Resumo: Este artigo tem o intuito de chamar atenção do leitor a crise da discricionariedade administrativa. Atualmente os tribunais vem cada vez mais entrando na seara administrativa através de decisões judiciais, limitando e, até mesmo suprimindo, a liberdade conferida em lei para ao administrador. Com a evolução do constitucionalismo os princípios passam a ter um papel primordial no ordenamento jurídico, sendo eles usados como parâmetros para atuação administrativa. A lei ao conferir ao administrador a liberdade o faz no intuito de que sejam analisadas as melhores opções ao caso concreto posto. A chamada teoria da solução ótima não tem espaço no ordenamento jurídico pátrio, tendo em vista que o administrador tem a liberdade de escolher, desde que motivado, a opção mais adequada a finalidade da lei A discricionariedade não é plena, sob pena de se tornar arbitrariedade, e, deste modo, surge para os demais órgãos, internos e externos, o pode de controle de tais atos. Com vistas a separação dos poderes não pode o poder judiciário tomar as rédeas e substituir a vontade do administrador.
Palavras-chave: Discricionariedade. Neoconstitucionalismo. Teoria da Solução Ótima. Controle judicial.
Sumario: Introdução. 1. Neoconstitucionalismo e o direito administrativo. 1.1. Normatividade dos princípios. 2. Atos administrativos e a discricionariedade. 2.1. Atos administrativos e fatos da administração. 2.2. Atos da administração. 2.3. Atos políticos e atos interna corporis. 2.4. Discricionariedade e vinculação. 2.4.1. Hipóteses de discricionariedade. 2.5. Teoria da solução ótima. 3.Separação dos poderes e o controle judicial dos atos administrativos. 3.1. Controle dos atos administrativos. 3.2 Limites ao controle realizado pelo judiciário nos atos discricionários. Conclusão.
Introdução
Este trabalho tem como objetivo demonstrar discorrer sobre a discricionariedade dos atos administrativos praticados pelos entes do Poder Público. Longe de querer esgotar sobre o estudo da discricionariedade administrativa e suas hipóteses de incidência este trabalho tem o intuito de demonstrar algumas formas que encontramos de discricionariedade no âmbito dos atos administrativos.
Sem aprofundar nos conceitos e nuances do Neoconstitucionalismo e pós-positivismo (como marco teórico) este trabalho utiliza as lições do ilustre professor Luis Roberto Barroso para “simplificar” as ideias do neoconstitucionalismo que são essenciais para o entendimento da força normativa dos princípios.
Inicialmente necessário se faz demonstrar primeiro a evolução da força dos princípios no ordenamento jurídico. A priori os princípios eram tidos apenas como orientações que regiam o direito, contrapondo-se aos comandos normativos com força de norma, as chamadas normas-regras.
Com a evolução do conceito de constitucionalismo há uma nova visão da função que as normas-princípios exercem no direito. Passando a ser um comando normativo dotado de uma grande carga axiológica, mas com força normativa.
Na esteira desse raciocínio o princípio da legalidade tem seu conceito ampliado para então abranger não apenas as normas-regras, mas também incluir em sua analise as normas-princípios que trazem uma grande carga axiológica.
A seguir são analisadas as formas em que o ato administrativo obtém sua característica discricionária, fazendo a importante distinção entre a discricionariedade e a arbitrariedade. Em primeiro sentido o legislador pode conferir a discricionariedade ao ato deixando de prever todas as situações em que poderá atuar o Administrador Público, uma vez que é impossível prever todas as situações fáticas que podem surgir. Em seguida, a lei pode conferir diversas maneira de solucionar um mesmo caso.
De igual importância é a discricionariedade advinda dos chamados conceitos jurídicos indeterminados. Nesta hipótese, o administrador tem um papel essencial interpretando o comando legal e realizando um juízo de conveniência e oportunidade, pautado no princípio da proporcionalidade.
Utilizando-se da chamada Teoria da Solução ótima temos uma limitação ao mérito do administrador. Tal restrição se mostra perigosa podendo muitas vezes excluir da discricionariedade conferida por lei ao administrador.
Por fim, com foco nos princípios administrativos, procura-se estabelecer, de forma não exaustiva, os limites que podem ser utilizados para balizar o controle judicial dos atos administrativo. Através do conceito atual do princípio proporcionalidade estabelece-se um novo limite a ser analisado pelo Estado, e um novo parâmetro a ser utilizado no controle judicial. Não obstante tal fato, defende-se a independência dos poderes constituídos de forma a não ocorrer uma usurpação de funções que já demonstrou ser prejudicial ao Estado em outras épocas.
1. Neoconstitucionalismo e o direito administrativo
A partir do século XXI surge uma nova ideia de constitucionalismo chamada de neoconstitucionalismo ou pós-positivismo (LENZA, 2009). Em todo o mundo a ideia de constituição foi, gradativamente, sendo modificada e ganhando uma nova carga axiológica, e, consequentemente, se tornando o documento mais importante do ordenamento jurídico.
Barroso (2005) traz como marco no neoconstitucionalismo pátrio a Constituição de 1988, isto porque, foi capaz de fazer a transição do regime autoritário da ditadura para o regime democrático atual.
Segundo Barroso (2005, p. 9),
“[…] três grandes transformações subverteram o conhecimento convencional relativamente a aplicação do direito constitucional: a) o reconhecimento da força normativa à Constituição; b) a expansão da jurisdição constitucional; c) o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional[…]”
A Constituição passa a ser um documento jurídico, em contraposição à ideia de que era um documento eminentemente político. Desta forma, as normas constitucionais são caracterizadas pela coercibilidade, atributo este comum a todas as normas jurídicas, e a desobediência a tais comandos legais podem gerar a aplicação de mecanismos de coação.
Ademais, com a incorporação de direitos fundamentais no texto constitucional, emerge-se a necessidade de proteção do texto constitucional, e neste momento a Constituição de 1988 amplia de maneira significante o rol de legitimados a propositura das ações de controle concentrado de constitucionalidade.
