Resumo: Este trabalho versa sobre as cotas eleitorais de gênero como um instrumento de ação afirmativa eleitoral, tendo em vista a evolução do princípio constitucional da igualdade e seus atuais contornos. Objetiva refletir sobre a validade da reserva de candidaturas constantes do art. 10§3º da Lei nº 9.504, alterada pela Reforma Eleitoral de 2009, como uma ferramenta apta a franquear maior acesso às mulheres na esfera política nacional. A metodologia empregada constitui-se em ampla pesquisa bibliográfica, artigos e monografias publicadas, legislação vigente e jurisprudência dos tribunais superiores, bem como dados em sites institucionais. Investiga o ainda desconhecimento da norma e meios de atribuir a tal legislação maior efetividade, tendo como parâmetro algumas iniciativas já adotadas na sociedade e nos órgãos públicos, bem como a opinião popular sobre o tema.
Palavras-chave: ações afirmativas, cota eleitoral por gênero, igualdade.
Abstract: This paper discusses the electoral quotas for gender as an instrument of electoral affirmative action in view of the evolution of the constitutional principle of equality and its current contours. Reflects on the validity of the reservation of applications under art. 10 § 3 of Law No. 9504, as amended by the Electoral Reform of 2009, as a mechanism capable of franking greater access to women in the national politics. The methodology consists in extensive literature, articles and published monographs, legislation and jurisprudence of higher courts, as well as data on institutional websites. Further investigates the ignorance of the law and means of turning legislation more effective, having as parameter some initiatives already taken in society and in government agencies, as well as popular opinion on the subject.
Keywords: affirmative actions, electoral quota for gender, equality.
Sumário: 1.Introdução – 2. Algumas Observações Acerca dos Direitos Fundamentais – 3. Direito Fundamental à Igualdade – 4. Discriminação Contra a Mulher – 5. Ações Afirmativas: Possibilidade de Concretização do Direito Fundamental à diferença – 6. O artigo 10,§3º da Lei 9.504: Cota Eleitoral de Gênero – 9. Conclusão. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O problema estudado neste trabalho refere-se ao instituto da cotas eleitorais por gênero dado o ainda desconhecimento de suas potencialidades. O objetivo é demonstrar as razões de seu uso como um instrumento eficaz de ação afirmativa, apto a franquear maior ingresso das mulheres no cenário eleitoral brasileiro. Configura razão deste trabalho não propor mudanças no sistema legislativo já implantado, mas a otimização dos recursos existentes.
O transcorrer de um quadro histórico no qual as mulheres sofreram inúmeras limitações é ainda hoje sentido no seio da sociedade. A almejada igualação entre homens e mulheres ainda é um processo em andamento, que muito embora traga avanços significativos, carece de maior destaque do papel da mulher em determinados nichos, mormente nas relações de poder.
Valendo-nos da atual configuração constitucional dos contornos do princípio da igualdade, com sua mudança de uma igualdade formal para o ideal de uma igualdade substancial, faremos uma análise das ações afirmativas como mecanismo concretizador do direito fundamental à diferença. Levar-se-á em conta a evolução dos direitos fundamentais, de modo a contextualizar como tal metamorfose na leitura do principio da isonomia foi sendo delimitada até o que hoje representa.
Justifica-se este estudo porque, embora inegável a obrigatoriedade da norma insculpida no artigo 10§3° da Lei 9.504 de 30 de setembro de 1997 (Lei das Eleições) alterado pela Lei nº 12.034, de 2009, há a necessidade de se observar seu fiel cumprimento. A fiscalização da regularidade dos percentuais exigidos pela legislação, a promoção desta discriminação positiva pelos órgãos públicos e a organização da sociedade civil em sua divulgação são fatores primordiais para o alcance desta valiosa meta.
2. ALGUMAS OBSERVAÇÕES ACERCA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
A configuração contemporânea do Direito Constitucional é indissociável da noção de Direitos Fundamentais[1]. A sedimentação de que as Constituições representam o ápice normativo e vinculante do ordenamento jurídico e que suas prescrições não representam tão somente uma carta de intenções trouxe novos contornos à proteção da dignidade da pessoa humana.
É evidente que a atual configuração resulta de um longo e inacabado processo de evolução da sociedade. Em que se pese as críticas[2] à teorização das Gerações dos Direitos Fundamentais, faremos menção a tal estudo não para fins propriamente de categorização de tais direitos, mas sim para identificar seu processo construtivo.
