Resumo: O objeto de estudo é o controle de políticas públicas na área da saúde. Analisa que o direito à Saúde é direito fundamental de aplicabilidade imediata e que configura o mínimo existencial, o que impõe seu cumprimento pelo Poder Público. Estudam-se as Políticas Públicas como ações coordenadas para a promoção dos direitos fundamentais, sendo de responsabilidade de todo o Poder Público. Discutem-se os argumentos contrários à possibilidade de controle judicial de políticas públicas, quais sejam: separação de poderes, falta de legitimidade para decisão sobre Políticas, insindicabilidade do mérito administrativo e a reserva do possível. Analisam-se as teses da possibilidade mútua de controle entre os poderes, da reafirmação do caráter democrático da atuação do Judiciário, da discricionariedade vinculada do ato administrativo, sua vinculação aos princípios administrativos e a ideia do mínimo existencial. Apontam-se os legitimados ativos e passivos do processo judicial para Controle de Políticas Públicas. Pesquisam-se os parâmetros possíveis para a realização do controle judicial de políticas públicas. Estudam-se os parâmetros objetivos, impostos pela lei e a Constituição Poder Público. Aponta-se o controle do planejamento e da execução orçamentária. Por fim, analisa-se o controle de políticas públicas quanto à ineficácia dos meios escolhidos e dos resultados alcançados.
Palavras-chave: Direito fundamental à Saúde – Discricionariedade Vinculada – Controle Jurisdicional de Políticas Públicas – Parâmetros legais – Controle Orçamentário.
Sumário: Introdução; 1. Saúde como direito fundamental; 2. Políticas públicas; 3. 3. Controle jurisdicional de políticas públicas; 3.1. Princípios; 3.2. Separação de poderes e legitimidade dos juízes para decidir sobre políticas públicas; 3.2.1. Separação de poderes e as políticas públicas; 3.2.2. Legitimidade dos juízes para decidir sobre políticas públicas; 3.3. Reserva do possível e o mínimo existencial; 4. Controle jurisdicional de políticas públicas na área da saúde; 4.1. Legitimados ativos do controle judicial de políticas públicas na área da saúde; 4.2. Legitimados passivos do controle judicial de políticas públicas na área da saúde; 4.3. Parâmetros de controle; 4.3.1. Parâmetro objetivo de controle; 4.3.2. Controle do cumprimento do orçamento; 4.3.3. Controle dos meios; 4.3.4. Controle dos resultados; Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho busca, sem pretender resolver a situação, dar um panorama sobre o Direito e a questão da saúde no Brasil. É notória a situação calamitosa da Saúde Pública. Basta uma olhada em qualquer noticiário para vermos denúncias de uma dura realidade. Há ausência de leitos, recursos básicos, médicos, Hospitais em situações precárias, com condições de higiene indignas, mau atendimento, bem como um ambiente completamente promíscuo e insalubre.
Segundo dados do Siga Brasil, o orçamento da União para a saúde em 2013 foi de R$ 99,8 bilhões. Nota-se, assim, que há uma quantia vultosa de orçamento para a saúde, a qual não é devidamente executada, no ano fiscal. Ademais, é notório que muitos entes federativos incluem outros gastos relacionados à saúde, como saneamento básico e pagamento de aposentadorias, nas rubricas próprias, a fim de se alcançar os patamares mínimos exigidos legalmente. Vê-se ainda que há verbas federais para convênios em projetos com os Municípios e Estados, porém estes não cumprem os requisitos necessários para o repasse. Disso tudo, observa-se que há verbas para progresso na situação da saúde, porém a gestão pública e a execução orçamentária são defeituosas.
Diante de tal quadro escabroso e de inércia, o Direito não pode ficar inerte. A ação jurídica é sem dúvidas um grande instrumento de mudança social não podendo se restringir a estudos meramente acadêmicos, mas devendo buscar resultados que ajudem a mudar a dura realidade. O Direito à Saúde no Brasil não pode se resumir ao direito a tratamentos e remédios específicos, mas a uma saúde de qualidade. Com isso, a grande questão que deve ficar para qualquer operador de direito é: o que o Direito pode fazer para ajudar na construção de um sistema de saúde pública eficiente?
Nesse sentido, é realizado este trabalho. Divide-se em capítulos.
Primeiramente, realiza-se uma abordagem dos direitos fundamentais. Há a conceituação, bem como a análise da eficácia destes em suas diferentes dimensões. Já se começará a dar uma ênfase especial aos diferentes prismas do Direito à questão da Saúde, com o enfoque de que é um direito fundamental que deve ser efetivado, pelo Poder Público.
Logo após, estudam-se as Políticas Públicas. Novamente, discorre-se sobre evolução temática, conceitos fundamentais, bem como se colocará o Direito à Saúde como Política Pública. Ademais, diferenciar-se-ão as Políticas dos atos administrativos. Tal distinção, como se verá, é essencial para sabermos os limites e parâmetros do controle judicial de Políticas Públicas na área da Saúde.
Outro ponto do trabalho é a possibilidade de controle judicial das Políticas Públicas. A primeira abordagem é acerca da separação dos poderes, da questão do ativismo judicial e da legitimidade democrática dos Juízes de realizar tal controle. Superado isso, ver-se-á a possibilidade de controle judicial de Políticas Públicas, através da análise dos princípios administrativos maculados por uma Política Pública falha, e se há ofensa à discricionariedade administrativa. Após isso, analisar-se-á o conflito do Mínimo Existencial com a Reserva do Possível.
Com a patente possibilidade de controle judicial de Políticas Públicas, mostrar-se-á como este vem sendo realizado pela Jurisprudência pátria. Além disso, chegar-se-á ao ponto nevrálgico deste trabalho. Analisar-se-ão os mecanismos de Controle, estudando quais são os legitimados ativos e passivos, bem como os requisitos e parâmetros possíveis para que o Controle de Políticas Públicas seja realizado de forma eficiente e razoável.
Ao final, serão apresentadas as conclusões e sugestões do que pode e deve ser feito pelo Direito para auxiliar a resolução da Saúde Pública brasileira.
1 SAÚDE COMO DIREITO FUNDAMENTAL
Primeiramente, é necessário conceituar direitos humanos e direitos fundamentais em geral.
Direitos humanos podem ser conceituados como aqueles reconhecidos internacionalmente válidos e inerentes a todos os indivíduos, independentes de qualquer vínculo estatal. São oponíveis, inclusive, aos próprios Estados em instâncias supranacionais. São direitos universalizados, construídos historicamente, com aceitação universal, não admitindo retrocesso.
Segundo João Batista Herkenhoff, direitos humanos podem ser entendidos, como os "[…] que o homem possui pelo fato de ser homem, por sua natureza humana, pela dignidade que a ela é inerente […]”.[1] Na mesma visão, Maria Victória Benevides opina que os direitos humanos:
“[…] são aqueles direitos comuns a todos os seres humanos, sem distinção de raça, sexo, classe social, religião, etnia, cidadania política ou julgamento moral. São aqueles que decorrem do reconhecimento da dignidade intrínseca a todo ser humano. Independem do reconhecimento formal dos poderes públicos – por isso são considerados naturais ou acima e antes da lei -, embora devam ser garantidos por esses mesmos poderes […]”[2]
Por fim, Perez Luño após analisar toda a conjuntura histórica, cultural, axiológica e normativa, propõe os direitos humanos como sendo:
“[…] um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional […]”[3]
Observa-se de todos os conceitos a ideia de que os direitos humanos são direitos comuns a todos os homens, com o caráter concretizador da dignidade intrínseca do ser humano. São construídos historicamente, devendo ser garantidos pelos diversos ordenamentos jurídicos, embora não dependam destes para existir.
Nesse ponto, embora não seja cediça a diferenciação pela doutrina, é importante conceituar os direitos fundamentais. Embora muitos autores como Paulo Bonavides utilizem tais termos como sinônimos há o entendimento, esposado pelo autor citado de que razões didáticas levariam à distinção entre eles. Direitos humanos seria expressão, que, por raízes históricas, referir-se-ia aos direitos da pessoa humana antes de constitucionalizados ou positivados pelos ordenamentos jurídicos; direitos fundamentais, por sua vez, representariam os direitos humanos devidamente transportados para os espaços normativos, ou seja, seriam os direitos humanos positivados.[4]
Importante trazer ainda distinção feita por J. J. Gomes Canotilho, que, mesmo usando os termos com sinonímia, aduz a seguinte distinção:
“[…] direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista): direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espacio-temporalmente. Os direitos humanos arrancariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intemporal e universal: os direitos fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta […]”[5]
Percebe-se então que ambos os termos podem ser usados como sinônimos, como serão usados nesse trabalho. Os direitos fundamentais, logo, são aqueles direitos próprios da natureza humana que foram constitucionalizados, estando presentes, em dada ordem jurídica, como normas supremas, protegendo a dignidade da pessoa humana. Sua constitucionalização os objetiva, facilitando sua efetivação.
No Brasil, os direitos fundamentais estão positivados na Constituição Federal, especialmente no art. 5º da Carta Magna. Possuem posição elevada no sistema normativo brasileiro, sendo considerados, inclusive, cláusulas pétreas. São de imposição estatal, devendo ser eficazmente implementados no meio social. Tal é necessário, para que a Constituição Federal não seja letra morta, mas seja viva, sendo devidamente aplicada e eficaz socialmente. Não é suficiente a Lex Magna ser uma Carta que prevê direitos, mas que não são devidamente garantidos a seus destinatários.
Em relação aos direitos fundamentais, para melhor entendê-los, essencial é distinguir suas dimensões. Há a primeira dimensão, a qual contempla os direitos individuais, os quais visam à proteção da esfera de liberdade individual, contra as intervenções estatais. Noutros termos, são direitos de defesa do cidadão, contra o aparato estatal.
Com o tempo, foram surgindo novas dimensões de direitos, entre as quais se situam os direitos fundamentais a prestações em sentido estrito. Quanto a estes, Alexy explica que:
"[…] Os direitos a prestações em sentido estrito são direitos do indivíduo frente ao Estado a algo que – se o indivíduo possuísse meios financeiros suficientes e se encontrasse no mercado uma oferta suficiente – poderia obtê-lo também de particulares. Quando se fala em direitos sociais fundamentais, por exemplo, do direito à previdência, ao trabalho, à moradia e à educação, se faz referência primordialmente a direitos a prestações em sentido estrito […]"[6]
Desse modo, importante mostrar a classificação de direitos fundamentais feita por Ingo W. Sarlet, o qual salienta a diferente natureza dos direitos prestacionais e dos de defesa:
“[…] os direitos fundamentais, em razão de sua multifuncionalidade, podem ser classificados, basicamente em dois grandes grupos, nomeadamente os direitos de defesa (que incluem os direitos de liberdade, igualdade, as garantias, bem como parte dos direitos sociais – no caso, as liberdades sociais – e políticos) e os direitos a prestações (integrados pelos direitos e prestações em sentido amplo, tais como os direitos à prestação e à participação na organização e no procedimento, assim como pelos direitos e a prestações em sentido estrito, representados pelos direitos sociais de natureza prestacional). Se os direitos de defesa, como dirigidos, em regra, a uma abstenção por parte do Estado, assumem habitualmente a feição de direitos subjetivos, inexistindo maior controvérsia em torno de sua aplicabilidade imediata e justiciabilidade, o mesmo não ocorre com os direitos a prestações. Estes, por exigirem um comportamento ativo dos destinatários, suscitam dificuldades diversas, que levaram boa parte dos autores, a negar-lhes aplicabilidade imediata e, em razão disto, plena eficácia […]”[7]
Em resumo, por um lado, há os direitos de defesa, os quais, em geral, independem de uma atuação estatal, mas de sua abstenção. Por outro lado, há os direitos prestacionais, dependentes de uma determinada atividade dos Poderes Públicos para se configurarem de forma plena, em relação aos cidadãos. Assim, sem a correspondente prestação pública, tais direitos não conseguem ser completamente efetivados.
Não pode o sistema jurídico conter normas apenas formalmente eficazes, ainda mais quando se trata de direitos fundamentais, ínsitos ao cidadão. Deste modo, essencial é estudar a aplicabilidade dessas normas e os mecanismos para sua necessária efetivação.
Nesse prisma, primeiramente, deve-se trazer a definição do renomado constitucionalista José Afonso da Silva que em seu ensinamento clássico, aduz que a eficácia jurídica da norma:
“[…] designa a qualidade de produzir, em maior ou menor grau, efeitos jurídicos, ao regular, desde logo, as situações, relações e comportamentos nela indicados; nesse sentido, a eficácia diz respeito à aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma, como possibilidade de sua aplicação jurídica […]”[8]
O referido autor classifica as normas constitucionais por sua eficácia plena, contida e limitada. Aquelas seriam normas que prescindem de posteriores normas infraconstitucionais, já possuindo todos os elementos e condições necessários para sua regular execução. Seus efeitos sobre a ordem jurídica são imediatos, independendo de qualquer ação legislativa, executiva ou judicial.
Sobre as normas de eficácia contida, José Afonso da Silva as define:
“[…] Normas de eficácia contida, portanto, são aquelas em que o legislador constituinte regulou suficientemente os interesses relativos a determinada matéria, mas deixou margem à atuação restritiva por parte da competência discricionária do Poder Público, nos termos que a lei estabelecer ou nos termos de conceitos gerais nelas enunciados […]”[9]
São, portanto, normas que possuem eficácia plena, contudo podem ser restringidas pelo Legislador Ordinário, ou pelo Intérprete no sentido de se compatibilizar liberdades, desde que não retire a eficácia do preceito.
Por fim, há as normas de eficácia limitada. Estas são dependentes de leis para regulamentação, para que produzam todos os seus efeitos. Sem a complementação legislativa, não se concretizam socialmente. Dividem-se em normas de eficácia limitada definidoras de princípio institutivo ou organizativo ou normas constitucionais de princípio institutivo; e em Normas Constitucionais de eficácia limitada definidoras de princípio programático ou normas constitucionais de princípio programático.[10]
Normas de eficácia limitada de princípio institutivo são aquelas que contém apenas o começo, o esquema geral de determinado órgão, entidade ou instituição. A efetiva criação, organização ou estruturação fica a cargo de normatização infraconstitucional na forma prevista pela Constituição. Como exemplo, cita-se art. 33 da CRFB, o qual prevê que “A lei disporá sobre a organização administrativa e judiciária dos territórios”.[11] São, portanto, normas que têm como objetivo a regulamentação de instituições, mediante a ação do Legislador Ordinário.
Em contraponto, as normas de eficácia limitada de princípio programático podem ser concebidas, segundo os preclaros ensinamentos de José Afonso da Silva como:
“[…] aquelas normas constitucionais através das quais o constituinte, em vez de regular, direta e imediatamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado […]”[12]
Impõem, destarte, limites e restrições à atuação estatal, em suas funções administrativa, legislativa e jurisdicional, sendo de obediência obrigatória aos seus destinatários. São, assim, indicativos ao Poder Público de como agir, o qual não pode se furtar de buscar efetivá-los, nem atuar em desacordo. Dessa forma, adquirem aplicabilidade imediata, ainda que não consigam se configurar de forma plena no campo social.
Noutro sentido, apontam o regime político, os fins sociais que informam a ordem jurídica e toda a atuação do Poder Público. Assim, vinculam deontologicamente o Estado para o cumprimento do que é indicado pelas normas programáticas.
Mister asseverar que a Carta Magna estabelece claramente sobre a aplicabilidade das normas constitucionais no art. 5º, §1º ao definir que: “[…] As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata […]”.[13]
Observa-se assim o grau de importância dado pelo Constituinte às normas pertinentes aos direitos fundamentais. Ao assegurar aplicabilidade imediata a tais normas, busca-se garantir o mínimo de dignidade às pessoas. Desse modo, é claro o entendimento, esposado pela melhor doutrina, como Flávia Piovesan, de que todos os direitos fundamentais, tanto os previstos no título específico, quanto em outras partes da Constituição Federal ou em tratados internacionais, devem ter aplicabilidade imediata, incidindo o artigo supracitado.[14]
Dessa forma, possuem os direitos fundamentais aplicabilidade imediata. Assim, qualquer que seja a classificação da norma que prevê o direito fundamental, este é de imposição obrigatória e possui preferência na concreção pelo Poder Público, em todas as suas esferas e funções.
Após todas as explicações supra, pode-se dizer que o Direito à Saúde é um direito fundamental prestacional, previsto no art. 6º da CRFB, estando contido no título específico de direitos fundamentais. Dessa forma, recebe proteção especial e possui aplicabilidade imediata. Quanto à eficácia, é norma programática, impondo dever ao Poder Público, em suas funções legislativa, executiva e jurisdicional, de agir, no sentido de sua concreção, bem como impedindo que atue em desacordo com o que prevê. Nesse sentido, são necessárias Políticas Públicas eficientes para a realização do direito a uma saúde pública de qualidade.
2 POLÍTICAS PÚBLICAS
Para efetivar direitos fundamentais prestacionais como a saúde, a ferramenta utilizada pelo Poder Público são as Políticas Públicas. Noutros termos, são os mecanismos utilizados pelos Administradores para alcançar os fins públicos legal e constitucionalmente definidos, entre os quais a satisfação do direito à Saúde Pública de qualidade.