Conforme Lições de Barroso (2005, p. 11),
“[…] Nada obstante, a jurisdição constitucional expandiu-se, verdadeiramente, a partir da Constituição de 1988. A causa determinante foi a ampliação do direito de propositura. A ela somou-se a criação de novos mecanismos de controle concentrado, como a ação declaratória de constitucionalidade e a regulamentação da arguição de descumprimento de preceito fundamental.”
Diante de tais mudanças no cenário constitucional os métodos clássicos de interpretação se mostram insuficientes para analisar a Carta Maior. Com a nova hermenêutica constitucional alinham-se às técnicas de intepretação tradicionais um novo conjunto de práticas que visam clarificar a dogmática constitucional moderna.
Desta forma surge, através da doutrina e jurisprudência, um novo rol de princípios destinados a interpretar a Constituição. Neste sentido,
“[…] Tais princípios, de natureza instrumental, e não material, são pressupostos lógicos, metodológicos ou finalísticos da aplicação das normas constitucionais. São eles, na ordenação que se afigura mais adequada para as circunstâncias brasileiras: o da supremacia da Constituição, o da presunção de constitucionalidade das normas e atos do Poder Público, o da interpretação conforme a Constituição, o da unidade, o da razoabilidade e o da efetividade.” (BARROSO, 2005, p. 13)
Neste diapasão, a Constituição passa a ser um documento parâmetro de interpretação de todo o ordenamento jurídico, devendo-se estender tal força às normas implícitas.
Neste cenário a Constituição pátria passa a ser o documento mais importante do ordenamento jurídico, e, por conseguinte, as normas infraconstitucionais não mais devem respeito, apenas, devido à posição hierárquica em que se encontram, mas também, em consequência da carga axiológica.
Consubstanciado nessa forma de visão constitucional o direito administrativo passa a integrar o corpo da Carta Magna com maior destaque.
O regramento da função estatal não mais se dá apenas com a observância das regras e princípios expressos no texto da constitucional, mas também com a fiel observância dos direitos fundamentais, que passam a ter um papel limitatório da atividade administrativa.
É com este pensamento que o princípio da Legalidade, tradicionalmente previsto na Carta Magna, toma novos contornos vindo a ter uma acepção mais ampla, ou seja, passa a não mais ser uma simples subsunção do caso da norma escrita, mas uma análise do fato em destaque aos ditames tanto normativos constitucionais explícitos como aqueles implícitos.
Logo, os direitos fundamentais, bem como, os princípios implícitos passam a ser de observância obrigatória, insurgindo-se em face da atuação administrativa, com o intuito de limitá-la.
1.1. Normatividade dos princípios
Um dos grandes problemas acerca da doutrina constitucional girava em torno da conceituação dos princípios e sua normatividade. Diversas eram as definições dadas aos princípios citando-se entre elas a da Corte Constitucional Italiana.
“Faz-se mister assinalar que se devem considerar como princípios do ordenamento jurídico aquelas orientações e aquelas diretivas de caráter geral e fundamental que se possam deduzir da conexão sistemática, da coordenação e da íntima racionalidade das normas, que concorrem para formar assim, num dado momento histórico, o tecido do ordenamento jurídico.” (BOBBIO apud BONAVIDES, 2009, p.256, Grifo meu)
Com o advento do positivismo jurídico passaram os princípios a figurar como fontes normativas, notadamente a Lei de introdução ao Código Civil, Decreto-lei n° 4.657/42, trazia expressamente a função complementar e subsidiaria dos princípios, in verbis
“Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.” (BRASIL, Decreto-lei n°4.657/42, Grifo meu)
Desta forma, os princípios tinham um papel subsidiário em sua utilização, não havendo normatividade em sua aplicação.
Diante do Pós-positivimo (CUNHA JR, 2010) a ideia de normas e princípios deixam de existir em uma separação rígida, surgindo diversos doutrinadores que defendiam a normatividade destes.
Nos dizeres de Barroso, citado por Cunha Jr. (2010, p. 146),
“É importante assinalar, logo de início, que já se encontra superada a distinção que outrora se fazia entre norma e princípio. A dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas jurídicas, em geral, e as normas constitucionais, em particular, podem ser enquadradas em duas categorias diversas: as normas-princípios e as normas-disposição. As normas-disposição, também referidas como regras, têm eficácia restrita às situações especificas às quais se dirigem. Já as normas princípios, ou simplesmente princípios, têm, normalmente, maior teor de abstração e uma finalidade mais destacada dentro do sistema.” (Grifo meu)
Neste contexto, havendo a antinomia entre dois princípios não há óbice de coexistência entre os dois, devendo ser resolvida utilizando-se métodos como a ponderação, harmonização ou concordância (CUNHA JR., 2010). Enquanto no caso de normas-regras, não pode haver a coexistência “[…] pois as regras antinômicas excluem-se. […]”. (CUNHA JR., 2010, p. 149)
Os princípios, como normas, de alta carga axiológica, do ordenamento jurídico, passam a obrigar a sua observância, quer sejam implícitos, quer sejam explícitos no texto constitucional.
2. Os atos administrativos e a discricionariedade
2.1. Atos administrativos e fatos da administração
Inicialmente convém fazer uma distinção entre os atos administrativos para os chamados fatos administrativos, haja vista que aqueles são de interesse do presente trabalho.
Utilizando lições do direito civil tem-se a definição de fato jurídico, em sentido amplo, corresponderia a tudo o que importa para o direito, seja por fatos humanos ou naturais, resultando consequências jurídicas. Neste diapasão subdivide-se o fato jurídico em sentido amplo, fato jurídico em sentido estrito e atos jurídicos.
Os fatos jurídicos em sentido estrito seriam os eventos naturais que não decorrem de manifestações de vontade, mas acabam por gerar consequências no mundo jurídico.
Nas lições de Alexandrino e Paulo, “atos jurídicos: são qualquer manifestação de unilateral humana voluntária que tenha a finalidade imediata (direta) de produzir determinada alteração no mundo jurídico.”
É de relevância destacar os dizeres de Bandeira Mello (2008, p. 370),
“O interesse da distinção entre ato jurídico e fato jurídico, para o Direito Administrativo, reside em que a Administração não só produz atos jurídicos, mas também fatos jurídicos, e é preciso, então, separar os atos administrativos dos fatos da Administração, o que só é possível depois dos aclaramentos.”
