Resumo: A partir do estudo das transformações ocorridas na sociedade especialmente do desenvolvimento da sociedade de massa de consumo e de risco o artigo aborda o Princípio da Socialidade com destaque para a necessidade de uma postura ética e de boa fé nas relações individuais e coletivas. Sob o prisma da Constituição Federal o artigo observa as transformações de interesses tutelados passando-se dos interesses essencialmente individuais para a tutela também de interesses sociais. Aponta-se para a função social do contrato e da propriedade. Nesta o regime passa do direito pleno para o direito de explorar só e quando respeitados a saúde humana e os processos e funções ecológicos essenciais. O artigo trata também da importncia do desenvolvimento da responsabilidade social fomentada por mecanismos como a gestão estratégica e das ferramentas para aferir a conformidade ou não da atividade empresarial à função social como as certificações e os balanços sociais.
Sumário: Introdução:1. Transformações sociais, econômicas e políticas na era moderna. 2. Sociedade de massa, Sociedade de Consumo e Sociedade de Risco. 3. Papel do Direito nesse processo. 4. Direitos Difusos e Coletivos. 5. Sustentabilidade. 6. Valores: 6.1 – Éticos; 6.2 – Sociais. I. O princípio da socialidade: 1.1 – Fontes; 1.1.1 – Constituição: Art. 1º, 3º e 5º; Art. 170; Art. 225; 1.1.2 – Código Civil: Art. 113, 187; Art. 421, 422; Art. 1228; 1.2 Fundamentos: Substituição da perspectiva clássica individualista; 1.2.1Releitura dos Institutos; Contratos – Boa Fé Objetiva; Propriedade – Bens de Produção e Bens de Uso; 1.2.2.Revisitação dos Institutos na nova perspectiva; Regime jurídico de apropriação de recursos naturais; Conteúdo jurídico do Direito – Função Socioambiental. II. Responsabilidade social: 2.1 – Postura Socialmente Responsável; 2.1.1 – Cidadania Corporativa; Estágios: A – ações isoladas; B – sistematização da avaliação de impactos; C – melhoria contínua – antecipação das questões públicas; 2.2 – Gestão Estratégica; 2.3 – Instrumentos: A – Certificações; B – Balanço social. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO:
1. Transformações sociais, econômicas e políticas na era moderna
As transformações da vida em sociedade podem ser explicadas por diferentes fatores, conforme o enfoque abordado. No campo das tansformações sociais, econômicas e políticas são sempre destacados como marcos importantes dessa transformação a Revolução Industrial, a Revolução Francesa, o fenômeno da massificação e o desenvolvimento da sociedade do risco, preconizada por Ulrich Beck em 1986. Recentemente a comunicação virtual (internet) tem sido apontada como instrumento de transformação social e política dada a importância dessa ferramenta nos episódios da “Primavera Árabe” ou “Ocupem Wall Street”. Os protestos britânicos do segundo semestre de 2011 também trazem a baila os problemas sociais da sociedade contemporânea, ainda que não associado a movimentos destinados a um fim social, político ou econômico.
As manifestações sociais ao redor do mundo, ainda que estritamente relacionadas às questões locais ou aos sistema político e religioso, demonstram a preocupação com o aspecto social, seja sob um enfoque comunitário, seja pelo papel da responsabilidade social no mundo moderno.
O direito não se mostra alheio a essa realidade, desempenhando ora um papel de manutenção da ordem social vigente, ora um papel transformador dessa mesma ordem.
É de se observar que a própria idéia de direito assume contornos diversos no espaço e no tempo. Assim, por exemplo, se na Idade Média a idéia de direito era relacionado à existência de privilégios, podendo o senhor feudal valer-se de sua condição para subtrair parte dos bens produzidos pelos vassalos, sendo isso plenamente aceitável porque o próprio direito lhe assegurava esse privilégio, com o capitalismo, o direito passa a ser sinônimo de tratamento igualitário, eis que a troca se torna o fator preponderante e impõe que todos os indivíduos sejam tratados da mesma forma. Nesse contexto capitalista o direito se afasta da idéia de atribuição de privilégios e passa a preconizar a igualdade de todos perante a lei. Ao menos sob aspecto formal o Direito iguala as pessoas.
O direito, como se vê, não apenas se amolda ao sistema, mas dá os contornos do próprio sistema e por vezes o direciona, desempenhando, ora função transformadora, ora conservadora, conforme o caráter que lhe é atribuído.
Vale ressaltar, no entanto, que as mudanças introduzidas pelo capitalismo, embora garantindo igualdade jurídica, possibilitaram, em determinadas circunstâncias, desigualdades no campo de direitos sociais provacadas pelas condições de trabalho na industria. Os trabalhadores da industria, dentre os quais se incluem mulheres e crianças, longe de usufruir do progresso econômico da burguesia, vivem em condições desumanas e clamam por transformações, o que representa nova pressão social sobre o sistema. O direito e a economia caminham juntos desenhando o D.N.A. da sociedade moderna em um movimento elíptico.
Nesse contexto, pode-se dizer que o Código Napoleônico de 1804, baseado nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa, assegura a ordem econômica fundada na não interferência do Estado na atividade econômica dos cidadãos, “é o laissez faire”, “laissez-passer”. O direito de propriedade (de bens e de produção) de então tem caráter absoluto, na medida em que é definido como direito de usar e dispor das coisas de maneira absoluta. Nosso Código Civil de 1916, que vigorou até janeiro de 2003, ainda trazia a noção de propriedade em função do interesse exclusivo do indivíduo, do proprietário ou do possuidor; não como um munus, ou seja, um poder que se exprime simultaneamente como direito e dever, mas como um direito subjetivo, jus.