Nesse sentido, Régis Fernandes de Oliveira conceitua ainda Políticas Públicas como “[…] os atos e ações imprescindíveis para a prestação de serviços públicos, de limitação de excessos, de disciplinar a ordem econômica, de garantia do meio ambiente e da solução de conflitos […]”.[15]
Tal também é o entendimento de Eros Roberto Grau, para quem “[…] a expressão políticas públicas designa todas as atuações do Estado, cobrindo todas as formas de intervenção do poder público na vida social […]”.[16]
De forma geral, segundo o magistério de Maria Paula D. Bucci, Políticas Públicas são a “[…] coordenação dos meios à disposição do Estado, harmonizando as atividades estatais e privadas para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinantes […]”.[17]
Explicita ainda tal autora que a Política só será devidamente Pública, quando representar os interesses populares e estatais, expressando realmente o interesse público na Política adotada, desejado pela sociedade, e não sendo justificador de um cuidado diferenciado com interesses particulares ou da Administração, ou do descuido indiferenciado de interesses que exigem a devida proteção. Deve, portanto, ser instrumento efetivo de realização do legítimo interesse público, e não mascará-lo.[18]
Importante citar Nagibe de Melo Jorge Neto, o qual encontra um duplo significado para as Políticas Públicas. Explica que elas se referem a um fazer estatal, no sentido de executar o orçamento efetivando um projeto, como também se referem à própria atividade de programação de fazer, ao planejamento, à feitura da peça orçamentária.[19]
Observa-se, assim, a dupla possibilidade do controle de tais Políticas. Pode-se efetivar tal controle diretamente no planejamento orçamentário, corrigindo falhas no programa governamental, como também na execução orçamentária, gerenciando e fiscalizando o efetivo cumprimento do que foi previsto.
Rodolfo de Camargo Mancuso opina que esta pode ser considerada como:
“[…] A conduta comissiva ou omissiva da Administração Pública, em sentido largo, voltada à consecução de programa ou meta previstos em norma constitucional ou legal, sujeitando-se ao controle jurisdicional amplo e exauriente, especialmente no tocante à eficiência dos meios empregados e à avaliação dos resultados alcançados […]”[20]
Vê-se assim que tal autor considera que tanto o fazer da Administração, quanto sua omissão, no sentido da busca do cumprimento de programas constitucionais e legais, devem ser avaliados sob o prisma do princípio da eficiência, com a devida análise dos meios propostos e dos resultados alcançados.
Importante ressaltar o entendimento de Sérgio Resende de Barros, para quem “[…] políticas públicas são diretrizes de interesse público que enformam programas de ação governamental segundo objetivos a serem alcançados e que, para esse fim, condicionam a conduta dos agentes estatais […]”. Prossegue, falando, que são “[…] antes diretrizes de programas e de condutas do que os programas e as condutas propriamente ditos por elas dirigidos […]”.[21]
Cumpre citar Osvaldo Canela Junior que ao discorrer sobre Políticas Públicas as trata como função de todas as Funções Estatais. Aduz, assim que:
“[…] Por política estatal – ou políticas públicas – entende-se o conjunto de atividades do Estado tendentes a seus fins, de acordo com metas a serem atingidas. Trata-se de um conjunto de normas (Poder Legislativo), atos ( Poder Executivo) e decisões (Poder Judiciário) que visam à realização dos fins primordiais do Estado […]“[22]
Complementando o acima exposto, o referenciado autor discorre sobre a atuação do Poder Judiciário como cumpridor de Políticas Públicas. Nesses moldes, aduz que:
“[…] Como toda atividade política (políticas públicas) exercida pelo Legislativo e pelo Executivo deve compatibilizar-se com a Constituição, cabe ao Poder Judiciário analisar, em qualquer situação e desde que provocado, o que se convencionou chamar de "atos de governo" ou "questões políticas", sob o prisma do atendimento aos fins do Estado (art. 3º da CF/1988), ou seja, em última análise à sua constitucionalidade […]”[23]
Dessa forma, observa-se que as Políticas Públicas, segundo tal entendimento, se referem ao conjunto das atividades de todos os Poderes, não se restringindo apenas à Administração. É, portanto, obrigação de todos estes atuarem no sentido de realizar o interesse público e os fins constitucionalmente previstos, estando submetidos ao devido controle de constitucionalidade.
Primeiramente, diga-se que as Políticas Públicas se materializam mediante atos, contratos administrativos, normas infralegais, planos administrativos e princípios constitucionais. Vê-se assim a variedade de veículos das Políticas públicas. Todos eles se unificam pela finalidade geral perseguida, sendo assim, atividade, em que todos os veículos acima citados se organizam para que haja a realização de um objetivo comum, em geral a concretização de um direito social.
Em sua manifestação, observa-se o exercício do Poder Discricionário. Historicamente, o campo das Políticas Públicas é marcado pela discricionariedade administrativa, em que a Alta Administração Pública, formada por membros do Executivo decide sobre as diretrizes governamentais, com pouca ou nenhuma participação popular. Dessa forma, as Políticas Públicas são estabelecidas por decisões de mérito, com base no juízo de conveniência e oportunidade, do Administrador.
Importante, portanto, discutir o conceito de discricionariedade. Pode ser definida como “[…] alternativa outorgada ao administrador público para cumprir os objetivos que constituem as verdadeiras demandas dos administrados […]”.[24] Surgiria assim a faculdade de escolha diante de várias situações postas. Tal decisão “[…] é feita segundo critérios de oportunidade, conveniência, justiça, equidade, próprios da autoridade, porque não definidos pelo legislador […]”.[25]
Em sua noção preliminar, os atos administrativos discricionários, não podem ser controlados judicialmente quanto ao mérito administrativo. Nos termos de Carvalho Filho, “[…] pode-se então considerar mérito administrativo a avaliação de conveniência e oportunidade relativas ao motivo e ao objeto, inspiradoras da prática do ato administrativo […]”.[26]
Depreende-se que quanto aos elementos motivo e objeto, respectivamente pressupostos fáticos e jurídicos do ato e seu conteúdo material, apenas o administrador poderia se imiscuir de seus termos para realizar controle. Ao Judiciário, caberia o controle apenas quanto aos elementos vinculados, quais sejam: forma, competência e finalidade.
Tal é a tese de Cretella Junior, para quem:
“[…] o controle jurisdicional dos atos da Administração Pública incide, só e só, nos aspectos da ilegalidade e do abuso de poder das autoridades, ficando de fora, totalmente, daquele controle o terreno do mérito administrativo, imune à apreciação do Poder Judiciário, precisamente, por tratar-se de discricionariedade administrativa, campo reservado à Administração, único juiz da oportunidade e da conveniência das medidas a serem tomadas, mas interdito a qualquer ingerência de outros poderes […]”[27]
Para que tal discricionariedade não resulte em arbitrariedade, é essencial que a opção feita, por ser pública, conforme-se com o fim público previsto em lei, buscando alcançá-lo. Ademais, deve-se agir sempre com o objetivo de efetivar direitos dos administrados, respeitar princípios constitucionais, bem como se subsumir ao dever de boa administração.
Por muito tempo, considerou-se que o Poder Judiciário não poderia realizar o controle das Políticas Públicas, a fim de não se substituir a figura do Administrador pela do Juiz. Tal entendimento é explícito no seguinte acórdão do Supremo Tribunal Federal:
“HARMONIA DOS PODERES. ART. 6 DA EMENDA CONSTITUCIONAL
1. A DECISÃO RECORRIDA INVADIU ÁREA DE ESTRITA COMPETÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA AO MANDAR REABRIR E EQUIPAR UMA ENFERMARIA DE HOSPITAL FECHADA POR CONVENIENCIA DO SERVIÇO PÚBLICO. INADMISSIBILIDADE DA APRECIAÇÃO DO MÉRITO DE TAL PROVIDENCIA PELO PODER JUDICIARIO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO”[28]
Com o tempo, buscou-se ampliar o limite para o controle das Políticas Públicas, quanto à sua discricionariedade, a fim de se evitar que o Poder Público atue de forma arbitrária, lesionando o interesse público, no caso concreto.
Nesse ponto, deve-se comentar a posição de Celso Antônio Bandeira de Mello, para quem não haveria discricionariedade administrativa, como a faculdade do administrador público de realizar escolhas com ampla liberdade. Haveria, sim, um dever de alcançar a finalidade legal. Assim, diante de um caso concreto, entre as soluções elencadas pela lei, restaria apenas uma ótima, aquela que é mais adequada diante da hipótese. Se a escolha administrativa não se enquadrar, não se atenderá com precisão a finalidade legal, acarretando vício quanto à finalidade, passível de correção jurisdicional.[29]
O citado autor assevera com extrema clareza que:
“[…] ante as particularidades do evento que lhe esteja anteposto, a autoridade poderá ver-se defrontada com um caso no qual suas opções para atendimento do fim legal fiquem contidas em espaço mais augusto do que aquele abstratamente franqueado pela lei e pode ocorrer, ate mesmo que, à toda evidência, não lhe reste senão uma só conduta idônea para satisfação do escopo normativo, por não ser comportada outra capaz de colimar os propósitos da lei em face da compostura da situação […].
[…] Segue-se disto que a variedade de soluções comportadas em lei outorgada de discrição, não significa que repute quaisquer delas igual e indiferentemente adequadas para todos os casos de sua aplicação; logo, não significa que o administrador está liberado para adotá-las indiscriminadamente perante quaisquer casos. Significa exatamente o contrário. Ou seja: significa que considera algumas adequadas para certos casos e outras para outros casos, a serem deslindados à vista das situações concretas, razão porque necessitou apresentar alternativas ou um leque delas. É certo, pois, que o administrador, ao decidir-se, está inexoravelmente obrigado a eleger o comportamento cabível “vinculado” à compostura do caso […]”[30]
Dessa forma, a discricionariedade seria a possibilidade de em cada caso concreto haver uma solução adequada, à qual o Administrador se vincula, sob o risco de não cumprir a finalidade legal e realizar uma prática viciada. As demais soluções aparentemente possíveis seriam as adequadas à outra situação concreta. Assim, a Administração Pública deve buscar alcançar satisfatoriamente o interesse público nos mais diversos cenários.
Ademais, a discricionariedade na escolha dos gastos públicos – a base das Políticas Públicas – limita-se pela obediência às normas constitucionais. Não é escolha integralmente reservada à deliberação política, mas sofre incidência, devendo respeitar os limites das normas constitucionais. O entendimento contrário seria “[…] inviabilizar políticas públicas, resguardando o manto da discricionariedade administrativa, quando há o dever jurídico de ação […]”.[31]
Não se quer aniquilar o espaço para a deliberação política nas Políticas Públicas, mas apenas como uma limitação e um norte para a criação de tais Políticas. Nesse sentido, Ana Paula de Barcelos alerta que:
“[…] em um Estado Democrático, não se pode pretender que a Constituição invada o espaço da política em uma versão de substancialismo radical e elitista, em que as decisões políticas são transferidas, do povo e de seus representantes, para os reis filósofos da atualidade: os juristas e operadores do direito em geral. A definição dos gastos públicos é, por certo, um momento típico da deliberação político-majoritária; salvo que essa deliberação não estará livre de alguns condicionantes jurídico-constitucionais […]”[32]
Acrescenta ainda a preclara autora que:
“[..] A liberdade do titular de um mandato político simplesmente não justifica ou autoriza decisões idiossincráticas, comprovadamente ineficientes ou simplesmente sem sentido. Assim, além da vinculação específica aos fins prioritários contidos no texto constitucional, a definição das políticas públicas e, consequentemente, do destino a ser dado aos recursos públicos sofre uma limitação jurídica genérica que decorre do próprio Estado Republicano […]”[33]
Deste modo, a discricionariedade na escolha das Políticas Públicas é limitada pelos princípios constitucionais, mas também pela razoabilidade e pelos deveres republicanos de boa administração, de eficiência e de razoabilidade.
Ademais, baseado em Rodolfo de Camargo Mancuso, cabe esclarecer que as Políticas Públicas devem obedecer a programas e metas fixadas pela ordem jurídica. Não estaria no campo da discricionariedade administrativa a opção de implantá-las ou não. Assim, é indubitável que é possível aferir se essas políticas públicas são condizentes ou não com as metas estabelecidas pela ordem constitucional.[34]
Desenvolvendo a temática, Sérgio Resende de Barros, assevera que é obrigatória a motivação da conduta omissiva ou comissiva da Administração Pública, em relação às Políticas Públicas, uma vez que estão sujeitas a princípios de ordem constitucional. Tal motivação permite a sindicabilidade da Política Pública administrativa, quanto aos motivos determinantes, bem como sua anulação caso não se apresente motivação. Nesse sentido,
“[…] O juiz não só pode e deve apreciar os motivos, mas até ordenar que o administrador público proceda à motivação do seu ato, se ainda não a fez, sob pena de ser anulado pelo Judiciário pro ausência de motivos. Em suma, constitui um indeclinável poder-dever do juiz sindicar os motivos determinantes dos atos administrativos que consubstanciem a formulação e a execução dos programas governamentais enformados pelas Políticas Públicas […]”[35]
3 CONTROLE JURISDICIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS
3.1 PRINCIPIOS
Depois de discorrermos sobre a discricionariedade nas Políticas Públicas e seus limites, cabe analisarmos a vinculação das Políticas Públicas, aos princípios regentes e estruturadores da atividade administrativa.
Primeiramente, a atuação dos Poderes na confecção e execução de Políticas Públicas deve se reger pela busca incessante do interesse público. Assim, quando há disparates entre os investimentos públicos realizados e a finalidade pública e os princípios regentes da atuação administrativa, é possível o controle para corrigir tal falha.
Nesse sentido, tal controle da legalidade em sentido lato é útil tanto para ações quanto para omissões do Poder Público. Assim, o Judiciário tem tal prerrogativa ao observar afronta à finalidade pública, no caso em que o Poder Público prioriza outras Políticas Públicas não essenciais, havendo clara carência em ações concretizadoras de direitos humanos. Como exemplo, estão os gastos exagerados em publicidade governamental, em detrimento do investimento na melhoria da saúde pública brasileira.
Cabe citar Jurisprudência do STJ, que responsabiliza o Estado de Santa Catarina pela não fiscalização adequada de empresas mineradoras com atividades poluentes nos rios da região:
“[…] indiscutivelmente, a União tem o dever de fiscalizar as atividades concernentes à extração mineral, de forma que elas sejam ajustadas à conservação ambiental. Esta obrigatoriedade encontra-se insculpida no texto do artigo 225, §§1º,2º e 3º da Carta Magna.
Cumpre, então, observar que, se a lei impõe ao Poder Púbilco o controle e a fiscalização da atividade mineradora, possibilitando a aplicação de penalidades, não lhe compete optar por não fazê-lo, porquanto inexiste discricionariedade, mas obrigatoriedade de cumprimento de conduta impositiva […]”[36]
Embora a decisão acima seja referente a Políticas Públicas na área ambiental, a ratio decidendi é facilmente aplicável para as Políticas Públicas na área da saúde, não podendo o Estado, ao ter o dever e os mecanismos possíveis para resolver o problema da saúde, ficar omisso. Nesse caso, é possível o controle judicial.
Não há que se falar, portanto, em usurpação de competências administrativas pelo Poder Judiciário, uma vez que apenas obriga o cumprimento da lei por parte da Administração Pública, a qual deverá atuar corretamente, a fim de cumprir seu desiderato.
Importante citar a incidência do princípio da moralidade na atuação do Poder Público.[37] Tal princípio enseja a ação popular, conforme art. 5º, inciso LXVIII da Carta Magna. Assim, a confecção de Políticas Públicas deve se guiar pelo respeito à lealdade, à probidade, à honestidade, à boa-fé. Quando os gastos públicos são realizados de forma ímproba, sem respeito à moralidade administrativa, também são sujeitos ao devido controle judicial. Com efeito, se há desvio de verbas, ou se a verba é mal investida, mesmo que legalmente, para interesses predominantemente privados, em detrimento de necessidades reais do povo, há a possibilidade de controle judicial.[38]
Nesse prisma, também há que se ressaltar que pode haver pessoalidade na feitura das Políticas Públicas, mormente quando o Administrador as utiliza para proveito próprio, ou para demais beneficiários que não o Povo. Nisso se incluem a escolha de pessoas notadamente incompetentes, para altos cargos; a criação de cargos desnecessários, enquanto há ausência de profissionais de primeira necessidade, como médicos; ou o descaso com determinada região, por questões políticas, como no caso de falta de repasse. Enfim, sempre que a Administração não agir de maneira impessoal na formulação e execução de Políticas Públicas, estas poderão ser objeto de controle judicial.
Rege ainda a atuação administrativa o princípio da eficiência. Como se sabe, os recursos públicos são escassos e as demandas múltiplas. Dessa forma, as Políticas Públicas devem ser organizadas e efetuadas da melhor maneira possível nas condições dadas. Assim, os meios empregados devem ser os mais aptos possíveis para que se alcancem os resultados buscados.
Por exemplo, atenta o Princípio da Eficiência a existência de altos gastos em publicidade, enquanto a situação da Saúde permanece caótica. De forma mais casuística, cita-se também que é mais ineficaz o descaso com um hospital a ponto de ser necessária uma reforma em que os serviços são paralisados, comparado a uma Política em que o hospital é devidamente construído, sendo realizada manutenção constante. Além de menos transtornos à população, é visível que o dispêndio de recursos públicos neste caso será menor.
Com tal entendimento, cite-se Régis Fernandes de Oliveira:
“[…] O controle da eficiência, agora inserido como um dos princípios administrativos, sujeita a administração Pública a um controle de qualidade. A saber, não é só gastar os recursos; deve gastá-los bem e de forma apropriada, tendo em vista sempre os interesses públicos inseridos na Constituição. Demais disso, a comprovação não pode ser apenas vista sob o aspecto formal, mas exibir-se em termos de resultados. O Princípio da Eficiência deve resultar na exata aplicação dos recursos naquilo que é essencial e importante para a população, pelo atendimento às necessidades sociais.Trata-se, antes de mais nada, de um princípio de gestão da coisa pública, isto é, de demonstração da operatividade e da boa alocação de recursos, com os resultados exigidos […]”[39]
Implícito ao Princípio da Eficiência, pode-se dizer que está o Princípio da Boa Gestão Administrativa. Este implica que o agente está obrigado a agir direcionado para a medida mais adequada e eficiente, a fim de atingir o interesse público, com a observância dos princípios constitucionais regentes da atuação administrativa.
