Resumo: O presente trabalho objetiva, através da análise do instituto da jurisdição, sua definição e características, verificar se a arbitragem possui natureza jurisdicional.
Palavras chave: Jurisdição, natureza, jurídica, arbitragem.
Abstract: This article aims, through the analysis of jurisdiction, its definition and characteristics, check that the arbitration may be considered jurisdiction.
Key-words: Jurisdiction, arbitration, nature
Sumário: 1. Introdução; 2. Conceito de Jurisdição; 3. Características da função jurisdicional; 4. A jurisdição voluntária; 5. Limites da função jurisdicional; 6. Exercício atípico da função jurisdicional pelo Estado; 7. Meios alternativos de solução de conflitos; 8. Arbitragem: natureza jurisdicional; 9. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
Tradicionalmente o conceito de jurisdição se define pelo poder do Estado em aplicar o direito em substituição à vontade das partes. A partir deste conceito, formulado pela mais clássica doutrina, se estruturou o estudo sobre o instituto da jurisdição, através da definição dos seus principais elementos.
Não se pode perder de vista a linha histórica comumente traçada a respeito da evolução dos meios de solução de conflitos, que decorrem, segundo Carnelutti, da pluralidade de necessidades e escassez de bens.
Tais conflitos, em um primeiro momento, eram sanados pelo exercício da força (autotutela) ou pela desistência de uma das partes sobre o bem disputado. Surgem, ainda, as modalidade de solução de litígio através da autocomposição (conciliação, mediação), através de concessões recíprocas entre as partes, para, por fim, surgir a heterocomposição, cuja solução do conflito emana de terceiro que não está envolvido no impasse.
A heterocomposição pode ser observada desde o Direito Romano – pela atuação dos pretores –, entretanto, durante toda a Idade Média (feudalismo) e Idade Moderna (absolutismo) esteve subordinada aos ditames daquele que centralizava o poder (senhor feudal ou rei) e seus imediatos.
A queda do regime absolutista e a reformulação do conceito de Estado – que deixa de ser um elemento de submissão do povo à vontade do rei e se torna o meio pelo qual os indivíduos podem se agregar para exercer livremente a vida em sociedade – descentraliza o poder de solucionar conflitos das mãos do governante, e passa a ser exercido por pessoas que, conquanto componham o Estado, possuem independência administrativa e orçamentária deste governante.
A solução de conflitos se firma através da heterocomposição exercida pelo Estado através do Poder Judiciário que aplicará as normas – elaboradas, em regra, pelo Poder Legislativo – em substituição à vontade das partes. O Estado se consagra, portanto, como agente de solução de conflitos, sendo vedada expressamente a autotutela. Nesse contexto histórico, o conceito de jurisdição se estruturou.
A aplicação do direito pelo Estado se mostrou eficaz e compatível com o modelo de organização social durante muitos anos, seja porque no ápice do Estado liberal era imprescindível que o Estado tivesse uma atuação pontual e imparcial, seja porque, no Estado Social o Estado passou a ocupar, mais uma vez, um papel centralizador.
Entretanto, atualmente a estrutura Judiciária se mostra claramente inchada e ineficiente para atender à multiplicidade de demandas contemporâneas, sobretudo em razão do surgimento das “demandas de massa”.
A legislação passa a positivar o que a doutrina chama de “meios alternativos de solução de litígios”, entre os quais inicialmente se incluía a arbitragem. Ocorre que um estudo mais apurado deste instituto, sobretudo após a edição da Lei 9.307/96, permite verificar a coincidência entre o exercício da atividade jurisdicional e a atividade arbitral.
Ademais, e sem a pretensão de adentrar ao tema, o estudo de uma Teoria Geral do Processo traz consigo reflexões sobre o estudo do processo extrajurisdicional, no qual, por igual, ocorre a aplicação do direito para a solução de um conflito, sendo forçosa a indagação sobre qual seria o elemento distintivo da atividade jurisdicional, se o agente ou o seu objeto.
A primeira perspectiva, que foca o conceito de jurisdição no elemento subjetivo, haveria jurisdição somente quando a solução do conflito fosse realizada pelo Estado. Na segunda perspectiva, mantêm-se os demais elementos do conceito de jurisdição, entretanto, o exercício da atividade jurisdicional não seria exclusiva do Estado, mas de todo aquele que fosse devidamente investido para a aplicação do direito em substituição à vontade das partes.
