVII, da Constituição, o qual reza que ninguém será considerado culpado ate o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. É principalmente sobre esta violação diária que irá versar este artigo.
1.1. Populismo penal e inflação legislativa
Luiz Flávio Gomes (2009) muito bem descreve a interseção entre a pressão midiática e o populismo evocado por esta. Narra o citado autor a realidade nos anos 2000 quanto ao uso desvirtuado do Direito Penal como conseqüência de crises econômicas e do desemprego. Neste contexto, a mídia retrata a violência como um produto, através da relação umbilical mídia e populismo penal. Cita o referido autor o exemplo da redução da maioridade penal, caso que “está parado só aguardando uma nova onda midiática”. (GOMES, 2009, p. 01)
Vão ao encontro destas idéias as palavras de Sergio Moccia em entrevista a Ana Paula Sica (MOCCIA) ao afirmar que existe uma “ilusão repressiva” alimentada pela mídia de massa, onde para responder a um conflito grave e amplo deveria se aumentar e antecipar, no plano da escolha de tutelas, a intervenção penal. Trata-se do fenômeno de involução, que caminha em tendência oposta a despenalização e, portanto em sentido oposto a idéia de direito penal subsidiário, conforme as garantias do Estado de Direito que se quer. Pelo contrário, denuncia Moccia, temos um sistema penal hipertrófico, inevitavelmente seletivo. Isto se deve, principalmente, aos desvios dos princípios do Estado de Direito que experimentamos situação tal que exigências de defesa social e de “segurança dos cidadãos” se sobrepõem às liberdades individuais. Trata-se das emergências criminais, as quais intervêm diretamente nos procedimentos penais e poderes de polícia.
Detalhando como se dá essa estreita relação entre mídia e direito penal Luiz Flávio afirma que as manchetes sobre crimes de repercussão são mercadorias da indústria cultural, as quais objetivam a banalização da violência e o anestesiamento da população, “que não se estarrece com mais nada.” (GOMES, 2009, p. 01) Daí que o Direito Penal se desvirtua diante da pressão midiática e popular, levando o legislador frente à urgência a ter uma “reação emocional legislativa” (GOMES, 2009, p. 01), a depender dos benefícios eleitorais que possa trazer. Esta reação em verdade provoca na população uma impressão tranqüilizadora de que o legislador é atento aos problemas atuais, sendo que as leis penais mais duras irão compelir os desajustados a não praticarem mais crimes (QUEIROZ, 2005 apud KROHLIN e BOLDT, 2008). É neste momento que se observa o poder do simbolismo penal, fenômeno exercitado pela emergência no qual são editadas normas aparentemente controladoras da violência e solucionadoras do problema político-criminal.
Prossegue o autor, com maestria, enumerando a edição de nove normas provenientes desta tendência, com destaque para a Lei de Crimes Hediondos após a onda de seqüestros como os de Abilio Diniz e Roberto Medina, e para a Lei 8.930/1994 que incluiu o crime de homicídio qualificado como hediondo após o assassinato da atriz Daniela Perez (GOMES, 2009, p. 01). No total, desde a promulgação da Constituição de 1988 até o ano de 2006 já tinham sido produzidas no Brasil cerca de 3.510.804 normas jurídicas (GOMES, 2006, p. 01). O que estas leis trouxeram, além da inflação legislativa foi um “conforto enganoso” para a população e para as vítimas de crimes, sem qualquer concomitância com medidas sérias de caráter preventivo ou social. Neste mesmo sentido indignam-se Krohling e Boldt (2008) afirmando que como exemplo de ilusionismo se tem uma pesquisa da ONU a qual aponta o Brasil como segundo país com a pior distribuição de renda, demonstrando que a intervenção penal somente ataca as conseqüências, “(…) deixando sem solução as verdadeiras causas”.