Ainda dentro de tal análise dos atos administrativos, cabe colacionar ensinamento de Farlei Martins Riccio de Oliveira que explicita melhor as possibilidades do controle judicial, pautado no princípio da eficiência:
“[…] o que cabe no controle judicial é a verificação da relação de adequação entre os motivos, a sua avaliação técnica e os resultados. Se a verificação dos resultados, que é o desfecho da ação administrativa, cabe no controle judicial, poderá ser necessário, nas circunstâncias do caso concreto, que este sindique o mérito, sob pena de emitir juízo precário e inconclusivo. A par da possibilidade de mérito também existir no objeto (quando inserto no círculo da discrição administrativa) e da finalidade do ato (quando implícito na norma). Não se cuidaria, portanto, de substituir a solução administrativa pela judicial, mas, sim, de verificar se aquela foi eficiente e gerou o necessário resultado de interesse público que encerre a demanda pelo controle de modo pertinente e seguro […]”[40]
Dessa forma, poderia o Judiciário sindicar o mérito a fim de se verificar, plenamente, se os motivos alegados, os meios escolhidos e os resultados pretendidos foram os corretos e os mais eficientes, de acordo com a necessidade de concretização dos direitos sociais, como a Saúde, que as Políticas Públicas encerram.
Noutros termos, é necessário adentrar o mérito para se comprovar a realização do Princípio da Eficiência pela Administração Pública. Não se pode querer administrar no lugar do Poder Executivo, mas apenas fiscalizar se tal Poder está cumprindo o seu desiderato constitucional-administrativo, agindo de forma eficiente.
Outro Princípio de grande relevo que subordina a atuação administrativa, e que incide sobre as Políticas Públicas é o Princípio da Razoabilidade/Proporcionalidade.
O Princípio da Proporcionalidade tem matriz alemã e seu desenvolvimento é intimamente ligado à limitação da discricionariedade administrativa. Segundo Alexandre de Moraes, baseia-se em três postulados: adequação entre meios e fins; necessidade de buscar o meio mais benigno; proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, ponderação entre vantagens e desvantagens das ações.[41]
O Princípio da Razoabilidade, por sua vez, é fruto de construções jurisprudenciais anglo-saxônicas, ligada à fiscalização da produção legislativa e ao devido processo legal. Consiste na ideia de que o Poder Judiciário exerceria um controle a partir da concepção razoável de uma pessoa sensata, os accepted moral standards.[42]
Embora haja uma divergência sobre a relação entre os tais princípios, com parte da doutrina, como Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Celso Antônio Bandeira de Mello e Luís Roberto Barroso, que considera que a proporcionalidade seria conteúdo da razoabilidade, neste trabalho ambas serão consideradas como sinônimas, já que possuem a mesma finalidade de ser parâmetro para a discricionariedade administrativa.
As noções de razoabilidade e proporcionalidade revelam a busca pelo equilíbrio entre os meios utilizados e os resultados almejados pela decisão administrativa ou política, no sentido de satisfazer o interesse público. Seria razoável e proporcional tudo aquilo que parece harmônico, racional e eficiente, de acordo com o ordenamento jurídico e o senso de Justiça. Nesse sentido, cabe citar importante ensinamento, sobre a temática:
“[…] o princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, em essência, consubstancia uma pauta de natureza axiológica que emana diretamente das ideias de justiça, equidade, bom senso, prudência, moderação justa medida, proibição de excesso, direito justo e valores afins; precede e condiciona a positivação jurídica, inclusive a de nível constitucional; e, ainda, enquanto princípio geral do direito, serve de regra de interpretação para todo o ordenamento jurídico […]”[43]
O Princípio da Razoabilidade tem uma inegável incidência na relação entre os direitos fundamentais. É ele quem resolve a colisão de valores fundamentais, mediante a ponderação no caso concreto, ditando o quanto cada um incidirá. Desse modo, é cediça a sua aplicação no tocante às Políticas Públicas, visto que é instrumento de grande importância ao Magistrado para avaliar se a definição das prioridades locais, dos investimentos feitos e das escolhas das Políticas Públicas foi feita de forma sensata. Noutros termos, avalia-se se a Política Pública governamental é razoável a fim de se atingir o objetivo da concretização dos direitos sociais.
Diante disso, Grinover conclui que:
“[…] por meio da utilização de regras de proporcionalidade e razoabilidade, o juiz analisará a situação em concreto e dirá se o administrador público ou o responsável pelo ato guerreado pautou sua conduta de acordo com os interesses maiores do indivíduo ou da coletividade, estabelecidos pela Constituição e nas leis […]”[44]
É patente que a ingerência judicial sobre as Políticas Públicas pautada na proporcionalidade e razoabilidade fatalmente recairá sobre a discricionariedade dos atos emanados pelos Poderes Públicos. Dessa forma, na análise do ato ou plano de governo, aferir-se-á sua conveniência e oportunidade, elementos de seu mérito. Observa-se, assim, que a razoabilidade e proporcionalidade são balizas para a discricionariedade.
Ressalte-se que, conforme Diogo de Figueiredo Moreira Neto, “[…] a valoração incorreta e a escolha desacertada não são irregularidades do mérito – são vícios de finalidade […]”.[45] Noutros termos, quando a Política Pública é realizada com os meios inadequados, ou para fins que firam o interesse público, não será possível considerar o ato discricionário como legal. Na mesma linha, cite-se o ensinamento de Celso Antônio Bandeira de Mello:
“[…] Não se imagine que a correção judicial baseada na violação do princípio da razoabilidade invade o mérito do ato administrativo, isto é, o campo de liberdade conferido à Administração para decidir-se segundo uma estimativa da situação e critérios de conveniência e oportunidade. Tal não ocorre porque a sobredita liberdade é liberdade dentro da lei, vale dizer, segundo as possibilidades nela comportadas. Uma providência desarrazoada, consoante dito, não pode ser havida como comportada pela LeI […]”[46]
De tudo isso, depreende-se que é possível a anulação de Política Pública quando o formulador da Política Pública valorar de forma desproporcional ou não razoável o cenário público, em relação às metas sociais constitucional e legalmente previstas. Nesse caso, o Poder Judiciário adentrará no mérito anulando o ato materializador da Política Pública, se houver vício de legalidade, ou de finalidade pública, sendo incoerente com o sistema jurídico, portanto.
Exemplo elucidativo de tal situação é dado pelo constitucionalista Luís Roberto Barroso:
“[…] Por exemplo: se, diante de um surto inflacionário (motivo), o Poder Público congela o preço dos medicamentos vitais para certos doentes crônicos (meio) para assegurar que pessoas de baixa renda tenham acesso a eles (fim), há uma relação racional e razoável entre os elementos em questão, e a norma, em princípio, afigura-se válida. Ao revés, se, diante do crescimento estatístico da AIDS (motivo), o Poder Público proíbe o consumo de bebidas alcoólicas durante o carnaval (meio), para impedir a contaminação de cidadãos nacionais (fim), a medida será irrazoável. Isso porque estará rompida a conexão entre os motivos, os meios e os fins, já que inexiste qualquer relação direta entre o consumo de álcool e a contaminação […]”[47]
Cabe ainda colacionar Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o qual através do acórdão do Recurso Especial nº 429.570/GO, traz ementa em que ficam assentes os postulados desenvolvidos nesse trabalho, em especial a possibilidade de análise do mérito administrativo, pautada pelos princípios reitores da Administração Pública. Ficou redigida nos seguintes termos:
“ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – OBRAS DE RECUPERAÇÃO EM PROL DO MEIO AMBIENTE – ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO.
1.Na atualidade, a Administração pública está submetida ao império da lei, inclusive quanto à conveniência e oportunidade do ato administrativo.
2. Comprovado tecnicamente ser imprescindível, para o meio ambiente, a realização de obras de recuperação do solo, tem o Ministério Público Legitimidade para exigi-la.
3. O Poder Judiciário não mais se limita a examinar os aspectos extrínsecos da administração, pois pode analisar, ainda, as razões de conveniência e oportunidade, uma vez que essas razões devem observar os critérios de moralidade e razoabilidade.
4. Outorga de tutela específica para que a Administração destine do orçamento verba própria para cumpri-la.
5. Recurso Especial Provido.” (grifo nosso) [48]
Nesse ponto, importante fazer a advertência de que os Princípios em comento devem ser aplicados com cuidado, visto que não há critérios puramente objetivos para se aferir se um ato é razoável, ou proporcional. Podem-se utilizar critérios técnicos de especialistas para apurar a eficácia técnica de uma Política, mas em última instância, utiliza-se o bom senso para apurar a razoabilidade e a proporcionalidade da Política Pública.
Espera-se, portanto, dos Magistrados uma atitude responsável, protegendo os abusos dos direitos fundamentais, buscando efetivá-los, porém sem irresponsabilidade e excessos.[49] Dessa maneira, o Juiz não se tornará administrador, mas apenas fiscal do cumprimento das metas sociais constitucionalmente previstas, intérprete da Constituição Federal.[50]
Importante considerar que o controle judicial das políticas públicas deve ser feito com o respeito ao Contraditório, à Ampla Defesa e ao Devido Processo Legal, cabendo toda a gama judicial de recursos disponíveis. Assim, não há que se falar em arbitrariedade no controle das Políticas Públicas, mediante a análise da conformidade destas com o ordenamento jurídico e seus princípios reitores, dentro de um processo judicial válido.
3.2 SEPARAÇÃO DE PODERES E LEGITIMIDADE DOS JUÍZES PARA DECIDIR SOBRE POLÍTICAS PÚBLICAS
3.2.1 Separação de Poderes e as Políticas Públicas
Embora já se tenha falado dessa questão em tópicos anteriores, agora aprofundar-se-á sobre o assunto. A Jurisprudência e a Doutrina, por muito tempo, entendiam que, em razão da independência entre os poderes, não caberia ao Judiciário decidir sobre a confecção das Políticas Públicas. Tal questão seria reservada ao Poder Legislativo, quando necessário criar leis, e ao Poder Executivo, quando necessário planejar o orçamento e executá-lo, através dos mais diversos atos materiais. Assim, a Separação dos Poderes seria o primeiro óbice ao controle judicial das Políticas Públicas.
Com o tempo, o Estado Liberal, em que o Estado pouco atuava no meio social, deu origem ao Estado Providência. Neste, a separação dos poderes, que antes era um limitador estatal, ganha relevo com o objetivo de aumentar a máquina estatal, distribuindo atribuições entre órgãos especializados.
No Estado Liberal, houve a predominância do Poder Legislativo,[51] contudo este não conseguiu ser eficaz, criando leis inadequadas para as finalidades sociais a que se atentava.[52] No Estado Providência, houve a prevalência do Poder Executivo, o qual atuou de forma arbitrária, ou se rendeu a jogos de poder e não conseguiu, em boa parte das vezes, cumprir o desiderato que lhe competia.[53]
Com o tempo, diante de tal panorama, fez-se a releitura da antiga teoria da Separação dos Poderes, a fim de contemplar a ideia de comunicabilidade entre as funções estatais, mediante mecanismos constitucionalmente previstos, permitindo o controle mútuo entre as funções estatais. Dessa forma, consagra-se a doutrina americana dos checks and balances, ou sistema de freios e contrapesos, no qual a fiscalização e cooperação mútuas se integram à noção de Separação dos Poderes. Isso porque “[…] apenas um sistema equilibrado de controles recíprocos pode, sem perigo para a liberdade, fazer coexistir um legislativo forte com um executivo forte e um judiciário forte […]”.[54]
Após o fracasso dos demais poderes, quando em proeminência, verificou-se que a função jurisdicional, a fim de não ficar marginal às demandas sociais, entrou em ascensão, a fim de limitar a atuação abusiva dos demais poderes, garantir o amplo acesso de todos à vida política e modificar a realidade social, concretizando direitos fundamentais.[55] Nesse sentido, é assente que o controle judicial é base para um Estado Democrático de Direito[56], discutindo-se os limites, parâmetros e objetos de incidência, a fim de que o Poder Judiciário não atue de forma arbitrária como os demais poderes.
Cabe agora estudar como a Carta Magna brasileira tratou de tal tema. A Constituição elevou a Separação de Poderes a princípio fundamental da República Brasileira, conforme art. 2º, da CRFB, e a cláusula pétrea, nos termos do art. 60, §4º, III. Observa-se, com efeito, a importância dada pelo ordenamento jurídico, ao considerar que tal norma é impossível de ser retirada do arcabouço jurídico nacional, visto ser essencial ao Estado Democrático de Direito, devendo ser obedecida em toda a atuação estatal.
Ademais, a norma do art. 2º da CRFB impõe que o Executivo, o Legislativo e o Judiciário devem conviver de forma independente e harmônica entre si. Traz, ainda, em todo o texto constitucional, diversos mecanismos de freios e contrapesos entre as funções estatais. Sobre os atributos da independência e harmonia, cabe citar ensinamento de Uadi Lammêgo Bulos:
“[…] a harmonia entre os órgãos do poder exterioriza-se pelas seguintes notas: cortesia e trato respeitoso entre eles. Isto não impede, de modo algum, a interferência de um órgão no outro, a fim de assegurar o mecanismo de freios e contrapesos, garantindo as liberdades públicas e evitando o arbítrio e o autoritarismo. Exemplos de como funciona o mecanismo de freios e contrapesos: 1º) Enquanto o legislativo expede normas gerais, impessoais e abstratas, o Executivo participa pela iniciativa, sanção ou veto das leis. A iniciativa legislativa do Executivo, no entanto, é condicionada à possibilidade de o Congresso Nacional alterar o seu projeto por meio de emendas e até rejeitá-lo; 2º) Mesmo o Presidente da República não influindo na função jurisdicional, os próprios ministros dos tribunais superiores são nomeados por ele, havendo ainda, nesse contexto, a participação do Senado da República (art. 52, III, a) […]”
“[…] a independência de cada Poder delineia-se: pela investidura e permanência das pessoas num dos órgãos do governo, as quais, ao exercer as atribuições que lhes foram conferidas, atuam no raio de competência próprio, sem a ingerência de outros órgãos, com total liberdade, organizando serviços e tomando decisões livremente, sem qualquer interferência alheia, mas permitindo colaboração quando a necessidade o exigir. Em última análise, a independência das funções do poder político, uno e indivisível, exterioriza-se pelo impedimento de uma função se sobrepor à outra, admitidas as exceções participantes dos mecanismos de freios e contrapesos […]”[57]
Verifica-se, assim que os Poderes devem atuar de acordo com sua competência, podendo interferir uns nos outros, e colaborar quando necessário. Ademais, devem agir de forma harmônica, sem que um Poder fira o interesse dos demais. Com isso, nota-se que a Separação de Poderes é mitigada, havendo influência mútua entre os Poderes, a fim de que sejam devidamente controlados.
Dessa forma, não cabe arguir a independência entre os Poderes, simplesmente, como argumento para impedir o controle judicial de Políticas Públicas, visto que tal princípio encontra-se minorado, sendo patente a ingerência dos Poderes, um sobre os outros para efetivar o desiderato constitucional.
Relevante explicar que agora o Princípio da Separação de Poderes, busca não apenas garantir as liberdades individuais, mas se torna um meio de proteção de todas as dimensões de direitos fundamentais.[58] É, destarte, elemento constitutivo do Estado Democrático de Direito brasileiro, tendo também o escopo de assegurar os direitos individuais e sociais, constitucionalmente aceitos.
Essa é a visão de Paulo Bonavides, ao asseverar que:
“[…] Tocante ao princípio da separação dos poderes, enquanto inspirado pela doutrina da limitação do poder do Estado, é uma coisa; já inspirado pela teoria dos direitos fundamentais, torna-se outra, ou seja, algo distinto, ali exibe rigidez e protege abstratamente o conceito de liberdade desenvolvido pela relação direita individuo-Estado; aqui ostenta flexibilidade e protege de maneira concreta a liberdade, supostamente institucionalizada na pluralidade dos laços e das relações sociais […]”[59]
Desse modo, haveria flexibilidade na tripartição dos poderes, tornando possível que as condutas lesivas ao interesse público e aos direitos fundamentais, sejam devidamente controladas pelos outros poderes. Nesse caso, é permitida e até esperada a ingerência de um Poder sobre o outro, dada a natureza dos direitos tutelados.