Por fim, importa considerar que a Constituição Federal, conquanto ressalve que não se pode privar o acesso ao Poder Judiciário, jamais determina que a aplicação do direito em substituição à vontade das partes (jurisdição) deve ser exercida com exclusividade pelo Estado. O jurisdicionado tem a opção de escolher, ou não, o Estado para a solução do seu conflito; uma vez feita a opção pela solução Estatal não há como se criar empecilhos ao seu acesso.
Destarte, o presente trabalho trata, em um primeiro momento, de trazer a definição clássica do instituto da jurisdição e dos seus elementos característicos. Em seguida, importa destacar que, ainda no processo Estatal, a função jurisdicional não é exercida com exclusividade pelo Poder Judiciário.
Passo a frente, cumpre demonstrar que tal função também pode ser exercida em processos extraestatais, a exemplo do que ocorre na arbitragem. Por fim, será traçado um paralelo entre as características da atividade Estatal e arbitral para a solução de conflitos, destacando-se suas semelhanças e distinções.
2. CONCEITO DE JURISDIÇÃO
Importante defensor da exclusividade do Estado no exercício da função jurisdicional, Cassio Scarpenella Bueno[1] afirma que jurisdição
"[…] pode ser entendida como a função do Estado destinada à solução imperativa, substitutiva e com ânimo de definitividade de conflitos intersubjetivos e exercida mediante a atuação do direito em casos concretos. Tal exercício de atuação do Estado, contudo, não se limita à declaração de direitos, mas também à sua realização concreta, prática, com vistas à pacificação social."
Cândido Rangel Dinamarco também define jurisdição como “função exercida pelo Estado através de agentes adequados (os juízes), com vista à solução imperativa de conflitos interindividuais ou supra individuais e aos demais escopos do sistema processual”[2].
O referido autor afirma que a jurisdição, não obstante seja uma das expressões do poder Estatal, ao mesmo tempo também é uma função (serviço) que o Estado deve prestar com o objetivo de cumprir sua finalidade. Daí porque dizer que a jurisdição é um poder-dever do Estado, sobretudo em razão da previsão constitucional da inafastabilidade da jurisdição[3].
Arruda Alvim sintetiza que jurisdição é “dizer o direito no processo de conhecimento, e, quando necessário, realizá-lo coativamente (processo de execução)[4].
Ademais dos doutrinadores acima mencionados, é consenso na doutrina que a jurisdição se trata do poder, exercido em regra pelo Estado, de aplicar a lei para solucionar conflitos.
No ordenamento jurídico brasileiro, esse poder se encontra conferido pela Constituição Federal (CF, art. 2º e art. 5º, XXXV), e se realiza pelo processo. O processo seria, pois, o instrumento de atuação do poder jurisdicional, que imporia limites ao seu exercício, sobretudo através das normas constitucionais.
A jurisdição (poder de resolver conflitos) e o processo (meio pelo qual esse poder será exercido) devem concretizar os direitos e as garantias constitucionais.
3. CARACTERÍSTICAS DA FUNÇÃO JURISDICIONAL
A partir do conceito de jurisdição definido no item anterior, observa-se que o instituto possui precipuamente cinco características comumente elencadas pela doutrina:
a) substitutividade – o exercício da função jurisdicional (aplicação do direito) é substitutivo da vontade dos litigantes, impondo-se sobre eles de forma compulsória e obrigatória.
b) imperatividade – decorrência lógica da primeira característica, tendo em vista que a vontade do Estado substitui a vontade das partes, é forçoso que a jurisdição conte com meios suficientes para impor suas decisões. Para tanto, a legislação processual já conta com os instrumentos previstos no art. 14, V; art. 461, §§ 4º, 5º e 6º; e art. 475-J, que autorizam o juiz a se valer de medidas coercitivas para concretizar a solução dada ao litígio. Até porque, a função jurisdicional se realiza plenamente somente quando o direito declarado se verifica no mundo fenomênico.