1.2. Violações à presunção de inocência
Afora a afronta a outros direitos e garantias individuais, como a dignidade da pessoa humana e os direitos de personalidade, a violação à presunção de inocência é o cerne dos abusos da imprensa. Reza o artigo 5°, inciso LVII da Constituição Federal, e igualmente a Declaração Universal dos Direitos do Homem em seu artigo XI e pelo Pacto San Jose da Costa Rica, no artigo 8°, 2° que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, mostrando-se como uma baliza de proteção ao suspeito de crimes. Importante destacar que, além de ninguém poder ser considerado culpado por algum fato sem sentença final proferida por órgão competente, investido de jurisdição, se faz necessário compreender a conjuntura protetiva: o suspeito não tem o dever de expor a sua imagem, nem de falar sobre o ato que está sob suspeição.
A dimensão do princípio da presunção de inocência é multifacetária, impondo regras de julgamento, de processo e de tratamento. Não basta, portanto que seja observado o devido processo legal, é preciso que a parte acusadora demonstre a culpabilidade do acusado, bem como o cerceamento cautelar seja excepcional e se dê de forma fundamentada. Como se vê a presunção de inocência é mandado que se propaga internamente, no processo penal, e externamente a este, obrigando que até mesmo a imprensa obedeça seus ditames. Mais do que por um dever ético, o jornalista deve respeito à Constituição e as leis do país.
Porém hoje se observam violações recorrentes perpretadas pela mídia, que além de tratar suspeitos como culpados, filma-os sem permissão e insiste em entrevistas sem consentimento, de forma estigmativa. A mídia televisionada, com destaque, é capaz de reproduzir em alta velocidade e escala uma notícia estarrecedora, gerando um senso comum sobre os fatos. É assim que a chamada “imprensa marrom”: aquela que expõe notícias chocantes e escândalos, em nada se diferencia dos espetáculos da Idade Média, como compara Fabio de Andrade (2010, p. 01) ao dizer “(…) voltamos aos linchamentos em praça pública, quando populares gritavam e enxovalhavam os réus (…)”. É o que, infelizmente, de fato ocorreu com o Caso Escola Base, em 1994, na cidade de São Paulo, como se observará a seguir.
2. Denúncias de abuso sexual infantil na Escola Base: a punição sem volta
2.1. Breve relato sobre os fatos
Segundo o fiel relato de Alex Ribeiro (1995) a história da Escola Base se desenrola conforme a seguir. No ano de 1994, na cidade de São Paulo, eis que explode na mídia um grande caso de abuso sexual de crianças: os crimes seriam cometidos por donos da Escola Base, situada no Bairro da Aclimação, na zona Sul da capital paulista.
Tudo começou quando Icushiro Shimada, Maria Aparecida Shimada, Paula de Monteiro Alvarenga, Mauricio Alvarenga sócios da Escola Base compraram a escola em decadência no ano de 1992. Depois de anos de trabalho, dobrando o número de alunos matriculados, é que os sócios se vêem surpreendidos por acusações de abuso sexual. Um menino, aluno da Escola Base, denuncia a mãe que Icushiro levava as crianças na Kombi da escola até a casa do pai de um dos colegas (Saulo), lá estes eram beijados e fotografados por este, sendo que Mauricio teria posteriormente agredido a criança. Nestas ocasiões estariam junto mais crianças, todas alunas da Escola Base.
Depois de conversarem entre si, duas mães destas crianças, no dia 27 de março de 1994 foram a 6ª DP de São Paulo fazer a denúncia, seus filhos foram encaminhados ao IML para exames, e foi expedido mandado de busca e apreensão para casa dos pais do colega, Saulo e Mara. Na sequência, policiais reviraram o prédio da escola e nada foi encontrado.
Vendo que pouco está sendo feito as mães dos meninos pressionaram a polícia para cumprir mais mandados, porém os policiais decidiram esperar o laudo do IML. Indignadas estas mulheres chamaram a Rede Globo, que enviou seu repórter Valmir Salaro para a Delegacia. Então a polícia buscou os quatro suspeitos para prestar declarações sobre os fatos. Todos se disseram inocentes e por isso foram coagidos fisicamente e moralmente, chegando a denunciar estes abusos para a imprensa.
