Resumo: O presente artigo visa analisar de forma objetiva o instituto da serendipidade a qual em uma diligência relativa a um delito a autoridade policial eventualmente se depara com provas pertinentes à outra infração penal ou seja que não estariam na linha normal da investigação. E ainda delimitar o grau de conexão necessário para que a prova seja admitida como válida.
Sumário: Introdução. 1.Validade da Prova. 2. Primeiro e segundo grau. 3. Caso Hércules Club de Futbol. Conclusão.
Introdução
A palavra serendipidade advém do inglês “serendipity”que significa descobrir coisas por acaso. Nesse sentido, na forma de aparentes coincidências, seria como sair em busca de uma determinada coisa e descobrir outra (ou outras).
Inerente à investigação criminal, esse instituto também denominado de teoria do encontro fortuito de provas é perfeitamente visualizado no âmbito das interceptações telefônicas. E a principal polêmica sobre o assunto diz respeito à validade da prova obtida por esse meio probatório, visto que há divergências se esse meio é idôneo para servir como prova para fatos e pessoas encontradas fortuitamente.
1. Validade da Prova
A regra no processo penal brasileiro e no direito comparado é que a validade da prova inesperadamente obtida está condicionada à forma em que foi realizada a diligência. Desse modo, se houve desvio de finalidade, a prova não deve ser considerada válida.
Eugênio Pacelli diz que quando na investigação de um crime contra fauna, por exemplo, “agentes policiais munidos de mandado judicial de busca e apreensão, adentram em determinada residência para o cumprimento da ordem, espera-se, e mesmo exige-se (CPP, art. 243, inc II) que a diligência se realize exclusivamente para a busca de animais silvestres. Assim, se os policiais passam a revirar gavetas ou armários da residência, é de se ter por ilícitas as provas de infração penal não estejam relacionadas com o mandado de busca e apreensão”.
Esse entendimento evita um possível abuso de autoridade por parte do Estado ao utilizar uma medida cautelar (busca e apreensão) para uma diligência, mas, por conveniência e discricionariedade excessivas, venha ferir direitos constitucionais para investigar outros delitos na oportunidade.
Entretanto, nas interceptações telefônicas, o entendimento majoritário é que a prova encontrada por acaso será perfeitamente válida, desde que o fato delitivo seja conexo com o investigado pela medida. E quando se descobre outra pessoa, distinta da anteriormente investigada, a descoberta vale como prova desde que haja continência entre eles. Assim, é de suma importância o critério da conexão.
2. Primeiro e segundo grau
É de suma importância para avaliar a prova e determinar sua validade a delimitação do grau de conexão necessário. Por isso a motivação ou fundamentação da medida cautelar de interceptação telefônica é extremamente relevante, pois nela é que vai vir descrito a situação objeto da investigação, bem como o sujeito passivo. E vai servir de parâmetro para esse “controle de relacionalidade”.
Portanto, se o fato não é conexo ou versa sobre outra pessoa – que não tem vínculo com os fatos investigados –, não poderá valer como prova, podendo somente, servir como fonte de prova (notitia criminis) para fundamentar uma nova investigação.
Logo, evidencia-se duas hipóteses de serendipidade: encontro fortuito de fatos conexos (primeiro grau); encontro fortuito de fatos não conexos (segundo grau), mera notitia criminis.
A prova que tem valor jurídico e deve ser analisada pelo juiz como prova válida é a obtida na serendipidade de primeiro grau, pois os fatos são conexos àqueles investigados preliminarmente, podendo conduzir a uma condenação penal. Já a prova obtida mediante serendipidade de segundo grau será apenas uma fonte para uma nova investigação e, por si só, não gerará uma condenação criminal.