c) imutabilidade – objetiva a concretização do escopo social do direito qual seja, a pacificação de conflitos. E mesmo por isso, apenas aquelas decisões que, de fato, resolvem o conflito (decisões de mérito) são acobertadas pela imutabilidade.
d) inafastabilidade – prevista no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, significa tanto a impossibilidade de se afastar o acesso ao Poder Judiciário para solução de conflitos, quanto a impossibilidade de o Estado deixar de solucionar o litígio que lhe for submetido.
e) inércia – a jurisdição somente será exercida pelo Estado, caso seja provocada pelas partes (CPC 2º)
Haverá exercício da função jurisdicional, portanto, quando, na medida do possível, estiverem presentes as referidas características. Isso porque, existem hipóteses nas quais algumas das características acima elencadas serão relativizadas em certa medida, sem que, com isso, deixe de existir jurisdição.
Apenas a título exemplificativo, (i) não fazem coisa julgada as decisões proferidas com fundamento em lei inconstitucional, restando relatividade a característica da imutabilidade; (ii) as decisões dos juizados especiais, na vigência da Lei 7.244/84, deveriam ser executadas perante a Justiça Comum, relativizando a imperatividade das decisões proferidas pelo próprio Poder Judiciário[5]; (iii) a celebração de convenção de arbitragem afasta a inafastabilidade do Poder Judiciário[6].
4. JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
A jurisdição voluntária está prevista no art. 1º, do Código de Processo Civil, e disciplinada nos arts. 1.103/1.210, também do mesmo diploma.
A natureza jurídica da jurisdição voluntária é controvertida, uma vez que a atuação do Estado não objetiva a solução de um conflito — e, portanto, não há substituição da vontade das partes –, mas tão somente a verificação do atendimento dos requisitos legais para a realização de determinado negócio jurídico celebrado entre entes privados.
Com efeito, a voluntariedade da “jurisdição voluntária” decorre da mencionada ausência de litígio entre os interessados na concessão da tutela jurisdicional, e não de voluntariedade no exercício da jurisdição. Nas hipóteses previstas em lei, é obrigatório que o jurisdicionado pleiteie em juízo o reconhecimento do direito.
Por outro lado, importa destacar que a atividade praticada pelo magistrado nesta hipótese não se trata da aplicação do direito, em substituição à vontade das partes, para solucionar um litígio, mais se assemelhando à atividade administrativa, na medida em que se trata da administração pública de interesses privados, por opção legislativa.
Tanto é assim que também por opção legislativa a Lei 11.441/2007 facultou aos interessados a possibilidade de realização de separação consensual, divórcio consensual, inventário e partilha consensual (arts. 982 e 1.124-A, do Código de Processo Civil) perante cartórios extrajudiciais.
Como se vê, a “jurisdição voluntária” não pode ser considerada como atividade jurisdicional, nos moldes acima definidos, porquanto se trata de atividade administrativa exercida pelo Poder Judiciário; tampouco é voluntária, uma vez que condiciona a validade do negócio jurídico à verificação do Estado, sedo, portanto, obrigatória.
Seria mais razoável considerar, portanto, que o condicionamento desses negócios jurídicos à verificação pelo Poder Judiciário se deve justamente à imutabilidade que grava as decisões proferidas no exercício da função jurisdicional. Isso porque o art. 1.111, do Código de Processo Civil determina que “a sentença poderá ser modificada, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, se ocorrerem circunstâncias supervenientes”.
Ao contrário do que foi defendido pela doutrina durante muito tempo, o dispositivo acima transcrito mais se presta a defender a coisa julgada formada no exercício da jurisdição voluntária, do que a negá-la, uma vez que a coisa julgada é a imutabilidade do conteúdo da sentença, impedindo a repropositura de ação com o mesmo objeto (causa de pedir e pedido).
Em qualquer demanda a alteração das circunstâncias de fato autoriza o jurisdicionado a propor nova ação, não se trata de uma especificidade da sentença proferida no exercício da jurisdição voluntária[7].
A atividade administrativa do Poder Judiciário, por imposição legal (“jurisdição voluntária”), se trata de função atípica desse Poder Estatal.
Mais importante de tudo, no entanto, é verificar que a “jurisdição voluntária” não é jurisdição por lhe faltar outro elemento que, conquanto seja essencial ao conceito de jurisdição, não se encontra entre aqueles comumente elencados pela doutrina, qual seja, a lide.