Neste meio tempo é enviado um telex do IML: o resultado é positivo para prática de atos libidinosos. Demais jornais noticiam: o Estado de S. Paulo, Jornal Nacional, A Folha da Tarde, entre outros. Manchetes como estas passam a circular: “Kombi era motel na escolinha do sexo”, do jornal Notícias Populares e “Perua escolar carregava crianças para a orgia”, do jornal Folha da Tarde.
Neste momento começam a se divulgar entrevistas, a começar pelas mães das crianças que narram detalhes. Gilberto Smaniotto entrevista para a TV Cultura um dos garotos, induzindo suas respostas para dizer que foi abusado. Escândalos sucessivos começam a ser propagados: Folha da Tarde publicou matéria dizendo que pai de menino disse que crianças poderiam ter sido drogadas, e Cléa Parente (mãe de um dos meninos) em entrevista a Cesar Traili levanta a suspeita de que as crianças poderiam estar com AIDS.
E a barbárie não para por aí, a escola é saqueada, móveis e materiais escolares são destruídos por cerca de 30 pessoas que tiveram cobertura da polícia. A casa de Paula e de Mauricio também foi invadida e roubada.
Quanto às investigações o Delegado do caso Edélson Lemos começa a dar diversas entrevistas para jornais, mostrando dureza e convicção da culpa dos seis acusados. Em reação a tanta pressão os acusados decidem falar ao jornalista Florestan Fernandes Jr. da Rede Cultura.
Em resposta, o Delegado Lemos marca o primeiro depoimento no mesmo horário para todos acusados, se comprometendo que não haveriam prisões. Boris Casoy anuncia na TV que dois já estavam presos. Era tarde de mais, todos foram presos logo que entraram nas dependências da delegacia.
Nesta ocasião os advogados dos acusados tiveram acesso ao inquérito pela primeira vez, observando além de depoimentos fracos, que havia o laudo do IML concluindo que:
“Conclusão: do observado e exposto, concluímos que o examinado apresenta vestígios de lesões compatíveis com a prática de atos libidinosos. Tem lesão corporal de natureza leve, a qual não podemos esclarecer nexo causal de certeza com o histórico”. (RIBEIRO, 1995, p. 88)
Assim depois de divulgado este laudo inconclusivo e suspeito e após a prisão dos envolvidos, a imprensa começa a duvidar das suspeitas, e a fazer questionamentos. O jornal Estado de S. Paulo publica: “Série de duvidas envolve o caso”.
Os dois pais acusados dão entrevista; Mara se diz injustiçada, e que não foram dadas buscas na escola e na sua casa, e que não pode depor sobre os fatos. Saulo chora e diz que tem filho pequeno.
Em seguida o delegado quando questionado sobre as provas declara para o repórter Salaro: “Vocês estão falando de provas, provas, provas. O inquérito é a prova.”.
Sem proceder mais diligências o Delegado Lemos pediu a prisão provisória dos acusados, o Ministério Púbico opina contra e indica uma série de diligências não realizadas, como ouvir depoimentos de funcionários da escola, fazer perícia em automóveis, busca em casas de suspeitos, e nomeação de uma psicóloga para acompanhar o depoimento das crianças.
O pedido vai pro juiz Galvão Bruno que indefere o pedido de prisão provisória e envia o caso para o delegado-seccional Gérson de Carvalho. Logo após o Delegado Gerson assumir, é denunciado anonimamente um americano que morava nas proximidades da Escola Base, como suspeito de abuso de crianças e pornografia infantil. Sem provas não há comprovação do seu envolvimento com o caso, nem com outro crime.
Então o novo delegado Gerson termina as investigações, arquivando o inquérito: os seis acusados eram inocentes.