3.2.2 Legitimidade dos juízes para decidir sobre Políticas Públicas
Outra crítica em relação ao Controle Judicial de Políticas Públicas é que as Políticas Públicas são organizadas pelo Poder Executivo e pelo Legislativo, os quais seriam legitimados pelo sufrágio popular para realizar tal tarefa. Dessa forma, considerar-se-ia uma arbitrariedade a submissão de suas decisões à revisão judicial. Ademais, entende-se que o aspecto temporal dos mandatos, havendo frequentemente sufrágio, seria um limitador natural dos formuladores das Políticas Públicas. Assim, quando a Política Pública fosse insuficiente, o Povo elegeria outros para substituir os anteriores. Sendo o Judiciário formado por membros vitalícios, não teriam legitimidade para formular e executar políticas públicas, por meio de decisões judiciais, já que tal conduta não passa pelo crivo popular.[60]
Busca-se com essa doutrina evitar uma ampliação dos poderes do Judiciário quanto a questões políticas que implique que tal Poder se sobreponha aos outros, sem responsabilidade e sem controle democrático, pela via do sufrágio. Tal situação seria impedimento absoluto para o controle judicial de políticas públicas no Estado Democrático de Direito. Tal é o entendimento de Eduardo Appio ao dispor que:
“[…] O Judiciário controla os meios e não os fins. Ao decidir pela implementação de uma política social, prevista com base em um dever genérico do Estado, o Poder Judiciário passa a ditar os fins do Estado e não a constitucionalidade dos meios eleitos para a sua consecução. O preenchimento do conteúdo de um dever genérico do Estado faz parte de uma atividade política, a partir de uma pauta de prioridades para as quais o legislador e o administrador público foram eleitos. As campanhas políticas contemplam, num regime democrático, diversas políticas sociais, adequadas ao perfil ideológico de cada um dos partidos, as quais são escolhidas pelo cidadão. Não se pode admitir, numa democracia, a substitutividade, pelo Poder Judiciário, do exercício deste poder político, sob pena de esvaziamento dos demais Poderes da República, eleitos pela população […]”[61]
Contudo, tal visão, embora inegavelmente válida, não contempla a intervenção judicial como um todo. Para refutar tal entendimento, apontam-se os argumentos esposados por Mauro Cappelletti, que comprovam o caráter democrático da intervenção judicial.[62]
Primeiramente, a práxis política comprova que os Poderes Executivo e Legislativo estão, infelizmente, muito distantes de serem paradigmas de democracia representativa. O exercício político desses Poderes é marcado, em boa parte das vezes, pela representação de interesses particulares dos próprios políticos, dos grupos por eles representados e por financiadores de campanhas. Assim, nem sempre observam o interesse público, coletivo.
Em segundo lugar, frise-se que o Judiciário possui, sim, representatividade popular. Se seus membros não são eleitos diretamente pelo povo, seus membros de 1º grau se submetem a concurso público, em que é garantida a regra da isonomia. Quanto aos membros de Tribunais, a nomeação é política, logo, feita pelos representantes populares. Dessa forma, são escolhidos indiretamente pela população.
Outro ponto é que as decisões judiciais são públicas e devem ser devidamente fundamentadas, sob pena de nulidade. Assim, as decisões do Judiciário transparecem um julgamento resultado de um procedimento dialógico, em busca da Justiça, com alguma amplitude social. Cabe dizer ainda, que há o mecanismo de revisão, seja por recursos, seja por ações autônomas. Dessa forma, as decisões judiciais não são fruto de predileções subjetivas, ideologias, ou pretensões de poder do Magistrado.
Além disso, outra contribuição essencial do Poder Judiciário é o seu amplo acesso. Com isso, minorias, desrespeitadas em demais processos políticos, conseguem ver seus interesses analisados, e até tutelados, no processo judicial. No tocante às Políticas Públicas, quando o interesse das minorias não é contemplado, pode o Poder Judiciário permitir sua oitiva na elaboração das mesmas, e até impor determinadas medidas se mais coerentes com o sistema jurídico.
Nesse sentido, diga-se que a atividade jurisdicional é a mais participativa entre todos os procedimentos da atividade pública, já que os juízes atuam, quando provocados por membros interessados da comunidade, não importando a condição destes. Atuam os Magistrados nas mais diversas disputas e temáticas, em sua maioria de amplo significado político-social, no seio da comunidade. Dessa forma, observa-se que a produção judiciária tem o potencial de ser deveras democrática, vizinha e sensível às necessidades da população e de realizar as aspirações sociais. Daí vem mais um aspecto de sua representatividade.
Por fim, os Magistrados, como os demais poderes, fazem parte do sistema de freios e contrapesos que marca a independência e harmonia entre os Poderes. Esse controle mútuo entre os centros de Poder é essencial para a Democracia, e para a proteção dos direitos e liberdades fundamentais, uma vez que evita a atuação arbitrária dos demais poderes. Assim, a atividade de controle judicial é essencial para que a atuação dos demais Poderes seja legítima.
Após os argumentos de Cappelletti, devidamente analisados aqui, fica claro que os Juízes possuem legitimidade democrática para o controle das Políticas Públicas, advinda até mesmo da própria Constituição Federal. Com tal argumento, não se impõe uma aristocracia judiciária, mas se busca a prevalência e a concretização de direitos individuais e sociais.
Para concluir, diga-se que Maria Goretti Dal Bosco entende, segundo os ensinamentos de Robert Alexy, que a atuação do Poder Judiciário no sentido de suprir falhas do Executivo e do Legislativo não é contra a democracia. Ao contrário, seria atuação em nome da população que escolheu seus representantes, uma vez que surpreendida pela ineficácia destes representantes. Assim, cumpririam o desiderato popular em suas decisões. [63]
3.3 RESERVA DO POSSÍVEL E O MÍNIMO EXISTENCIAL
O último empecilho alegado para não se permitir o controle judicial de Políticas Públicas é a reserva do possível. Tal teoria foi construída originalmente na Alemanha, nos anos 70. Surge, primordialmente, do caso do numerus clausus Entscheidung, em que um estudante pleiteava judicialmente o acesso ao ensino superior. Nesse processo, o Tribunal Constitucional alemão julgou existirem limitações fáticas para que o Estado atenda todas as demandas de acesso a um direito social, não se podendo exigir do Estado, aquilo que não pode prestar, no caso, a universalização de acesso à universidade pública. Assim, a atuação do Estado se resumiria ao possível e não à integralidade. [64]
Encerra a reserva do possível a teoria de que os direitos sociais a prestações positivas estariam limitados àquilo que racionalmente pudesse se exigir o cumprimento pelo Poder Público. Não se conseguiria realizar todas as prestações possíveis ao cidadão e por ele pleiteadas.
No Brasil, o limite racional é essencialmente monetário. Assim a implantação das prestações sociais seria limitada faticamente pela real capacidade financeira do Estado para seu atendimento, estando o dispêndio de recursos como matéria em que vigoraria a discricionariedade da Administração e do Legislativo, uma vez que os recursos públicos não cobrem todas as demandas sociais.
Diante de múltiplas demandas sociais e da precariedade de boa parcela da população, a teoria da reserva do possível se tornou quase que um dogma da defesa dos entes estatais brasileiros quando judicialmente exigidos para implementar algum direito social. Para não implantar tais exigências populares, plenamente razoáveis, utiliza-se a reserva do possível em sua face monetária como escusa para a não prestação de algum direito. Ou seja, a reserva do possível é alegada como “cláusula supralegal de descumprimento da Constituição”.[65]
Nesse sentido, parte considerável dos doutrinadores brasileiros trata a reserva do possível como obstáculo para o controle judicial de políticas públicas. Analisa Dalton Santos Morais que a atuação estatal, considerando um cenário de escassez de recursos públicos, só pode ser exigida, quanto às verbas disponibilizadas.[66] Acrescenta Paulo Gustavo Gonet Branco, no mesmo sentido, que os direitos que necessitam de prestações materiais se satisfazem mediante conjunturas econômicas, conforme as disponibilidades financeiras, de acordo com o previsto pelo legislador infraconstitucional, o qual, por meio do orçamento, aloca as verbas públicas, consoante a política financeira do país.[67]
Observam-se claramente os aspectos material e jurídico da reserva do possível. Pelo primeiro, constata-se que, em um país como o Brasil em que as demandas são infinitas, os recursos públicos são finitos e não conseguem supri-las em sua totalidade. Juridicamente, as despesas referentes às políticas públicas para serem realizadas devem estar previstas anteriormente nos instrumentos orçamentários. Sem tal previsão, não é possível que ocorra nenhum gasto público (exceto quando houver previsão constitucional nesse sentido).
Se o Estado não pode realizar todas as prestações necessárias, e para fazê-las deve prever em leis orçamentárias, a questão da reserva do possível acabaria se situando na definição das prioridades a serem previstas nos instrumentos orçamentários. Dessa maneira, a controvérsia seria se o Poder Judiciário poderia ou não determinar outras prioridades na execução das Políticas Públicas, ainda que não contempladas em leis orçamentárias. Noutros termos, o debate seria se a confecção de tais leis é ou não matéria reservada à deliberação política.[68]
Diante da natureza e eficácia dos direitos fundamentais, já estudadas em capítulo anterior, o Poder Judiciário deve, como aplicador da lei e da Constituição, quando provocado, realizar o controle judicial de políticas públicas, uma vez que subordinadas a diversos condicionantes jurídico-constitucionais.[69] Deve o Poder Público realizar as normas programáticas previstas constitucionalmente, em especial no art. 3º da CRFB, bem como implantar os percentuais constitucional e legalmente previstos, nos orçamentos.
Diga-se, ademais, que, não sendo infinitos os recursos públicos devem ser bem organizados a fim de cumprir seus diferentes desideratos. Assim, para que sejam real limitação para o controle judicial é mister que haja a comprovação no processo de que foi realizada a organização mais adequada e eficiente das verbas públicas. Isso é essencial, para que a reserva do possível não seja escusa universal para que a Administração não cumpra seus deveres. Nesse sentido, cite-se fala do presidente da Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP), Paulo Skaf, quanto ao problema da saúde:
“[…] O problema da saúde no Brasil é muito mais de má gestão da verba pública do que de falta de dinheiro para investimentos. É certo que os recursos empenhados para a área da saúde no Orçamento do governo federal nunca são usados em sua totalidade […]”[70]
Nesse ínterim, patente é que a afirmação da reserva do possível, quando feita de forma geral, é falaciosa, devendo ser devidamente comprovado no caso concreto que o Poder Público despendeu os recursos possíveis, da melhor forma, para ser aceita.[71] Se não feita dessa forma, acaba por se tornar óbice para o cumprimento de decisão judicial pautada em critérios constitucionais, ou seja, motivo para descumprir o texto constitucional. [72]
Com propriedade, arremata Fernando Facury Scaff:
“[…] como os direitos fundamentais sociais são, por definição, direitos a prestações, não é razoável que se aloquem todos os recursos públicos disponíveis para a sua implementação. Mas é imprescindível que sejam disponibilizados recursos suficientes, de forma proporcional aos problemas encontrados e de forma progressiva no tempo, de modo que as deficiências para o exercício da liberdades jurídicas seja sanado através do pleno exercício das liberdades reais (Robert Alexy), ou, por outras palavras, para o exercício pleno das capacidades de cada indivíduo ou coletividade de indivíduos (Amartya Sem).A teoria da Reserva do Possível somente poderá ser invocada se houver comprovação de que os recursos arrecadados estão sendo disponibilizados de forma proporcional aos problemas encontrados, e de modo progressivo a fim de que os impedimentos ao pleno exercício das capacidades sejam sanadas em tempo menor […]”[73]
Agora, cabe tratar da teoria do Mínimo Existencial como limitação à reserva do possível. O Mínimo Existencial seria um arcabouço de prestações materiais, não expressamente previsto, indispensáveis para assegurar uma vida digna e livre para cada pessoa. Seria segundo Ricardo Lobo Torres direito fundamental com duas faces:
“[…] Como direito subjetivo investe o cidadão na faculdade de acionar as garantias processuais e institucionais na defesa dos seus direitos mínimos.
Do ponto de vista objetivo o mínimo existencial aparece como norma da declaração de direitos fundamentais, que deve cobrir o campo mais amplo das pretensões da cidadania. Mas, sendo pré-constitucional, não lhe prejudica a eficácia a circunstância de se encontrar implícito no discurso constitucional […]“[74]
É, portanto, o mínimo existencial direito fundamental intimamente vinculado à dignidade da pessoa humana, uma vez que engloba o núcleo dos direitos fundamentais que deve ser respeitado para que possa haver uma existência digna. Engloba muito mais do que mera sobrevivência física, mas o arcabouço de direitos essenciais para que se possa ter uma vida livre, com alternativas. De tal relação simbiótica com a dignidade da pessoa humana, surge a sindicabilidade, exigibilidade imediata e não negociabilidade de seu núcleo essencial.[75]
Para Nagibe de Melo Jorge Neto, a aferição do mínimo existencial consegue ser feita no caso concreto:
“[…] Uma vez estabelecido que uma dada ofensa aos direitos fundamentais de segunda ou terceira dimensões afeta o núcleo essencial desses direitos, ou seja, a dignidade da pessoa humana, o núcleo intangível se confunde com o mínimo existencial, o controle das políticas públicas pelo Poder Judiciário se impõe com maior força. E, até mesmo, os limites estabelecidos pela reserva do possível podem ser flexibilizados, ou seria melhor dizer, distendidos um pouco mais vigarosamente ou, quiçá, alargados para que seja garantido o mínimo existencial […]”[76]
Seria o mínimo existencial um direito subjetivo vinculante ao Poder Público. A omissão no cumprimento de tal obrigação seria exigível pelo cidadão e sindicável pelo Poder Judiciário. Com isso, há a garantia não apenas da liberdade jurídica, mas da liberdade fática, real de escolher entre as alternativas permitidas.[77]
Fica claro que o Estado tem a obrigação de implementar os direitos referentes ao mínimo existencial, sob pena de violar o postulado fundamental da dignidade da pessoa humana, não cabendo colocar quaisquer óbices para sua efetivação.
Nesse sentido, Fábio Konder Comparato aponta que:
“[…] Se o Estado não dispõe, como é óbvio de condições materiais para atender a totalidade das demandas individuais de bens indispensáveis a uma vida digna, ele tem não obstante, inquestionavelmente, o dever constitucional de por em prática, com todos os meios ao seu alcance, as políticas públicas dirigidas à consecução desses objetivos […]”[78]
Para dar ainda mais realce à obrigação estatal, vale citar o Pacto internacional dos Direitos Econômicos, sociais e Culturais, do qual o Brasil é signatário, tendo ratificado, e, portanto, se obrigado internacionalmente a cumprir:
“Art. 2ª – 1. Cada estado-parte no presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômicos e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas”.[79]
4 CONTROLE JURISDICIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS NA ÁREA DA SAÚDE
Como visto, a Saúde é direito fundamental, de esfera social. Possui aplicabilidade imediata que vincula todas as esferas estatais. Para tanto, cabe ao Poder Público realizar as medidas necessárias para sua concretização. O conjunto organizado e estruturado de tais medidas são as Políticas Públicas. Estas devem ser efetivadas pelo Poder Público de maneira que progressivamente concretizem os direitos sociais, como a saúde, nela encerrados.
Dessa forma, tal múnus não cabe somente à Administração Pública, mas a todas as funções estatais. Assim, cabe ao Legislativo editar normas que possibilitem a concretização de direitos sociais, bem como cabe ao Poder Judiciário decidir, quando provocado, no sentido de que se realizem as medidas necessárias para que as Políticas Públicas sejam efetivas. Não é possível, portanto, admitir que a separação de poderes é obstáculo para a efetivação de direitos sociais, não se podendo falar que as Políticas Públicas só são responsabilidade do Poder Executivo.
Ademais, é patente a necessidade que a atuação do Poder Executivo seja realizada de forma a que a Saúde e os demais direitos sociais sejam progressivamente efetivados. Tais direitos são básicos para o cidadão, formando um mínimo existencial que deve ser implementado pelo Estado. Para tanto, deve o Estado atuar de forma razoável e mais eficiente com os recursos disponíveis. Assim, quando se utilizarem os recursos da maneira mais econômica e eficaz, o Poder Público terá cumprido a sua função e não poderá se responsabilizar por não ter resolvido eventuais problema sociais. Isso porque terá feito o possível, naquela situação em concreto.
Observa-se, portanto, que o Controle Judicial de Políticas Públicas na área da saúde que estejam sendo realizadas de forma insuficiente, irrazoável, errada, ou ainda não estejam ocorrendo, é possível e, mais que isso, é uma obrigação do Poder Judiciário quando provocado. Assim, não pode o Poder Judiciário se manter inerte a tal obrigação e deve atuar de forma a impor a realização das políticas públicas necessárias.
Cabe citar, nesse sentido, ensinamento da lavra de Farlei M. R. de Oliveira, o qual entende que, para a ocorrência do controle de políticas públicas, devem ser cumpridos os seguintes requisitos:
“[…] (i) se trata de políticas definidas no texto constitucional, posto ser tal definição vinculante da ação estatal e limitadora da discricionariedade administrativa; (b) o Estado se omita, total ou parcialmente, no exercício de seus deveres jurídico-sociais de prestações positivas, com vistas à implementação dessas políticas; (c) eventuais carências financeiras ou orçamentárias não escusem a omissão, salvo se comprovado o esgotamento dos meios disponíveis e/ou mobilizáveis para o atendimento às prioridades decorrentes das políticas constitucionais […]”[80]
Nesse sentido, é a jurisprudência pátria, conforme se observa de recentes e reiterados julgados dos Tribunais Superiores.[81],[82],[83] Para melhor explicitação do que pensam as instâncias superiores nacionais, cabe colacionar decisão em sede do Resp 1.041.197-MS, de relatoria do Ministro Humberto Martins. Eis na íntegra:
“ADMINISTRATIVO AÇAO CIVIL PÚBLICA CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS POSSIBILIDADE EM CASOS EXCEPCIONAIS DIREITO À SAÚDE FORNECIMENTO DE EQUIPAMENTOS A HOSPITAL UNIVERSITÁRIO MANIFESTA NECESSIDADE OBRIGAÇAO DO ESTADO AUSÊNCIA DE VIOLAÇAO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇAO DOS PODERES NAO-OPONIBILIDADE DA RESERVA DO POSSÍVEL AO MÍNIMO EXISTENCIAL.
1. Não comporta conhecimento a discussão a respeito da legitimidade do Ministério Público para figurar no pólo ativo da presente ação civil pública, em vista de que o Tribunal de origem decidiu a questão unicamente sob o prisma constitucional.
2. Não há como conhecer de recurso especial fundado em dissídio jurisprudencial ante a não-realização do devido cotejo analítico.