Tal distinção ganha relevância devido a ideia que os atos administrativos são passíveis de revogação ou anulação, gozam de presunção de legitimidade e ainda podem ser vinculados ou discricionários, enquanto os fatos administrativos não gozam de tais características (BANDEIRA DE MELLO, 2008).
2.2. Atos da administração
A administração nem sempre atua na qualidade superior que lhe é dada pelo princípio basilar da supremacia do interesse público sobre o privado, por vezes, a administração atua em igualdade com os particulares, e nesta igualdade pratica atos regidos pelo direito privado.
O ato administrativo trata-se apenas de uma das várias maneiras de exteriorização de vontade da administração, que pode se manifestar de diversas formas.
Nas lições de Alexandrino e Paulo (2011, p.418),
“Nessa acepção ampla ou genérica, os ‘atos da administração’ incluem: a) os ‘atos administrativos’ propriamente ditos (manifestação de vontade cujo fim imediato seja a produção de efeitos jurídicos, regido pelo direito público); b) os atos da administração pública regidos pelo direito privado; e c) os chamados “atos materiais” praticados pela administração pública, que são os atos de mera execução de determinações administrativas (portanto, não têm como conteúdo uma manifestação de vontade), a exemplo da varrição de uma praça, da dissolução de uma passeata, da pavimentação de uma estrada, da demolição de um prédio que esteja ameaçando ruir.”
Há ainda doutrinadores que os dividem em atos administrativos materiais e formais, sendo estes os atos, que embora expedidos pelo Poder Executivo, não são no exercício da função administrativa, enquanto aqueles são expedidos no exercício da função administrativa. (CUNHA JR apud FAGUNDES, 2007)
Desta forma é de salutar relevância essa distinção feita aos inúmeros de atos que podem ser praticados pela administração, uma vez que a depender do ato praticado pela administração serão utilizadas regras de diferentes ramos do direito (civil, trabalhista, administrativo).
2.3. Atos políticos e atos interna corporis.
Como a função administrativa é exercida, em regra, pelo Poder Executivo, diversas vezes são expedidos atos que não detém características administrativas, ou mesmo, características privadas.
Tais atos são os chamados atos políticos, sendo proferidos no exercício da função política do Estado. Em verdade, tais atos são as opções políticas feitas pelo chefe do poder público com o intuito de realizar o mandamento constitucional.
Nas lições de Bandeira de Mello (2008, p. 380),
“Por corresponderem ao exercício de função política e não administrativa, não há interesse em qualificá-los como atos administrativos, já que sua disciplina é peculiar. Inobstante também sejam controláveis pelo Poder Judiciário são praticados de modo amplamente discricionário, além de serem expedidos em nível imediatamente infraconstitucional – ao invés de infralegal – o que lhes confere fisionomia própria […]”
Conforme definição do ilustre professor, os atos políticos não encontram disciplina legal, mas sim constitucional, dando maior margem de liberdade a estes.
O controle judicial dos atos políticos é estreito, haja vista que a própria constituição não os dá contornos definidos, prezando, então, pela ampla discricionariedade de realização das políticas públicas.
Outro tipo de ato que não interessa ao estudo do presente trabalho é o chamado ato interna corporis. Tais atos têm função de reger os assuntos internos de determinada entidade, a exemplo dos regimentos internos da câmara dos deputados.
Segundo De Pietro (2008, p. 494),
“Quanto aos atos interna corporis (Regimentos dos atos colegiados), em regra não são apreciados pelo Poder Judiciário, porque se limitam a estabelecer normas sobre o funcionamento interno dos órgãos; no entanto, se exorbitarem em seu conteúdo, ferindo direitos individuais e coletivos, poderão também ser apreciados pelo Poder Judiciário.”
Em suma, tanto os atos políticos como os atos interna corporis tem regramento específico, uns pela própria constituição, outros, pelas disposições internas de determinadas entidades, que não pode ser confundido com o dos atos administrativos.
2.4. Discricionariedade e vinculação
A atuação administrativa pautada na observância da lei é por vezes esvaziada de liberdade, por parte do legislador, fazendo com que a sua atuação passe a ser adstrita ao comando legal, ou seja, vinculada.
Neste sentido, o ato vinculado é aquele adstrito aos limites legais, desta forma, não há espaço para escolhas por parte do Administrador Público, devendo atuar nos estritos limites que a lei impõe. Deve-se entender nestes casos a lei no sentido material, sendo conceituado como qualquer ato normativo de caráter geral e abstrato.
De relevância destacar que apesar da doutrina costumar a tratar a vinculação como um poder da administração, tal designação não se demonstra a mais adequada, visto que é na verdade um dever da Administração, por isso “[…] Quando pratica um ato vinculado […] a administração está muito mais cumprindo um dever do que exercendo uma prerrogativa.” (AlexandrinO; PAULO, 2011, p. 215).
Em contraposição a esta ideia, em determinados atos normativos não há delimitação de todos os elementos de atuação do Estado, surgindo então, uma liberdade no exercício da atividade administrativa pelo poder público, nestes casos, há a manifestação do poder discricionário.
A ideia de um poder discricionário não se confunde com a arbitrariedade, característica dos estados absolutistas, onde o poder do soberano não encontrava limites objetivos, somente havendo as restrições subjetivas do governante. Diante disso a doutrina costuma indicar que o hoje chamado poder discricionário da administração não é verdadeiramente um poder e sim uma prerrogativa do Estado.
“Não se confundem discricionariedade e arbitrariedade. Ao agir arbitrariamente o agente estará agredindo a ordem jurídica, pois terá se comportado fora do que lhe permite a lei. […] Ao agir discricionariamente o agente estará, quando a lei lhe outorgar tal faculdade (que é simultaneamente um dever), cumprindo a determinação normativa de ajuizar sobre o melhor meio de dar satisfação ao interesse público por força da indeterminação legal quanto ao comportamento adequado à satisfação do interesse público no caso concreto.” (BANDEIRA DE MELLO, 2008, p. 426).
