Resumo: Este artigo pretende explorar o debate metodológico contemporâneo na teoria do direito, por meio da análise das concepções de direito em Hart e em Dworkin, apontando algumas diferenças entre a teoria positivista de Hart e o pós-positivismo de Dworkin. Para tanto, a relação entre direito e moral será estudada na perspectiva dos dois autores, bem como suas opiniões divergentes em relação ao poder discricionário dos juízes.
Palavras-chave: Teoria do Direito; Hart e Dworkin; Direito e moral; Regras e Princípios, O poder discricionário.
Abstract: This article aims to explore the methodological debate in contemporary theory of law, through the analysis of conceptions of law in Hart and Dworkin, pointing out some differences between the positivist theory of Hart and Dworkin post-positivism. Therefore, the relationship between law and morality will be studied from the perspective of the two authors and their divergent views on the discretionary power of judges.
Keywords: Theory of Law; Hart & Dworkin; Law and moral; Rules and Principles; The discretionary power.
Sumário: Introdução; 1. O conceito de direito para Hart e Dworkin; 1.1 Direito em Hart; 1.2 Direito em Dworkin; 2. Direito e moral; 3. A discricionariedade na decisão judicial; Conclusão; Referências Bibliográficas.
Introdução
O debate contemporâneo em Teoria do Direito é notadamente metodológico. As divergências metodológicas estão no centro do empreendimento filosófico de compreensão da realidade, ou seja, da investigação de quais são os elementos que podem servir como parâmetro de avaliação da experiência jurídica e social.
Na parte final do século XX, com o desgaste do juspositivismo estrito, do tipo kelseniano, surgiram novas visões juspositivistas, hauridas de um caráter mais liberal. O próprio direito positivo, a depender de suas instituições e de suas diretrizes, passa a ser considerado como valioso a determinados valores sociais. Herbert Hart e Ronald Dworkin são exemplos de teóricos dessa nova fase, mesmo que discordem de algumas questões fundamentais. A filosofia analítica da linguagem se tornou o carro-chefe do pensamento juspositivista contemporâneo (MASCARO, 2013, p. 322).
Uma das principais chaves de compreensão do estágio atual deste debate no direito está na contraposição entre as ideias de Hart e Dworkin. O antagonismo é evidente entre os dois na história do pensamento jurídico, marcado pela maneira que cada um explora o giro linguístico na filosofia e na teoria do direito.
Hart estabelece os fundamentos do positivismo contemporâneo por meio de uma questão metodológica, oferecendo um novo paradigma científico para a compreensão do direito através do que se chamou de “virada hermenêutica” (BIX, 1999, p. 172).
Dworkin, por sua vez, pretende romper com o positivismo jurídico, inaugurando o pós-positivismo[1] e negando a viabilidade do empreendimento hartiano de uma descrição neutra do fenômeno jurídico.
Neste artigo, a concepção de Hart será analisada com base em O Conceito de Direito[2] e confrontada com a de Dworkin em Uma Questão de Princípio[3] e O Império do Direito[4].
1. O conceito de Direito para Hart e Dworkin
A primeira das divergências entre Hart e Dworkin surge na própria definição de direito. Neste primeiro momento, o fenômeno jurídico será analisado dentro da teoria de Hart, e em seguida, na perspectiva de Dworkin.
1.1 Direito em Hart
Hart tem por objetivo desenvolver uma teoria do direito que seja geral e descritiva.
“Geral no sentido de que não se vincula a nenhum sistema jurídico ou cultura jurídica específicos, mas busca fornecer uma descrição explicativa e elucidativa do direito como instituição social e política complexa, dotada de um aspecto regulatório. Descritiva no sentido de que é moralmente neutra e não tem fins de justificativa: não busca justificar, com base em fundamentos morais, ou recomendar formas e estruturas.”[5]
De acordo com a teoria hartiana, o direito pode ser analisado por duas perspectivas: a interna e a externa. Do ponto de vista interno são as asserções levadas a efeito pelas pessoas, no sentido de que estão submissas às regras, como membros do grupo social que as aceitam e as utilizam como padrões de conduta. Do ponto de vista externo são as afirmações de algum observador que não faz parte do corpo social disciplinado pelas regras.