3. A partir da consolidação constitucional dos direitos sociais, a função estatal foi profundamente modificada, deixando de ser eminentemente legisladora em pró das liberdades públicas, para se tornar mais ativa com a missão de transformar a realidade social. Em decorrência, não só a administração pública recebeu a incumbência de criar e implementar políticas públicas necessárias à satisfação dos fins constitucionalmente delineados, como também, o Poder Judiciário teve sua margem de atuação ampliada, como forma de fiscalizar e velar pelo fiel cumprimento dos objetivos constitucionais.
4. Seria uma distorção pensar que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido com o escopo de garantia dos direitos fundamentais, pudesse ser utilizado justamente como óbice à realização dos direitos sociais, igualmente fundamentais. Com efeito, a correta interpretação do referido princípio, em matéria de políticas públicas, deve ser a de utilizá-lo apenas para limitar a atuação do judiciário quando a administração pública atua dentro dos limites concedidos pela lei. Em casos excepcionais, quando a administração extrapola os limites da competência que lhe fora atribuída e age sem razão, ou fugindo da finalidade a qual estava vinculada, autorizado se encontra o Poder Judiciário a corrigir tal distorção restaurando a ordem jurídica violada.
5. O indivíduo não pode exigir do estado prestações supérfluas, pois isto escaparia do limite do razoável, não sendo exigível que a sociedade arque com esse ônus. Eis a correta compreensão do princípio da reserva do possível, tal como foi formulado pela jurisprudência germânica. Por outro lado, qualquer pleito que vise a fomentar uma existência minimamente decente não pode ser encarado como sem motivos, pois garantir a dignidade humana é um dos objetivos principais do Estado Democrático de Direito. Por este motivo, o princípio da reserva do possível não pode ser oposto ao princípio do mínimo existencial.
6. Assegurar um mínimo de dignidade humana por meio de serviços públicos essenciais, dentre os quais a educação e a saúde, é escopo da República Federativa do Brasil que não pode ser condicionado à conveniência política do administrador público. A omissão injustificada da administração em efetivar as políticas públicas constitucionalmente definidas e essenciais para a promoção da dignidade humana não deve ser assistida passivamente pelo Poder Judiciário.
Recurso especial parcialmente conhecido e improvido.”[84]
É cediço, portanto, que o Judiciário pode realizar o controle de políticas públicas, a fim de cumprir desiderato constitucional, buscando a efetivação de direitos fundamentais. Para isso, a exigência deve ser razoável, bem como deve ter havido falha injustificada do Estado no cumprimento de tal meta, além de haver recursos disponíveis para a realização das Políticas Públicas.
Insta salientar que neste trabalho o objeto de estudo é a saúde como direito coletivo e não individual. Dessa forma, o controle das Políticas Públicas incidirá sobre os acertos e desacertos das políticas sanitárias em relação à integralidade da população e não quanto a um tratamento ou remédio específico. O objetivo é estudar a eficiência do Estado em implantar uma saúde pública de qualidade para todos e os mecanismos do Poder Judiciário para impor que a atuação estatal progressivamente aja para alcançar tal meta.
Não se nega que em determinados casos haja um desacerto de política estatal quando esta não prevê determinado tratamento, ou medicamento. Contudo, tais medidas individuais quando tomadas oneram o Estado, sem se preocupar com a macropolítica sanitária. Dessa forma, para beneficiar um paciente, muitas vezes prejudica-se a tomada de ações que beneficiariam muitos outros. Assim, o que se busca discutir, nesta pesquisa, é o controle de políticas públicas quanto à maneira como o Estado gasta seus recursos na área da saúde, para que esta seja direito de todos, e não de alguns.
Nesse sentido, cabe citar o entendimento do constitucionalista Luis Roberto Barroso para quem, no âmbito das ações individuais, o Poder Judiciário deve atuar de forma limitada a determinar que sejam fornecidos os remédios já constantes da lista dos programas de saúde dos entes públicos. No caso de se buscar a revisão de tal rol, necessária se faria a propositura de ações coletivas ou abstratas de controle de constitucionalidade. [85]
Continua o precitado doutrinador afirmando que haveria um confronto entre a micro-justiça – aquela referente à solução dos casos concretos individuais – e a macro-justiça – referente ao atendimento de necessidades relevantes e a imposição inexorável do gerenciamento de recursos limitados para o atendimento de demandas ilimitadas. No atendimento da micro-justiça, fatalmente o juiz ignoraria as questões referentes à macro-justiça, não a efetivando. Quando se busca a tutela coletiva ou abstrata realiza-se o exame da alocação de recursos ou a definição de prioridades em caráter geral, de modo que se contemple a micro e a macro-justiça, evitando-se tal embate.[86]
Nesse ponto, cumpre observar que, neste trabalho, se estudará, principalmente, a Saúde como direito difuso, o qual é tutelado por ações coletivas. Nesse ponto, cabe citar que interesses difusos, para Mauro Cappelletti:
“[…] são interesses fragmentados ou coletivos, tais como o direito ao ambiente saudável, ou à proteção do consumidor. O problema básico que eles apresentam – a razão de sua natureza difusa – é que, ou ninguém tem direito a corrigir a lesão a um interesse coletivo, ou o premio para qualquer indivíduo buscar essa correção é pequeno demais […]”[87]
Sendo a Saúde Pública universal e de qualidade direito de todos os brasileiros, o qual não se pode fragmentar, observa-se que, nesse prisma, é interesse difuso, o qual deve ser tutelado também de forma coletiva. A tutela individual, portanto, é insuficiente, uma vez que não comporta toda a amplitude do interesse buscado, e ilegítima, quando um indivíduo pode suplantar seu interesse privado, em detrimento da coletividade.
4.1 LEGITIMADOS ATIVOS DO CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS NA ÁREA DA SAÚDE
Cabe agora estudar como o Controle de Políticas Públicas, as quais tratam de interesses difusos, ocorre de fato. Primeiramente, cabe estudar quem são os legitimados para provocar o Poder Judiciário a realizar o controle de Políticas Públicas.
Há casos em que qualquer cidadão será legitimado para tanto. São os casos previstos na lei de ação popular, quando há ofensa à moralidade administrativa ou ao patrimônio Público.
Tal medida é exemplar do controle social do Estado, mais precisamente das Políticas Públicas. Em uma democracia participativa, como a que se busca, seria um mecanismo de controle excelente, isso porque o Povo controlaria seus governantes, a fim de que estes realmente administrassem para se alcançar o interesse público. Contudo, tal mecanismo possui duas dificuldades para ser usado de maneira mais recorrente.
Em um prisma, a ação popular possui um espectro material reduzido. De acordo com o art. 5º, LXVIII, da CRFB, é cabível tal ação para anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.
Disso se observa que a ação popular não pode incidir sobre atos que não lesionem o patrimônio público ou à moralidade administrativa. Assim, quando o Estado não age eficientemente quanto à Saúde, mas não lesiona os elementos supra, é impossível o manejo da ação popular. Por outro prisma, a ação em comento apenas cabe para anular atos administrativos. Nesse sentido, quando a tutela que se buscar for a imposição de obrigação de fazer ou não fazer ao Estado, também não é apta a ação popular para buscar tal desiderato.
Outro óbice à utilização da ação popular é a questão da dificuldade de sua utilização por parte dos cidadãos. No Brasil, embora haja atualmente louváveis tentativas, o controle social é deveras dificultado. Não há informações suficientes, em linguagem clara e acessível à população, sobre o que é arrecadado, como é feito o gasto, quais são os objetivos perseguidos no mandato. Ademais, não se presta contas, de forma real, efetiva, transparente e acessível quanto à execução do orçamento. Dessa forma, dificulta-se sobremaneira que haja um controle social por parte da população, em vista da dificuldade para obtenção de dados orçamentários e sua interpretação e análise.
Disso tudo, vê-se que a ação popular é instrumento que deve ser incentivado e manejado pela população, mas que não é suficiente para realizar um controle de Políticas Públicas que seja amplo para contemplar o maior espectro possível de situações pertinentes às Políticas Públicas, neste trabalho, as sanitárias.
Diante de tal insuficiência, observa-se que a Ação Civil Pública é o instrumento mais apto para realizar o controle de Políticas Públicas.[88] Diz-se isso, uma vez que tal ação é adequada para todo o espectro de tutelas necessárias para o controle de Políticas Públicas, como obrigações de fazer e não fazer, e não apenas anulação de atos administrativos.
É a ACP instrumento apto para intervir diretamente na implantação correta das Políticas públicas, sendo, inclusive, eleita como principal instrumento para tanto por Nagibe de Melo Jorge Neto[89], Fabio Konder Comparato[90] e Hugo Nigro Mazzilli[91].
Ademais, os legitimados ativos na ACP são instituições que possuem capacidade técnica para acessar as informações orçamentárias e interpretá-las a fim de que se possa aferir se foi ou não realizado o investimento orçamentário da melhor forma possível. Possuem também preparação intelectual e financeira para competir com interesses estatais e privados, com grande poder econômico.
Segundo a Lei 7347/85, a qual dispõe sobre a Ação Civil Pública, os legitimados ativos para a interposição de tal ação são os seguintes:
“Art. 5o Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: (Redação dada pela Lei nº 11.448, de 2007).
I – o Ministério Público; (Redação dada pela Lei nº 11.448, de 2007).
II – a Defensoria Pública; (Redação dada pela Lei nº 11.448, de 2007).
III – a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; (Incluído pela Lei nº 11.448, de 2007).
IV – a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; (Incluído pela Lei nº 11.448, de 2007).
V – a associação que, concomitantemente: (Incluído pela Lei nº 11.448, de 2007).
a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil; (Incluído pela Lei nº 11.448, de 2007).
b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. (Incluído pela Lei nº 11.448, de 2007).”[92]
Observa-se, assim, que o rol de legitimados ativos é amplo, com instituições com estrutura e capacidade suficientes para tutelar a Saúde Pública e os demais interesses difusos.
Contudo, para defender a Saúde com ainda mais completude, necessário seria aumentar o rol de associações legitimadas ativas. Verifica-se que em tal elenco há instituições que cuidam de diversos interesses difusos e coletivos, mas não se verifica a existência de associações que tratam de interesses de grande importância como a educação e, a que é objeto desse estudo, a Saúde.
Dessa maneira, associações que têm como finalidade institucional a Saúde Pública também devem ser contempladas para que possam cobrar judicialmente do Poder Público que adote Políticas Públicas realmente eficientes para a resolução progressiva da problemática da Saúde. Não é concebível que os demais interesses difusos sejam tutelados pela Sociedade Civil e a Saúde, direito social, constitucionalmente previsto, só possa ser tutelado pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública.
Ademais, também seria profícuo ampliar a legitimidade para os Conselhos de Saúde, órgãos deliberativos em que a participação popular é ampla. São canais de participação política, de deliberação e fiscalização legalmente institucionalizada e de publicização das ações do governo.[93] São, portanto, órgãos que constantemente realizam a discussão pública e democrática das políticas públicas, possuindo informações e capacidade técnica para tal controle.
Sobre a importância dos conselhos de saúde cabe citar ainda Carla Bronzo Ladeira Carneiro, para quem:
“[…] Como tipo ideal, e também como uma utopia possível, os conselhos contribuem para aproximar o governo dos cidadãos e para o enfraquecimento das redes de clientelismo, trazendo alianças e conflitos de interesse para esferas públicas de decisão; permitem maior grau de acerto no processo de tomada de decisões; ajudam na identificação mais rápida de problemas e na construção de alternativas de ação; aumentam a transparência administrativa e pressionam as diversas áreas do governo em direção a ações mais integradas […]”[94]
Da mesma forma que o Ministério Público e as Defensorias Públicas são órgãos estatais que defendem interesses difusos, os Conselhos de Saúde, como esferas próprias para a discussão dos temas referentes à Saúde Pública devem ter legitimidade para acionar judicialmente o Poder Público quando este adotar Políticas Públicas que firam decisões do próprio Conselho e sejam comprovadamente ineficientes.
Devem poder acionar ainda quando o Poder Público se mantém inerte e não realize as medidas indicadas e até muitas vezes já previstas no orçamento, sem qualquer explicação. Com isso, consegue-se ter uma esfera especializada e democrática no controle da implantação das medidas sanitárias, e não apenas de sua formulação.
Quanto maior o rol de instituições legitimadas ativas, maior a possibilidade de controle das Políticas Públicas, pois quando uma instituição não se atentar a uma determinada falha na Política Sanitária, ou não tiver interesse, outra pode realizar o controle necessário, a fim de que a questão da realização ou não de determinada Política Pública seja decidida em Juízo.
Nesse ponto, importante citar que a instituição que realiza o Controle de Políticas Públicas por excelência é o Ministério Público. O MP é o legitimado constitucional para a defesa dos interesses difusos, indisponíveis. Nesses, como já dito, enquadra-se perfeitamente o Direito à Saúde Pública, como direito prestacional a ser tutelado pelo órgão ministerial. Tal é a previsão da CRFB:
“Art.127 – O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Art. 129 – São funções institucionais do Ministério Público:
II – zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;
III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;”[95]
Observa-se, assim, que o parquet é legítimo, sendo inclusive órgão indicado pela Carta Magna a impor o respeito do Poder Público aos interesses indisponíveis, o que é feito, em grande parte, com o Controle da eficiência das Políticas Públicas quanto aos direitos prestacionais. Seus membros formam corpo qualificado para tanto, sendo, inclusive, os principais responsáveis pelas ACPs que buscam o controle de políticas públicas na prática forense brasileira.
De todo o exposto, observa-se que os legitimados para realizarem o controle de Políticas Públicas por meio de ACP são um rol interessante, com instituições sólidas, mas que pode e deve ser ampliado para que haja mais possibilidades de se acionar judicialmente o Poder Público para cumprir seu desiderato quanto à Saúde Pública universal.
4.2 LEGITIMADOS PASSIVOS DO CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS NA ÁREA DA SAÚDE
Quando o Controle de Políticas Públicas vai ser realizado, surge a questão de quais serão os legitimados passivos. Noutros termos, a problemática é quem ocupará o polo passivo da ação que questiona a Política Pública.
Importante compreender que há casos em que a ação será proposta contra o chefe do Poder Executivo, quando sua for a responsabilidade pela não realização da Política Pública. Há outras situações em que a ação recairá contra o próprio Ente Federado, com possibilidade de regressibilidade ao chefe do Poder Executivo do tempo da ação ou da omissão objeto de controle.[96] Tais casos serão mais bem estudados e especificados quando do estudo das situações em que é possível o Controle das Políticas Públicas.
Outra questão é saber qual ente federado ou chefe de seu Poder Executivo deve estar no polo passivo. O que se observa é que se deve verificar de quem é a responsabilidade pela Política Pública que não foi realizada. Deve-se ver se a falha orçamentária, ou em sua conclusão foi por falta de repasse, por exemplo, ou por falta da elaboração de projeto por parte do ente federado interessado em verba pública.
Não prospera, com efeito, a argumentação atual que possibilita a inclusão de todos os entes federativos no polo passivo do Processo. Tal entendimento se baseia no fato de que a tutela da Saúde é de competência comum de todos os entes políticos, pelo que, todos deveriam ser responsabilizados por eventual inércia ou má prestação. Contudo, embora a Saúde seja direito da mais nobre relevância, se determinado ente político realiza sua atividade da forma mais eficiente possível, não há por que responsabilizá-lo, já que sua atuação foi válida e juridicamente correta.
Assim, a resolução da questão do Ente Federado legitimado passivo se dá, na medida em que se afere quem deve ser o responsável pela omissão, ou ação irrazoável, quanto à Política Pública na área da Saúde. Não se deve integrar ao processo Entes Federados que nada poderiam fazer, ou que realizaram a conduta possível para a concretização de determinada Política Pública, sob pena de tornar determinados entes, em especial a União, como garantidor universal da Saúde, ainda que a culpa pela não implementação tenha sido de outro ente federado. Ressalte-se que tal questão só se resolve de forma casuística e será melhor analisada ao longo do trabalho, quando analisarmos as diferentes maneiras de controle.
4.3 PARÂMETROS DE CONTROLE
4.3.1 Parâmetro objetivo de controle
Identificar as balizas para o controle das Políticas Públicas é questão essencial para que tal controle se realize de forma razoável. Ressalte-se que, como exposto anteriormente neste Trabalho, o controle em comento incide sobre a discricionariedade do Poder Público quanto à realização de medidas administrativas. É, portanto, intervenção do Poder Judiciário sobre o Poder Executivo e como tal deve ser excepcional.
Para tanto, faz-se imprescindível a existência de meta constitucional que seja prioritária e, com tal relevo, que a autoridade pública tenha que buscar sua realização. Significa, portanto, que determinadas Políticas Públicas, mesmo legitimamente aprovadas, serão deixadas em segundo plano em favor do atingimento dos programas constitucionalmente previstos, prioritários, pela exegese constitucional. Conclui-se, portanto, que o Controle de Políticas Públicas só será realizado de maneira razoável, suficientemente para se buscar metas constitucionalmente definidas, ferindo o menos possível a discricionariedade administrativa.[97]
Esclarecida a importância dos limites para o Controle de Políticas Públicas, cabe estudá-los. Primeiramente, cite-se a espécie dos parâmetros puramente objetivas. Estes, segundo Ana Paula Barcellos, estão “[…] relacionados com a quantidade de recursos, em termos absolutos ou relativos, que deverá ser aplicada em políticas públicas destinadas a realizar determinadas finalidades constitucionais […]”.[98] Tais balizas estão constitucional e legalmente previstas e implicam uma ampla vinculação na aplicação dos recursos públicos a elas.