Com o passar do tempo e os problemas gerados pelas sociedades de massa, de consumo e de risco novas pressões impuseram a revisão daquele modelo. A Constituição brasileira e o atual Código Civil refletem essa mudança de postura ao inserir valores da coletividade em lugar da mera subjetividade individual. Podemos dizer que o próprio conceito de propriedade, assim como o de saúde, sofreu modificação ao longo dos anos. O artigo 1228 [1] do Código Civil de 2002, por exemplo, demonstra que a propriedade passa a ser considerada como uma relação jurídica complexa, na medida em que a subordina ao atendimento de sua função social, facultando o uso, gozo e disposição da coisa pelo proprietário, desde que atendidas as funções social e econômica. A transformação do conceito acompanha a própria transformação do planeta, que se viu diante de um consumo exarcerbado e de riscos que passam a fazer parte do próprio processo tecnológico.
2. Sociedade de Massa, Sociedade de Consumo e Sociedade de Risco
Antes de adentrarmos ao tema central do estudo, pontuemos alguns conceitos que já foram e ainda serão utilizados no desenvolvimento do trabalho, tais como o de Sociedade de Massa, Sociedade de Consumo e Sociedade de Risco.
Sociedade de Massa – Norberto Bobbio[2] define a Sociedade de Massa como uma sociedade em que a grande maioria da população se acha envolvida, seguindo modelos de comportamento generalizados, na produção em larga escala, na distribuição e no consumo dos bens e serviços, tomando igualmente parte na vida política, mediante padrões generalizados de participação, e na vida cultural, através do uso dos meios de comunicação de massa. Nela, segundo Fromm[3], com o conformismo típico da sociedade de massa, o indivíduo deixa de ser ele próprio, tornando-se totalmente igual aos demais e como os outros querem que ele seja. O preço disso é a perda do “eu genuíno”, da subjetividade original da pessoa, que é constrangida a “fugir da liberdade”, ou seja, a buscar uma identidade substitutiva (um“pseudo-eu”) na contínua aprovação e no contínuo reconhecimento por parte dos outros. Essa sociedade onde a identidade individual dá lugar ao comportamento padronizado está estreitamente relacionada ao fenômeno da Sociedade de Consumo.
Sociedade de Consumo – Numa rápida busca pela internet é possível verificar que “sociedade de consumo” é um termo utilizado para designar o tipo de sociedade que se encontra numa avançada etapa de desenvolvimento industrial capitalista e que se caracteriza pelo consumo massivo de bens e serviços, disponíveis graças a elevada produção dos mesmos[4]. Em geral o termo é associado ao consumo desenfreado, utilizado inclusive como forma de integração social, eis que é comum que a oferta de bens exceda sua procura, levando a que as empresas recorram a estratégias de marketing agressivas e sedutoras que induzem o consumidor a adquirir, permitindo-lhes escoar a produção. Nesse sentido pode se dizer que o conceito de sociedade de consumo está ligado ao de economia de mercado e ao próprio capitalismo, entendendo economia de mercado aquela que encontra o equilíbrio entre oferta e demanda através da livre circulação de capitais, produtos e pessoas, sem intervenção estatal. A idéia de Sociedade de Massa está estreitamente ligada à Sociedade de Consumo.
Esses modelos, como se verá adiante, levaram a sociedade a um desenvolvimento prejudicial ao próprio grupo e ao meio ambiente, na medida em que os bens são produzidos para se tornarem obsoletos e logo serem substituidos por novos, com maior tecnologia. Há portanto um desequilíbrio entre a capacidade de produção e a de recuperação, além de uma enorme quantidade de produção de resíduos. Estima-se que nos últimos quarenta anos houve maior acumulação de lixo doque durante toda a existência humana. Tal situação levou ao questionamento de valores e a uma preocupação com as gerações futuras.
Sociedade de Risco – A Sociedade de Risco, preconizada por Ulrich Beck em 1986, não é exceção à necessidade de questionamento dos valores éticos e sociais, na medida em que apenas substitui a pressão entre “capital e trabalho” para a idéia de “capital e risco” decorente do surgimento de novas tecnologias, onde o risco é repartido pela sociedade. Beck fala que “Os riscos são reais e irreais ao mesmo tempo. De um lado, existem ameaças e destruições que são reais: a poluição ou a morte das águas, a desaparição de florestas, a existência de novas doenças, etc. Do outro lado, a verdadeira força social do argumento do risco reside justamente nos perigos que se projetam para o futuro. Na sociedade do risco, o passado perde sua função determinante para o presente. É o futuro que vem substituí-lo e é, então, alguma coisa de inexistente, de construído, que se torna a ‘causa’ da experiência e da ação do presente.” Dito de outra forma, pode-se afirmar que a incerteza própria do conhecimento científico/tecnológico, associada ao acúmulo de “progresso” tecnológico, representa uma ameaça, um perigo à sociedade, sendo a lógica da produção e distribuição de riqueza, própria do capitalismo, substituída pela lógica da distribuição de riscos. A distribuição de riscos, no entanto, não ameaça apenas os que o produziram; ao contrário, não há uma clara limitação geográfica ou em função de grupos.
Nesse diapasão, na medida em que os antigos valores sofrem questionamento, torna-se possível a introdução na legislação[5] de novos paradígmas, relativisando-se o caráter absoluto dos direitos, comum na primeira fase do capitalismo. Não apenas a questão da sustentabilidade passa ao centro das atenções, mas a própria função social da propriedade e do contrato apontam para os valores éticos e sociais preconizados por Miguel Reale.
3. Papel do Direito nesse processo
O Direito assume papel importante nesse processo de transformação social, ao estabelecer limites ao exercício dos direitos, especialmente no que se refere ao direito de propriedade e aos contratos, que continuam garantidos, mas cuja função social deve ser observada. Nesse contexto, ao lado do papel de manutenção da ordem social vigente, o direito assume um papel transformador dessa mesma ordem, na medida em que nela introduz valores da coletividade em lugar da mera subjetividade individual.
O Estado abandona uma postura de “mero espectador” comum no Estado liberal clássico para uma posição ativa de intervenção nas relações sociais. Há uma nítida preocupação com o aspecto social, com o coletivo. Na atual Constituição Federal isso pode ser observado junto aos artigos 1º, 3º, 5º, 6º, 170 e 225.