“As afirmações feitas a partir do ponto de vista externo podem ser, elas próprias, de diversos tipos. O observador pode, sem aceitar ele próprio as normas, afirmar que o grupo as aceita e, assim, se referir do exterior à forma como o grupo se relaciona com elas a partir do ponto de vista interno. Mas, quaisquer que sejam as normas, podemos ocupar a posição de um observador que sequer se refere desta maneira ao ponto de vista interno do grupo. Tal observador se contenta em registrar as regularidades do comportamento observável nas quais consiste parcialmente a obediência às normas, aos desvios ou infrações das normas. […] Esse conhecimento pode não só revelar muita coisa sobre o grupo, mas poderia capacitar o observador a viver entre eles evitando as consequências desagradáveis que acometeriam alguém que tentasse fazê-lo sem a mesma compreensão”.[6]
Hart exemplifica as diferenças entre os dois pontos de vista comparando a atitude de motoristas diante de um semáforo: Os motoristas, em geral, conhecem, aceitam e agem de acordo com as regras de trânsito. Este seria o ponto de vista interno. Por outro lado, o ponto de vista externo seria explicado com a presença de um observador que não conhece as regras de trânsito. O ponto de vista externo pode se dar de duas maneiras: ponto de vista extremo externo, no qual o observador apenas registra a esfera do “ser”, ou seja, o comportamento dos motoristas, não compreendendo a esfera do “dever ser”, quer dizer, as próprias regras de trânsito. Há, ainda, o ponto de vista conhecido por externo moderado, que além da verificação da conduta, o observador adentra na sociedade para compreender o porquê dos motoristas pararem diante do sinal vermelho. Percebe-se, neste ponto, a relação da conduta (parar diante do sinal vermelho) com o entendimento da regra de trânsito.[7]
O direito, na teoria de Hart, é fundamentalmente a união das regras primárias com as regras secundárias. As regras primárias são aquelas responsáveis pela imposição das obrigações, dos deveres e dos direitos. São as regras que importam para o cidadão que convive dentro de uma sociedade controlada pelo direito. As regras secundárias, por sua vez, são as responsáveis por transformar esse mero conjunto de padrões em um verdadeiro sistema jurídico, para permitir que as regras primárias sejam dotadas de validade e autoridade jurídica.
“Assim, pode-se dizer que todas as normas secundárias se situam num nível diferente daquele das normas primárias, pois versam todas sobre essas normas; isto é, enquanto as normas primárias dizem respeito a atos que os indivíduos devem ou não devem praticar, todas as normas secundárias se referem às próprias normas primárias. Especificam como as normas primárias podem ser determinadas, introduzidas, eliminadas e alteradas de forma conclusiva, e como estabelecer conclusivamente o fato de terem sido transgredidas.”[8]
É importante considerar que as leis são aceitas pela sociedade e são reconhecidas como válidas a partir de uma autoridade como instituição.[9]
1.2 Direito em Dworkin
Por sua vez, Dworkin pretende romper com as bases do positivismo jurídico, inaugurando o chamado pós-positivismo. Em sua teoria, Dworkin nega a viabilidade do empreendimento hartiano de uma descrição neutra do fenômeno jurídico. Na compreensão dworkiana, a descrição positivista se equivoca ao pressupor a existência de convenções sociais como o único fator para o surgimento das regras sociais (PERRY, 2001). O direito, nesta concepção, se organizaria em torno das opções políticas feitas – identificar o direito aplicável ao caso concreto se tornaria uma questão histórica – que por serem de conhecimento geral dos aplicadores e técnicos do direito, não poderiam gerar divergências genuínas. Por este raciocínio, as divergências teóricas seriam apenas frutos da ausência de convenções sociais prévias, mal-entendidos, ignorância ou favorecimento de posicionamento pessoais em detrimento do verdadeiro direito (DWORKIN, 1990, p. 12).