Como se viu no capítulo em que se conceituou jurisdição, as definições trazidas pela doutrina continham a solução de conflitos como elemento essencial ao conceito do instituto, de forma que não se pode dissociar a atividade jurisdicional da aplicação do direito para solução de conflitos.
É de rigor, portanto, que ao rol de cinco características acima elencadas para o instituto da jurisdição, se acrescente o sexto elemento, como já o fazia Carnelutti, qual seja, a lide.
5. LIMITES DA FUNÇÃO JURISDICIONAL
Delimitado o conceito de jurisdição, importa destacar qual a medida da expressão “dizer o direito”.
Sendo certo que a função jurisdicional é o poder do Estado em aplicar a lei, substituindo a vontade das partes, para pacificar um conflito, e, mais que isso, que essa pacificação pelo Estado é também um dever, o Poder Judiciário não terá cumprido sua missão até que o direito declarado em favor do jurisdicionado seja efetivamente satisfeito.
Isso que dizer que a expressão “dizer o direito” não somente abarca a declaração da existência de um direito, mas, por igual, a promoção dos meios em direito admitidos para o cumprimento da determinação contida na decisão judicial.
Em suma, assim como o jurisdicionado pode se recusar a cumprir o direito material, ensejando a possibilidade de atuação do Estado para declarar o direito daquele que foi prejudicado, existe a possibilidade do devedor se recusar a cumprir a decisão judicial sendo necessária nova intervenção Estatal para garantir que suas decisões sejam atendidas. Destarte, há jurisdição não apenas na atividade cognitiva, mas também na atividade executiva do exercida pelo juiz.
Estabelecida a premissa de que a função jurisdicional somente será cumprida com a efetivação do direito, a questão da expressão “dizer o direito” deve também ser analisada sob outro enfoque, qual seja a verificação do poder criativo da jurisdição.
A discussão é antiga e tem como expoentes os juristas Guiseppe Chiovenda[8] e Francesco Carnelutti[9].
O primeiro jurista expressamente afirma que, ao decidir, o juiz não cria nem modifica a lei, mas tão somente a aplica, ainda que a considere injusta. Essa limitação estaria garantida, inclusive, pelo recurso de cassação, que consiste em instituto voltado para manter a exata observância da lei.
Chiovenda afirma, ainda, que em um sentido formal, a lei é uma emanação de vontade dos órgão próprios da função legislativa, e que o juiz não pode examinar se a lei está tem o seu conteúdo conforme o “Statuto”, por lhe faltar o poder constituinte que sobra no Poder Legislativo.
Carnelutti, ao contrário, afirma que o ato legislativo não constitui a única função puramente jurídica do Estado, ou, em outros termos, não é a única maneira de produzir direito no ordenamento jurídico, concluindo que, tanto a atividade legislativa, quanto a atividade jurisdicional são aptas a produzir normas jurídicas.
A diferença estaria na função de cada uma delas, uma vez que o direito produzido no legislativo se trata de uma produção em série de casos típicos, de conteúdo abstrato e geral, o direito produzido no judiciário serviria à aplicação de casos concretos.
Da diferença de funções deriva uma diferença de estrutura no processo de formação do direito, segundo se trate de legislação ou jurisdição. Quando o juiz decide um caso concreto, pode se servir das partes como colaboradoras para a instrução do caso, fornecendo o juiz todos os elementos úteis para este proferir a decisão. Em suma, a característica da jurisdição é, por conseguinte, que o direito se produz “super partes”, mas se prepara “inter partes”.
No processo legislativo, ao contrário, os destinatários da norma jurídica tem uma missão puramente passiva, ao contrário do processo jurisdicional, no qual as partes não ocupam a posição de pacientas, e sim, a de agentes.
Conclui o autor que “mais que dois modos pelos quais o Estado produz direito diverso, são dois modos diversos de produzir direito”.
Com efeito, à luz dos posicionamentos acima expostos, é de rigor reconhecer que o reconhecimento de elemento criativo na função jurisdicional se coaduna com o objetivo de concretização das normas constitucionais.
