INTRODUÇÃO
Recentemente, a Secretaria de Políticas Públicas de Previdência Social, órgão ligado ao Ministério da Previdência Social, editou a Instrução Normativa nº 2, de 13 de fevereiro de 2014, estabelecendo instruções para o reconhecimento, pelos Regimes Próprios de Previdência Social, do direito à aposentadoria do servidor público com deficiência.
Afora a questão não tão tranquila dos requisitos para a aposentadoria especial exigidos na Instrução, chama mais a atenção ainda, no citado normativo, o fato de sua inaplicabilidade para o pagamento de abono de permanência aos servidores que lograram cumprir as exigências para aposentadoria especial como portadores de deficiência física 1.
Entende-se que tal restrição não guarda conformidade com a melhor interpretação. Veja-se.
DA APARENTE INCOMPATIBILIDADE MATERIAL ENTRE OS INSTITUTOS JURÍDICOS DA APOSENTADORIA ESPECIAL E DO ABONO DE PERMANÊNCIA
Todo instituto jurídico comporta, em si mesmo, uma essência mensurável que lhe permita habitar um sistema jurídico de forma independente. A coexistência de tais institutos, portanto, demanda coerência lógica, sob pena de tornar-se insustentável o próprio ordenamento jurídico. Em termos mais práticos, um instituto jurídico não pode conviver com outro, dentro de uma mesma esfera de direitos, caso contenham gênese completamente distinta.
A aposentadoria especial destinada aos servidores públicos e aos trabalhadores em geral possui o condão de ampará-los em razão de vicissitudes da vida laboral. Assim é que lhe são reduzidos os tempos necessários de contribuição para aposentadoria, são-lhes devidos adicionais de insalubridade ou periculosidade, são-lhes, enfim, garantidos direitos incomuns às aposentadorias ordinárias, exatamente porque suas atividades são especiais.
A seu turno, o abono de permanência, com a denominação dada pela EC nº 41/03, é instrumento jurídico pelo qual o servidor tem a possibilidade de receber de volta a contribuição previdenciária descontada de sua remuneração, em virtude de ter reunido condições de aposentar-se voluntariamente, mas dessa possibilidade abre mão temporariamente.
Ora, como coadunar, então, a garantia de aposentadoria especial destinada a preservar a saúde do servidor, em função de atividades especiais por ele exercida ao longo da vida, com a possibilidade desse próprio servidor dela abrir mão, em razão de vantagem financeira?
Aparentemente está-se diante de uma colisão de institutos materialmente incompatíveis. Quer-se crer, contudo, que o conflito resta apenas aparente, de fato.
Em que pese à aparente incongruência jurídica de tais institutos, deve-se reconhecer que paira sobre ambos o princípio constitucional da dignidade humana, que garante a qualquer cidadão a autonomia da vontade em optar por direitos a ele destinados.
Em termos mais diretos: o servidor, à míngua de vedação legal expressa, tem o direito de escolher o que será melhor para si: aposentar-se antes, ou receber o abono de permanência. Discorrendo sobre o tema, Luiz Edson Fachin e Marcos Alberto Rocha Gonçalves 2 advertem:
“Assim, a autonomia da vontade, à luz dos princípios e garantias constitucionais, somente pode ser lida e reconhecida como elemento formador da justiça distributiva, da sociedade solidarista e da garantia de cooperação entre os sujeitos para a materialização dos fins sociais previstos na Constituição.
É nesta perspectiva que se insere a relação entre autonomia da vontade e meios alternativos para resolução de conflitos (…).”
Assim, a dignidade humana e a autonomia da vontade do servidor devem impor-se sobre a aparente incongruência ente os institutos. Acerca da força cogente dos princípios, cumpre ressaltar sua presença latente no sistema jurídico, permitindo, quando necessário, a elaboração de soluções para as quais a norma positivada não conhece regra. A esse respeito, Canotilho3 ensina que:
“(…) os princípios são normas com grau de abstracção relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstracção relativamente reduzida.”