Marco histórico da primeira geração de direitos fundamentais[3], as chamadas revoluções liberais burguesas norte-americana e francesa ocorridas no final do Século XVIII, possuíam como reivindicação nuclear a limitação do poder estatal em prol do respeito às liberdades individuais (recordemo-nos do absolutismo). Os direitos de primeira geração por excelência são os direitos civis e políticos[4]. Defesas do indivíduo em face do Estado, são dotados de caráter negativo por atribuírem ao Estado um dever de abstenção.
Neste ponto, pretendemos apenas uma anotação: se por um lado, a participação política exige uma não ingerência estatal na liberdade de escolha, há a ressalva de que este mesmo Estado deverá propiciar meios materiais para que o processo eleitoral se realize (postura essa inegavelmente positiva). Além disso, a afirmação de que esses direitos não possuem custo, por constituírem um dever de abstenção, não se aplica evidentemente aos direitos políticos, já que, como é sabido, a realização do processo eleitoral possui custos (e normalmente bem elevados).
Seguindo a marcha histórica, os direitos de segunda geração são resultado do esgotamento fático do Estado liberal, do qual emergiram as reivindicações proletárias, da qual o grande exemplo é a Revolução Industrial. Aqui, são consagrados os direitos prestacionais sociais, econômicos e culturais que passam a exigir por parte do Estado atuação positiva para a implementação de prestações materiais e jurídicas para a atenuação da desigualdade. Cogita-se de uma igualdade não mais no papel, mas da existência de condições materiais para que um indivíduo tenha oportunidades como seus pares. Direitos sociais, econômicos e culturais, normalmente são direitos coletivos. A esta dimensão atribui-se também as garantias institucionais.
A terceira geração [5] está intimamente ligada à fraternidade e solidariedade. Espelho das distorções trazidas pela crescente globalização, os direitos normalmente citados incluem os direitos transindividuais ao desenvolvimento ou progresso, ao meio ambiente, à autodeterminação dos povos, à comunicação, à propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e à paz.
Como antes ressalvado, o elenco de tais gerações se faz para uma melhor compreensão do tema. Assim, não interfere[6] a opção por um dado direito nesta ou naquela dimensão, mas sim o entendimento do enraizamento dos direitos fundamentais em nossa ordem jurídica. Partindo dessa premissa, segundo Paulo Bonavides apud Novelino (p. 388 e 389), a globalização política é referência para a quarta geração, a qual é delimitada pela democracia, informação e pluralismo.
Quando se fala em tais direitos são necessários alguns apontamentos. Atualmente, a democracia não pode ser mais vista apenas sob seu aspecto formal, como sendo vontade da maioria. Ela deve ser analisada por um prisma substancial, compreendendo a vontade da maioria aliada à proteção dos direitos fundamentais inclusive das minorias. Sobretudo, a democracia por não ser um valor recebido se não a muito custo, deve ser realizada em toda sua plenitude.
De igual modo, o pluralismo -fundamento da República Federativa do Brasil- não deve simploriamente ser considerado sinônimo de pluralismo político. O pluralismo vai além, denotando a diversidade religiosa, cultural, artística, ideológica, étnica e sexual.
Desta feita, tendo exposto a sucessão de gerações, imperioso dizer que os direitos previstos em um dado momento histórico não serão substituídos por aqueles surgidos posteriormente. Os direitos de cada geração continuam igualmente válidos, lado a lado com os da nova geração, mesmo que com novos significados e contornos.
Consolidando esse cronograma para os direitos fundamentais, salutar as palavras de Gilmar Mendes:
“A visão dos direitos fundamentais em termos de gerações indica o caráter cumulativo da evolução desses direitos no tempo. Não se deve deixar de situar todos os direitos num contexto de unidade e indivisibilidade. Cada direito de cada geração interage com os das outras e, nesse processo, dá-se à compreensão. (p. 174).”
A igualdade da primeira geração, a título demonstrativo, já não é a mesma igualdade representada na segunda geração. Aliás, como cogitar ser igual se as circunstâncias fáticas, se o panorama social revela uma gritante discrepância entre estamentos, gêneros e etnias?
5. DIREITO FUNDAMENTAL À IGUALDADE
Como visto, ao passo que os direitos de liberdade asseguram ao seu titular o direito a resistir contra ingerências estatais, o direito à igualdade não determina nenhum comportamento específico cujo exercício pudesse ser usurpado pelo Estado.