Importante, por igual, é reconhecer que a possibilidade de “criar” o direito notadamente encontra limitação nas normas constitucionais, bem como deve ser realizada à luz do sistema jurídico, sob pena de se criar norma individual contrária às normas gerais já existentes.
6. EXERCÍCIO ATÍPICO DA FUNÇÃO JURISDICIONAL PELO ESTADO
Antes mesmo de se verificar a existência de jurisdição em processos extraestatais, importa trazer à tona que o exercício da função jurisdicional não é privativo do Poder Judiciário, podendo ser exercido, ainda que de maneira atípica, pelos demais “Poderes” do Estado.
Ainda que o poder do Estado seja uno, a tripartição das funções do Estado em três pilares distintos, operados por agentes igualmente distintos, delimitou que cada um desses pilares possui funções típicas e atípicas. Desse modo, aos agentes que compõem o Poder Judiciário cumpre o exercício da função jurisdicional como função típica.
Ocorre que os agentes responsáveis pelas prestações das demais funções do Estado também exercem a função jurisdicional de maneira atípica. Esclareça-se, que o termo “atípica” está empregado no sentido de “excepcional” e não para indicar algo feito sem a devida previsão legal; ao contrário, o exercício de funções atípicas de cada um dos poderes do Estado contém, inclusive, previsão constitucional para tanto.
Haverá função jurisdicional exercida pelo Poder Executivo, por exemplo, nas hipóteses de processos administrativos ou sindicâncias (art. 41, §. 1º, II, da Constituição Federal), ao tempo em que a mesma também será exercida pelo Poder Legislativo nas hipóteses de julgamento das contas da Presidência da República e no processo de impeachment de autoridades públicas (art. 49, IX e 52, I, também da CF, respectivamente).
Nesse contexto, resta imperioso concluir que a função jurisdicional é uma atividade que, quando exercida pelo Estado, não é realizada exclusivamente pelo Poder Judiciário, cabendo ao Estado, também no exercício de outras funções, aplicar o direito ao caso concreto.
Observe-se, no entanto, que nos casos acima mencionados, algumas das características anteriormente mencionadas como essenciais ao conceito de jurisdição restam, de certa forma, enfraquecidas, sem, contudo, descaracterizar por completo o instituto.
Não se pode deixar de observar que as decisões proferidas em processos administrativos, por exemplo, não são dotadas de imutabilidade, e tampouco o exercício da função jurisdicional depende do impulso da parte para se iniciar, entretanto, permanecem com a característica precípua de substituir a vontade das partes para solucionar conflitos, podendo, ainda, impor medidas coercitivas para o seu cumprimento.
Ainda que despojadas de parte das características acima assinaladas, é aceito por grande parte da doutrina que o desempenho dessas funções atípicas pela Administração Pública e pelo Legislativo consiste em atividade jurisdicional, do que se conclui que o conceito de jurisdição comporta a relativização de algumas de suas características, sem que, como isso, deixe de ser jurisdição.
7. MEIOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS
Meios alternativos de solução de litígio consistem em métodos de solução do litígio através da vontade das partes, e não em substituição à vontade das partes. São eles: a mediação e a conciliação.
Na mediação, um mediador estimulará os envolvidos a colocar fim ao litígio. Não há imperatividade do resultado da mediação, assim, o cumprimento das obrigações estabelecidas dependerá da vontade das partes. Não há regulamentação legal, apenas o PL 94/2002.
Na conciliação, por igual, o conciliador estimula as partes a buscar a solução da controvérsia. Entretanto, na hipótese de conciliação homologada judicialmente, o resultado da conciliação terá os mesmos efeitos de uma decisão decorrente do exercício da função jurisdicional. Tal fato se deve em razão de opção legislativa, conforme previsto no art. 475-N, III, do Código de Processo Civil, que qualifica como título judicial a “sentença homologatória de conciliação ou de transação, ainda que inclua matéria não posta em juízo”.
Importa destacar que tais meios alternativos de solução de litígio não se confundem com a arbitragem.
8. ARBITRAGEM: NATUREZA JURISDICIONAL
A arbitragem é instituto através do qual as partes conferem poder a terceiro para aplicar o direito e solucionar um conflito, hipótese que, sendo livremente escolhida pelas partes, afastará a apreciação do conflito pelo Estado.