Segundo Cunha Junior (2007) os chamado poderes da administração são apenas instrumentos que o Estado dispõe para o cumprimento dos comandos legais, desta forma o poder discricionário deverá ser um meio para a consecução da finalidade legal imposta na norma. Ademais somente a lei pode criar prerrogativas para o Estado, o que denota a ideia de que apesar de haver a liberdade de escolha, esta ficará adstrita à lei, ou seja, só há liberdade se a lei assim dispuser.
Assim destaca-se que embora o Estado disponha de tais poderes este só pode exercê-los dentro dos limites já definidos em lei, impugnando a ideia de discricionariedade plena.
2.4.1. Hipóteses de discricionariedade
A discricionariedade concedida para que o administrador possa executar os comandos legais pode aparecer de diversas formas, podendo a lei, em sentido amplo, utilizar diversas técnicas para a concessão dessa liberdade de escolha.
A priori, essa discricionariedade pode aparecer quando a lei for omissa. Isto porque é impossível para o legislador prevê todas as realidades fáticas que podem ocorrer na sociedade. Para Meirelles (1999, p.104):
“A atividade discricionária encontra plena justificativa na impossibilidade de o legislador catalogar na lei todos os atos que a prática administrativa exige. O ideal seria que a lei regulasse minuciosamente a ação administrativa, modelando cada um dos atos a serem praticados pelo administrado; mas, como isto não é possível, dadas a multiplicidade e diversidade dos fatos que pedem pronta solução ao Poder Público, o legislador somente regula a pratica de alguns atos administrativos que reputa de maior relevância, deixando o cometimento dos demais ao prudente critério do administrador.”
Há de salientar que esta omissão legislativa nunca pode ser total, para que não possa ser interpretada como exceção ao princípio da legalidade, ou seja, mesmo sendo omissa a lei, em determinados aspectos, deve o comando normativo traçar ao menos os limites a serem respeitados pelo Estado. Deveras, “O poder discricionário tem como núcleo a autorização legal para que o agente público decida, nos limites da lei, acerca da conveniência e oportunidade de praticar, ou não, um ato administrativo e, quando for o caso, escolher o seu conteúdo. […]” (ALEXANDRINO; PAULO, 2011, p. 216, Grifo meu).
Outra hipótese de discricionariedade ocorre quando a lei expressamente dispõe de diversos modos para o cumprimento de uma finalidade, devendo haver um juízo de conveniência e oportunidade da administração. Tal juízo de conveniência e oportunidade é chamado na doutrina de mérito administrativo.
Bandeira de Mello (2008) ressalta que apesar de haver um juízo de conveniência e oportunidade por parte da administração, gerando um “poder” e não um “dever”, tal juízo deve se ajustar à finalidade legal imposta pelo legislador.
Diferente hipótese de discricionariedade conferida ao administrador é a técnica legislativa vinculada à finalidade do ato que se visa executar. Desta forma quando o legislador utiliza conceitos como “interesse público” ou “ordem pública” deixa para o poder público a interpretação de tais conceitos. De acordo com Bandeira de Mello (2010, p.19)
“Veja-se, exempli gratia, que os valores ‘segurança pública’, ‘moralidade pública’, ‘higiene pública’, ‘salubridade pública’, ou simplesmente ‘interesse público’, comportam, realmente, intelecções não necessariamente uniformes, pois, como as realidades para as quais apontam são suscetíveis de existir em graus e medidas variáveis, ensancham opiniões divergentes sobre o fato de haverem ou não chegado a se configurar.”
Não obstante a lei prever diversas situações possíveis de cumprimento da finalidade legal prevista, a doutrina costuma condicionar a atuação do administrador àquela que melhor se dispuser no caso concreto. Conforme citado diz-se que há diferença da liberdade abstrata concedida ao Administrador pela norma legal, e a liberdade concreta conferida pelas situações fáticas.
Neste sentido “[…] o plexo de circunstâncias fáticas vai compor balizas suplementares a discrição que esta traçada abstrativamente na norma (que podem, até mesmo, chegar ao ponto de suprimi-la) […]” (BANDEIRA DE MELLO, 2010, p.36). Entretanto caso a norma abstratamente conceda discricionariedade de escolha dentre diversas formas de prática do ato, mas, em contraposição, a realidade fática somente se coadunar com uma possibilidade de ato, a execução de qualquer outro, que não seja aquele adequado, será tida como arbitrária, merecendo o controle por parte do Poder Judiciário.
Além dessas hipóteses, a grande parte da doutrina pátria entende que há também a discricionariedade quando houver a manifestação dos chamados conceitos jurídicos indeterminados. (GASPARINI, 2005)
Tais conceitos exigem do administrador público o julgamento conforme sua interpretação acerca dos comandos legais e da situação no caso concreto a ser analisado, podendo ainda apresentar-se através de expressões cuja conceituação está incumbida outros ramos da ciência. Por isso,
“Teoricamente um conceito jurídico indeterminado possui uma zona de certeza positiva – a qual abrange todas as situações fáticas que, com certeza, se enquadram no conceito -, uma zona de certeza negativa – a qual abrange todas as situações fáticas que, com certeza, não se enquadram no conceito – e uma zona de indeterminação – na qual reside a discricionariedade.” (Alexandrino; PAULO, 2011, p. 422)
A discricionariedade excessiva desvirtua a finalidade que tal norma buscava ao ser criada, dessa forma, devem ter parâmetros para o controle da abrangência desses conceitos indeterminados. Nem sempre com a análise nos caso concreto tem-se a real delimitação da abrangência de tal conceito, fazendo com que o administrador tenha que se valer de outros instrumentos para a sua restrição.
Em análise, entende-se que a diversidade de soluções aos casos concretos não significa que o administrador detém uma liberdade irrestrita diante da deficiência da norma, mas, de modo diverso, tem-se que a grande variedade de opções que dispõe o Administrador para resolução do caso concreto serve para a adequação de uns ou outros casos (BANDEIRA DE MELLO, 2010).