O ordenamento jurídico tem assim um caráter promocional do bem estar social. Norberto Bobbio distingue o ordenamento protetivo-repressivo do promocional ao apontar que “ao primeiro, interessam, sobretudo, os comportamentos não desejados, sendo seu fim precípuo impedir o máximo possível a sua prática; ao segundo interessam, principalmente, os comportamentos socialmente desejáveis, sendo seu fim levar a realização destes até mesmo aos recalcitrantes.”[6] Nesse sentido pode-se dizer que o direito não se limita a tutelar os atos conformes as normas ou mesmo a reprimir os atos contrários às mesmas, mas a estimular algumas condutas ao estabelecer sanções positivas. Sem dúvida a ordem social pode estabelecer condutas e ligar a estas condutas a concessão de uma vantagem – prêmio, ou ligar à conduta oposta uma desvantagem -pena. Tais técnicas, na verdade, são complementares nos ordenamentos contemporâneos, que ora se valem de um mecanismo, ora de outro.
A limitação do exércio do direito ao atendimento da função social do instituto funciona como uma espécie de condicionante, isto é, as relações negociais e o direito de propriedade só são assegurados se observada sua função social. A Constituição brasileira e o atual Código Civil refletem essa mudança de postura ao inserir valores da coletividade em lugar da mera subjetividade individual.
4. Direitos Difusos e Coletivos
Ainda que limitando o exercício de direitos individuais, a função social indica uma preocupação com o coletivo, isto é, na medida em que se cobra uma postura socialmente responsável dos indivíduos prestigia-se a sociedade como um todo, respeitando-se especialmente os direitos coletivos (latu sensu), nele incluídos os diritos difusos, coletivos e transidividuais homogênios, assim definidos pelo parágrafo único do artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor:
“I – interesses ou direitos difusos, …, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II – interesses ou direitos coletivos, …, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;
III – interesses ou direitos individuais homogêneos, … os decorrentes de origem comum.”
5. Sustentabilidade
Nessa linha pode-se afirmar que os direitos só podem ser exercidos na medida em que atendam ou não se contraponham a sua função social, ou seja, há direitos que impõem deveres a seu titular, de forma que direitos e deveres representam faces da mesma moeda. Essa idéia está presente em inúmeros pontos da legislação, como se verá mais à frente. No momento, importa observar que a própria noção de sustentabilidade está ligada à possibilidade de usufruir dos bens sem prejuízo da coletividade, o que implica em dever.
O desenvolvimento econômico deve se harmonizar com a conservação ambiental, sendo o desenvolvimento sustentável entendido como o processo que permite satisfazer as necessidades da população atual, sem comprometer a capacidade de atender as gerações futuras.
A Constituição é categórica ao afirmá-lo no artigo 225, cujo caput dispõe:“Todos tem direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
Aliás, é de se observar que em razão dessa necessidade de harmonização entre a economia e o meio ambiente, práticas de responsabilidade social corporativa se tornaram parte da estratégia de algumas empresas, que buscam agregar valor à marca ao associá-la à preocupação social e ecológica. Tais empresas, conscientes da necessária relação entre retorno econômico, ações sociais e conservação da natureza, focam também no bem-estar coletivo.[7]
Essa mudança de mentalidade decorre do próprio reconhecimento de que os recursos naturais são finitos e de que nós dependemos deles para a sobrevivência humana, sendo fundamental ao próprio crescimento econômico que o desenvolvimento se dê de forma sustentável.
6. Valores
Segundo a Teoria Tridimensional do Direito, o direito é composto por fato, valor e norma [8], o que implica reconhecer que nos tempos atuais se compreende o direito em perene vinculação com valores sociais e éticos. Miguel Reale frisa que a eticidade e a socialidade presidiram a feitura do novo Código Civil, não mais considerada sem limites a fruição do próprio direito, reconhecendo-se que este deve ser exercido em benefício da pessoa, mas sempre respeitados os fins ético-sociais da comunidade a que seu titular pertence. Em outras palavras, isso significa que não há direitos individuais absolutos.
O Código Civil atual põe em evidência a socialidade, a eticidade e a operabilidade, como princípios norteadores do Direito Civil. Assim, por técnicas como a utilização de normas genéricas ou cláusulas gerais torna-se possível aos operadores do direito buscar a solução mais justa e equitativa para cada caso concreto. O artigo 113 do Código Civil Brasileiro, por exemplo, diz que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração, o que permite ao juiz extrair do texto contratual a interpretação que melhor o concilie com valores éticos, como a boa-fé, os costumes e os fins econômicos e sociais.
Nelson Nery Júnior considera as cláusulas gerais como normas orientadoras sob forma de diretrizes, dirigidas precipuamente ao juiz, vinculando-o ao mesmo tempo em que lhe dão liberdade para decidir. As cláusulas gerais são formulações contidas na lei, de caráter significativamente genérico e abstrato, cujos valores devem ser preenchidos pelo juiz autorizado para assim agir em decorrência da formulação legal da própria cláusula geral, que tem natureza de diretriz. Nas palavras do autor “o juiz deve servir-se de sua enunciação abstrata para dizer, na situação concreta que se lhe apresenta, o que seria dar função social àquele determinadocontrato que está sob sua análise”[9]
6.1 – Éticos
Os valores éticos acima referidos se acham presentes em diversos campos de nosso ordenamento jurídico, não sendo preceito apenas do Direito Civil. Em matéria de Direito Ambiental, por exemplo, Antonio Herman Benjamin se refere à “Humildade ética ao se reconhecer que a natureza antecedeu os seres humanos e pode existir sem eles e depois deles. O inverso não é possível. Propõe-se assim soluções mais integradas, ecologicamente equilibradas.[10] Norma Sueli Padilha também diz que “não se legisla para impor leis à Natureza; legisla-se para repor o “equilíbrio às leis da Natureza”, alteradas de forma nefasta pelo comportamento humano.”