Segundo as valiosíssimas reflexões de Carmen Lucia Antunes Rocha, devemos indagar se a igualdade tida como uma formalização da proibição de tratamento desigual torna o princípio ora em fomento, verdadeiramente eficaz:
“a igualdade é um direito efetiva e eficientemente assegurado no sistema constitucional pela sua mera formalização no rol de direitos fundamentais, no qual se proíbe a manifestação do preconceito?(…)
desde a década de 60, especialmente,começou a se fazer patente aos que tinham olhos com que ver claro que o Direito Constitucional acanhava-se em sua concepção meramente formal do princípio denominado isonomia,despojado de instrumentos de promoção da igualdade jurídica como vinha sendo, até então,cuidado. Concluiu-se, então, que proibir a discriminação não era bastante para se ter a efetividade do princípio da igualdade jurídica. O que naquele modelo se tinha e se tem é tão somente o princípio da vedação da desigualdade, ou da invalidade do comportamento motivado por preconceito manifesto ou comprovado (ou comprovável), o que não pode ser considerado o mesmo que garantir a igualdade jurídica. (…)
Urgia, pois, que se promovesse constitucionalmente, por uma remodelação da concepção adotada pelo sistema normativo democrático, a igualdade jurídica efetiva, a dizer, promotora da igualação. Os iguais mais iguais que os outros já tinham conquistado o “privilégio” da igualdade. E os desiguais, ou aqueles histórica e culturalmente desigualados, sujeitos permanentes do Direito formal, mas párias do Direito aplicado, que não conseguiam ascender à igualdade jurídica desejada?” (Grifo nosso).
O direito de resistência, no que se refere ao direito de igualdade, consiste em se opor ao tratamento desigual perante a lei ou pela lei, isto é, respectivamente a garantia de tratamento uniforme e a desigualdade de tratamento legal fundada em elementos discriminatórios racionalmente justificáveis. Assim, as ordens jurídicas devem buscar a igualdade de fato (igualdade material) entre as pessoas e não apenas a igualdade perante a lei (igualdade formal).
Segundo as lições trazidas pelos Cinqüenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão (Bundesverfassungsgericht), as possíveis violações de garantias de igualdade podem ser verificadas por meio de um processo constituído basicamente por duas etapas. Primeiramente há que se fazer a verificação do tratamento desigual e posteriormente sopesar se o fator do discrímen é passível de justificação. Se o tratamento diferenciado concedido a um indivíduo ou a um dado grupo for justificável, por existir correlação lógica entre o fator de discriminação levado em consideração e a norma ou conduta, o princípio da igualdade restará preservado.
Neste contexto, emerge a utilização de ações afirmativas como instrumento de realização da igualdade material, visto que a inércia estatal e até mesmo da sociedade, foram incapazes de alçar o princípio da igualdade a um patamar de relevo.
6. DISCRIMINAÇÃO CONTRA A MULHER
Herança de séculos de história, a discriminação de gênero é traço marcante da tradicional cultura patriarcal brasileira. Explica-nos Joaquim Barbosa:
“o status de inferioridade da mulher em relação ao homem foi por muito tempo considerado como algo, decorrente da própria “natureza das coisas”. A tal ponto que essa inferioridade era materializada expressamente na nossa legislação civil. A Constituição de 1988 (art. 5º, I) não apenas aboliu essa discriminação chancelada pelas leis, mas também, por meio dos diversos dispositivos antidiscriminatórios já mencionados, permitiu que se buscassem mecanismos aptos a promover a igualdade entre homens e mulheres.”
Explicitando o dispositivo citado, a atual Constituição em seu artigo 5º, inciso I, afirma que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”. De tal texto retira-se a norma que a lei infraconstitucional não pode estabelecer distinções, exceto quando ambiciona reduzir desníveis, hipótese na qual estaria em busca da igualdade material constitucionalmente almejada.
Em que pese a inegável ascensão do papel feminino, há odiosos resquícios de sujeição da mulher[7] e ainda obstáculos a serem transpostos na luta pela igualdade de direitos entre os sexos. De forma elucidativa, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – ratificada pelo Brasil – mostra-nos de que formas se operam a discriminação:
“Artigo 1º. Para os fins da presente Convenção, a expressão "discriminação contra a mulher" significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.”