Desta forma, como bem exposto por Alexandrino e Paulo (2011), é correta a afirmação de que mesmo nos atos que tenham fundamento no poder discricionário, há características vinculadas. Não obstante a discricionariedade conferida pelo comando legal, Bandeira de Mello (2010) ensina que tal discricionariedade deve sempre ser analisada no caso concreto, sendo a decisão do administrador vinculada a melhor solução possível no caso concreto.
Em consonância com esse entendimento a jurisprudencia tem entendido que a decisão administrativa deve se adequar aos valores fundamentais do sistema jurídico, conforme decisão:
“PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. DEFICIÊNCIA NA FUNDAMENTAÇÃO. SÚMULA 284/STF. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 211/STJ. ALÍNEA "C". NÃO-DEMONSTRAÇÃO DA DIVERGÊNCIA. […] 5. O acórdão recorrido encontra-se em sintonia com a tendência atual da doutrina e da jurisprudência, que reconhece a possibilidade de controle judicial da legalidade "ampla" dos atos administrativos. Como muito bem decidido pelo Tribunal, "em se tratando de direitos da terceira geração, envolvendo interesses difusos e coletivos, como ocorre com afetação negativa do meio ambiente, o controle deve ser da legalidade ampla", ou seja, se o ato administrativo (no caso o licenciamento ambiental) afronta o sistema jurídico, seus valores fundamentais e seus princípios basilares "não podem prevalecer". (STJ, REsp 938484 – MG. Relator: Min. HERMAN BENJAMIN)”
Em verdade quando a administração pratica atos reputados como vinculados busca sempre a melhor solução ao caso, desta forma não se poderia conceber que diante de atos com característica discricionária não procurasse de igual forma a solução de maior eficiência no caso. Com isso o brilhante autor dispõe:
“[…] em outras palavras, a lei só quer aquele específico ato que venha a calhar a fiveleta para o atendimento do interesse público. Tato faz que se trate de vinculação, quanto de discrição. O comando da norma sempre propõe isto. Se o comando da norma sempre propõe isto e se uma norma é uma imposição, o administrador está, então, nos casos de discricionariedade, perante o dever jurídico de práticas, não qualquer ato dentre os comportamentos pela regra, mas, única e exclusivamente aquele que atenda com absoluta perfeição à finalidade da lei.” (BANDEIRA DE MELLO, 2010, p.33)
Com este entendimento e com bases na proporcionalidade da medida adotada com o resultado querido pela norma, surge para o Poder Judiciário uma possibilidade de controle desses atos discricionários.
Cumpre destacar, ainda que apesar da haver uma discricionariedade normativa, ou seja, abstratamente tratada na norma, tal característica não é vista quando conduzida ao caso concreto, haja vista que o caso concreto delimita as hipóteses legalmente previstas.
Este entendimento já tem repercussão na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, conforme exposto no julgado:
“DIREITO ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL – DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS – AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC – ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO – TEORIA DA ASSERÇÃO – NECESSIDADE DE ANÁLISE DO CASO CONCRETO PARA AFERIR O GRAU DE DISCRICIONARIEDADE CONFERIDO AO ADMINISTRADOR PÚBLICO – POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. […] 4. A discricionariedade administrativa é um dever posto ao administrador para que, na multiplicidade das situações fáticas, seja encontrada, dentre as diversas soluções possíveis, a que melhor atenda à finalidade legal. 5. O grau de liberdade inicialmente conferido em abstrato pela norma pode afunilar-se diante do caso concreto, ou até mesmo desaparecer, de modo que o ato administrativo, que inicialmente demandaria um juízo discricionário, pode se reverter em ato cuja atuação do administrador esteja vinculada. Neste caso, a interferência do Poder Judiciário não resultará em ofensa ao princípio da separação dos Poderes, mas restauração da ordem jurídica. 6. Para se chegar ao mérito do ato administrativo, não basta a análise in abstrato da norma jurídica, é preciso o confronto desta com as situações fáticas para se aferir se a prática do ato enseja dúvida sobre qual a melhor decisão possível. É na dúvida que compete ao administrador, e somente a ele, escolher a melhor forma de agir. […]” (REsp 879188 – RS. Relator: Min. HUMBERTO MARTINS. Grifo meu)
Diante de tal entendimento é cediço salientar que os tribunais superiores têm entendido sobre a possibilidade de se estabelecer critérios para a limitação da discricionariedade, retirando a sua natureza jurídica essencial, qual seja a liberdade aplicação dos juízos de conveniência e oportunidade.
Nos dizeres do doutrinador Bandeira de Mello (2010, p. 41), “[…] em rigor da verdade, não existe discricionariedade, mas sempre vinculação, já que toda e qualquer hipótese só haveria real obediência à norma […]”. Ademais é de relevância ressaltar que tal retirada da discricionariedade do Administrador acontece quando comparado no caso concreto, mantendo-se, em tese, o julgamento quando a conveniência e oportunidade abstratamente trazida pela norma.
Enfim, não obstante haverem diversas formas de abstratamente estarem apresentadas as características discricionárias da norma, em real a lei delimita seu âmbito de atuação, ou seja, em concreto, a discricionariedade é limitada.
2.5. Teoria da solução ótima
Diante das diversas formas em que a discricionariedade pode ser concebida legalmente surgiram diversas ideias de como restringir, ou até mesmo suprimir, esta liberdade. Sob o argumento de não tornar a discricionariedade em arbitrariedade a doutrina criou diversas maneiras para limitar as opções dadas ao administrador.
A liberdade conferida pelo comando legal ao administrador, em abstrato, a priori, pode parecer ampla, mas quando subsumida ao caso concreto tem seus contornos estreitados, de tal forma, que pode chegar a não mais existir.
Consubstanciado nos princípios constitucionais da eficiência e moralidade, a administração pública tem o dever de sempre buscar a melhor solução de aplicação da norma, isto é, não basta ao administrador uma escolha boa, é necessário a escolha da melhor opção dentre as possíveis.
Segundo a De Carvalho (2008, p. 573),
“Assim Sendo, como haveria sempre um único comportamento ótimo para a Administração, jamais teria a autoridade administrativa uma margem de liberdade dentro da qual poderia escolher. A conduta admitida pelo Direito de regência seria uma só, identificável após mera atividade interpretativa.”