A proposta dworkiana como um todo pode ser compreendida como um esforço de superação de duas tradições concorrentes, o positivismo jurídico (convencionalismo) e o realismo jurídico (pragmatismo)[10], através da afirmação da possibilidade de se chegar a uma resposta correta nos casos judiciais e, em contra posição, negando a existência de um espaço discricionário para tomadas de decisões judiciais.
De acordo com Dworkin, o direito não é uma ciência, mas uma prática interpretativa: o direito é o produto abstrato de uma ação humana do tipo social. Refletir sobre o direito é refletir hermeneuticamente e interpretativamente. O direito exige, por parte de seu aplicador, um exercício de interpretação e de fundamentação.
Para Dworkin, Hart ignora o fato de que o direito é composto tanto por regras como por princípios. O direito não é uma ciência, mas é um conceito interpretativo. A argumentação jurídica se encontra na melhor interpretação moral das práticas sociais. Dworkin ressalta que a interpretação é construtiva com o objetivo de atingir a melhor justificação da prática jurídica. As proposições de direito são verdadeiras se decorrem de princípios que estejam de acordo com a história institucional e que ofereçam a melhor justificação moral.
A teoria dworkiana busca consolidar um modelo de comunidade cujos membros aceitem ser governados pelos mesmos princípios. Os princípios são criados pela história e moralidade política da sociedade. São direitos fundamentais inerentes a todos. Para que isso seja possível, Dworkin aplica ao direito o conceito de integridade, que vai permitir, por meio da atividade judicativa, que os princípios se consolidem em um sistema ao longo do tempo.
2. Direito e moral
O propósito de Hart se autodeclara como moralmente neutro. Hart substitui a noção de direito como fato bruto por fato social, de modo que o direito possa ser observável e descrito sem qualquer carga de valor. Para Hart, a tarefa descritiva serve ao propósito de se alcançar uma melhor compreensão do direito, através da analítica da linguagem, que permite identificar as fontes sociais do direito.
Hart admite a relação entre direito e moral, mas rejeita uma conexão necessária entre seus conteúdos. Diz Hart:
“Embora haja várias e diferentes relações contingentes entre o direito e a moral, não há uma conexão conceitual necessária entre seus conteúdos; disposições moralmente iníquas podem ser válidas como normas ou princípios jurídicos. Um aspecto dessa forma de separação entre direito e moral é a possibilidade da existência de direitos e deveres jurídicos destituídos de qualquer justificativa ou força moral”.[11]
Dworkin, em oposição a Hart, afirma que o direito não poderá ser identificado somente pelo uso linguístico convencional, pois veicula valores sociais. Contrapondo-se à Hart, seria impossível adotar um método relevante de compreensão do fenômeno jurídico através de uma metodologia externa, ou moralmente neutra (PERRY, 2001, p. 353). Dworkin entende que deve haver, no mínimo, uma fundamentação moral aparente para que se afirme a existência de direitos e deveres jurídicos, considerando os direitos jurídicos como uma espécie de direitos morais. Segundo a teoria dworkiana, toda proposição jurídica que especifica o teor do direito envolve necessariamente um juízo moral.
Hart, depois de pouco mais de 30 anos da publicação de O Conceito de Direito, dedicou um pós-escrito para responder as principais críticas à sua teoria, inclusive as de Dworkin a respeito da relação entre direito e moral. Hart, já mais moderado, admite a aceitação da lei como provedora de orientação para a condita e padrões críticos, inclusive a convicção de que existem razões morais para obedecer às exigências da lei (HART, 2012, p. 314).