Numa perspectiva ética precisaremos, cada vez mais, pensar que futuro queremos para nossos filhos e nos comportar de forma a assegurar o direito dessas futuras gerações. Ao tornar o risco algo ínsito ao próprio progresso tecnológico, a Sociedade de Risco impõe uma maior precaução na utilização de conhecimentos tecnológicos, propiciando o desenvolvimento de princípios ambientais, como o da precaução, prevenção e sustentabilidade, exigindo de alguma forma uma resposta ética de todos e de cada um. Gilberto Dupas pondera que“diante de uma humanidade cada vez mais frágil e perecível, ameaçada progressivamente pelos poderes do homem – que se tornou perigoso para si mesmo, constituindo agora seu próprio risco absoluto -, a espécie humana dependerá cada vez mais dos contratos de longo prazo que souber fazer com seu futuro.[11]”
6.2 – Sociais
Célia Muller, em aprofundado estudo acerca da socialidade, afirma que “A idéia da socialidade evoluiu a partir da necessidade de uma sociedade de massa que vivesse em harmonia que, além do valor da segurança jurídica, os de justiça social deveriam ser respeitados. Aliado a isso, a máxima eficácia dos direitos fundamentais, otimizando a proteção da dignidade humana revolucionou a disciplina dos institutos privados.” [12]
Os ensinamentos compreendidos no voto do Ministro Celso de Melo também apontam que “Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) — que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais — realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) — que se identifica com as liberdades positivas, reais ou concretas — acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, nota de uma essencial inexauribilidade.” (MS 22.164, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 30-10-95, DJ de 17-11-95).
Miguel Reale afirma que “ Se não houve a vitória do socialismo, houve triunfo da socialidade, fazendo prevalecer os valores coletivos sobre os individuais, sem perda, porém, do valor fundante da pessoa humana” (Miguel Reale, O projeto do novo Código Civil, pág. 07)
I – O PRINCÍPIO DA SOCIALIDADE
2.1– Fontes
Sob o aspecto dogmático fontes são os modos de formação e revelação das regras jurídicas. No ordenamento jurídico brasileiro o princípio da socialidade, que põe em evidência a função social da propriedade e do contrato, tem base na própria Constituição Federal, bem como no Código Civil e em normas ambientais.
2.1.1 – Fontes: Constituição Federal: Art. 1º, 3º e 5º
Aos estabelecer os valores que fundamentam o Estado Democrático de Direito a Constituição Federal deixa claro que a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa são o alicerce do ordenamento jurídico, cujos objetivos são a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos, como se verifica pelas simples leitura dos artigos 1º [13] e 3º [14] da Constituição, inseridos no título I, que trata dos princípios fundamentais. Ao cuidar dos direitos e deveres individuais e coletivos, no capítulo 1 do Título II (Dos direitos e garantias fundamentais) a Constituição expressamente garantiu o direito de propriedade, para em seguida condicionar a propriedade ao atendimento de sua função social. A redação do referido artigo é a seguinte:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: …
XXII – é garantido o direito de propriedade;
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;
LXXIII – qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;”
Como se verifica, se por um lado garante-se o direito de propriedade, por outro fica claro que tal direito não tem caráter absoluto, visto que a propriedade é condicionada ao atendimento de sua função social. Essa função é inerente ao próprio instituto da propriedade, ou seja, não há direito assegurado se não houver concomitantemente respeito à função social. A inserção do conceito de função social à propriedade demonstra a superação de uma concepção liberal, gradativamente substituida pelo Estado Social. A aplicabilidade do conceito não se restringe à propriedade imobiliária, se referindo, na verdade a qualquer tipo de propriedade (de bens e de produção).
A seguir colecionamos alguns julgados do Supremo Tribunal Federal que demonstram a dimensão do direito referido:
“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 10.826/2003. Estatuto do desarmamento. O direito do proprietário à percepção de justa e adequada indenização, reconhecida no diploma legal impugnado, afasta a alegada violação ao art. 5º, XXII, da CF, bem como ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido.” (ADI 3.112, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 2-5-2007, Plenário, DJ de 26-10-2007.)
"O direito de propriedade não se revela absoluto. Está relativizado pela Carta da República – arts. 5º, XXII, XXIII e XXIV, e 184." (MS 25.284, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 17-6-2010, Plenário, DJE de 13-8-2010.)
“O direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII), legitimar-se-á a intervenção estatal na esfera dominial privada, observados, contudo, para esse efeito, os limites, as formas e os procedimentos fixados na própria Constituição da República. O acesso à terra, a solução dos conflitos sociais, o aproveitamento racional e adequado do imóvel rural, a utilização apropriada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente constituem elementos de realização da função social da propriedade.” (ADI 2.213-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 4-4-2002, Plenário, DJ de 23-4-2004.) No mesmo sentido: MS 25.284, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 17-6-2010, Plenário, DJE de 13-8-2010.
2.1.1.1 – Fontes: Ainda a Constituição Federal – Dos princípios gerais da atividade econômica
Ao tratar da Ordem Econômica e Financeira, no Título VII, o Capítulo I traz os princípios gerais da atividade econômica, onde mais uma vez encontra-se referência expressa à função social da propriedade.
Assim, no artigo Art. 170 consta que “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: …, II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; …”
Também junto ao Título VII, os capítulos II e III, que cuidam respectivamente da Política Urbana e da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária, os artigos 182, 185 e 186 falam em função social da propriedade. No que se refere ao desenvolvimento urbano, cujas diretrizes são fixadas pelo Plano Diretor, é de se destacar que é facultado ao poder público municipal exigir do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena de parcelamento ou edificação compulsórios, e, sucessivamente, de fixação de imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo. A propriedade rural também deve atender sua função social, sendo diversos os critérios e graus de exigência estabelecidos em lei. O artigo 186 estabelece que a função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, aos requisitos de aproveitamento racional e adequado, utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, observância das disposições que regulam as relações de trabalho e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
2.1.1.2 – Fontes: Ainda a Constituição Federal – Do Meio Ambiente – Art. 225
Finalmente há que se acrescentar que a função social da propriedade é assunto de extrema relevância em materia ambiental, ao ponto de se reconhecer inclusive uma função socioambiental da propriedade. Diversos julgados e artigos doutrinários reconhecem a função socioambiental como princípio de direito ambiental consagrado junto à Constitição Federal. Assim, o atendimento desta função é pressuposto do próprio direito de propriedade. Esse fundamento tem amparado o entendimento de que aquele que adquire uma propriedade desmatada tem obrigação legal de reflorestar a área de reserva legal, ainda que não tenha sido responsável pelo desmatamento, eis que se cuida de obrigação proper rem. O proprietário responde, não por haver causado o dano, mas por ser dono de um imóvel que sofreu dano ambiental.