No campo da Saúde, principal objeto de nosso estudo, destaca-se o art. 198, parágrafo 2º da CRFB, o qual vincula o comprometimento de recursos da União, Estados, Distrito Federal e Municípios a serem aplicados em ações e serviços públicos de saúde, in verbis:
“Art.198 – As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
§ 2º – A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre: (Alterado pela EC-000.029-2000)
I – no caso da União, na forma definida nos termos da lei complementar prevista no § 3º; (Acrescentado pela EC-000.029-2000)
II – no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o Art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios;
III – no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o Art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º.”[99]
Além dessa previsão constitucional, ressalta-se a previsão da Lei Complementar 141 de 2012, a qual regulou o art. 198, §3º da CRFB. Tal lei expõe expressamente os percentuais mínimos a serem aplicados pelos entes federativos, bem como a base de cálculo para tanto. Seu texto é o seguinte:
“Art. 5º A União aplicará, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde, o montante correspondente ao valor empenhado no exercício financeiro anterior, apurado nos termos desta Lei Complementar, acrescido de, no mínimo, o percentual correspondente à variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB) ocorrida no ano anterior ao da lei orçamentária anual.
§ 2º Em caso de variação negativa do PIB, o valor de que trata o caput não poderá ser reduzido, em termos nominais, de um exercício financeiro para o outro.
Art. 6º Os Estados e o Distrito Federal aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde, no mínimo, 12% (doze por cento) da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam o art. 157, a alínea “a” do inciso I e o inciso II do caput do art. 159, todos da Constituição Federal, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios.
Art. 7º Os Municípios e o Distrito Federal aplicarão anualmente em ações e serviços públicos de saúde, no mínimo, 15% (quinze por cento) da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam o art. 158 e a alínea “b” do inciso I do caput e o § 3º do art. 159, todos da Constituição Federal.
Art. 8º O Distrito Federal aplicará, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde, no mínimo, 12% (doze por cento) do produto da arrecadação direta dos impostos que não possam ser segregados em base estadual e em base municipal.
Art. 9º Está compreendida na base de cálculo dos percentuais dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios qualquer compensação financeira proveniente de impostos e transferências constitucionais previstos no § 2º do art. 198 da Constituição Federal, já instituída ou que vier a ser criada, bem como a dívida ativa, a multa e os juros de mora decorrentes dos impostos cobrados diretamente ou por meio de processo administrativo ou judicial.
Art. 10. Para efeito do cálculo do montante de recursos previsto no § 3º do art. 5º e nos arts. 6º e 7º, devem ser considerados os recursos decorrentes da dívida ativa, da multa e dos juros de mora provenientes dos impostos e da sua respectiva dívida ativa.
Art. 11. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão observar o disposto nas respectivas Constituições ou Leis Orgânicas sempre que os percentuais nelas estabelecidos forem superiores aos fixados nesta Lei Complementar para aplicação em ações e serviços públicos de saúde.”[100]
Observa-se, destarte, que há verbas mínimas reservadas para as Políticas Públicas sanitárias, com base de cálculo e alíquotas definidas. Tais verbas devem, portanto, ser investidas unicamente para tal fim. Tal vinculação torna incabível a alegação de que não há recursos para serem aplicados em Saúde Pública, já que se cria um orçamento próprio e constante para a Saúde, o qual deve ser investido de melhor forma possível.
Com efeito, a inobservância da aplicação desses percentuais mínimos é uma afronta à Legalidade e deve, inequivocamente, ser objeto de Controle por parte do Judiciário quando provocado. Nesse caso, não há que se falar em discricionariedade, pois se vislumbra que a aplicação de tais recursos é ato vinculado da Administração, já que a Constituição e a Lei a impõe. Tal afronta é claramente sindicável pelo Judiciário, a fim de realizar o controle de legalidade e determinar o cumprimento da norma.[101]
Cabe citar ainda que as normas de repasse entre os entes federativos também se encontram na LC 141/2012. Tal previsão legal deve ser obedecida pelos entes federativos, ao realizarem as transferências na área da Saúde. Tais são as normas:
“Art. 19. O rateio dos recursos dos Estados transferidos aos Municípios para ações e serviços públicos de saúde será realizado segundo o critério de necessidades de saúde da população e levará em consideração as dimensões epidemiológica, demográfica, socioeconômica e espacial e a capacidade de oferta de ações e de serviços de saúde, observada a necessidade de reduzir as desigualdades regionais, nos termos do inciso II do § 3º do art. 198 da Constituição Federal.
§ 1º Os Planos Estaduais de Saúde deverão explicitar a metodologia de alocação dos recursos estaduais e a previsão anual de recursos aos Municípios, pactuadas pelos gestores estaduais e municipais, em comissão intergestores bipartite, e aprovadas pelo Conselho Estadual de Saúde.
§ 2º O Poder Executivo, na forma estabelecida no inciso II do caput do art. 9º da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, manterá o respectivo Conselho de Saúde e Tribunal de Contas informados sobre o montante de recursos previsto para transferência do Estado para os Municípios com base no Plano Estadual de Saúde.
Art. 20. As transferências dos Estados para os Municípios destinadas a financiar ações e serviços públicos de saúde serão realizadas diretamente aos Fundos Municipais de Saúde, de forma regular e automática, em conformidade com os critérios de transferência aprovados pelo respectivo Conselho de Saúde.
Parágrafo único. Em situações específicas, os recursos estaduais poderão ser repassados aos Fundos de Saúde por meio de transferência voluntária realizada entre o Estado e seus Municípios, adotados quaisquer dos meios formais previstos no inciso VI do art. 71 da Constituição Federal, observadas as normas de financiamento.”
Quando um Ente Federativo realizar os repasses deverá, portanto, respeitar os requisitos legais supraprevistos, com observância razoável das variáveis acima previstas. O repasse, ou a sua ausência, que não for realizado nos termos supra, ferindo o equilíbrio nele previsto, será arbitrário e claramente objeto de controle, por meio de ACP, inclusive pelo próprio ente público que efetuou o repasse. Com isso, cumpre-se a Política Pública legalmente prevista.
Destaca-se, ainda, que a Lei 8080/90 e a LC 141/2012 preveem as ações que se consideram Políticas Públicas sanitárias, cabendo colacioná-las:
“Lei 8080/90
Art. 5º São objetivos do Sistema Único de Saúde SUS:
I – a identificação e divulgação dos fatores condicionantes e determinantes da saúde;
II – a formulação de política de saúde destinada a promover, nos campos econômico e social, a observância do disposto no § 1º do art. 2º desta lei;
III – a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, com a realização integrada das ações assistenciais e das atividades preventivas.
Art. 6º Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS):
I – a execução de ações:
a) de vigilância sanitária;
b) de vigilância epidemiológica;
c) de saúde do trabalhador; e
d) de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica;
II – a participação na formulação da política e na execução de ações de saneamento básico;
III – a ordenação da formação de recursos humanos na área de saúde;
IV – a vigilância nutricional e a orientação alimentar;
V – a colaboração na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho;
VI – a formulação da política de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos e outros insumos de interesse para a saúde e a participação na sua produção;
VII – o controle e a fiscalização de serviços, produtos e substâncias de interesse para a saúde;
VIII – a fiscalização e a inspeção de alimentos, água e bebidas para consumo humano;
IX – a participação no controle e na fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos;
X – o incremento, em sua área de atuação, do desenvolvimento científico e tecnológico;
XI – a formulação e execução da política de sangue e seus derivados.[102]
LEI COMPLEMENTAR Nº 141/2012
Art. 2º Para fins de apuração da aplicação dos recursos mínimos estabelecidos nesta Lei Complementar, considerar-se-ão como despesas com ações e serviços públicos de saúde aquelas voltadas para a promoção, proteção e recuperação da saúde que atendam, simultaneamente, aos princípios estatuídos no art. 7º da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, e às seguintes diretrizes:
I – sejam destinadas às ações e serviços públicos de saúde de acesso universal, igualitário e gratuito;
II – estejam em conformidade com objetivos e metas explicitados nos Planos de Saúde de cada ente da Federação; e
III – sejam de responsabilidade específica do setor da saúde, não se aplicando a despesas relacionadas a outras políticas públicas que atuam sobre determinantes sociais e econômicos, ainda que incidentes sobre as condições de saúde da população.
Parágrafo único. Além de atender aos critérios estabelecidos no caput, as despesas com ações e serviços públicos de saúde realizadas pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios deverão ser financiadas com recursos movimentados por meio dos respectivos fundos de saúde.
Art. 3º Observadas as disposições do art. 200 da Constituição Federal, do art. 6º da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, e do art. 2º desta Lei Complementar, para efeito da apuração da aplicação dos recursos mínimos aqui estabelecidos, serão consideradas despesas com ações e serviços públicos de saúde as referentes a:
I – vigilância em saúde, incluindo a epidemiológica e a sanitária;
II – atenção integral e universal à saúde em todos os níveis de complexidade, incluindo assistência terapêutica e recuperação de deficiências nutricionais;
III – capacitação do pessoal de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS);
IV – desenvolvimento científico e tecnológico e controle de qualidade promovidos por instituições do SUS;
V – produção, aquisição e distribuição de insumos específicos dos serviços de saúde do SUS, tais como: imunobiológicos, sangue e hemoderivados, medicamentos e equipamentos médico-odontológicos;
VI – saneamento básico de domicílios ou de pequenas comunidades, desde que seja aprovado pelo Conselho de Saúde do ente da Federação financiador da ação e esteja de acordo com as diretrizes das demais determinações previstas nesta Lei Complementar;
VII – saneamento básico dos distritos sanitários especiais indígenas e de comunidades remanescentes de quilombos;
VIII – manejo ambiental vinculado diretamente ao controle de vetores de doenças;
IX – investimento na rede física do SUS, incluindo a execução de obras de recuperação, reforma, ampliação e construção de estabelecimentos públicos de saúde;
X – remuneração do pessoal ativo da área de saúde em atividade nas ações de que trata este artigo, incluindo os encargos sociais;
XI – ações de apoio administrativo realizadas pelas instituições públicas do SUS e imprescindíveis à execução das ações e serviços públicos de saúde; e
XII – gestão do sistema público de saúde e operação de unidades prestadoras de serviços públicos de saúde.”[103]
Destaca-se, ainda, que a LC 141/2012 prevê as situações que não podem ser consideradas como políticas sanitárias para o fim de aplicação dos recursos constitucional e legalmente previstos, in verbis:
“Art. 4º Não constituirão despesas com ações e serviços públicos de saúde, para fins de apuração dos percentuais mínimos de que trata esta Lei Complementar, aquelas decorrentes de:
I – pagamento de aposentadorias e pensões, inclusive dos servidores da saúde;
II – pessoal ativo da área de saúde quando em atividade alheia à referida área;
III – assistência à saúde que não atenda ao princípio de acesso universal;
IV – merenda escolar e outros programas de alimentação, ainda que executados em unidades do SUS, ressalvando-se o disposto no inciso II do art. 3º;
V – saneamento básico, inclusive quanto às ações financiadas e mantidas com recursos provenientes de taxas, tarifas ou preços públicos instituídos para essa finalidade;
VI – limpeza urbana e remoção de resíduos;
VII – preservação e correção do meio ambiente, realizadas pelos órgãos de meio ambiente dos entes da Federação ou por entidades não governamentais;
VIII – ações de assistência social;
IX – obras de infraestrutura, ainda que realizadas para beneficiar direta ou indiretamente a rede de saúde; e
X – ações e serviços públicos de saúde custeados com recursos distintos dos especificados na base de cálculo definida nesta Lei Complementar ou vinculados a fundos específicos distintos daqueles da saúde.”[104]
Aqui fica claro que os recursos orçamentários vinculados à saúde devem ser integralmente utilizados em despesas direcionadas frontalmente a tal área. Com o rol acima, busca-se evitar que o executor, no seu múnus administrativo, vincule receitas sanitárias, a questões não diretamente ligadas à gestão da Saúde, ou que tenham fonte de recurso próprio. Diminui-se assim a discricionariedade administrativa, para as medidas legalmente previstas.
Considera-se que a escassez de verbas impõe o uso de tais recursos em questões essenciais à universalização e integralização da Saúde Pública no Brasil, metas constitucionais. Não se abre espaço, portanto, para a criação de subterfúgios para sua utilização em outras áreas, que possam ser do interesse da Administração, mas que não correspondem ao interesse público.[105]
Como exemplo, a Administração não pode usar o pagamento de aposentadorias, ou de pessoal da área da saúde que trabalha em Secretarias de planejamento, como se gasto em saúde fosse. Nem pode considerar que o fornecimento de cestas básicas, ou qualquer programa de alimentação ou de assistência social, seja considerado como gasto na Saúde. É inegável que tais medidas podem ter efetivos impactos na Saúde, fazendo a população ter hábitos mais saudáveis, por exemplo. Contudo, vedam-se essas possibilidades, em virtude do fato de poderem ser realizadas com outros recursos, preservando os próprios da Saúde.
Importante observar que mesmo o investimento de recursos vinculados à Saúde, nas medidas legalmente previstas, deve buscar os objetivos constitucionalmente estabelecidos. Deve seguir, ainda, o estabelecido no art. 2º da LC 141/2012 e art. 5º da Lei 8080/90. Assim, a prioridade nos gastos sanitários é para o acesso universal, igual, gratuito e integral, de acordo com planos de saúde governamentais, buscando a prevenção e promoção, proteção e recuperação das condições de saúde da população.
Cabe, assim, analisar se a escolha administrativa entre as medidas previstas como próprias da saúde foi a mais adequada para a realização dos objetivos supra colimados. Se há, em um caso prático, gasto exagerado na contratação de funcionários da área administrativa, já devidamente preenchida, em detrimento da contratação de médicos gerando defasagem no atendimento médico, cabe o Controle de Políticas Públicas, para que a Administração realize as medidas necessárias para o aumento do quadro de médicos, para se normalizar tal situação.
A análise da Lei Complementar 141/2012 e da Lei 8.080/90 revelam claramente que há parâmetros legais para a utilização dos recursos, vinculantes à atividade pública, na confecção e execução das Políticas Públicas sanitárias. Quando desrespeitados, é possível que o Judiciário, se provocado, aja para que se realize o cumprimento das Leis e as Políticas Públicas sejam feitas de acordo com as balizas legais.
Cumpre mencionar que é mister para essa modalidade primeira de parâmetro a existência de informações estatais claras e suficientes acerca do quanto arrecadado pelo Estado, da porcentagem investida para a Saúde e da aplicação real dos recursos. Cientes dessas informações, basta conferir se os valores foram investidos de acordo com os parâmetros estabelecidos objetiva e legalmente. É assim a baliza mais simples para o Controle de Políticas Públicas.
Quando não há a aplicação e a reserva das verbas reservadas à Saúde, cabe a responsabilização do Chefe do Poder Executivo do ente público. Isso porque este não realizou o seu múnus de comandar as escolhas orçamentárias, conforme previsto legalmente. Por esse descumprimento de Lei deve ser responsabilizado.
4.3.2 Controle do Cumprimento do Orçamento
Parâmetro importante a ser estudado é o que engloba o planejamento orçamentário e sua execução. O orçamento é a peça legal que engloba todas as receitas obtidas e despesas que dado ente federativo efetuará em um exercício financeiro. Para Regis Fernandes de Oliveira, o orçamento tradicionalmente era lei formal autorizativa, que não obrigava o Administrador ao que nela posto. Com o advento da Constituição de 1988, o orçamento passa a ser considerado como orçamento-programa. Dessa forma, a lei orçamentária passa a ser considerada como um programa de governo, em que se define a elaboração financeira do ente federado, bem como a orientação da Administração quanto às despesas.[106]
Diga-se que tal autor interpreta o orçamento como lei impositiva para as receitas e autorizativa para as despesas. Todavia, para as despesas de caráter vinculado, ou seja, constitucionalmente previstas, como a Saúde, entende o estudioso que o orçamento seria peça impositiva ao Poder Executivo, conforme determinação do sistema jurídico vigente.[107]
Ressalte-se, com efeito, que a peça orçamentária possui grande importância no estudo das Políticas Públicas. Em primeiro plano, refere-se à previsão de como a receita será investida em um dado exercício financeiro. Nesse ínterim, significa a forma como as Políticas Públicas serão realizadas. A decisão sobre o planejamento orçamentário é realizada por uma discussão de toda a sociedade, devendo ser aprovado pelo Parlamento.
Com isso, para que dada Política Pública posta no orçamento seja válida, essencial se faz garantir que tenha havido a devida discussão democrática acerca de seus termos. Especialmente na Saúde, com a existência dos Conselhos de Saúde, órgãos incluídos no sistema de saúde brasileiro, faz-se essencial que as políticas sanitárias escolhidas sejam devidamente acertadas em tal órgão e que haja a devida deliberação dentro do mesmo. Ademais, as Políticas Públicas não devem ser realizadas de modo impositivo, cabendo a atuação e a voz da maior gama de atores políticos possíveis, em especial no Parlamento.[108]
Dessa forma, caberá Controle de Políticas Públicas em relação ao orçamento, a fim de que este seja constituído com ampla participação democrática, e, no caso de saúde, com observância mínima do que foi deliberado pelos Conselhos de Saúde.
Quanto à confecção do orçamento, este deverá realizar a correta previsão orçamentária, de receitas e despesas, incluindo todas as que forem necessárias e possíveis em dado exercício financeiro. Assim, deve-se garantir que o orçamento seja peça real, sem inflacionamento ou diminuição de receitas e despesas, a fim de que se saiba realmente quanto e como será efetivamente gasto. Com isso, busca-se diminuir a possibilidade de desvirtuamento da peça orçamentária para fins eleitoreiros, ou que não sejam aqueles previstos constitucional e legalmente. [109]
Nessa situação, caberá controle do orçamento com o intuito de que seja claro em suas descrições, a fim de que as Políticas Públicas sejam elaboradas de forma real e a análise de sua correção seja efetiva. Tal controle deve ser feito, previamente à aprovação definitiva do orçamento a fim de que este possa ser devidamente alterado.