Neste contexto, como não há liberdade de escolha para o Administrador, não se pode falar em discricionariedade, podendo, então, o Poder Judiciário fazer o controle amplo, quase irrestrito.
Cumpre ressaltar que, em adotando tal posicionamento, estar-se-ia admitindo uma possibilidade de uma análise para validação dos atos administrativos pelo poder judiciário, haja vista que todos os atos poderiam ser objetos desse controle, podendo, em muitas vezes, haver substituição da vontade da administração pela vontade do julgador, caso ocorra a não adoção da escolha julgada como ótima.
Esta teoria não é utilizada em nosso ordenamento, pois ela representa uma violação ao princípio da separação dos poderes. Conforme Leciona De Carvalho (2008, p. 574),
“[…] é indispensável não reduzir a discricionariedade à vinculação, com livre e irrestrito controle jurisdicional. Consoante já se ressaltou, em alguns casos tem o administrador um espaço de mérito administrativo insindicável pelo judiciário. O respeito a este espaço é que evitará que o Direito Administrativo transite da intolerável ditadura do Executivo para outra intolerável ditatura: a da Toga. Não é um governo de juízes a solução adequada nem viável, até mesmo em face do sistema de freios e contrapesos delineado na Constituição. […]”
Deve-se ter em mente que não é razoável admitir, em todas as hipóteses de liberdade conferidas pela administração, que sempre haverá uma solução ótima. Por vezes, no caso concreto, podem ocorrer diversas soluções igualmente boas para aplicação do comando legal.
Tal julgamento deve ter como base os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, fundeando o julgamento, feito pelo administrador, das suas opções, e devendo ser explanado em sua motivação para, assim, legitimar suas escolhas.
Por fim, não obstante ser necessário o controle judicial dos atos administrativos, sejam eles discricionários ou vinculados, não parece razoável a completa extinção da liberdade legal conferida ao administrador, pois de tal forma teríamos uma violação expressa ao mandamento constitucional.
3. Separação dos poderes e o controle judicial dos atos administrativos
Historicamente a função administrativa era tida como função própria do Poder Executivo, ficando a cargo do legislativo o papel de inovação do ordenamento jurídico e do judiciário a fiscalização da aplicação das normas jurídicas.
Bandeira de Melo (2008) determina como marco de nascimento do direito administrativo à Revolução Francesa, contudo naquela época fora a priori concebido como sendo o estudo da jurisprudência do Conselho de Estado, órgão francês de jurisdição dentro do próprio Poder Executivo.
Neste período a concepção de separação dos poderes era tida em sua forma rígida, sendo baseada na ideia de tripartição dos poderes, onde a apreciação pelo Judiciário das lides administrativas configuraria uma afronta a este princípio (BANDEIRA Melo, 2008).
Atualmente, consagrado no art. 2 ° da Carta Magna, o princípio da separação dos poderes não tem a mesma feição de outrora, segundo a sua própria redação in verbis: “[…] Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.” (BRASIL, CONSTITUIÇÃO FEDERAL DO BRASIL DE 1988, 2011)
Neste contexto, têm-se as funções que outrora eram individualizadas para cada poder, atualmente, encontram-se intrínsecas a todos, ou seja, apesar de competir o poder executivo a função administrativa, cabe ao Legislativo e Judiciário a atuação administrativa de forma atípica. Essa atipicidade é essencial para a manutenção do Estado, haja vista que ao expandir tais competências para que os poderes constituídos exerçam de tal forma revela o chamado sistema de pesos e contrapesos.
“[…] A separação absoluta entre os Poderes não é só impossível – haja vista a unidade do Poder político e a tarefa comum a todos- mas também indesejada, de tal modo que distante de uma separação de Poderes, o que se tem, deveras, é uma verdadeira coordenação ou colaboração ou co-participação entre os Poderes em certas tarefas, onde um Poder participa, de forma limitada e secundária, da função de outro, que a conserva sua, ensejando um funcionamento harmônico ou uma colaboração recíproca, embora independente, na tarefa comum, tendo como objetivo o equilíbrio político, a limitação do Poder e, em consequência, a proteção da liberdade e a melhor realização do bem comum.” (CUNHA JR., 2010, p. 526)
Em igual sentido, tal sistema já havia sido idealizado por Montesquieu, influenciando a Constituição americana de 1787 consagrando “[…] um modelo constitucional que conciliava as exigências da separação dos poderes e as ideias concernentes a um controle mútuo (checks and balances) […]”. (Cunha Junior, 2008, p. 503).
A dinâmica atual de separação dos poderes permite um controle realizado no âmbito dos próprios Poderes constituídos, não obstante isso há uma autonomia entre estes que permitem ao Estado um funcionamento aprimorado.
É neste diapasão que o controle judicial dos atos administrativos torna-se possível, uma vez que harmoniza os objetivos do ordenamento jurídico vigente com os anseios democráticos.
3.1. Controle dos atos administrativos
Como premissa do Estado Democrático de Direito, a Administração Pública está sujeita ao regramento disposto no ordenamento jurídico, e, deste modo, submetendo-se a inúmeros tipos de controle.
A Administração Pública, regida pelo princípio da legalidade, expressa no texto constitucional, deve obrigatoriamente atuar dentro dos limites impostos pela norma, e quando sua atuação extrapola tais contornos surge, como garantia constitucional, a obrigatoriedade, interna ou externa, de assegurar os ditames legais.
Num primeiro momento o controle interno é realizado pela própria Administração no exercício de seu poder de autotutela, donde se ressalta a possibilidade de revogação e anulação de seus próprios atos. Nos ensinamentos de Alexandrino e Paulo (2011, p. 803),
“O controle administrativo é um controle de legalidade e de mérito. É sempre um controle interno, porque é realizado por órgãos integrantes do mesmo Poder que praticou o ato. Deriva do poder de autotutela que a administração pública tem sobre seus próprios atos e agentes, cuja expressão está sintetizada na Súmula 473 do STF […].”
Ademais, o controle interno também pode ser realizado pelos órgãos da Administração Pública destinados a esta função, ou mesmo, o controle realizado pelos superiores hierárquicos em face dos atos praticados por seus subordinados.