A discriminação representa, senão a maior, uma das mais difíceis barreiras a ser afastada para que homens e mulheres compitam em pé de igualdade. Ademais, é leviano acreditar que não subsista o preconceito contra as mulheres. Inúmeras são os entraves à participação igualitária em diversos campos da vida social. As representantes do sexo feminino são ainda subrepresentadas politicamente, preteridas no mercado de trabalho ou atingidas por disparidades salariais gritantes e vítimas de assédio sexual e moral, e, muitas vezes, economicamente dependentes. Desta forma, diante de um preconceito patente, por que não cogitar da utilização das affirmative actions como um instrumento de promoção de uma verdadeira igualdade entre homens e mulheres? É esta também a indagação de Carmem Lucia:
“por que não poderiam as mulheres serem afirmadas em condição de desigualação positiva, para virem a ocupar o espaço político que lhes foi negado tradicionalmente, numa atitude histórica indubitável de absoluto preconceito e desconsideração social? As mulheres têm as mesmas oportunidades que os homens na sociedade brasileira para os cargos de comando? Porque para os empregos e cargos de menor significação político-decisória não apenas se têm os mesmos direitos, como alguns são considerados destinados às mulheres. São assim aqueles que se vocacionam ao desempenho de tarefas domésticas ou artesanais, são assim aqueles que se têm, no serviço público, como atividades-meio, dentre outros que se poderiam citar. E na esfera política? As mulheres do mundo deste quase século XXI, sendo mais da metade da população, sendo quase a metade da população incumbida da atividade econômico produtiva, são quase a metade das pessoas que ocupam os cargos de comando político institucional nos Estados? Têm elas as mesmas condições de disputa? Representam sem preconceito ou discriminação na igualdade do seu desempenho sócio-econômico e cultural? Recebem a mesma educação para a competição que os homens? São iguais no Direito? Em que Direito?”
Mas no que efetivamente consistem tais ações afirmativas e como são implementadas?
7. AÇÕES AFIRMATIVAS: POSSIBILIDADE DE CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À DIFERENÇA.
As ações afirmativas ou discriminações positivas, conjuntamente com outras experiências que germinaram nas décadas de 70 e 80, são devidas, em grande parte, à atuação da Suprema Corte Norte Americana.
Segundo Roberta Menezes Kaufmann (p. 220) as ações afirmativas podem ser compreendidas como:
“um instrumento temporário de política social, praticado por entidades privadas ou pelo governo, nos diferentes poderes e nos diferentes níveis, por meio do qual se visa a integrar certo grupo de pessoas à sociedade, objetivando aumentar a participação desses indivíduos sub-representados em determinadas esferas, nas quais permaneceriam alijados por razões de raça, sexo, etnia, deficiências física e mental ou classe social. Procura-se, com tais programas positivos, promover o desenvolvimento de uma sociedade plural, diversificada , consciente, tolerante às diferenças e democrática, uma vez que concederia espaços relevantes para que as minorias participassem da comunidade.” (Grifo nosso).
Do trecho ora transcrito, compreendemos que as discriminações positivas tratam de políticas públicas ou privadas, direcionadas para grupos socialmente vulneráveis, as quais objetivam remediar ou, ao menos, atenuar distorções históricas e oportunizar igualdade de tratamento e de oportunidades no presente.
De forma complementar, são os ensinamentos de Carmem Lucia:
“Assim, a definição jurídica objetiva e racional da desigualdade dos desiguais, histórica e culturamente discriminados, é concebida como uma forma para se promovera igualdade daqueles que foram e são marginalizados por preconceitos encravados na cultura dominante na sociedade. Por esta desigualação positiva promove-se a igualação jurídica efetiva; por ela afirma-se uma fórmula jurídica para se provocar uma efetiva igualação social, política, econômica no e segundo o Direito, tal como assegurado formal e materialmente no sistema constitucional democrático. A ação afirmativa é, então, uma forma jurídica para se superar o isolamento ou a diminuição social a que se acham sujeitas as minorias.”
Inegavelmente as ações afirmativas de maior conhecimento do público em geral são as cotas raciais para ingresso no ensino superior [8]. Todavia, inúmeras outras ações positivas podem ser ilustrativamente mencionadas[9], a saber: as cotas para deficientes físicos em empresas com mais de cem trabalhadores, os cursos de preparação para concursos voltados para a população negra ou de baixa renda, a licença no caso de adoção de criança por mãe solteira, a lei Maria da Penha (11.340/06), a hipótese de dispensabilidade de licitação por associação de portadores de deficiência física[10], além é claro das cotas de gênero consagradas na legislação eleitoral, objeto maior de nossa atenção.
Hodiernamente são contrapostos como argumentos favoráveis e desfavoráveis às ações afirmativas as justiça compensatória e distributiva. Esta pautada no presente e àquela no passado, buscam respectivamente a promoção de oportunidades para aqueles que não conseguem se fazer representar igualitariamente e reparar injustiças ou discriminações ocorridas em tempos pretéritos. Faz-se mister ressaltar que o argumento da justiça compensatória não é esmagadoramente aceito até mesmo dentre os defensores das discriminações positivas dada a dificuldade em se encontrar os verdadeiros beneficiários destas indenizações.