Sem dúvida que, se o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais, de modo que sejam preservados: a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, evitando-se a poluição do ar e das águas, isso ocorre porque o artigo 225 da Constituição Federal assegura que: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.” Nesse contexto é certo impor a aquele que explorar recursos minerais a obrigação de recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, sujeitanto-se igualmente os infratores a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar o dano.
2.1.2 – Fontes: Código Civil
A funcionalização da propriedade e das relações contratuais – bases da atividade econômica no capitalismo – não poderia deixar de provocar profundas mudanças no ordenamento juridico das relações privadas.
As linhas-mestras do novo Codigo Civil – dessa “constituição do homem comum”, nas palavras de Miguel Reale – são os principios da eticidade, da operabilidade e da socialidade, os quais revelam uma evolução no sentido da valorização dos interesses coletivos em substituição do caráter marcadamente individualista do Codigo de 1916, que respondia aos anseios de uma sociedade agrícola.
Com efeito, em artigos-chave para a correta percepção da nova ordem jurídica das relações privadas, evidencia-se a teleologia de resguardar o bem comum, a ética e a simplificação do direito.
Nessa moldura, há, em primeiro lugar, uma explicitação do conteúdo ético do direito por meio dos conceitos da boa-fé objetiva e da função social dos institutos jurídicos.
Nos limites do nosso texto, interessa-nos principalmente o principio da socialidade que permeia as relações privadas por força dos conceitos do abuso de direito (arts. 187 e 1.228, par. 2º, CC), da função social da propriedade (art. 1228, par. 1º, CC) e do contrato (art. 421,CC).
O Codigo Civil de 2002, ao estatuir que o contrato e a propriedade não são direitos absolutos, mas sim apenas reconhecidos como direito subjetivo ou exercício legítimo da autonomia privada enquanto conciliados com os seus fins econômicos ou sociais, alinha-se ao texto constitucional, revelando, portanto, uma preocupacão de reafirmar a teleologia do bem comum, resguardando a sociedade de interpretações redutoras da ordem constitucional, indicando a fragilização da dicotomia entre direito público-privado.
No plano da legitimidade da propriedade e do contrato foram inseridos valores socioambientais (art. 1228, par. 1º, CPC). Desse modo, por exemplo, a esfera de legitimidos a discutir a adequação da propriedade e do contrato às condicionantes jurídicas ampliam-se consideravelmente. Tanto a propriedade como o contrato, antes blindados pelo conceito de vontade individual e protegidos pelos conceitos nucleares da exclusividade de exercício (propriedade) e da relatividade dos efeitos(contrato), tornaram-se vulneráveis ao juízo de compatibilidade com as condicionantes indeterminadas impostas pelo ordenamento. Assim, por exemplo, a publicidade (um contrato) abusiva ou enganosa pode ser impugnada por terceiros (CDC); da mesma forma, uma propriedade ou contrato que viole as regras de concorrência ou normas ambientais não é mais um problema de poucos, mas de toda a sociedade.
Contudo, uma das questões postas ao interprete é a conciliação entre o interesse do particular e da coletividade, que não pode prescindir da definição dos limites dessa funcionalização do direito privado. Nesse sentido Fábio Konder Comparato ensina que a liberdade de iniciativa, entendida como liberdade de criação empresarial ou de livre acesso ao mercado somente é protegida enquanto favorece o desenvolvimento nacional e a justiça social.[15] O autor pondera que, se na perspectiva da igualdade e da liberdade cada qual reivindica o que lhe é próprio, no plano da solidariedade todos são convocados a defender o que lhes é comum. “A solidariedade não diz respeito, portanto, a uma unidade isolada, nem a uma proporção entre duas ou mais unidades, mas à relação de todas as partes de um todo, entre si e cada uma perante o conjunto de todas elas. São de cunho solidário não só o conjunto das relações interindividuais dos cidadões na sociedade política, e dos povos na cena internacional, mas também a relação de Estado com qualquer cidadão ou grupo de cidadãos, ou da Organização das Nações Unidas com qualquer de seus membros .[16]” Ao cuidar das dimensões da solidariedade o autor se refere à solidariedade intergeracional, conceito bastante difundido em matéria ambiental.
Retornando ao tema da função social no Cógigo Civil brasileiro é de se observar que o artigo 113 é categórico em afirmar que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. A combinação desse artigo com o contéudo do artigo 187[17] do mesmo diploma legal deixa clara a preocupação do legislador com os valores éticos e sociais em matéria de contrato.
Nesse sentido, aliás, não resta dúvida que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, como expressamente previu o artigo 421 do Código Civil. Essa idéia é ainda reforçada pela redação do artigo seguinte que prescreve que os contratantes são obrigados a observar, antes, durante e após o contrato, os princípios da probidade e da boa fé.
Além do contrato, a função social é também atributo do direito de propriedade, tendo o proprietário a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha, desde que tal direito venha a ser exercido em consonância com suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. Nesse contexto é natural que sejam defesos os atos que não trouxerem qualquer comodidade ou utilidade ao proprietário e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.
Finalmente há que se acrescentar que nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, como os estabelecidos para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.
2.1.3 – Fontes: Declaração Universal dos Direitos Humanos
A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada pela Organização das Nações Unidas em 1948. O artigo 29 do documento declara que “Toda pessoa tem deveres com a comunidade, posto que somente nela pode-se desenvolver livre e plenamente sua personalidade. No exercício de seus direitos e no desfrute de suas liberdades todas as pessoas estarão sujeitas às limitações estabelecidas pela lei com a única finalidade de assegurar o respeito dos direitos e liberdade dos demais, e de se satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem estar de uma sociedade democrática (…)”.