3. A discricionariedade na decisão judicial
Um dos conflitos mais contundentes entre a teoria de Hart e a de Dworkin diz respeito à discricionariedade do magistrado no momento da decisão.
Para Hart, os juízes devem ter o poder de criação do direito, para evitar ter de recorrer a outros métodos, como por exemplo, ao poder legislativo. Se as circunstâncias exigirem, não seria problemático permitir que o juiz exerça a função legislativa. Conforme Hart, em qualquer sistema jurídico haverá casos em que o direito não dirá qual decisão adotar, quando há uma lacuna na lei, ou em casos difíceis. Nessas condições o direito se apresente como parcialmente indeterminado e incompleto, se nessa situação couber ao juiz decidir, este deve se utilizar do poder discricionário, ou seja, o juiz deve “criar” direito para o caso ao invés de aplicar o direito preexistente, que é insuficiente.[12]
Dworkin rejeita a imagem do direito como parcialmente indeterminado e ou insuficiente, e passa a desenvolver uma uma metodologia da decisão. Nesta metodologia, o juiz (tratado metaforicamente como juiz Hércules)[13], antes de pensar na aplicabilidade da norma, deve se atentar para o conhecimento do caso concreto e só depois aplicar o direito cabível. A construção dos fatos se dá através do diálogo entre com as partes. Após conhecer o caso, o juiz deve buscar o enquadramento na norma superior (constituição), e, em seguida, recorrer à legislação infraconstitucional. O último procedimento é o enquadramento da decisão dentro da jurisprudência.
Dessa forma, Dworkin, ao contrário de Hart, defende que o poder discricionário dos juízes prejudica a imparcialidade, pois os juízes não são eleitos democraticamente, portanto, seu poder é antidemocrático e consequentemente injusto. Na visão de Dworkin, os princípios desempenham um papel fundamental no poder discricionário, o que não é evidenciado por Hart. Dworkin afirma que as regras e os princípios são dotados de um caráter de obrigatoriedade, ou seja, se uma regra ou princípio se aplicar a um caso, então esta regra ou princípio impõe uma obrigação ao juiz. [14]
Conslusão
Primeiramente, as discordâncias entre Hart e Dworkin dizem respeito à própria definição de direito enquanto sistema e teoria. Hart desenvolve sua teoria do direito analisando-o pelo aspecto geral e pelo aspecto descritivo. Dworkin compreende o direito enquanto prática interpretativa e também avaliativa, já que consiste na identificação dos princípios que melhor se adequam ao direito estabelecido e oferecem a melhor justificativa moral. Para Dworkin, os princípios assim identificados não são apenas partes de uma teoria do direito, mas também partes implícitas do próprio direito (HART, 2012, p. 311).
Em um segundo momento, o debate passa para o campo da relação entre o direito e a moral. Para Hart a moral confere apenas sentido ao direito, e de forma alguma condiciona a sua validade. Em outras palavras, uma norma que seja moralmente injusta não implica na sua invalidade. Isso significa que o direito não é justificado moralmente. Para Dworkin, o argumento jurídico é inteiramente moral, ou seja, o direito é justificado e identificado moralmente, pois existe uma inseparabilidade entre direito e moral, e isso implica na eventual exclusão de uma norma injusta do ordenamento jurídico.
Por fim, Hart e Dworkin discutem acerca do poder discricionário. Hart assevera que em casos mais complexos, o juiz deve criar uma nova regra, e isto equivale a buscar por uma solução externa ao direito. Dworkin, pelo contrário, critica a discricionariedade por desconhecer os princípios como fundamentais na adjudicação, e defende que nos casos difíceis o juiz deve decidir procurando por princípios dentro do ordenamento jurídico, ou seja, buscar por alternativas internas ao direito.
Informações Sobre o Autor
Vinicius Azevedo Coelho
Advogado graduado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e pós-graduando em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC Minas