Sobre a constitucionalidade do instituto, afirma Arruda Alvim[10] que
“Não se trata de destituição do poder estatal para solucionar conflitos e, menos ainda, inobservância do princípio da inafastabilidade da apreciação jurisdicional; o poder-dever do Estado remanesce, faltando-se às partes a utilização da arbitragem para os litígios patrimoniais que envolvam direitos disponíveis e entre partes que sejam maiores e capazes”.
Mais que isso, o Supremo Tribunal Federal declarou, incidentalmente, no julgamento da homologação de sentença estrangeira SE 5.206-7, julgado em 12.12.2001, a constitucionalidade dos arts. 6º e 7º, da Lei 9.307/96 – que tratam da efetivação da cláusula compromissória –, bem como do art. 41, da referida lei, que altera as redações dos arts. 267, VII e 301, IX, do Código de Processo Civil.
Com efeito, as alterações incorporadas ao instituto quando da edição da Lei 9.307/96 tornaram inequívoco o caráter jurisdicional da arbitragem. Isso porque, a edição da referida lei agregou ao instituto as seguintes características:
“(i) competência do árbitro para decidir sobre a existência, validade e eficácia da cláusula compromissória (art. 8º, par. único, da referida Lei);
(ii) obrigatoriedade de utilização da via arbitral, caso seja previamente escolhida pelas partes (art. 7o, da Lei 9.307/96 e art. 267, VII, do Código de Processo Civil);
(iii) desnecessidade de homologação da sentença arbitral em juízo (art. 18, da Lei 9.307/96), que possui, inclusive, natureza de título executivo judicial (art. 31, da Lei 9.307/96);
(iv) rigidez das hipóteses de anulação da sentença arbitral em juízo (art. 32, da Lei 9.307/96).”
A arbitragem, portanto, possui as principais características da atividade jurisdicional, razão pela qual deve ser reconhecida a natureza jurisdicional do instituto.
Em primeiro lugar, porquanto a arbitragem é revestida de substitutividade, já que o árbitro detém poderes para se sub-rogar à vontade das partes e, dessa forma, aplicar o direito. O mérito da decisão arbitral não poderá ser contestado pelas partes do processo arbitral perante o Poder Judiciário, de forma que não há diferença entre a sub-rogação ocorrida em ambos os casos.
Ademais, a sentença arbitral produz coisa julgada, de modo que o conteúdo da decisão arbitral se reveste da característica da imutabilidade, inerente à atividade jurisdicional, que é definitiva por natureza. O fato de o Poder Judiciário poder constatar a existência de vícios formais na sentença arbitral, na lhe retira a definitividade, tendo em vista que a correção do vício e prolação de nova sentença será realizada pelo juízo arbitral.
A atividade arbitral, por igual, também é inafastável, uma vez que a celebração de convenção de arbitragem entre as partes exclui a intervenção do Estado na solução do conflito, conforme dispõe o art. 267, VII, do Código de Processo Civil, que determina a extinção do processo sem julgamento do mérito na hipótese de ter sido celebrada convenção de arbitragem.
Há que se reconhecer, ainda, que o processo arbitral, assim como o processo judicia, somente se inicia através da provocação de uma das partes, de forma que, o juízo arbitral também é inerte.
A finalidade da arbitragem, tal qual a finalidade do Poder Judiciário, é a aplicação do direito para solucionar um conflito, uma lide. Com efeito, não há convocação do juízo arbitral para atuação diversa da pacificação de conflitos. O Juízo arbitral não é órgão de consultoria, sendo essencial à sua função solução da lide.
O árbitro pode estabelecer medidas coercitivas, e, portanto, imperativas, para garantir o cumprimento das suas decisões. O fato de tais medidas serem executadas perante o juízo ordinário (estatal) não descaracteriza a imperatividade da ordem aplicada pelo juízo arbitral e tampouco enfraquece a sanção estabelecida pelo árbitro, porquanto tal sanção será apenas executada por ente diverso.
Ademais, tal qual ocorre no Poder Judiciário, o árbitro também precisa ser invertido na função de aplicador do direito. Após a investidura, o árbitro tem a independência necessária para aplica o direito em detrimento da vontade das partes, razão pela qual não se pode afirmar que a arbitragem teria natureza contratual.