É neste momento que a mídia começa a se retratar em matérias que indicam a inocência dos acusados, com manchetes como: “Seis acusados de abuso sexual em escolinha vivem pesadelo” – Folha da Tarde; “Escola Base – vidas humilhadas” – Jornal da Tarde; “Inquérito da Escola Base termina sem provas” – Estado de São Paulo.
Após os fatos e as acusações, os suspeitos foram obrigados a mudar de vida. A escola fechou e foi depredada, Icushiro trabalha como datilógrafo no centro de São Paulo, sua esposa Cida faleceu de câncer. Mauricio separou-se de Paula, logo após os acontecimentos ficou um tempo sem sair sozinho, temendo por sua segurança. Paula depois de separada, engordou, e hoje vive em meio a dívidas e com pouco dinheiro. Saulo e Mara tocam sua vida com o filho, que fica nervoso sempre que se fala sobre abuso sexual.
Diversas ações foram movidas contra o Estado de São Paulo e contra a Rede Globo, SBT, Folha de São Paulo, Revista Veja, Record, Rede Bandeirantes, e Revista Istoé. O governo paulista foi condenado a pagar 250 mil para cada um dos envolvidos, decisão confirmada pelo TJ-SP, mas que ainda pende de recurso para o STJ. A Rede Globo foi condenada a pagar 450 mil para cada um dos envolvidos, decisão confirmada pelo TJ-SP que ainda pende de recurso para o STJ. [3]A Folha de S.Paulo foi condenada a pagar R$ 750 mil e O Estado de S.Paulo a R$ 750 mil, e da Editora Três, responsável pela publicação da revista IstoÉ, R$ 360 mil. Em todos os casos ainda cabe recurso.
2.2. Motivos que tornam o caso Escola Base um modelo: os abusos da imprensa
Conforme explicitado acima, o caso Escola Base é o retrato fiel de uma série de erros, tanto da imprensa quanto da polícia judiciária. Partindo do princípio, de onde surgiram as suspeitas, os equívocos começam quando crianças pequenas são ouvidas pelas mães, sem acompanhamento de psicólogos ou qualquer outra testemunha. A partir do momento em que o primeiro menino declarou algumas frases sobre abuso sexual, sua fala foi tomada como verdade e desencadeou todo o processo.
A seguir, as diligências de investigação dirigidas pelo Delegado Edelson Lemos foram precárias e insuficientes para embasar um inquérito policial. Sequer funcionários da escola foram ouvidos sobre os fatos, até mesmo busca e apreensão na casa do casal Saulo e Mara foi feita sem mandado judicial. Ainda, o fato que desencadeou a atuação da mídia sensacionalista tratava-se de um telex do IML com um laudo preliminar que nem mesmo os advogados tiveram acesso.
Sob este contexto a mídia tripudiou: repórteres tinham acesso à delegacia onde entrevistavam quem quisessem, qualquer boato sobre o caso era transformado em manchetes pejorativas como “Perua escolar carregava crianças para orgia”, do Jornal Folha da Tarde. (RIBEIRO, 1995, p. 57)
É preciso destacar esta série de eventos e posturas para que não se repitam episódios como este. Não se trata de uma injustiça apenas porque os acusados foram considerados inocentes posteriormente, mas sim porque não se pode admitir em um Estado de Direito que a mídia possa culpar pessoas, arruinar suas vidas e se sobrepor às esferas do Poder Judiciário.
2.3. Criminologia Midiática: lições de Eugenio Raúl Zaffaroni
Zaffaroni muito bem explica toda esta engrenagem da produção informativa da mídia. Com maestria, o professor em sua décima sexta conferência: A Criminologia Midiática estabelece as bases dos abusos cometidos pela imprensa baseados numa “causalidade mágica” (ZAFFARONI, 2012, p. 303). A mágica reside na idéia de causalidade especial, onde a vingança contra determinados grupos humanos os torna bodes expiatórios da realidade.