Outro ponto de fundamental impacto nas acaloradas discussões acerca das ações afirmativas é a discriminação reversa. Argumenta-se, por exemplo, que aquele agraciado com uma vaga em universidade pública pelo sistema de cotas seria não bem recebido pelos demais colegas, os quais enxergariam no cotista alguém não capaz e não merecedor da vaga. Questionar-se-ia se o indivíduo branco seria preterido em relação ao negro. Contrario sensu, pondera-se que a prática de programas positivos promoveriam a diversidade nos ambientes em que fossem instaurada, promovendo uma sociedade verdadeiramente plural.
Evidente que, conforme ressalva Kaufmann (p.221), ações afirmativas ilimitadas no tempo terminariam por ferir o subprincípio da proporcionalidade, proibição do excesso. Isso decorre inclusive do caráter temporário que tais mecanismos de discriminação positiva devem conter, por serem medidas especiais que buscam agilizar o processo de aquisição da igualdade substantiva por parte de grupos socialmente desprestigiados. Logo, atingida a igualação desejada, cessa também a medida observada.
8. O ARTIGO 10,§3º DA LEI 9.504: COTA ELEITORAL DE GÊNERO
A atual redação do artigo 10, §3º, da Lei 9.504/97 estabelece a cota eleitoral para o sexo feminino, e assim dispõe:
“Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo”.
No histórico das cotas eleitorais por gênero, foi inicialmente promulgada em 1995 a Lei n. 9.100, a qual prescrevia a exigência do registro de no mínimo 20% de candidaturas femininas por cada partido ou coligação. No mesmo ano, a então Deputada Federal Marta Suplicy elaborou o Projeto de Lei 783, que cominou na revogação do art. 92 do Código Eleitoral, aumentando o percentual mínimo para 30%, e a substituição da referida lei pela Lei n. 9.504 de 1997.
A Lei 9.504/1997, devido à redação dada ao art. 10, § 3º, deixou a gosto dos partidos o cumprimento da cota estipulada. Decorrência da expressão “deverá reservar”, foi durante muito tempo alvo de polêmica a correta interpretação do dispositivo. Jaime Neto recorda que de um lado apresentava-se uma corrente no sentido de que em não havendo candidatos em número suficiente para garantir o mínimo de 30% de determinado sexo, estaria o partido autorizado a preencher as vagas remanescentes com candidatos do sexo oposto; e, diametralmente oposta, corrente que entendia que tal preenchimento não seria possível, ficando o partido impedido de lançar candidatos de um mesmo sexo em número superior a 70% do total de candidatos possíveis de serem lançados pelo partido/coligação. Este já era a posição da Corte Eleitoral:
“[…] Registro. Vagas destinadas a candidatura de mulheres. Interpretação do § 5º do art. 10 da Lei nº 9.504/97. A análise do § 5º deve ser feita sistematicamente com o disposto no § 3º da mesma lei. Impossibilidade de preenchimento por candidatura de homem. […]”(Ac. no16.632, de 5.9.2000, rel. Min. Costa Porto;no mesmo sentido o acórdão nº12.834, de 19.8.96, rel. Min. Francisco Rezek.)
“[…] Renúncia de candidatos. Vagas reservadas a mulheres. Estatuto partidário. Não pode dispor contra norma legal. […]” (Res. nº 19.582, de 30.5.96, rel. Min. Diniz de Andrada.)
Assim, o Congresso Nacional aprovou em 2009, a Lei 12.0348, amplamente divulgada como minirreforma eleitoral, estabelecendo novos mandamentos. A expressão “deverá reservar" foi substituída por "preencherá", atribuindo caráter cogente à norma, eliminando de vez dúvidas acerca de sua obrigatoriedade.
Vale ressaltar que os percentuais estipulados, em interpretação gramatical ou literal, não se vinculam a nenhum sexo, aplicando-se, a rigor, a ambos. Desta forma, se um partido político ou coligação dispusesse de 100 candidaturas, poderia apresentar 70 homens e 30 mulheres, ou 30 mulheres e 70 homens. No entanto, é inegável que a reserva destes percentuais objetiva garantir uma maior participação feminina na vida política brasileira.