Impende destacar agora a questão da execução propriamente dita do orçamento. Devidamente criado, este deve ser executado, no campo da Saúde, conforme previsto na lei que o determina. Isso porque, como dito, para áreas em que há programa constitucional definido o orçamento é impositivo, não cabendo seu descumprimento.[110]
Contudo, não é essa a realidade brasileira que se encontra. Segundo matéria veiculada no site do IG o Ministério da Saúde a pouco menos de quatro meses para o encerramento do ano de 2012 teve como gasto efetivo na saúde (despesas liquidadas) a soma de R$ 46 bilhões. Esse total desembolsado correspondia a cerca de 50% dos R$ 91,7 bilhões registrados como dotação autorizada, conforme levantamento do iG no Siga Brasil – sistema de acesso às contas públicas do Senado Federal.[111]
Nesse ponto, importante colacionar análise feita pelo analista Rodrigo Ávila, da organização não governamental Auditoria Cidadã da Dívida na matéria citada. Para Ávila, “Há uma estagnação na execução do orçamento”, avaliando ainda que “A política de ajuste fiscal acaba gerando efeito sobre a execução de projetos”. Segundo o analista, organizador do relatório Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados, avaliando a execução orçamentária no intervalo 1995-2011, “O governo segura os gastos por causa do contingenciamento e quando libera já é tarde para fazer os projetos. No final do ano é mais difícil repassar os recursos por causa da burocracia”.[112]
Pelas palavras do especialista vislumbra-se que o orçamento não vem sendo cumprido de forma satisfatória. Com a demora da liquidação e pagamento das despesas em dado exercício financeiro, há um consequente retardamento das ações na Saúde Pública, o que faz com que a evolução necessária em sua concretização seja ainda mais alongada. Noutros termos, a demora em executar o orçamento atinge frontalmente a efetivação do direito à Saúde.
Tal demora não é apenas para os recursos diretamente investidos pelo Poder Público. O Poder Executivo ao executar a peça orçamentária realiza diversos convênios, contratos e outras figuras jurídicas com instituições não pertencentes ao Estado. Quando não se efetuam tais transferências, oneram-se sobremaneira tais entidades, que nem sempre conseguem realizar a tarefa pública da maneira necessária, por falta de recursos.
Diga-se ainda que, no âmbito do SUS, Estados e Municípios criam projetos em que há a premente necessidade de financiamento por parte da União e/ou Estados, no caso dos Municípios. Sem o aporte de recursos, tais projetos ficam emperrados e interessantes Políticas Públicas de tais entes não conseguem se configurar.
Nos casos acima, a ausência de tais transferências, já previstas, é objeto de controle de políticas públicas em face do ente federado que não as realizou. Nesse caso, essencial que haja a devida tutela em que se obrigue o réu a realizar tais transferências, havendo, inclusive se necessário, o bloqueio de contas do réu.
Em contrapartida, o contingenciamento de recursos muitas vezes acontece pela falta de projetos dos interessados, ou até do não cumprimento de determinados requisitos para seu recebimento. Nessas situações, o Poder Público não realiza o repasse devido em razão da incompetência dos interessados em se habilitar para o recebimento. Dessa forma, não se pode responsabilizar o ente federado por não ter liberado tais receitas.
Em tal casuística, caberá o controle em face de quem se mostrou inerte, ou não realizou o que era devido da maneira correta. Em tal modalidade, caberá a imposição de obrigação de fazer, no caso de buscar o cumprimento dos requisitos, ou da elaboração do programa, em determinado prazo. No caso de desobediência, ou de impossibilidade de cumprimento, defende-se que tal verba possa ser utilizada em outra necessidade na área da Saúde.
Quando houver receita vinculada à determinada despesa na área da Saúde, por sua importância, caberá ao Poder Judiciário impor a sua efetivação, o que poderá ser feito, com o uso de toda a sorte de mecanismos executivos. É cabível, assim, que haja, por exemplo, bloqueio da conta do ente público réu para que deixe depositado para assegurar, ou pague determinada verba, referente à efetivação de Política Pública.
Não se pode restringir a restrição do controle da execução orçamentária à simples liberação de receitas. Logo, haverá também situações em que se deve realizar o controle, não só do quantum, mas da maneira como os recursos estão sendo investidos. Noutros termos, é necessário se analisar se estão tais verbas de fato sendo bem executadas.
Isso porque há muitas situações em que há desvio de tais verbas, ou se realizam serviços e obras de maneiras equivocadas, o que prejudica sobremaneira a consecução das Políticas sanitárias. Assim, o mero repasse, ou o pagamento de receitas, não são efetivos, se não há a contratação dos serviços necessários, ou a realização das obras previstas, conforme planejados pelos órgãos responsáveis.
A concretização do direito à Saúde passa não somente pelo aporte de dinheiro, mas pela efetividade, na realidade sanitária, de tal aporte. Caberá o Controle de Políticas Públicas, portanto, para que a execução de tal orçamento e a consequente concretização do direito à Saúde Pública de qualidade seja concretizada, dentro da medida razoável programada.
Nesse sentido, cabe citar Ada Pellegrini Grinover, para quem “[…] o Judiciário deverá determinar, em caso de descumprimento do orçamento, a obrigação de fazer consistente na implementação de determinada política pública (a construção de uma escola ou de um hospital, por exemplo). Para tanto, o parágrafo 5º do artigo 461 do CPC servirá perfeitamente para atingir o objetivo final almejado […]”.[113]
Para reforçar a ideia trazida pela precitada autora, cabe citar que a possibilidade de bloqueio de contas do Estado já se encontra pacificado como possível, no âmbito do STJ. Embora tratem da questão do fornecimento de medicamentos, também se referem à Saúde, podendo ser aplicadas a outras prestações. Nesse sentido, é o texto das ementas a seguir colacionadas:
“ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. CUSTEIO DE TRATAMENTO MÉDICO. MOLÉSTIA GRAVE. BLOQUEIO DE VALORES EM CONTAS PÚBLICAS. POSSIBILIDADE. ART.461, CAPUT E § 5º DO CPC.
1. Além de prever a possibilidade de concessão da tutela específica e da tutela pelo equivalente, o CPC armou o julgador com uma série de medidas coercitivas, chamadas na lei de "medidas necessárias", que têm como escopo o de viabilizar o quanto possível o cumprimento daquelas tutelas.
2. As medidas previstas no § 5º do art. 461 do CPC foram antecedidas da expressão "tais como", o que denota o caráter não-exauriente da enumeração. Assim, o legislador deixou ao prudente arbítrio do magistrado a escolha das medidas que melhor se harmonizem às peculiaridades de cada caso concreto.
3. Submeter os provimentos deferidos em antecipação dos efeitos da tutela ao regime de precatórios seria o mesmo que negar a possibilidade de tutela antecipada contra a Fazenda Pública, quando o próprio Pretório Excelso já decidiu que não se proíbe a antecipação de modo geral, mas apenas para resguardar as exceções do art. 1º da Lei 9.494/97.
4. O disposto no caput do artigo 100 da CF/88 não se aplica aos pagamentos de obrigações definidas em lei como de pequeno valor, de modo que, ainda que se tratasse de sentença de mérito transitada em julgado, não haveria submissão do pagamento ao regime de precatórios.
5. Em casos como o dos autos, em que a efetivação da tutela concedida está relacionada à preservação da saúde do indivíduo, a ponderação das normas constitucionais deve privilegiar a proteção do bem maior que é a vida.
6. Agravo regimental improvido. (AgRg no Ag 706.485/RS, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 13.12.2005, DJ 06.02.2006 p. 263)[114]
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. CUSTEIO DE TRATAMENTO MÉDICO. BLOQUEIO DE VALORES EM CONTAS PÚBLICAS. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES.
1. É permitido ao julgador, à vista das circunstâncias do caso apreciado, buscar o modo mais adequado para tornar efetiva a tutela almejada, tendo em vista o fim da norma e a ausência de previsão legal de todas as hipóteses fáticas.
2. Este Sodalício, em diversas oportunidades, já se manifestou no sentido de reconhecer a licitude do bloqueio de valores em contas públicas com o fito de assegurar o custeio de tratamento médico indispensável, como meio de concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana, sem que se configure afronta ao art. 461 e seus incisos, do CPC.
3. Agravo regimental não-provido.” (AgRg no Ag 696.514/RS, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 06.12.2005, DJ 06.02.2006 p. 205).[115]
Ainda no ensinamento de Ada Pelegrini Grinover, cabe estudar a situação em que, de fato, realiza-se investimento razoável e não há qualquer dotação orçamentária para a realização de determinada Política Pública. Nessa situação, o dever de comprovação da reserva do possível deve se aplicar à Administração.
Para tanto, são cabíveis, segundo a festejada processualista, a aplicação da regra da inversão do ônus da prova, ou o uso flexível do art. 333 do CPC, em que vigore a regra da distribuição dinâmica da prova. Assim, a Administração possui maior facilidade de provar que não havia recursos suficientes, por isso, a carga da prova deve ser a ela atribuída.[116]
Na hipótese de o argumento da reserva do possível ser real e a despesa foi importante, mas não urgente, a política pública que buscará efetivar o direito social deverá ser postergada, para outro exercício financeiro. Dessa forma, uma das medidas possíveis, segundo a festejada processualista,
“[…] o Judiciário, em face da insuficiência de recursos e da falta de previsão orçamentária, devidamente comprovadas, determinará ao Poder Público que faça constar da próxima proposta orçamentária a verba necessária à implementação da política pública […]”[117]
4.3.3 Controle dos Meios
Terceiro parâmetro que pode ser mencionado é o que engloba o controle da escolha das Políticas Públicas, propriamente ditas, ou seja, o controle dos meios de realização do programa constitucional. É parâmetro a ser utilizado com muito critério, pois a confecção das Políticas Públicas é atividade reservada tipicamente à definição política. Assim, nas palavras de Ana Paula de Barcellos, é preciso cuidado “[…] para não invadir com o Direito, o espaço próprio da política, mais ainda quando esse parâmetro envolva a limitação do espectro de escolha dos poderes constituídos em matéria de políticas públicas […]”.[118]
É preciso ressaltar, primeiramente, que não se busca com tal baliza restringir de forma quase que completa a discricionariedade administrativa na escolha dos mecanismos de persecução das metas constitucionais. Tal seria uma ingerência excessiva do Poder Judiciário e representaria usurpação do múnus de administrar do Poder Executivo.
O objetivo dessa modalidade de controle é garantir uma eficiência mínima às ações estatais, a fim de que se tenha a convicção de que os meios escolhidos pela Administração em sua discricionariedade administrativa representem uma progressividade no atingimento do programa previsto nas normas constitucionais. Noutros termos, busca-se observar se a Política Pública escolhida, através de um juízo de conveniência e oportunidade, possui aptidão mínima de realizar as teses constitucionais da melhor forma possível.
Tal controle encontra um de seus fundamentos no princípio da eficiência, trazido pela Emenda Constitucional nº 19 de 1998 e insculpido no art. 37, caput da CRFB. Traduz a ideia de que a função administrativa deve ser realizada, buscando os melhores resultados possíveis, com os meios menos onerosos. Deve, portanto, agir de modo rápido, preciso e menos custoso para produzir resultados satisfatórios às necessidades coletivas. Nisso, cabe citar Odete Medauar para quem a “[…] eficiência contrapõe-se a lentidão, a descaso, a negligência, a omissão – características habituais da Administração Pública brasileira, com raras exceções […]”.[119]
Ademais, a Administração constantemente utiliza a teoria da Reserva do Possível para alegar a impossibilidade de se realizar determinada prestação social. Cientes da razoabilidade do argumento dos limites dos recursos públicos, busca-se, com o controle dos meios, evitar o desperdício de tais recursos, fazendo-os serem utilizados da melhor forma possível, para a realização das tarefas constitucionais.
Entendida a necessidade de tal controle, cabe observar a sua efetivação. Primeiramente, será mister no processo que haja a discussão quanto à eficácia do meio pautado em conhecimento técnico sobre o tema. Com isso, evita-se o uso político-ideológico da lide para discutir apenas o acerto da Política Pública em virtude de discordância acerca do viés ideológico.
Por exemplo, caso se queira discutir a privatização, ou a transformação em organização social de certo hospital, a discussão deve ser feita de forma criteriosa e técnica. Para tanto, faz-se essencial a colaboração de demais ramos do conhecimento, em especial especialistas em políticas de saúde pública. Claro que em uma política visivelmente ineficiente poder-se-ia prescindir de tal ajuda. Todavia, quando a questão não for tão evidente, essencial se faz o uso da opinião de especialistas para evitar a adoção de políticas inócuas.
Dessa maneira, quando houver “[…] consenso técnico-científico de que o meio escolhido pelo Poder Público é ineficiente, ele será também juridicamente inválido, pois não se poderá considerá-lo um meio legitimamente destinado a realizar o fim constitucional […]”.[120] A Administração, com efeito, no seu juízo discricionário, somente pode possuir opções válidas e com um mínimo de aptidão para realizar as metas constitucionais. Quando comprovada a ineficiência, cientificamente, de certa medida, esta será objeto de controle pelo Judiciário, devendo ser anulada, a fim de que a Administração opte, em substituição, por medida válida que possa cumprir a tarefa constitucional.
Na escolha dos meios constitucionais, cabe colacionar entendimento de Maria Goretti Dal Bosco, a qual indica que a eficiência deve ser entendida juntamente com a moralidade e a razoabilidade para medir se o mecanismo de atuação estatal é o que produzirá os melhores resultados. Entende a citada autora que:
‘[…] A exigência da observação à eficiência das ações públicas não pode ser vista como uma consagração da tecnocracia, mas o princípio está voltado à razão e fim maior do Estado, ou seja, a prestação dos serviços sociais essenciais à população, tendo como objetivo o uso de todos os meios legais e morais possíveis para promover o bem comum. Além disso, deve-se ter presente a ligação do princípio da eficiência com a razoabilidade e a moralidade, dado que o administrador deve utilizar-se de critérios razoáveis na realização de sua atividade discricionária, pois a ineficiência grosseira deve ser considerada imoralidade […].[121]
É função administrativa alcançar o bem comum, agindo de acordo com o interesse público. O resultado disso é a imposição de que a atuação estatal seja elaborada da maneira mais eficiente e eficaz na concretização dos direitos sociais. Assim, tem o Poder Público o dever legal e ético de planejar suas ações com razoabilidade a fim de que, no exercício de sua discricionariedade, alcance os melhores resultados possíveis.
Para se observar a ineficiência das Políticas Públicas na área da Saúde Pública, cite-se pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2003. Tal estudo identificou que o tempo de espera para internação nos hospitais credenciados pelo SUS era de 6,2 dias, sendo que há 39,3% de possibilidade de um paciente do SUS passar mais de um dia esperando pela internação. [122]
Os resultados dessa pesquisa evidenciam que o intervalo para internação na época em estudo era muito superior ao que se pode tolerar em um sistema de Saúde minimamente eficiente. Vislumbra-se que o resultado alcançado está muito aquém do que poderia ser realmente alcançado. Não há um vínculo de razoabilidade entre as possibilidades de execução do serviço e a sua concretização.
Em razão da notada ineficiência do SUS no atendimento às necessidades da população, os meios escolhidos pelo Poder Público seriam, na época, objeto de controle jurisdicional. Com isso, poderia o Poder Judiciário impor que fossem escolhidos meios adequados para que se conseguisse um tratamento digno à população.
Nesse ponto, cabe a discussão de como se daria a tutela jurisdicional. A constatação da completa inaptidão dos meios escolhidos pelo Poder Público se daria no bojo de um devido processo legal, em que fosse respeitado o contraditório e a ampla defesa. Dessa forma, o Poder público poderia mostrar o porquê da escolha da Política Pública e, eventualmente, tentar comprovar sua eficácia.
Caso, em provimento judicial definitivo, vislumbre-se a ineficácia da medida estatal e a procedência da ação, caberia às partes integrantes do processo e aos eventuais especialistas que tenham contribuído no processo indicar meios que sejam aptos para a consecução das metas constitucionais. Se encontrados vários meios, caberia ao Poder Público escolher o mais conveniente e oportuno, sendo tal escolha homologada pelo Poder Judiciário.
Ficaria, dessa forma, o Poder Público vinculado a tal escolha na execução da Política Pública, sendo o cumprimento de tal medida devidamente fiscalizado pelo Judiciário e pelo autor da ação. Enquanto as condições de fato não se alterarem, o Poder Público não poderia alterar tal política, ficando a ela adstrito, uma vez que comprovada sua eficácia. Para alterá-la deveria comprovar a eficácia de medida substitutiva.
4.3.4 Controle do Resultado
Há outro importante parâmetro a ser utilizado, relacionado ao Controle quanto ao resultado final constitucionalmente esperado da atuação estatal. Explica Ana Paula de Barcellos:
‘[…] trata-se de identificar que bens mínimos devem ser afinal ofertados pelo Estado no que diz respeito à promoção dos direitos fundamentais e da dignidade humana. A construção desses parâmetros envolve um trabalho hermenêutico que consistem em extrair das disposições constitucionais efeitos específicos, que possam ser descritos como metas concretas a serem atingidas em caráter prioritário pela ação do Poder Público […]”[123]
Essa baliza torna essencial reconhecer que se não há verba suficiente para o alcance da meta constitucionalmente definida, como a Saúde Pública de qualidade e universal, deve-se perseguir e utilizar receitas para a saúde na frente de outros investimentos, até o cumprimento do objetivo constitucionalmente posto. Cabe, para tanto, buscar outras fontes de renda para financiar a Saúde Pública.