A atual mídia, evoluída depois da propagação de informações nos púlpitos e praças da Idade Média e da explosão francesa dos jornais escritos, se dá através do discurso neopunitivista dos Estados Unidos, que se expande pelo mundo globalizado. Esta atividade se dá pela televisão, principalmente, seguindo o pensamento de Sartori (SARTORI, 1997 apud ZAFFARONI, 2012, p. 305) sob o qual debilita o pensamento abstrato, somente propagando o pensamento concreto através de imagens. Neste sentido denuncia Zaffaroni:
“Como a comunicação de imagens não costuma ser atrativa – ter gancho – provocando pensamento, deve impactar na esfera emocional mediante o concreto. Por isso, não é de se estranhar que os noticiários mais pareçam uma síntese de catástrofes, que impressionam mas que não dão lugar a reflexão”. (ZAFFARONI, 2012, p. 306)
Desta maneira bitolada, a televisão cria uma massa criminosa de “diferentes e maus” (ZAFFARONI, 2012, p. 307), caracterizada por estereótipos de criminosos, que perturbam a paz pública, trazem preocupação e medos. Por isso este grupo deve ser separado dos demais, “porque nós somos limpos, puros, imaculados” (ZAFFARONI, 2012, p. 307). Esta divisão ainda abrange aqueles semelhantes que não virão a delinquir, mas que pela prática de infrações menores são mostrados como os criminosos do amanhã. Neste sentido denuncia Zaffaroni (2012, p. 307): “A mensagem é que o adolescente de um bairro precário que fuma maconha ou toma cerveja em uma esquina, amanhã fará o mesmo que o parecido que matou uma velhinha na saída de um banco e, portanto, é preciso isolar a sociedade de todos eles.”
Este grupo de “eles” criado pela criminologia midiática, ganha ainda um estereótipo mais específico: são os responsáveis pelos roubos e com isso espreitam nossa tranqüilidade. Cria-se um senso comum de que o único risco de vitimização é por roubo violento cometido por adolescentes de bairros marginais ou precários. E esta crença, baseada nas imagens televisionadas a todo tempo, se baseia em alta carga emocional na amostragem de fatos indignantes, gerando impulsos vingativos, medo, e reinvidicação por uma maior repressão, sob a premissa da mágica de que “maiores penas e maior arbítrio policial produzem maior prevenção de delitos.” (ZAFFARONI, 2012, p. 308).
Assim é preciso eliminar os potenciais delinqüentes para vivermos tranqüilos, já que se internalizou a mensagem freqüente de que nada é feito contra estes, há muita generosidade e bons tratos para com “eles”. É neste contexto que a criminologia midiática não esconde sua face necrófila, instigando a aniquilação dos criminosos quando ao noticiar execuções e fuzilamentos policiais narra os estereótipos: “volumoso prontuário, inúmeros antecedentes, drogado” (ZAFFARONI, 2012, P. 311), esquecendo que na realidade quase todos os executados não passam dos 20 anos de idade, que o tóxico mais utilizado é o álcool, e que alguém pode cometer um delito sob os efeitos da maconha.
Para justificar execuções sumárias e abusos do poder estatal a mídia propaga a idéia de que os mortos são um produto natural de suas próprias violências, onde “se mostra o cadáver do fuzilado como sinal de eficácia preventiva, como o soldado morto na guerra” (ZAFFARONI, 2012, P. 311). As mortes sem processos são resultado da purificação, da limpeza dos “germes patogênicos do corpo social, a escória social.” (ZAFFARONI, 2012, P. 311). Daí porque se legitimam as perdas em razão da guerra contra o crime, como se os mortos tivessem “pedido para morrer”. De outro lado, sequer há cuidado por parte da mídia com a ética e o respeito a vitima e sua família já que a exploração da curiosidade mórbida sempre acompanha as notícias televisionadas, as quais não poupam qualquer detalhe.