DO DIREITO AO ABONO DE PERMANÊNCIA EM OUTROS CASOS DE APOSENTADORIA ESPECIAL E DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ISONOMIA
O Tribunal de Contas da União, por meio do Acórdão nº 1.343/2010, garantiu aos policiais civis, que também têm direito à modalidade de aposentadoria especial (atividades de risco)4, o direito à percepção do abono de permanência. Eis a comprovação do que se afirma:
“Sumário: RECURSO DE RECONSIDERAÇÃO CONTRA DETERMINAÇÃO PROFERIDA NOS AUTOS DE TOMADA DE CONTAS ANUAL. CONHECIMENTO. PROVIMENTO. 1. Dá-se provimento a recurso que traz elementos suficientes para alterar ou tornar insubsistente a deliberação recorrida. 2. A LC nº 51/85 não apresenta incompatibilidade ou conflito em relação à Constituição e suas respectivas emendas, tendo sido por essa recepcionada e persistindo, portanto, no mundo jurídico (Acórdão nº 379/2009-TCU-Plenário). 3. Os servidores sujeitos à aposentadoria especial da LC nº 51/85, que preenchem os requisitos ali previstos para aposentar-se voluntariamente, mas optam por permanecer na ativa, fazem jus ao abono de permanência de que trata o § 19 do art. 40 da CF, até completar as exigências para a aposentadoria compulsória contida naquela Lei Complementar 5.”
O Poder Judiciário outro caminho não vem trilhando, conforme explicita o excerto abaixo:
“ADMINISTRATIVO. POLICIAL FEDERAL. APOSENTADORIA ESPECIAL. ABONO DE PERMANENCIA EM SERVIÇO. LC Nº 51/85. POSSIBILIDADE. 1. O abono de permanência foi introduzido na Constituição Federal de 1988 com a Emenda Constitucional nº 41/2003, com o objetivo de incentivar os servidores públicos a permanecerem em atividade mesmo após completarem os requisitos para obtenção da aposentadoria voluntária. 2. A condição sine qua non para a percepção do abono de permanência em serviço é o preenchimento das condições necessárias à obtenção da aposentadoria voluntária, com a permanência no exercício da atividade, não tendo a lei excluído da possibilidade de recebimento da vantagem, qualquer carreira de servidor público. 3. A carreira de Policial Federal, por ser atividade de risco, exige menor período de tempo para aposentadoria, o que não significa que, por esse motivo, não faça jus o titular à percepção do abono de permanência se continuar em serviço. Se assim fosse, não haveria incentivo para o policial federal permanecer em atividade, o que tornaria inócua a intenção do legislador constitucional. 4. Apelação desprovida. 5. Remessa oficial parcialmente provida”.6
Ora, se à determinada inativação especial, abarcada pelo artigo 40, § 4º, da Constituição Federal, é possível a percepção de abono de permanência, não se enxerga motivo para que outro tipo de aposentadoria especial seja afastado de mesmo direito.
Note-se que tal concepção não está adentrando o universo particular do servidor, mas, ao contrário, está subsumindo os fatos ao direito pela aplicação inequívoca do princípio constitucional da isonomia.
Afinal, se para servidores que se encontram amparados pelo direito à aposentadoria especial de risco é possível a percepção do abono, por que os portadores de deficiência, que também têm direito á aposentação especial pelo mesmo comando constitucional, não teriam direito ao abono de permanência?
Quer parecer que, no caso em análise, portanto, deva prevalecer o brocardo latino ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito.
DOS ASPECTOS JURISPRUDENCIAS E DOUTRINÁRIOS
Sempre que se busca aplicar uma norma sem expressa previsão legal, ainda que o raciocínio jurídico seja plausível, confere força à tese porventura defendida a existência de precedentes jurisprudenciais e doutrinários.
Nessa senda, convém trazer à colação decisão do Conselho Superior da Justiça do Trabalho7, na qual se avaliou o direito à percepção do abono de permanência por servidor que faz jus à aposentadoria especial. Eis o acórdão de que se fala:
“(…) III – Caso não se extraísse essa consequência dos precedentes da Suprema Corte chegar-se-ia à conclusão absurda de que o servidor detentor do direito à aposentadoria especial, se desejasse permanecer em serviço, ainda que não lhe fosse assegurado o abono de permanência, teria de se aposentar compulsoriamente pela Administração, sem o pressuposto constitucional referente à idade de 70 (setenta) anos.