3. Caso ‘’Hércules Club de Fútbol’’
Um dos casos mais intrigantes nos últimos anos relacionados com a serendipidade (encontro casual ou fortuito, durante uma interceptação telefônica, de algo – de outro crime – que não se procurava) ocorreu no mundo do futebol, na Espanha: o “dono” do time Hércules, de Alicante (Espanha), que alcançou a primeira divisão em meados de 2010, estava sendo investigado por corrupção no caso Brugal. Trata-se de um empresário envolvido num rumoroso caso de corrupção vinculada ao recolhimento do lixo na cidade de Vega Baja (Alicante).
A investigação teve início em maio de 2007 e durante as interceptações telefônicas o citado empresário, dentre tantas outras revelações, contou que corrompeu o goleiro de uma equipe (ao que tudo indica do Córdoba), dando-lhe 100 mil euros para facilitar os gols do seu clube (que venceu o jogo por 4×0) e subiu para a primeira divisão. O encontro (“El hallazgo”) foi casual porque não se investigava nada a respeito dessa infração.
O juiz do caso (José Luis de la Fuente – titular do juizado de instrução número 7 de Alicante) negou o pedido do Ministério Público que pedia o envio das gravações (clandestinas, porque o escândalo do futebol não estava sob investigação) para a Federação Espanhola de Futebol assim como para o Conselho Superior de Esportes.
Sua fundamentação: “a entrega dessas gravações constituiria uma intromissão – indevida – na intimidade e violaria o segredo das comunicações”. O achado foi casual (“el hallazgo de estas conversaciones fue casual”). Investigavam-se os delitos de concussão, fraude e tráfico de influências.
Com eles o “achado” não tem nenhum tipo de conexão, ou seja, a infração encontrada por acaso não está na mesma situação histórica de vida do delito investigado – historischen Lebenssachverhalt. O fato achado por acaso não tem nenhuma ligação histórica com o fato investigado. Nesse caso a revelação não tem nenhum valor jurídico e a interceptação telefônica não serve de fonte de prova.
Entretanto, se adequando perfeitamente a serendipidade de segundo grau serviria como “notitia criminis”. Contra a decisão do juiz de primeiro grau houve recurso para a Audiência Provincial de Alicante (equivalente ao nosso Tribunal de Justiça), que não deu provimento ao recurso do Ministério Público – ou seja: confirmou a decisão denegatória de primeira instância. Fundamentação: “Não é possível remeter o conteúdo das conversações interceptadas ao organismo administrativo (Federação Espanhola de Futebol) porque as conversações detectadas não estão amparadas pela autorização judicial que permitiu as escutas que foram gravadas. Essas conversações nem sequer deveriam ter entrado nos autos do processo em que foram descobertas porque, ao não ter nenhuma relação com o objeto da investigação e carecer totalmente de transcendência penal, deveriam ter sido rechaçadas.
Conclusão
Percebe-se, dessa forma, a semelhanças de entendimentos entre o direito espanhol e direito brasileiro. Existem formas jurídicas e as formas jurídicas são garantias. As formas jurídicas podem gerar impunidade, mas cabe ao Estado trabalhar por meio de sua superioridade em relação ao particular para que essa impunidade não aconteça. A prescrição constitui ótimo exemplo. É um dos preços que devemos pagar para viver sob a égide do Estado de Direito.
O direito tem normas, tem formas que fazem parte do chamado devido processo legal, tem prazos. Quando esses ditames não são observados – no campo probatório – o produto produzido (ou encontrado) não tem valor jurídico. A opinião pública, que confia tanto na eficácia das leis penais, fica muito frustrada (e atônica) quando o réu, por questões técnico-jurídicas, fica impune.
Mas é assim que, às vezes, funciona o Direito, que não constitui um instrumento absoluto para a realização do valor Justiça. Aliás, percebe-se cada vez que o Direito não é justo, mas lógico.
GOMES, Luiz Flávio. Interceptação telefônica e encontro fortuito: prova (in)válida? Disponível em http://www.novacriminologia.com.br. 14 de setembro de 2010.
Informações Sobre o Autor
Geordan Antunes Fontenelle Rodrigues
Agente de Polícia Civil do Estado de Goiás. Bacharel em Direito. Especialista em Direito Penal