Como resultado deste entranhamento de imagens e códigos aparece a aclamação do público por justiça e vingança exemplar, como medidas de segurança urgentes e necessárias. Assim, diante da intolerância da urgência, qualquer solução bem pensada, analisada, estudada é descartada e caracterizada como branda, fora da realidade, ideológica. Desse modo se criam medidas urgentes, leis mais severas, condenações com penas altas, já que “as garantias penais e processuais são para nós, mas não para eles, pois eles não respeitam os direitos de ninguém” (ZAFFARONI, 2012, P. 315).
Conclusão
O desafio maior do direito atual reside mais em limitar os elementos que influenciam o direito penal do que propriamente delimitar suas funções. Embora não se tenha chegado ao modelo ideal de Estado Democrático, garantidor dos direitos individuais, o modelo a ser seguido está delineado pela Constituição quando esta elenca um rol extenso de valores e normas. Assim mais evidente e complexo se mostra o fenômeno do Direito Penal de Emergência, o qual inflaciona as leis do país e relativiza direitos de acusados e presos.
É neste problema social que se internaliza a pressão da mídia sensacionalista por maior rigor nas penas e no tratamento dado a quem viola a norma penal. Pode-se dizer que há um poder autônomo que influencia diretamente na opinião publica, na circulação de informações e nas taxas de lucro das grandes imprensas quando provoca a ira dos leigos, e a alta rentabilidade de grandes grupos. É este o alerta de QUINAMO (2006, p. 15): “Poderíamos dizer que se trata de um tribunal – destituído de jurisdição, é bem verdade, mas ainda assim um tribunal, uma vez que, a partir do consenso criado na opinião pública, passa a restar uma expectativa de Justiça em toda população, em face ao crime noticiado.”
É sob este aspecto que deve se debruçar a crítica comprometida: até quando seremos regidos pela mídia? Um veículo de comunicação social quando culpa antecipadamente suspeitos de crimes, sem dar-lhes sequer a chance de se defender, pratica grande injustiça. Segundo os princípios éticos do jornalismo, a saber, pelo Código de Ética da classe (2007), o compromisso fundamental do jornalista é com a verdade no relato dos fatos, pautando seu trabalho na precisa apuração dos eventos e na sua correta divulgação. Porém, diante da necessidade lucrativa, e imediatista de noticiar um crime, diversos meios de comunicação publicam sem checar a fonte, ou a veracidade dos fatos.
Como conseqüência, além do dano material eventualmente causado, o dano moral é o que mais resta abalado. O sofrimento, o pânico, e o medo que uma falsa acusação causam em suspeitos são os principais sentimentos que tomam conta de quem vive momentos de acusação. Afora o dano juridicamente estabelecido como o moral, seqüelas de momentos de trauma são irreversíveis, manchando a honra de uma pessoa desrespeitada para sempre.
Isto não significa que o Direito deva se eximir de punir quem comete a injustiça de publicar denúncias falsas e ofensivas, este deve prosseguir tutelando a moral de quem restou atingido. Porém é preciso ir além: necessita-se de ações preventivas, de conscientização e até mesmo de controle dos meios de comunicação de massa que extrapolem os limites de um Estado Democrático. Citando Alessandro Baratta, Sergio (BARATTA apud MOCCIA, p. 06) parece indicar o que acredita ser o ideal de mudança de paradigma: “(…) é necessário passar do direito à segurança (de alguns) à segurança dos direitos (de todos) (…)”. Uma imprensa controlada significa ditadura e ausência de democracia, mas uma imprensa sem limites, às avessas da afirmação dos direitos e garantias individuais também significa tirania.
Informações Sobre o Autor
Lorena Corrêa Braga
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande no ano de 2011. Advogada inscrita na OAB/RS sob o número 84.547 desde 14/03/2012. Pós Graduada em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera – Uniderp. Conciliadora Criminal no Juizado Especial Criminal da Comarca de Rio Grande –RS