Cumpre salientar que a fiscalização realizada pela Administração Pública não necessita de provocação por parte de interessados, uma vez que, com base no princípio da legalidade, deve sempre estar pautada aos ditames legais.
Em outro plano, também é de fundamental importância a supervisão realizada pelos órgãos da Administração direta em face das entidades da Administração indireta, denominada no Decreto-lei n° 200/67 de supervisão ministerial. (DI PIETRO, 2006)
De igual relevância, o controle externo realizado sobre os atos da Administração, efetuado pelo Poder Legislativo, Tribunal de Contas ou pelo Poder Judiciário, é fundamental para o gerenciamento do ordenamento jurídico vigente.
Segundo Alexandrino e Paulo (2011, p.792),
“São exemplos de atos de controle externo: a) A sustação, pelo Congresso Nacional, de atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar (CF, art. 49, V); b) A anulação de um ato do Poder Executivo por decisão judicial; c) O julgamento anual, pelo Congresso Nacional, das contas prestadas pelo Presidente da República e a apreciação dos relatórios, por ele apresentados, sobre a execução dos planos de governo (CF, art. 49, IX); d) A auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União sobre despesas realizadas pelo Poder Executivo federal.”
A constituição Federal de 1988 também disponibilizou diversas formas de atuação da população no auxílio ao controle dos atos do Poder Público, consubstanciado no princípio da indisponibilidade do interesse público.
Diversas são as formas que dispõe a população, e não apenas os cidadãos, de intervirem nos atos da Administração, algumas de forma direta, ou indireta.
Nos ensinamentos de Alexandrino e Paulo (2011, p. 793),
“Como decorrência do princípio da indisponibilidade do interesse público, a Constituição contém diversos dispositivos que dão aos administrados a possibilidade – de diretamente ou por intermédio de órgãos com essa função institucional- verificarem a regularidade da atuação da administração pública e impedirem a prática de atos ilegítimos, lesivos ao individuo ou à coletividade, ou provocarem a reparação dos anos deles decorrentes.”
Exemplificando o pensamento do autor temos na constituição Federal em seu Art. 5°, inciso LXXIII, in verbis:
“Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio publico ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.”(BRASIL, CONSTITUIÇÃO FEDERAL DO BRASIL DE 1988, 2011, Grifo meu)
Em suma, diversas são as passagens do texto constitucional que garantem ao cidadão o poder de fiscalizar, e até mesmo, atuar em face aos atos do Poder público, para preservação do interesse público.
Por fim, de relevância destacar que o controle exercido pelo Poder Judiciário é o único que exige a provocação do interessado, decorrente do princípio da inércia do Judiciário, enquanto todos os outros controles a provocação não é requisito obrigatório, podendo ocorrer de ofício.
3.2 Limites ao controle realizado pelo judiciário nos atos discricionários
No controle do ato discricionário o Poder judiciário tem diferente atuação, haja vista que o objeto do controle é mais restrito, não podendo, em regra, adentrar em seu mérito.
Conforme já explicitado em capítulo específico o mérito administrativo pode se apresentar de diversas formas, e conforme entendimento de alguns autores, em verdade, não há uma discricionariedade nesses atos, senão uma vinculação quando no caso concreto.
Segundo o entendimento de Juarez Freitas (2009, p.24),
“Em conexão, pode-se conceituar a discricionariedade administrativa legítima como a competência administrativa (não mera faculdade) de avaliar e escolher, no plano concreto, as melhores soluções, mediante justificativas válidas, coerentes e consistentes de conveniência ou oportunidade (com razões juridicamente aceitáveis), respeitando os requisitos formais e substanciais da efetividade do direito fundamental a boa administração pública.”
Desta forma o controle moderno do ato discricionário não se limita apenas aos aspectos de legalidade, mas sim a correta observância de todos os princípios administrativos que regem o Estado Democrático de Direito.
Em igual teor,
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO – PRESSUPOSTO ESPECÍFICO DE RECORRIBILIDADE. […] Na dicção sempre oportuna de Celso Antônio Bandeira de Mello, mesmo nos atos discricionários não há margem para que a administração atue com excessos ou desvios ao decidir, competindo ao judiciário a glosa cabível (Discricionariedade e Controle judicial).” (STF, RE n°131661-6 – ES. Relator: Min. Marco Aurélio)
De igual importância temos o controle realizado pelo Judiciário quando da análise dos princípios que regem a administração pública, assim “[…] o ato administrativo precisa estar em sintonia direta com plexo de princípios constitucionais e não apenas com as regras. […]” (FREITAS, 2009, p.29)
Em consonância com os ensinamentos doutrinários e jurisprudenciais o princípio da eficiência tem um papel fundamental no balizamento da atuação administrativa, devendo esta sempre buscar o melhor resultado possível.
Em igual monta, os princípios da moralidade e razoabilidade têm papel essencial no controle dos atos administrativos, uma vez que tais atos por vezes se demonstram formalmente legais, mas eivados de imoralidades ou desproporcionalidades em sentido estrito.
Neste sentido decidiu o Superior Tribunal de Justiça,
“ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – OBRAS DE RECUPERAÇÃO EM PROL DO MEIO AMBIENTE – ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO.1. Na atualidade, a Administração pública está submetida ao império da lei, inclusive quanto à conveniência e oportunidade do ato administrativo. 2. Comprovado tecnicamente ser imprescindível, para o meio ambiente, a realização de obras de recuperação do solo, tem o Ministério Público legitimidade para exigi-la. 3. O Poder Judiciário não mais se limita a examinar os aspectos extrínsecos da administração, pois pode analisar, ainda, as razões de conveniência e oportunidade, uma vez que essas razões devem observar critérios de moralidade e razoabilidade. 4. Outorga de tutela específica para que a Administração destine do orçamento verba própria para cumpri-la. […]” (RE Nº 429.570 – GO. Relatora: Min. Eliana Calmon, Grifo meu)
Não obstante tal posicionamento doutrinário e jurisprudencial, restringindo o âmbito de controle judicial, quando na análise do mérito administrativo, baseado nos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, tem-se um controle verdadeiramente amplo dos atos.