Há que se reforçar que o cálculo dos percentuais de 30% e 70% deve levar em conta o número de registros de candidaturas efetivamente requerido pelas agremiações, e não o número previsto em abstrato pelo artigo 10, caput e §1º[11], da Lei das Eleições.
Logo, se um partido não angariar número suficiente de candidatos homens e mulheres, em consonância à cota eleitoral, não poderá preencher com candidatos de um sexo as vagas destinadas ao outro sexo. Concordar com tal pensamento redundaria em esvaziar o conteúdo prescrito pela norma, violando os princípios que ela busca tutelar.
Em tal hipótese, de acordo com o entendimento já exarado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), deverá a agremiação adequar o número de candidatos à proporção definida pela legislação eleitoral:
“Registro de candidaturas. Percentuais por sexo. 1. Conforme decidido pelo TSE nas eleições de 2010, o § 3º do art. 10 da Lei nº 9.504/97, na redação dada pela Lei nº 12.034/2009, estabelece a observância obrigatória dos percentuais mínimo e máximo de cada sexo, o que é aferido de acordo com o número de candidatos efetivamente registrados. 2. Não cabe a partido ou coligação pretender o preenchimento de vagas destinadas a um sexo por candidatos do outro sexo, a pretexto de ausência de candidatas do sexo feminino na circunscrição eleitoral, pois se tornaria inócua a previsão legal de reforço da participação feminina nas eleições, com reiterado descumprimento da lei. 3. Sendo eventualmente impossível o registro de candidaturas femininas com o percentual mínimo de 30%, a única alternativa que o partido ou a coligação dispõe é a de reduzir o número de candidatos masculinos para adequar os respectivos percentuais, cuja providência, caso não atendida, ensejará o indeferimento do demonstrativo de regularidade dos atos partidários (DRAP). […]”.(Ac. de 6.11.2012 no REspe nº 2939, rel. Min. Arnaldo Versiani.)
“Candidatos para as eleições proporcionais. Preenchimento de vagas de acordo com os percentuais mínimo e máximo de cada sexo. 1. O § 3º do art. 10 da Lei nº 9.504/97, na redação dada pela Lei nº 12.034/2009, passou a dispor que, "do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo", substituindo, portanto, a locução anterior "deverá reservar" por "preencherá", a demonstrar o atual caráter imperativo do preceito quanto à observância obrigatória dos percentuais mínimo e máximo de cada sexo. 2. O cálculo dos percentuais deverá considerar o número de candidatos efetivamente lançados pelo partido ou coligação, não se levando em conta os limites estabelecidos no art. 10, caput e § 1º, da Lei nº 9.504/97. 3. Não atendidos os respectivos percentuais, cumpre determinar o retorno dos autos ao Tribunal Regional Eleitoral, a fim de que, após a devida intimação do partido, se proceda ao ajuste e regularização na forma da lei. […]”(Ac. de 12.8.2010 no REspe nº 78432, rel. Min. Arnaldo Versiani.)
Além disso, a resolução que dispõe sobre a escolha e o registro de candidatos nas eleições de 2012 (Res. nº 23.373 do TSE) trouxe importantes instrumentos para amparar a garantia do cumprimento dos percentuais exigidos para um e outro sexo, como o aviso sobre o descumprimento dos percentuais de candidaturas para cada sexo quando da geração do meio magnético pelo CANDex (sistema de candidaturas desenvolvido pelo TSE)[12], e o dever do Cartório Eleitoral de informar, nos autos do processo do pedido de registro, sobre a observância ou não dos percentuais em comento (art. 37, § 1º, IV).[13]
No que tange ao cálculo dos percentuais sobre a base de vagas que poderão ser apresentadas em abstrato (art. 10, caput e §1º, da Lei 9.504/97) pode resultar em fração. Em regra, na hipótese de resultado fracionário, o §4º do art. 10 da Lei das Eleições estipula que deve ser desprezada a fração, se inferior a meio, e igualada a um, se igual ou superior. Todavia, no caso da cota eleitoral de gênero, a Resolução do TSE nº 21.608/2004 estabeleceu – conforme se depreende dos julgamentos a seguir transcritos – que, na reserva de vagas por sexo, qualquer fração será igualada a um no cálculo do percentual mínimo para um dos sexos e desprezada no cálculo das vagas restantes para o outro sexo.