Ressalte-se que não cabe o retrocesso. Dessa maneira, caso se consiga um resultado satisfatório quanto à universalização da Saúde, com menos recursos, faz-se necessário utilizar os excedentes para uma melhoria ainda maior, para o cumprimento de outras metas sanitárias, constitucionalmente previstas, como a prestação integral da saúde.
Cabe, ainda, citar o que assevera Hamilton Alonso Jr, nos seguintes termos:
“[…] entre o irrealizável e o que se realiza atualmente existe um campo propício da atuação da ação civil pública. Muito se pode fazer e não se faz (ou pouco se faz). Ataques constantes ao ordenamento com escolhas equivocadas, desrespeito constantes ao povo, alocação de recursos para o supérfluo em detrimento de áreas básicas para a garantia de uma vida minimamente digna, são presenciados e, sustenta-se, pela inacessibilidade do Judiciário na busca destes bens a serviços, porquanto, argumenta-se, se trataria do mérito administrativo, do desrespeito a escolha do eleito, sendo uma afronta ao sistema representativo democrático, uma invasão na esfera de outro Poder da República, direcionar de forma diversa os recursos alocados ou mudar o ato de governo […]”[124]
Com efeito, fica claro o entendimento do autor de que há recursos que são indevidamente utilizados pela Administração e que quando não usados, são passíveis de que haja ACP para o controle de seu uso e a consequente realocação para a melhoria das condições em que a Saúde Pública é prestada.
Cabe salientar que há diversas prestações que compõem a Saúde Pública, como tratamentos médicos, remédios e ações de vigilância sanitária. Isso implica uma maior dificuldade na escolha política de quais serão concretizadas e devidamente universalizadas. Fica mais complicada a aferição acerca da obtenção ou não do resultado buscado e de quais medidas devem ser priorizadas.
Há, entretanto, situações em que é evidente que o resultado não foi alcançado. Isso ocorre, por exemplo, quando se verifica a ausência de médicos em hospitais, ou a superlotação dos mesmos, estando estes em estados precários e completamente insalubres, enquanto áreas diferentes da Saúde Pública e sem sua importância constitucional encontram-se em boas condições. É inegável, nessa situação, que as metas constitucionais e legalmente previstas não foram atingidas, o que significa o descumprimento da Constituição.
Cumpre ressaltar que a aferição de resultados deve ser vista de forma que se veja o sistema público de saúde como um todo. É claro que não se conseguirá uma saúde pública universal e integral de uma hora para outra. Contudo, deve ao menos ser observado se houve a tentativa de melhora em tais condições.
Noutros termos, é imprescindível que haja a progressiva evolução da prestação dos direitos sociais, no caso em tela a saúde. A conduta da Administração deve, com efeito, a cada exercício cumprir os programas constitucionais e se aproximar ainda mais das metas previstas na Carta Magna.
Se há alguma prestação sanitária que não foi devidamente realizada, deve-se aferir se ao menos as demais foram. A realidade brasileira é de ainda estar longe de uma Saúde Pública realmente universal, o que faz com que as deficiências devam ser vistas dentro de um contexto mais geral. A análise particularizada acaba por implicar na opção pela melhoria de determinada questão sanitária, em detrimento de outra, sem uma análise racional e coerente de ambas as variáveis.
Assim, se falta algum medicamento, ou se não ha tratamento disponível, deve-se analisar a necessidade de tal tratamento e a relação dessa prestação com as demais. É caso, portanto, de ponderação de valores e de custos. Tal análise econômica, todavia, é difícil de ser feita, no âmbito da Saúde. Isso porque as prestações em Saúde muitas vezes se referem à vida das pessoas, elemento integrante da dignidade da pessoa humana, princípio vetor do sistema jurídico nacional.
É cabível, destarte, que diante de exigências do caso concreto recursos sejam investidos em prestações individuais em detrimento de gastos que a longo prazo melhorariam a Saúde para todos. Tal exame deve ser feito com todo cuidado, sem banalização, de forma excepcional, a fim de que o Poder Público não se torne um mero fornecedor de tratamentos individuais em detrimento do interesse difuso de uma saúde pública de qualidade. Registre-se que tal concessão quando feita deve respeitar a isonomia, respeitando os critérios legais e regulamentares.
Enquanto não se consegue concretizar a meta constitucional de uma saúde pública universal, integral, igual e de qualidade, as verbas públicas de outras áreas devem ser investidas de forma criteriosa. Diz-se isso porque o caráter fundamental do direito à Saúde prevalece sobre vários outros interesses estatais. A implicação disso é que demandas públicas supérfluas tornam-se possíveis objetos de controle diante da necessidade premente de melhoria nas condições básicas de saúde.
Nesse modelo, não cabe a um Ente Federativo criar elefantes brancos superfaturados, ou obras que beneficiem uma minoria em prejuízo da criação de hospitais ou postos de saúde, cuja necessidade seja urgente na região. Haveria um imperativo ético-jurídico de investir os recursos públicos de forma a cumprir o programa constitucional. Se atingida de forma satisfatória a cobertura de Saúde, aí sim, estaria o Poder Público liberado a agir de forma realmente discricionária.
A saúde possui status de direito constitucional social, inserto no mínimo existencial referente à dignidade da pessoa humana e participante do programa governamental imposto pela Carta Magna. Dessa forma, não há discricionariedade em sua efetivação, a qual é dever imposto ao Poder Público que deve realizá-lo de forma prioritária.
Por fim, cabe analisar a maneira que o Poder Judiciário usará para concretizar dada Política Pública, acerca de seu resultado. Nesse sentido, Nagibe de Melo propõe entendimento, ao qual este trabalho se filia, de que deveria haver uma discussão entre os Poderes, para concretizar direitos fundamentais, sem que ocorra ingerência excessiva de um sobre o outro.
Assim, no processo, comprovado que não se atingiram os resultados constitucionais, o Judiciário abriria prazo para que o réu faça a proposta de programa, de plano de ação, e de realocação de receitas a fim de que se realize Política Pública necessária para se alcançar o objetivo buscado. Tais propostas seriam discutidas pelas partes do processo, cabendo ao Juiz homologar a considerada melhor solução, a qual deve ser efetivada em prazo assinalado pelo Juiz à Administração. Dessa forma, manter-se-ia a discricionariedade do Poder Executivo na realização de Políticas Públicas, sem deixar de buscar a concretização dos direitos fundamentais. [125]
Com efeito, observa-se que o Poder Executivo encontra-se vinculado à realização das Políticas Públicas, sob diversos parâmetros. Primeiramente, deve cumprir parâmetros constitucional e legalmente previstos. Em relação às verbas previstas no orçamento, há também uma vinculação objetiva ao que nele está exposto, devendo cumprir o que lá está. Vincula-se ainda a agir com medidas aptas para a consecução das Políticas Públicas, bem como tem como parâmetro de atuação a concretização dos resultados programados constitucionalmente.
Quando não realiza tal múnus, abre-se ao Poder Judiciário, quando provocado por quem legitimado, o poder/dever de realizar as mais diversas medidas executivas para a efetivação de tais políticas, inclusive o controle do orçamento, o bloqueio de contas, a transposição de valores, a homologação de programa governamental e a imposição da previsão de medida concretizadora de direitos fundamentais no próximo exercício financeiro.
CONCLUSÃO
O Controle de Políticas Públicas pelo Poder Judiciário no âmbito da Saúde é uma realidade na Doutrina e na Jurisprudência brasileiras. Viu-se, no decorrer deste trabalho, que antigos dogmas administrativistas foram derrubados com o fito de se concretizar direitos sociais, como a Saúde.
Vimos que a Saúde Pública universal e de qualidade é matéria definida constitucionalmente. Configura-se como programa obrigatório para toda a Administração Pública. Possui status de direito fundamental e como tal deve ser aplicado imediatamente pelo Estado se sobrepujando a quaisquer outras matérias que não tratam de direitos fundamentais. Dessa forma, deve o Poder Público em todas as suas esferas buscar a concretização de tal direito, sob pena de agir de forma inconstitucional.
Para cumprir tal desiderato, o Estado deve agir de forma organizada, estruturando sua atuação a fim de que sejam usados todos os meios possíveis para a concretização dos direitos sociais. Há uma discricionariedade vinculada em que o Poder Público pode usar o meio que considerar mais apto para a concretização de direitos sociais. Contudo, vincula-se à real efetividade deste meio, para que seja considerado válido.
Nesse ínterim, observou-se, assim, que não há discricionariedade na ação pública quanto a efetivar ou não as políticas públicas necessárias. Devem ser estas cumpridas, podendo haver discricionariedade apenas quanto aos meios escolhidos, desde que razoáveis. Derruba-se, com efeito, importante dogma do direito administrativo, qual seja, a da inapreciabilidade do mérito administrativo, em especial das Políticas Públicas.
Ora, a necessidade de se cumprir programa constitucional, bem como os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e eficiência, além do dever republicano de boa Administração, funcionam como vetores a obrigar que a Administração adote postura ótima, em que sejam empregados os melhores meios possíveis para a realização do interesse público concernente à concretização de direitos fundamentais.
Ademais, obstáculos como o argumento da reserva do possível são rebatidos, apresentando nova roupagem. Dessa forma, o argumento da reserva do possível passa a ser visto como matéria de prova, no seio de processo, devendo a Administração comprovar que realizou o melhor gasto público possível com as receitas lá definidas. Não basta mais mencionar a ausência de dinheiro, mas se deve provar o porquê de não haver a possibilidade de ser este investido em despesa urgente, como a concretização de direitos sociais.
Tal visão advém do triunfo da ideia de mínimo existencial, núcleo de direitos fundamentais que devem ser garantidos de forma mínima para o alcance de uma vida digna. Fazendo a Saúde parte desse elenco, não pode o Estado alegar falta de recursos, para se garantir o mínimo existencial, já que, nessa situação, não se estará buscando prestação impossível, ou exagerada do Poder Executivo, mas o cumprimento de tarefa constitucionalmente dada e necessária para uma vida digna.
Cumpre dizer que o Controle de Políticas Públicas não se configura como afronta à separação de poderes e ao princípio democrático. Ao contrário, é símbolo de como o Poder Judiciário pode atuar para preservar a vontade popular, não respeitada por quem delegado pelo Povo para tanto. É ainda instância a quem pode recorrer ampla gama de legitimados, além de realizar decisões públicas, ou seja, controláveis por qualquer do Povo.
Ademais, a ação controladora do Poder Judiciário implica fiscalizar a atuação ineficiente do Poder Público, fazendo com que ele mude seu agir. Diga-se que o Poder Judiciário, como membro do corpo estatal, é responsável acerca da efetivação dos direitos fundamentais, objetivo da atuação estatal. Dessa forma, torna-se também agente promotor de políticas públicas, podendo participar das necessárias mudanças sociais impostas pelo texto constitucional.
A atuação do Poder Judiciário, portanto, é possível e necessária para concretizar as Políticas Públicas. Todavia, deve-se evitar o real risco de que haja arbitrariedade por parte dos Juízes no exercício do controle da Administração. Tal atuação deve ser realizada de forma racional, dentro de um devido processo legal, em que se respeitem o contraditório e a ampla defesa. Deve ainda a decisão ser realizada de forma razoável, sem que se dê espaço a perseguições pessoais, a preferências ideológicas ou a decisões em que o Juiz se incumba completamente do papel de administrador.
Para evitar arbitrariedades, há diferentes parâmetros para o controle judicial de políticas públicas. Como visto, o controle de políticas públicas é imposto, primeiramente, para que se cumpram objetivos previstos expressa e objetivamente em legislação, como a reserva de certo percentual no orçamento para a Saúde. Dessa forma, não há subjetividade e o Poder Judiciário apenas impõe a concretização da Lei.
Outro parâmetro para o Controle Judiciário é quanto aos resultados almejados. Neste, há a análise das políticas públicas realizadas e o resultado efetivamente alcançado por elas. Quando tal resultado é insuficiente, não havendo real melhora em âmbito da Saúde Pública, impõe-se que o Poder Judiciário determine que a Administração Pública realize as medidas necessárias, inclusive, reservando verba para tanto, para que se consiga alcançar o programa constitucional, de concretização de uma Saúde Pública universal, gratuita, integral e de qualidade.
Parâmetro de grande importância é o Controle Jurisdicional das Políticas Públicas realizadas na Saúde, quando os meios escolhidos são insuficientes e inaptos para a concretização do direito fundamental à Saúde. Com efeito, haverá controle quando a atuação estatal for ineficiente e não conseguir cumprir os resultados pretendidos, ou ainda, quando a escolha de política sanitária seja, claramente, incapaz de produzir tais resultados.
Para a ocorrência de tal parâmetro, cumpre revelar com qualificações e respaldo de especialistas técnicos, na área da Saúde, a ineficiência provável das políticas escolhidas para Saúde. Comprovada tal inaptidão, poderá o Poder Judiciário exigir que outro meio seja escolhido para a consecução das Políticas Públicas. Deve evitar, todavia, impor qual a política sanitária será escolhida e exercida, devendo permitir ao Poder Executivo realizar tal juízo discricionário, apenas analisando a aptidão do meio escolhido.
Há ainda o controle orçamentário das Políticas Públicas. Nesse ponto, saliente-se que os direitos tutelados pelas Políticas Públicas são fundamentais e devem ser efetivados. Com isso, quando do planejamento orçamentário, essencial se faz que este englobe, de forma real e razoável, toda a gama de recursos possíveis para a efetivação dos direitos sociais, prioridades fundamentais. Ademais, o planejamento orçamentário, em especial no tocante aos direitos fundamentais como a Saúde, deve ser feito da maneira mais democrática a fim de que sejam reflexo do interesse coletivo, e não apenas da Administração.
Por fim, diga-se que o último parâmetro utilizável de controle de políticas públicas sanitárias também é objetivo. Configura-se pelo controle da execução orçamentária a fim de que se realize conforme proposta pela lei orçamentária. Observa-se a necessidade de que as transferências tanto para entes públicos, quando privados sejam efetivamente realizadas, abrangendo nessa seara a existência de programas que justifiquem o deslocamento de verbas públicas. Ademais, fiscaliza-se, ainda, se a realidade da execução orçamentária condiz com os recursos utilizados. Não basta a aplicação de verbas na Saúde, mas devem ser elas aplicadas de forma concreta.
Desse modo, quando o Poder Executivo se mostra inerte ou ineficiente em realizar o previsto no orçamento, cabe a imposição de obrigações de fazer ao Poder Público a fim de que concretize a Lei orçamentária quanto às questões de Saúde Pública, tal sua natureza prioritária e impositiva ao Estado. Assim, impede-se que a peça orçamentária seja quadro de intenções, em relação a direito fundamental como a Saúde, mas seja efetivamente concretizada.
Acredita-se que o Controle Jurisdicional de Políticas Públicas sanitárias realizado sobre as balizas acima expostas é realidade no País. Contudo, ainda se restringe muito a prestações individuais, as quais não alteram o panorama da Saúde brasileira. Com efeito, deve-se incentivar a realização do controle quanto às políticas coletivas efetivamente realizadas, em lugar de demandas individuais, que muitas vezes desestabilizam as prestações públicas..
Cumpre observar que para um melhor Controle de Políticas Públicas na área da Saúde, entendemos que deveria haver a ampliação da legitimidade ativa às associações que cuidam e fiscalizam a Saúde, bem como aos Conselhos de Saúde, por seu caráter especializado na área da Saúde, possuindo maior possibilidade e capacidade para o controle. Ademais, tal dilação torna uma maior quantidade de setores da sociedade responsáveis pela averiguação da concretização das Políticas, o que facilita a eventual fiscalização de ineficiências do Poder Público.
Com a realidade precária em se encontra a Saúde Pública brasileira, verifica-se a necessidade que a sociedade civil e os legitimados ativos possuem de se empenhar na busca de sua melhoria. Nesse sentido, é mecanismo de suma importância a possibilidade de acionar o Poder Judiciário a fim de determinar a realização correta e eficiente das Políticas Públicas sanitárias. Devem, assim, acionar o Poder Judiciário, sempre que vejam falhas quanto às Políticas Sanitárias. Dessa maneira, consegue-se fiscalizar a atuação estatal e impor que as Políticas Públicas sejam realizadas de forma apta a melhorar progressivamente a situação calamitosa da Saúde Pública.
Não é razoável que o Poder Público mantenha-se atuando de acordo com seus interesses, sem a efetivação das prioridades constitucionais. A inércia, omissão, descaso e má atuação que caracterizam muitas vezes a Administração representam grave afronta ao direito fundamental à Saúde, visto que inviabilizam sua real e urgente concreção, determinada constitucionalmente.
Essencial é, destarte, que o Poder Judiciário atue, juntamente com o Poder Público, inclusive com imposições, para realizar as metas constitucionais, com meios aptos, utilizando-se de forma prioritária o máximo de recursos disponíveis, de forma eficiente, previstos em leis orçamentárias. Tais Políticas devem também ser efetivamente cumpridas no mundo fático e gerarem resultados concretos. Ao cumprir tal tarefa, nada mais se faz que concretizar o que já é obrigatório para o Poder Executivo e, infelizmente, não efetiva.
Com a fiscalização da sociedade civil e dos legitimados ativos, há real possibilidade de que o Poder Judiciário realize o Controle das Políticas Públicas sanitárias insatisfatórias, atuando em conjunto, inclusive com o Poder Executivo. Com tal controle, pode-se conseguir, finalmente, fazer com que o Estado altere, progressivamente, a realidade brasileira, voltando-se de forma integral à persecução do objetivo essencial que é a concessão de uma Saúde Pública integral, universal, gratuita e de qualidade.
Informações Sobre o Autor
Bruno Costa Malta Dantas
bacharel em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo e Técnico Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 17ª Região, atualmente lotado em Gabinete de Desembargador