Ainda que a consagração da socialidade como princípio de direito civil seja recente, a preocupação com a comunidade e com o indivíduo nela inserido já eram evidentes ao final da Segunda Guerra Mundial, revelando-se clara na redação do artigo 29 da Declaração Universal dos Diritos Humanos acima transcrito.
2.2. Fundamentos: Substituição da perspectiva clássica individualista
De tudo quanto se disse até agora importa apontar que o princípio da socialidade encontra fundamento na mudança de perspectiva do operador de direito, havendo uma substituição da perspectiva clássica individualista para uma postura que impõe deveres ao titular do direito, quer se cuide de contrato, quer se refira à propriedade. O respeito à função social é um ônus daquele que pretende ter seu direito protegido, já que não há direitos absolutos. “A função social impõe ao proprietário o dever de exercê-la em benefício de outrem e não apenas de não exercer em prejuízo de outrem” (Eros Roberto Grau – A ordem Econômica na Constituição de 1988). Não mera limitação, mas poder-dever.
No que diz respeito à propriedade é de se observar que a ecologização da Constituição teve o intuito de, a um só tempo, instituir um regime de exploração limitada e condicionada (= sustentável) da propriedade e de agregar à função social da propriedade, tanto urbana como rural, um forte explícito componente ambiental. Os arts.170,VI e 186, II, da Constituição brasileira inserem-se nessa linha de pensamento de alteração radical do paradigma clássico dos chamados bens ambientais. Como novo perfil, o regime de propriedade passa do direito pleno de explorar, respeitado o direito dos vizinhos, para o direito de explorar, só e quando respeitados a saúde humana e os processos e funções ecológicos essenciais.” (Canotilho, J.J.Gomes; José Rubens Morato (org.)- Direito Constitucional Ambiental Brasileiro, p.72) (grifo nosso)
2.2.1 Releitura dos Institutos
CONTRATO – Os Contratos, anterioremente fulcrados no conceito de autonomia da vontade, passam a ser analisados pelo prisma da boa fé objetiva, que se liga à ética e à lealdade, presentes desde as tratativas. Para o Ministro Rui Rosado de Aguiar Jr “A boa-fé objetiva é o princípio de lealdade que deve orientar as relações humanas, de sorte que todos devem permitir sejam realizadas as expectativas que os outros têm nas relações mantidas na vida social, princípio ético que preside o ordenamento, está presente e serve de guia para todas as relações no campo do Direito Privado, e também no âmbito do Direito Público. (Ministro Rui Rosado de Aguiar Jr.) Ela deve ocorrer desde as tratativas até após a execução. A função social permite que os danos sejam questionados por terceiros, na medida em que ultrapassa as próprias partes. Nesse sentido é possível que determinada conduta, aparentemente legal, seja questionada com base na ética exigível nas relações. Aquele jurista, por exemplo, questiona a legitimidade do comportamento na ultrapassagem de Massa ao final do campeonato, ao considerar o dano à desportividade da competição.
PROPRIEDADE – O direito de propriedade também tem nova releitura, na medida em só encontra proteção ao respeitar sua função social, deixando de possuir caráter aboluto. A prof. Patrícia Faga Iglesias Lemos assevera que “Num sistema social, o Estado deve fixar parâmetros para o exercício do poder conferido pela propriedade sobre bens de produção e sobre bens imóveis.”[18] Tanto o
Quer se cuide de “Bens de Uso” – função de uso – Art. 5º, XXII e XXIII CF, quer se cuide de “Bens de produção” – função de lucro – Art. 170, II e III CF, o exercício do direito de propriedade é condicionado ao atendimento do fim social. Nesse sentido é possível a imposição de obrigações, sejam elas positivas ou negativas[19]
Nessa releitura importa deixar calro que “A função social da propriedade não se confunde com os sistemas de limitação da propriedade. Estes dizem respeito ao exercício do direito, ao proprietário; aquela, à estrutura do direito mesmo, à propriedade (…) Com essa concepção é que o interprete tem que compreender as normas constitucionais, que fundamentam o regime jurídico da propriedade: sua garantia enquanto atende sua função social, implicando uma transformação destinada a incidir, seja sobre o fundamento mesmo da atribuição de poderes ao proprietário, seja, mais concretamente, sobre o modo em que o conteúdo do direito vem positivamente determinado; assim é que a função social mesma acaba por posicionar-se como elemento qualificante da situação jurídica considerada, manifestando-se, conforme as hipóteses, seja como condição de exercício das faculdades atribuídas, seja como obrigação de exercitar determinadas faculdades de acordo com modalidades preestabelecidas. Enfim, a função social se manifesta na própria configuração estrutural do direito de propriedade, pondo-se concretamente como elemento qualificante na predeterminação dos modos de aquisição, gozo e utilização dos bens.” [20] (grifo nosso)
“Num primeiro momento, ainda sob forte influência da concepção individualista ultrapassada, defendeu-se que a função social da propriedade operava somente imposições negativas (do tipo ‘não fazer’,ou ‘deixar de fazer’) . Posteriormente – com maior razão nas ordens constitucionais mais recentes –, percebeu-se que o instituto atua principalmente pela via de prestações positivas a cargo do proprietário, sem que isso signifique abandono das serventias das regras passivas, obstativas do usos antisocial da propriedade. Assim, sempre que necessário, a função social mais que aceita requer a promulgação de regras impositivas, que estabeleçam para o dominus obrigações de agir, na forma de compromissos positivos com as finalidades sociais, clamando por comportamentos ativos que se alinham na direção do proveito social: donde poder o Estado, já que se trata de função social ativa, ‘pretender dos proprietários que concorram nesta direção – e não apenas que se abstenham de adversar esta diretriz’”. [21] (grifo nosso)
2.2.2. Revisitação dos Institutos na nova perspectiva
“(…) O constitucionalismo moderno é marcado pela incorporação de uma legislação simbólica, que atribui direitos sociais e é, em geral, carente de eficácia normativa, exprimindo um sentido promocional prospectivo e exigindo um trabalho de implementação. Esta exigência de implementação tornaria legítima a desneutralização da função do Judiciário, ao qual, perante os direitos sociais ou perante sua violação, não cumpriria apenas julgar no sentido de estabelecer o certo e o errado com base na lei, mas também examinar se o exercício discricionário do poder de legislar conduz à concretização dos resultados objetivados.(…)” (TRF3, AC 200261000067347, Rel. Rubens Calixto, j. 03/03/2011, DJF3, CJ1, 25/04/2011, pag. 581).