“Embargos de declaração. Recurso especial. Registro de candidato. Número de vagas a serem preenchidas na Câmara Municipal. Forma de cálculo. Não há falar em contradição entre o § 4º do art. 21 da Resolução-TSE nº 21.608 e o § 4º do art. 10 da Lei nº 9.504/97. Ausência de obscuridade. Embargos parcialmente providos para sanar a omissão apontada”.NE:O § 4º do art. 21 da Resolução-TSE nº 21.608/2004 estabeleceu que, na reserva de vagas por sexo, qualquer fração será igualada a um no cálculo do percentual mínimo para um dos sexos e desprezada no cálculo das vagas restantes para o outro sexo. (Ac. nº 22.764, de 13.10.2004, rel. Min. Gilmar Mendes.)
“(…) Esclarecimento. Art. 19, § 4º, da Res.-TSE nº 20.993. Critérios para o cálculo da reserva de vagas para cada sexo. Fração desprezada. A fração a ser desprezada é aquela que ocorrer no cálculo do percentual máximo a ser reservado para cada sexo e não aquela que for encontrada no cálculo para a definição do número total de candidatos, que é apurado com base nos critérios estabelecidos no art. 10, §§ 1º a 4º, da Lei nº 9.504, de 1997.” (Res. nº 21.071, de 23.4.2002, rel. Min. Fernando Neves.)
Com efeito, o momento correto para a verificação de tais percentuais é quando do Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários (DRAP). Se não este o teor da jurisprudência do TSE:
“Registro de candidatura. DRAP. […] 3. A alegação de suposta não observância de regras estatutárias no que tange à adequação das cotas por gênero deveria ter sido discutida no DRAP, que foi deferido e transitou em julgado. 4. Dado o caráter imutável da decisão proferida no DRAP, não cabe, no processo individual em que só se examinam requisitos específicos do candidato, pretender reabrir a discussão alusiva à questão. […]” (Ac. de 6.11.2012 nos ED-REspe nº 25167, rel. Min. Arnaldo Versiani.)
“[…]. Eleições 2012. DRAP. Percentuais de gênero. Não observância […]. 1. A norma prevista no art. 10, § 3º, da Lei 9.504/97 tem caráter objetivo e o seu descumprimento impede a regularidade do registro da coligação ou do partido interessado em participar das eleições. 2. No caso, facultou-se à coligação, no prazo legal, adequar o DRAP aos percentuais de gênero, mas a determinação não foi atendida oportunamente. 3. Inviável a análise documental em recurso de natureza extraordinária para se aferir a suposta adequação do DRAP aos percentuais de gênero. […]” (Ac. de 6.11.2012 no AgR-REspe nº 11781, rel. Min. Nancy Andrighi.)
“[…] Na espécie, o Partido da República (PR) juntou ata partidária, após o prazo ofertado para cumprimento da diligência, com o intuito de comprovar que satisfez exigência legal (reserva legal de gênero, dos pré-candidatos). A ata foi considerada inautêntica e extemporânea pela e. Corte Regional. […]”NE:“[…] O agravante tenta, ainda, comprovar ofensa ao art. 33 da Resolução 22.717/08, por entender que os candidatos poderiam ser chamados para corrigir o erro detectado (excesso de candidatos do gênero masculino). […] A falha na reserva legal de vagas, por sexo, somente poderia ser suprida pelo Partido da República por meio de seus representantes, uma vez que não se tratava de pedido individual de registro de candidatura, mas sim de Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários (DRAP).” (Ac. de 29.9.2008 no AgR-REspe nº 30.068, rel. Min. Felix Fischer.)
Convém ainda observar que a referida reforma provocou mudanças também na Lei dos Partidos Políticos (lei nº 9.096 de 19 de setembro de 1995), determinando a reserva de no mínimo 10%[14] do tempo de propaganda partidária para o incentivo da participação feminina na política e a destinação de 5%[15] do Fundo Partidário para a criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres. Tais disposições só vem a reforçar o desejado incremento na ainda incipiente participação feminina nas eleições.
A equidade de gênero na legislação, já é um considerável avanço nas ações afirmativas eleitorais tocantes à participação e à representação política das mulheres. Porém, para que essa lei goze de eficácia algumas barreias devem ser vencidas. Para que o fim almejado pelo dispositivo legal seja alcançado um desafio é a própria divulgação do tema junto à população, sua defesa no seio dos órgãos institucionais e dentre os próprios partidos políticos.
Recente iniciativa de destaque deve ser atribuída ao Ministério Público Federal, especificamente a Procuradoria Regional Eleitoral de São Paulo [16]. A instituição promoveu audiência pública para discutir a implementação das cotas de candidaturas por sexo nas eleições municipais de 2012. Como resultado destes trabalhos, a Procuradoria expediu recomendação aos promotores eleitorais para que dêem publicidade à cota de gênero por meio de seus sites institucionais e pela mídia municipal; que, quando da análise do Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários (DRAP) fiscalizem a exigência dos percentuais exigidos pela legislação eleitoral; e, que apresentem impugnação ao DRAP na hipótese de inobservância do percentual de candidaturas para cada sexo, independente das eventuais medidas adotadas de ofício pelos juízes.