Em consonância com essa afirmação tem-se,
“ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. JUIZ SUBSTITUTO DA MAGISTRATURA DO ESTADO DO CEARÁ. CONTROLE JUDICIAL DO ATO ADMINISTRATIVO. LIMITAÇÃO. OPORTUNIDADE E CONVENIÊNCIA. EXIGÊNCIA DO ENUNCIADO DA QUESTÃO NÃO VALORADA NO ESPELHO DE CORREÇÃO DA PROVA DE SENTENÇA PENAL. AUSÊNCIA DE RAZOABILIDADE. OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA CONFIANÇA E DA MORALIDADE. INCLUSÃO DE NOVO ITEM NO ESPELHO DE CORREÇÃO. REDISTRIBUIÇÃO DOS PONTOS. 1. É cediço que o controle judicial do ato administrativo deve se limitar ao exame de sua compatibilidade com as disposições legais e constitucionais que lhe são aplicáveis, sob pena de restar configurada invasão indevida do Poder Judiciário na Administração Pública, em flagrante ofensa ao princípio da separação dos Poderes. 2. Desborda do juízo de oportunidade e conveniência do ato administrativo, exercido privativamente pelo administrador público; a fixação de critérios de correção de prova de concurso público que se mostrem desarrazoados e desproporcionais, o que permite ao Poder Judiciário realizar o controle do ato, para adequá-lo aos princípios que norteiam a atividade administrativa, previstos no art. 37 da Carta Constitucional. 3. Mostra-se desarrazoado e abusivo a Administração exigir do candidato, em prova de concurso público, a apreciação de determinado tema para, posteriormente, sequer levá-lo em consideração para a atribuição da nota no momento da correção da prova. Tal proceder inquina o ato administrativo de irregularidade, pois atenta contra a confiança do candidato na administração, atuando sobre as expectativas legítimas das partes e a boa-fé objetiva, em flagrante ofensa ao princípio constitucional da moralidade administrativa.” (STJ, RMS 27566 CE. Relator: Min. Jorge Mussi. Grifo meu)
Por fim, é de relevância destacar o papel dos princípios administrativos no dever fundamental de balizamento da atuação administrativa, não mais tendo apenas um caráter norteador, mas, também, a função de conferir deveres e direitos ao Poder Público com força normativa própria.
Conclusão.
Com a nova doutrina do neoconstitucionalismo os princípios deixam de ser apenas comandos norteadores do ordenamento, sem força normativa, e passam a ser normas com caráter de vinculação obrigatória, não podendo o aplicador deixar de observá-las.
Esse essencial entendimento é o que corrobora o posicionamento da doutrina e jurisprudência pátria para embasar o controle judicial dos atos administrativos discricionários.
Ademais, ao seguir os ditames legais, o administrador, em tese, estará concretizando a vontade da sociedade, uma vez que as leis são criadas por representantes eleitos pelo povo, ou seja, ao cumprir os ditames do ordenamento jurídico estará o administrador concretizando os anseios da coletividade.
Consoante ao já exposto, temos que os atos administrativos apesar de doutrinariamente serem considerados como discricionários ou vinculados, em verdade não devem ser dessa forma entendidos.
A discricionariedade não é parte integrante do ato, mas sim apenas uma de suas características, conferidas abstratamente pela norma.
Tal característica pode se dar de diversas formas, sendo em qualquer delas uma discricionariedade relativa, uma vez que pode, a depender do caso, ser afastada. Neste contexto não cabe ao administrador realizar atos arbitrários e contrários aos ditames legais, sejam estes expressos ou implícitos no texto constitucional e infraconstitucional.
Desta forma, temos que no caso concreto haverá discricionariedade limitada, pois, com fulcro nos princípios administrativos e no dever da administração de sempre buscar o melhor resultado, haverá sempre escolhas que se demonstrarão mais adequadas a cada caso.
Inobstante tudo isso, as opções adequadas devem ser do administrador, não se mostrando razoável que entes de controle restrinja-as a apenas uma, sob pena de, ao fazer tal análise, haver a exclusão por completo da liberdade de escolha permitida pela norma.
A teoria da solução ótima não é aplicável ao nosso ordenamento jurídico, visto que a característica da discricionariedade é conferida pela própria lei, não podendo um controle da atividade administrativa restringi-la a tal ponto que a torne inviável.
Neste diapasão, ressalta-se que o controle realizado sobre a discricionariedade administrativa não pode ser restrito demais, legitimando arbitrariedades por parte do agente público, ou amplo demais, excluindo totalmente a vontade do administrador.
Cabe ao Administrador fazer essa escolha e motivá-la, buscando sempre a finalidade almejada pela norma. Finalidade que deve sempre se coadunar com os preceitos esperados pela sociedade.
A falta de motivação, ou mesmo deficiência de motivação, faz surgir a obrigação de controle, judicial ou administrativo, desses atos.
Tal controle judicial deve ser realizado tendo como base os princípios administrativos, especialmente o da eficiência, moralidade, legalidade e proporcionalidade.
Ao nosso entender, apesar da possibilidade de controle amplo por parte do judiciário, devido ao grande grau de abstração que os princípios têm, este deve ter limites, não podendo assim acontecer a ingerência de um Poder sobre o outro.
Deste modo não pode o poder judiciário ao analisar um ato administrativo substituir a vontade do administrador, decidindo os efeitos do ato ou mesmo substituindo o ato por outro.
Ao administrador também surge o dever de fiel cumprimento dos dispositivos legais, seja das normas-regras, seja das normas-princípios.
Por fim, o Controle Judicial deve ter como base os princípios constitucionais, expressos ou implícitos, dentro dos limites impostos por ela. Não obstante isso deve o Judiciário sempre agir com vistas a garantir a finalidade prevista na norma fundamental, anulando os atos administrativos que extrapolam os limites impostos, mas não podendo substituir o Administrador em sua função constitucionalmente prevista.
Informações Sobre o Autor
Marcelo Gonçalves Franco de Oliveira
Delegado de Polícia. Graduado em Direito pela Faculdade Maurício de Nassau. Pós-graduando em Direito Penal no Complexo Damásio de Jesus. Bacharel em Engenharia de Agrimensura