Ainda neste tópico de Revisitação dos Institutos na nova perspectiva importa verificar o Regime jurídico de apropriação de recursos naturais. Para tanto, dada a facilidade de visualização e de entendimento, nos valeremos do quadro elaborado por Cristiane Derani, na obra “Direito Ambiental Econômico”, São Paulo, Ed. Max Limonad, 1997.
A visulaização dispensa explicações.
Também neste tópico de Revisitação dos Institutos na nova perspectiva, ao analisar o conteúdo jurídico do Direito, em especial sua Função Socioambiental, nos valeremos mais uma vez das lições de José Joaquim Gomes Canotilho que ensina o seguinte: “ A ecologização da Constituição, portanto, teve o intuito de, a um só tempo, instituir um regime de exploração limitada e condicionada (= sustentável) da propriedade e agregar à função social da propriedade, tanto urbana como rural, um forte explícito componente ambiental. Os arts.170,VI e 186, II, da Constituição brasileira inserem-se nessa linha de pensamento de alteração radical do paradigma clássico dos chamados bens ambientais. Como novo perfil, o regime de propriedade passa do direito pleno de explorar, respeitado o direito dos vizinhos, para o direito de explorar, só e quando respeitados a saúde humana e os processos e funções ecológicos essenciais.” (Canotilho, J.J.Gomes; José Rubens Morato (org.)- Direito Constitucional Ambiental Brasileiro, p.72)
II – RESPONSABILIDADE SOCIAL
Passemos agora ao desdobramento do princípio da socialidade, que impõe postura responsável, aqui entendida como postura ética e socialmente responsável.
O Estado Social exige o condicionamento no exercício de direitos, como visto nos tópicos anteriores, o que pode decorrer tanto de uma postura participativa das empresas, que melhoram sua imagem perante o consumidor e propiciam a conservação ambiental, quanto de cumprimento de exigências legais.
A cidadania corporativa pode ocorrer por ações isoladas, pela sistematização da avalição de impactos ou ainda como uma preocupação de melhoria contínua, antecipando-se inclusive às políticas públicas.
3.1. Postura Socialmente Responsável
Responsabilidade socioambiental -"o compromisso permanente das empresas de adotar um comportamento ético e contribuir para o desenvolvimento econômico, melhorando, simultaneamente, a qualidade de vida de seus empregados e de suas famílias, da comunidade local e da sociedade como um todo". Pode ser entendida também como um sistema de gestão adotado por empresas públicas e privadas que tem por objetivo providenciar a inclusão social (Responsabilidade Social) e o cuidado ou conservação ambiental (Responsabilidade Ambiental).
3.1.1. – Cidadania Corporativa
“As organizações são vistas como sistemas abertos, que precisam se adaptar a condições externas mutantes, para desempenharem, terem sucesso, e até sobreviverem ao longo do tempo de forma eficaz”.
Cada vez mais a conscientização do indivíduo como cidadão, conhecedor de seus direitos e deveres na sociedade, tem exigido por parte das organizações uma postura ética, boa imagem institucional no mercado e que atuem de forma ecologicamente correta.
Estágios:
A – ações isoladas
B – sistematização da avaliação de impactos
C – melhoria contínua – antecipação das questões públicas
A responsabilidade social e ambiental pode ser resumida no conceito de efetividade, como alcance de objetivos do desenvolvimento econômico-social. Portanto, uma organização é efetiva quando mantém uma postura socialmente responsável. A efetividade está relacionada à satisfação da sociedade, ao atendimento de seus requisitos sociais, econômicos e culturais. Tachizawa (2002, p.73)
No âmbito organizacional a efetividade leva as empresas a obter vantagens competitivas, ou ao menos, redução de custos e incremento nos lucros a médio e longo prazos. Um exemplo citado por Tachizawa é a empresa 3M, que somando os 270 mil toneladas de poluentes na atmosfera e 30 mil toneladas de efluentes nos rios que deixou de despejar desde 1975, consegue economizar mais de US$810 milhões combatendo a poluição nos 60 países onde atua.
A cidadania corporativa, termo usado por McIntosh (2001), não se trata de filantropia, ou de anexar um lustroso relatório sobre assuntos comunitários ao relatório financeiro anual. Segundo o Serviço Social da Indústria – SESI, “responsabilidade social não é filantropia, não é uma ferramenta de marketing, nem o simples cumprimento de leis e regulamentos”. O novo modelo de cidadania corporativa descrito por McIntosh (2001) pode representar uma mudança de paradigma, uma evolução dentro da empresa, ou seja, a inclusão das preocupações sociais e ambientais no centro de suas estratégias corporativas.
As organizações socialmente responsáveis devem abordar suas responsabilidades perante a sociedade e o exercício da cidadania, por meio de estágios que vão desde uma fase embrionária até sua fase mais avançada.
Estágio 1: a organização não assume responsabilidade perante a sociedade e não toma ações em relação ao exercício da cidadania. Não há promoção do comportamento ético.
Estágio 2: a organização reconhece os impactos causados por seus produtos, processos e instalações, apresentando algumas ações isoladas, no sentido de minimizá-los. Eventualmente, busca promover o comportamento ético.