O contrato, como se sabe, decorre do consenso entre as partes para que sejam ajustadas regras de conduta dos contratantes, bem como direitos e obrigações. O consensualismo na arbitragem se restringe à investidura do árbitro, até como meio para legitimar a escolha do agente que, sendo necessário, aplicará o direito em substituição à vontade das partes. Não há qualquer consensualismo na atividade do árbitro, sendo manifesta a sua natureza jurisdicional.
Sobre a natureza jurídica do instituto, Arruda Alvim[11] ensina que as modificações trazidas pela Lei nº 9.307/96 (Lei de Arbitragem) equipararam a atividade do árbitro à atividade do Estado no exercício da função jurisdicional, de forma que não se poderia deixar de reconhecer a natureza jurisdicional da arbitragem, entendimento que prevalece entre a doutrina[12]. O referido autor ressalva, entretanto, que a atividade arbitral seria “jurisdição privada”, em oposição do exercício da função jurisdicional pelo Estado.
Verifica-se, portanto que a atividade arbitral deve ser enquadrada como atividade jurisdicional, rompendo-se, em definitivo, a ideia de que a jurisdição deve ser exercida com exclusividade pelo Estado, mesmo porque, com todo respeito a mais abalizada doutrina que defende entendimento diverso, não há previsão constitucional para tanto.
A arbitragem, conquanto não seja exercida pelo Estado, mais se enquadra no conceito de jurisdição do que a atividade exercida atipicamente pela Administração Pública e pelo Poder Legislativo, que, conforme se demonstrou, não possui a integralidade dos elementos ínsitos à jurisdição, entretanto, são reconhecidas como atividade jurisdicional.
É necessário, portanto, que se transfira o cerne do conceito de jurisdição do elemento subjetivo (agente que exerce a função), para o elemento objetivo (atividade praticada).
Em suma, a existência de heterocomposição praticada por agente não estatal, mas com todas as características da atividade jurisdicional torna forçosa a reformulação do conceito de jurisdição, para que o instituto seja compreendido como a atividade que realiza o direito em uma situação concreta, por meio de terceiro imparcial, de modo criativo e autoritativo, com aptidão para tornar-se indiscutível, conforme defende Fredie Didier[13].
9. CONCLUSÃO
Após a breve análise sobre o conceito de jurisdição e da sua compatibilidade com o instituto da arbitragem, formulam-se as seguintes conclusões:
a) Tradicionalmente, o conceito de jurisdição sempre esteve atrelado à atuação do Estado;
b) A jurisdição é definida pela presença de cinco elementos, quais sejam, a substitutividade, a imperatividade, a inércia, a inafastabilidade e a imutabilidade;
c) A lide também é elemento essencial à jurisdição, razão pela qual a “jurisdição voluntária” não é jurisdição, mas atividade administrativa exercida pelo Poder Judiciário por opção legislativa;
d) Há hipóteses em que as características da jurisdição são em parte relativizadas, a exemplo do exercício atípico da função jurisdicional pela Admisnitração Pública e pelo Poder Legislativo, mas continuam sendo manifestamente reconhecidas como jurisdição;
e) Os meios alternativos de solução de litígios não se confundem com a arbitragem, uma vez que os primeiros se tratam se técnicas de autocomposição, enquanto a arbitragem é técnica de heterocomposição de conflito;
f) Após a edição da Lei nº 9.307/96 (Lei de Arbitragem), foi conferido ao instituto da arbitragem todos os elementos distintivos da atividade jurisdicional;
g) O consensualismo da arbitragem se restringe tão somente à fase de investidura do árbitro, tendo em vista que ambas as partes precisam concordar com a escolha do agente que substituirá sua vontade e aplicará o direito;
h) O exercício da jurisdição não é exclusivo do Estado;
i) O conceito de jurisdição deve ser atualizado, definindo-se o instituto como a atividade que realiza o direito em uma situação concreta, por meio de terceiro imparcial, de modo criativo e autoritativo, com aptidão para tornar-se indiscutível.
Informações Sobre o Autor
Evie Nogueira e Malafaia
Mestranda em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Advogada