IV – Acresça-se mais ser indiferente juridicamente a possível patrimonialização do trabalho sujeito às condições especiais que prejudiquem à saúde ou à integridade física do servidor, frente aos quatro incisos do artigo 68 da Lei nº 8.112/90, sem contar que, optando pela permanência em serviço, com percepção do referido abono, ainda assim acha-se o servidor protegido pela norma do artigo 69 da Legislação Extravagante, segundo a qual “Haverá permanente controle da atividade de servidores cem operações ou locais considerados penosos, insalubres, ou perigosos (…)
VI – Consulta a que se responde para assentar que tem direito ao abono de permanência o servidor que faça jus à aposentadoria especial voluntária e que opte por manter-se em atividade (…)”
Em caso análogo, o Tribunal de Contas da União também pontuou pela possibilidade de concessão do abono de permanência aos servidores que lograrem cumprir os requisitos para a aposentadoria especial. Veja-se, a propósito, excerto do voto condutor no Processo administrativo nº TC 001.905/2012-0, do Ministro Benjamin Zymler:
“Na esteira dos precedentes deste Tribunal, entendo que o caso ora em exame, em respeito ao princípio da isonomia, merece a mesma solução, uma vez que se reveste de situação jurídica análoga, qual seja, a de servidores que preenchem requisitos para aposentadoria ainda que não se fundamentem nas hipóteses para qual a Constituição expressamente prevê a concessão do abono de permanência. Dessa forma, o presente caso enseja o mesmo encaminhamento, qual seja, o provimento do presente recurso de forma a conferir ao recorrente, uma vez reconhecido seu direito à aposentadoria prevista no inciso I do §4º do art. 40 da Constituição, o direito à percepção do abono de permanência previsto no § 19 do mesmo artigo. Ante o exposto, VOTO no sentido de que o Tribunal adote o Acórdão que ora submeto à deliberação deste Plenário. “
Analisando o tema, Wladimir Novaes Martinez8 assevera que:
“O artigo 40, § 19, da Lei Maior facultou ao servidor deixar de contribuir quando ele fizer jus a uma aposentadoria e se manifestar nesse sentido.
Assim, aquele que exerce atividades especiais há mais de vinte cinco anos e puder fazer a prova acolhida do direito à aposentadoria especial no RPPS fica dispensado da contribuição de 11% dos seus vencimentos. Tal instituto técnico não é automático, depende da solicitação do interessado.
O pedido de dispensa da contribuição do ativo equivale ao requerimento da aposentadoria especial. O servidor terá de fazer o convencimento da exposição aos agentes nocivos, obter o PPP e o LTCAT como se estivesse solicitando o benefício. Caso sua pretensão seja rejeitada ele poderá contestar essa decisão.
Caso alcançasse esse benefício, mais tarde, quando requerer a aposentadoria especial, a sua instrução será bastante simplificada em termos de persuasão.
Uma vez reconhecido o direito, ab initio ou posteriormente, devem ser devolvidas as contribuições que verteu desde a DER”.
Ao cuidar da aposentadoria do professor, também de caráter especial, Inácio Magalhães Filho9 salienta:
“Convém salientar, por fim, que, ao vedar tal direito ao professor que conta com tempo para aposentadoria especial, estar-se-ia posicionando contra a ratio essendi do abono de permanência, que é exatamente provocar menos aposentadorias e, com isso, dar mais folga orçamentária à previdência pública.”
CONCLUSÃO
Pelo que se depreende de uma análise mais detida do caso, portanto, laborou em equívoco o Ministério da Previdência Social, ao não possibilitar, na Instrução Normativa nº 2/14, a percepção de abono de permanência para os servidores que se aposentarem em função de deficiência física.
A uma, porque tal posição ofende frontalmente o princípio constitucional da isonomia, no momento em que outros servidores que também possuem direito à aposentadoria especial, como os policiais civis, têm o direito ao abono reconhecido tanto pela jurisprudência quanto pela doutrina pátria.
A duas, porque, embora não expressa no texto constitucional, não há qualquer incompatibilidade material entre os institutos jurídicos da aposentadoria especial e do abono de permanência.
Informações Sobre o Autor
Carlos Henrique Vieira Barbosa
Auditor de Controle Externo do Tribunal de Contas do DF. Bacharel em Comunicação pela Universidade de Brasília. Especialista em Direito Público e Finanças Públicas pelo Centro Universitário de Brasília. Especialista em Direito Previdenciário pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Advogado