Dentre as iniciativas governamentais, em agosto de 2008, foi lançada a campanha “Mais Mulheres no Poder: Eu Assumo Este Compromisso”, reeditada em 2010 e 2012 – iniciativa do Fórum Nacional de Instâncias de Mulheres de Partidos Políticos e do CNDM (Conselho Nacional dos Direitos da Mulher) com apoio da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. No campo da sociedade civil organizada frisamos os trabalhos das mais diversas ONGs, como por exemplo, o Centro Feminista de Estudos e Assessoria – CFEMEA.
Desde a sua implementação, a política positiva ora em apreço incrementou o número de representantes do sexo feminino na esfera pública:
“Assim, as mencionadas leis consagram a recepção definitiva pelo Direito brasileiro do princípio da ação afirmativa. Ainda que limitada a uma forma específica de discriminação,o fato é que essa política social ingressou nos “moeurs politiques” da Nação, uma vez que foi aplicada sem contestação em dois pleitos eleitorais. (…) Por exemplo, na esfera municipal, após as eleições de 1996, verificou-se um aumento de 111% das vereadoras eleitas em relação às eleições municipais anteriores. Assim, tomando-se como referência o ano de 1982, porque coincide com o início da abertura política no país, verifica-se que o percentual de vereadoras correspondia a 3,5% do total; em 1992, o índice situava-se na faixa dos 8%; e nas eleições de 1996, esse percentual passa a corresponder a 11% do total de representantes nas Câmaras Municipais”.(Barbosa)
Ao contrário de muitas outras ações afirmativas (v.g: cotas raciais), a reserva de candidaturas para mulheres parece gozar de boa aceitabilidade, conforme os dados estatísticos da “Pesquisa de opinião pública: Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado” do Ibope/Instituto Patrícia Galvão/Cultura Data, com apoio da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres reproduzidos no Informativo de fevereiro de 2012 da Procuradoria Regional Eleitoral de São Paulo revelam que a cota eleitoral por gênero é conhecida apenas por 24% dos brasileiros, sendo que apenas 20% das mulheres entrevistadas dela tinham conhecimento. Ainda assim, os dados revelaram que 83% dos entrevistados acreditam que a presença de mulheres na política resulta numa melhoria desses espaços. Ademais – e talvez o dado mais atinente ao nosso tema – 80% das pessoas são favoráveis a medidas legislativas que promovam a igualdade política entre homens e mulheres (76% dos homens e 83% das mulheres). 75% dos entrevistados declararam-se favoráveis à política de cotas para mulheres e 67% concordam que os partidos que não cumprem com as cotas previstas nas leis eleitorais deveriam ser punidos.
9. CONCLUSÃO
O presente trabalho objetivou analisar as cotas para candidatura em razão do gênero em virtude do ainda desconhecimento do instituto. Longe de esgotar o tema, fornecemos, nestas considerações finais, as principais sínteses do presente trabalho.
Conforme visto, a elevação do direito fundamental à igualdade pressupõe não somente a não-discriminação, mas a sua utilização como mecanismo de efetivo acesso a oportunidades por grupos sociais desprestigiados. Neste cenário, surgem as ações afirmativas como políticas realizadas pelo Estado ou pela iniciativa privada, com o objetivo de reparar um histórico de discriminação e marginalização decorrentes de motivos raciais, religiosos, sexuais (dentre outros), visando a inclusão social dos mesmos.
Trouxemos à discussão a reserva de pelo menos 30% (trinta por cento) das candidaturas para representantes do sexo feminino pelos partidos ou coligações partidárias.
Fato é que a participação política feminina nos pleitos eleitorais ainda é bastante reduzida e a regulamentação do artigo 10,§3° da lei 9.504 configura –embora, isoladamente não possa resolver o problema– importante avanço. É primordial que se compreenda os programas de ações afirmativas não como mecanismo fim e único, mas como um pontapé para que a sociedade reveja a desigualdade nela existente.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional – 8ª ed. – Saraiva, 2013.
Informações Sobre o Autor
Fernanda Leal Barbosa
graduada em direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora/MG, pós graduada em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera Uniderp- Rede de ensino LFG, Advogada