Estágio 3: a organização está iniciando a sistematização de um processo de avaliação dos impactos de seus produtos, processos e instalações e exerce alguma liderança em questões de interesse da comunidade. Existe envolvimento das pessoas em esforços de desenvolvimento social.
Estágio 4: o processo de avaliação dos impactos dos produtos, processo e instalações está em fase de sistematização. A organização exerce liderança em questões de interesse da comunidade de diversas formas. O envolvimento das pessoas em esforços de desenvolvimento social é freqüente. A organização promove comportamento ético.
Estágio 5: o processo de avaliação dos impactos dos produtos, processos e instalações está sistematizado, buscando antecipar as questões públicas. A organização lidera questões de interesse da comunidade e do setor. O estímulo à participação das pessoas em esforços de desenvolvimento social é sistemático. Existem formas implementadas de avaliação e melhoria da atuação da organização no exercício da cidadania e no tratamento de suas responsabilidades públicas (Tachizawa, 2002, p. 85).
3.2 – Gestão Estratégica
“…, não é só a legislação ambiental que pressiona uma empresa à adoção de uma gestão ambiental, mas também e sobretudo, o mercado, a concorrência, os consumidores, as partes interessadas (acionistas, agentes financiadores e outros), o custo cada vez mais elevado da matéria-prima (como energia e água), dada a sua crescente escassez, diante da demanda progressiva etc. Em resposta a esses fatores é que surgem, no mercado, modelos e normas de gestão ambiental, que buscam combater o passivo e garantir a lucratividade ambiental.”
“A razão do acolhimento da função ambiental da propriedade em sede constitucional, em especial no capítulo da ordem econômica, é o fato de a indústria ter se revelado um grande pivô da degradação do meio ambiente responsável pelo seu contexto atual. Daí afirmarmos que, se a questão ambiental nela começou, agora, a ela deve retornar.” (Clarissa Ferreira MacedoD’Isep, Direito Ambiental Econômico e a ISO 14000).
Gestão ambiental empresarial, na realidade, trata da concretização, a materialização da função ambiental da propriedade – bata às portas da empresa, seja pela via econômica (art.170, III c/c o inc.VI), seja pela via ambiental(art. 225, CF/88; art. 2º e incisos, art.3º,III,a; art.4º, I e art. 5º, parágrafo único, todos da Lei 6.891/81), ou seja até mesmo pela do Direito do Consumidor (art. 51, XIV, do CDC), que, ao primar pela incolumidade física e psíquica do ser humano, não compactua com a agressão ambiental trazida pelo produto final.” (Clarissa Ferreira MacedoD’Isep, Direito Ambiental Econômico e a ISO 14000)
3.3. Instrumentos
A – Certificações
Como forma de atestar as organizações, surgiram as certificações ISO 9000, da qualidade e a ISO 14000, para o meio ambiente; o selo SA8000 que certifica a conduta ética das empresas em relação aos trabalhadores e o respeito aos direitos humanos; certificado de comportamento ético, o AA1000; e os indicadores sociais do Instituo Ethos. Iso 26000
B – Balanço social
O Balanço Social é um instrumento utilizado pelas empresas para estabelecer um canal de comunicação transparente com a sociedade, retratando sua responsabilidade social. O balanced scorecard, baseado em Kaplan e Norton (1997), é um sistema de gerenciamento que complementa as medidas financeiras do desempenho passado com medidas dos vetores que impulsionam o desempenho futuro. Ele deve traduzir a missão e a estratégia de uma unidade de negócios em objetivos e medidas tangíveis.
CONCLUSÃO
O sistema jurídico nascido da Revolução Francesa, centrado no individualismo e na propriedade absoluta, sofreu importante mudança de rumo a partir da idéia de funcionalização do direito trazida pelas doutrinas políticas e econômicas de cunho social, que se contrapuseram às mazelas produzidas pela sacralização da vontade individual e da propriedade privada.
Fenômenos posteriores, no entanto, levaram ao reconhecimento de novas espécies de interesses ditos coletivos. Surgem a partir de então normas constitucionais sobre direitos sociais ou prestacionais. O caráter absoluto da propriedade é gradativamente substituído pelo reconhecimento da necessidade de equilíbrio entre o individual e o social.
Os problemas decorrentes da sociedade pós-industrial, sentidos em escala global, exigem a conformação do instrumental jurídico. Assim, da função social da propriedade chega-se à da empresa. Não se trata de fenômeno apenas jurídico, mas de uma concepção de que a atividade das empresas deve observar o bem comum nas suas relações com a sociedade, com seus funcionários, com meio ambiente etc., atuando por meio de diversas disciplinas, como a Administração, Contabilidade, Economia, etc.
No direito ambiental a função social acaba por levar ao reconhecimento da existência de uma função socioambiental. Nesse novo perfil, e diante da crise ambiental, o regime de propriedade passa do direito pleno de explorar, respeitado o direito dos vizinhos, para o direito de explorar, só e quando respeitados a saúde humana e os processos e funções ecológicos essenciais.
São criadas, então, ferramentas para aferir a conformidade ou não da atividade empresarial à função social (ex. certificações e balanços sociais).
No direito, essa preocupacão com o bem comum é recepcionada por meio dos princípios do desenvolvimento sustentável e o da socialidade. A influência crescente desses princípios pode ser observada nos mais diversos campos da atividade social, correspondendo à proibições ou prêmios pela adesão aos valores sociais, tais como vantagens nas contratações públicas para as empresas que adotem tecnologias mais limpas, gestão ambiental mais eficiente, cumpram a legislação trabalhista, etc.
Sob o ponto de vista da operacionalidade importa observar que o princípio da socialidade possibilitou a implementação de políticas sociais, e em especial o desenvolvimento e conscientização da responsabilidade dos partícipes sociais, ou em outras palvras, a responsabilidade social em face dos Direitos difusos e coletivos.
Informações Sobre o Autor
Thaís Teizen
Procuradora do Estado de São Paulo em exercício na consultoria jurídica da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo. Especialização em Processo Civil pela Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado e pela Universidade Católica de Santos. Especialização em Direito do Estado pela USP. Mestranda em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP