Resumo: O presente trabalho monográfico visa abordar o precedente judicial como norma e fonte do direito no Brasil à luz do novo CPC, tomando por referencial o Projeto de Lei n.166/2010 em tramite na Câmara dos Deputados. Inicialmente, será analisada a figura do precedente no direito pátrio, a partir de noções fundamentais como conceito, ratio decidendi (ou holding) e obiter dictum (ou dictum), analisando a Civil Law e a Common Law, bem como a importância do estudo do precedente judicial. Ato contínuo, explicará sobre a dinâmica do precedente, apresentando conceito, semelhanças e diferenças entre os institutos da súmula, jurisprudência e precedente, além de apresentar e elucidar técnica de redação de enunciado sumulado; assim como as técnicas de confronto, interpretação e aplicação do precedente: distinguishing e técnicas de superação do precedente: overruling e overriding. Por fim, discorrerá sobre as modificações propostas pelo Projeto de Lei n.166/2010 com apuração dos possíveis efeitos dessa nova disposição em face da legislação vigente.[1]
Palavras chaves: Direito Comparado. Sistemas jurídicos processuais. Teoria dos precedentes judiciais. Técnicas de superação e confronto dos precedentes. Novo Código de Processo Civil.
Abstract: This monograph aims at boarding judicial precedent as the norm and source of law in Brazil under the new Civil Procedure Code, taking as reference Bill n.º 166/2010, currently in progress at the Chamber of Deputies. Firstly, it will be discussed the figure of judicial precedent in Brazilian Law, based on fundamental notions like concept, ratio decidendi (or holding) and obiter dictum (or dictum), through a comparison between Civil Law and Common Law as well as the importance of judicial precedent study. In order to support this study, it will explain the dynamics of precedent, presenting concept, similarities and differences between the institutes of precedent, case law and precedent, besides introduce and clarify writing techniques of case law, as well as the techniques of confrontation, interpretation and application of the preceding: distinguishing and techniques to overcome the precedent: overriding and overruling. Finally, it will discourse about the changes proposed by Bill n.166/2010 and the possible effects of this new provision in the face of current legislation.
Keywords: Comparative Law. Procedural legal systems. Theory of judicial precedent. Techniques for precedent overcoming and confrontation. New Civil Procedural Code.
Sumário: Introdução. 1. A figura do precedente no direito pátrio. 1.1 Noções fundamentais: conceito, ratio decidendi (ou holding) e obiter dictum (ou dictum). 1.2 Civil Law e Common Law. 1.3 A importância do estudo do precedente judicial. 2. A dinâmica do precedente. 2.1 Súmula x jurisprudência x precedente. 2.2 Técnica de redação de enunciado sumulado. 2.3 Técnicas de confronto, interpretação e aplicação do precedente: distinguishing. 2.4 Técnicas de superação do precedente: overruling e overriding. 3. O precedente judicial como norma e fonte do direito no Brasil. 3.1 Precedente como ato-fato jurídico. 3.2 Princípios constitucionais norteadores na aplicação do precedente judicial. 3.2.1 Princípio da igualdade. 3.2.2 Princípio do contraditório. 3.2.3 Princípio da celeridade. 3.2.4 Princípio da economia processual. 3.2.5 Princípio da segurança jurídica. 3.2.6 Princípio da duração razoável do processo. 3.2.7 Princípio da motivação das decisões judiciais. 3.3 Efeitos do precedente. 3.4 Súmula vinculante. 3.5 Distinção entre a eficácia do precedente, coisa julgada e eficácia da intervenção. 3.6 Alteração do precedente e eficácia retroativa. 3.7 Avaliação crítica da pretendida inovação a ser introduzida pelo art.882 do Projeto Novo Código Processo Civil. Considerações Finais. Referências.
INTRODUÇÃO
O direito processual civil brasileiro sempre adotou o sistema jurídico da Civil Law, segundo o qual, a legislação é a fonte primária do direito. Contudo, diante das transformações que passa o ordenamento jurídico nacional, se tornou necessária a criação de mecanismos aptos a modificar a legislação para conferir celeridade e efetividade da justiça.
A motivação da pesquisa sobre o tema a ser desenvolvido neste trabalho provém da prática laboral, na qual se observa a supervalorização procedimental por vezes limita a atuação do magistrado e impede a solução da lide, olvidando as influências públicas que emergem da sociedade civil, agente ativo o Estado democrático de direito.
O projeto que no Senado Federal é denominado de projeto de lei n.166/2010, e na Câmara dos Deputados trata-se do Projeto de Lei n.8046/2010, revela a inquietação dos legisladores com a unidade e harmonia da jurisprudência é objeto de destaque. Logo, a utilização do precedente judicial como norma e fonte do direito no Brasil visa garantir efetividade dos direitos nele insertos.
No que concerne a sua relevância, decorre da proximidade de aprovação do novo Código de Processo Civil, além da necessidade de se encontrar mecanismos que reduzam a judicialização das demandas, promover a celeridade no julgamento daquelas já ajuizadas e conferir maior margem de segurança na tomada de decisões ao se admitir o precedente judicial como fonte formal do direito.
Os objetivos do presente estudo são analisar a teoria dos precedentes judiciais no sistema processual brasileiro vigente, bem como a possibilidade de utilização dos precedentes judiciais como norma e fonte do direito no Brasil, além de averiguar eventual incompatibilidade entre o novo instituto (precedente como fonte do direito) e a já existente figura da súmula à luz da pretendida inovação a ser introduzida pelo art.882 do Projeto de Lei n.166/2010 que dispõe sobre o Novo Código de Processo Civil.
Quanto à metodologia utilizada, o trabalho foi elaborado através de pesquisa qualitativa e exploratória, bibliográfica, descritiva e documental na área do Direito Processual Civil e Direito Constitucional, sendo que o método utilizado na fase da investigação foi o dedutivo, informando que foram consultados livros, revistas, artigos publicados, teses, dissertações, publicações disponibilizadas em sítios eletrônicos, além de jurisprudências colacionadas extraídas dos Tribunais Superiores.
O primeiro capítulo abordará a figura do precedente no direito pátrio, apresentando noções fundamentais como, conceito, ratio decidendi (ou holding) e obiter dictum (ou dictum). Posteriormente, será traçado breve histórico entre a Civil Law e Common Law, estabelecendo uma aproximação do sistema jurídico brasileiro ao da Common Law. Por fim, será analisada a importância do estudo do precedente judicial no atual cenário jurídico brasileiro.
O segundo capítulo trata a dinâmica do precedente, apresentando a definição de súmula, jurisprudência e precedente, especialmente quanto as suas semelhanças e diferenças.
Do mesmo modo discorrerá sobre a técnica de redação de enunciado sumulado, bem como das técnicas de confronto, interpretação e aplicação do precedente: distinguishing além das técnicas de superação do precedente: overruling e overriding.
Na sequência, o terceiro capítulo apresenta um estudo sobre o precedente judicial como norma e fonte do direito no Brasil, explicando o uso do precedente judicial como ato-fato jurídico, a partir da teoria dos fatos, atos e negócios jurídicos, previstas no livro III do Código Civil de 2002.
Posteriormente, estudará os princípios constitucionais norteadores na aplicação do precedente judicial, destacando os princípios da igualdade, da celeridade, da economia processual, da segurança jurídica e da duração razoável do processo.
Por conseguinte, serão analisados os efeitos dos precedentes judiciais no ordenamento jurídico vigente, bem como sua utilização, incluindo a opinião de alguns doutrinadores de magistrados sobre o tema.
Todavia, para que se possa estudar a possibilidade de utilização do precedente judicial como norma e fonte do direito, torna-se imprescindível o estudo do instituto da sumula vinculante, sua inserção no ordenamento jurídico brasileiro, sua regulamentação por intermédio da Lei Federal n.11.417/06, as hipóteses de revisão ou cancelamento da sumula vinculante, características, legitimados e procedimento.
Nada obstante, será feita uma sucinta distinção entre a eficácia do precedente, coisa julgada e eficácia da intervenção, além dos mecanismos de alteração do precedente e as hipóteses em que lhe será atribuída eficácia retroativa.
Ao final, será feita uma avaliação crítica da pretendida inovação a ser introduzida pelo artigo 882 do projeto novo Código Processo Civil, a partir da lição de alguns doutrinadores.
1 A FIGURA DO PRECEDENTE NO DIREITO PÁTRIO
A figura do precedente no direito pátrio surge com o término da segunda grande guerra mundial, porquanto até esta época predominava no Brasil uma visão positivista das fontes do Direito, segundo a qual a lei era a principal diretiva, competindo ao julgador aplicá-la ao caso concreto exclusivamente de forma dogmática e sistemática.
Entretanto, findo o período acima referido, os juristas brasileiros passaram a adotar um novo preceito no que tange à aplicação da lei, qual seja, a doutrina pós-positivista fundada em valores supra legais, segundo a qual se tornou possível a aplicação da lei conforme o caso concreto, sendo facultado ao juiz a discricionariedade judicial na aplicação da lei.
A partir dessa nova perspectiva, os julgados dos tribunais passaram a ser valorizados como importantes elementos na formação do convencimento dos juízes na analise do caso concreto, razão pela qual o Código de Processo Civil de 1939 foi alterado na década de 1950 para introduzir a modificação versando sobre a “uniformização de jurisprudência”.
Na década de 1960, o STF passou a empregar aludida técnica a partir da edição de súmulas, isto é, breves pronunciamentos formais acerca de determinado tema frequentemente levado a julgamento naquela Corte.
Posteriormente, com a edição do Código de Processo Civil de 1973, inseriu-se o Capítulo I, do Título IX (arts.476 a 479 do CPC), que aborda a Uniformização da Jurisprudência, como instrumento de padronização horizontal com vistas a criar um entendimento no julgamento no mesmo órgão jurisdicional colegiado.
Com o advento da Constituição da República de 1988, a proposta de estandardização horizontal das decisões tornou-se mais resistente, inclusive com a inserção de princípios constitucionais, como por exemplo, da igualdade formal (art.5º, caput) e o da justificação das decisões judiciais (art.93, IX), os quais foram imprescindíveis para estabelecer a coerência e continuidade na atividade judicante.
Nesse contexto, merece destaque a lição do Professor Ricardo Marcelo Fonseca sobre o tema:
“Essa mudança histórica de rumos obviamente afeta profundamente o sistema das fontes formais. Na medida em que a lei perde sua aura de diretriz soberana e absoluta e deve ser confrontada em todos os momentos com a axiologia constitucional, o papel da jurisprudência – e sobretudo das Cortes Constitucionais – ganha um novo relevo. A última palavra sobre a validade da lei diante da Constituição ocorrerá nos tribunais, e não mais nos Parlamentos.”[2]
Nada obstante, desde o início os operadores do direito encontram problemas em aplicar a teoria dos precedentes judiciais, uma vez que é necessário destacar a ratio decidendi do obter dicta, o que somente é possível por intermédio de uma leitura cautelosa e integral de tudo que induziu o julgador a decidir desta ou daquela forma, razão pela qual se passa a analisar cada uma das informações separadamente.
1.1 Noções fundamentais: conceito, ratio decidendi (ou holding) e obiter dictum (ou dictum)
Precedente é o “procedimento ou deliberação anterior que serve de critério ou pretexto para práticas posteriores semelhantes”, de acordo com o Glossário Vade Mecum.[3]
Ao abordar o tema, Luiz Guilherme Marinoni conceitua precedente como “a primeira decisão que elabora a tese jurídica ou é a decisão que definitivamente a delineia deixando-a cristalina” [4].
Da simples leitura da aludida conceituação, extrai-se que nem toda decisão é precedente judicial, mas que todo precedente judicial deve cumprir algumas características, quais sejam: o conteúdo jurídico, a relevância e a antecedência, de modo a tornar-se um instrumento judicial apto a produzir efeitos em um ordenamento jurídico, razão pela qual se passa a analisar cada um desses atributos separadamente.
Ao se analisar o conteúdo jurídico, deve-se observar se a questão levada a julgamento funda-se em uma matéria de direito, na qual os fatos apenas estabelecem os limites da relação material entre as partes envolvidas.[5]
Quanto à relevância, imprescindível ponderar a pertinência da decisão sob análise como condição de arquétipo a título de referência para magistrados e jurisdicionados na formação de convencimento para casos análogos.
No que concerne à antecedência, trata-se da decisão precursora acerca de determinado tema, ainda não pacificado na jurisprudência.
Partindo da premissa que o precedente é uma norma abstrata que ordinariamente é confundida com as normas que dele decorrem, os processualistas Caio Márcio Gutterres Taranto[6] e José Rogério Cruz Tucci[7] defendem que o precedente judicial é formado por dois elementos: a ratio decidendi (ou holding)[8] e o obiter dictum.
A ratio decidendi reflete a motivação da decisão, quer dizer, remete à “questão nuclear do julgado”[9], ou seja, à tese jurídica eleita no julgamento do caso concreto.
Neil MacCormick sustenta que o emprego o termo ratio refere-se às “afirmações de proposição do direito feitas por juízes em seu parecer de justificação em casos registrados” [10].
José Rogério Cruz Tucci ensina que a ratio decidendi é constituída pela indicação dos fatos relevantes da causa (statement of material facts), do raciocínio lógico-jurídico da decisão (legal reasoning) e do juízo decisório (judgement). [11]
Ressalte-se que, por ocasião do julgamento do processo, o magistrado deve subsumir o fato à norma, culminando com a criação de duas normas: a primeira de caráter geral, oriunda da hermenêutica jurídica em conformidade ao Direito positivo; enquanto a segunda possui caráter individual, porquanto a decisão deve estar em consonância com ordenamento jurídico para o caso concreto levado a julgamento.
Para exemplificar a questão, o processualista Fredie Didier Jr. menciona o seguinte caso:
“O art. 1.102-A do CPC permite o ajuizamento de ação monitória a quem disponha de “prova escrita” que não tenha eficácia de título executivo. “Prova escrita” é termo vago. O STJ decidiu que “cheque prescrito” (n. 299 da súmula do STJ) e “contrato de abertura de conta-corrente acompanhado de extrato bancário” (n. 247 da súmula do STJ) são exemplos de prova escrita. A partir de casos concretos, criou “duas normas gerais” à luz do Direito positivo, que podem ser aplicadas em diversas outras situações, tanto que se transformaram em enunciado da súmula daquele Tribunal Superior. Note que a formulação desses enunciados sumulados não possui qualquer conceito vago, não dando margem a muitas dúvidas quanto à sua incidência.”[12]
Segundo Luiz Guilherme Marinoni, “a razão de decidir, numa primeira perspectiva, é a tese jurídica ou a interpretação da norma consagrada na decisão. De modo que a razão de decidir certamente não se confunde com a fundamentação, mas nela se encontra”.[13]
Destarte, o espírito do precedente decorre da aplicação da norma geral construída pelo órgão jurisdicional, a partir de um caso concreto (indutivamente) e que pode servir como diretriz para demandas semelhantes.[14]
O obiter dictum, também conhecido como dictum (obiter dicta, no plural), diz respeito às questões suplementares da lide, isto é, aquelas que não interferem no deslinde, razão pela qual não possuem força vinculante.
Caio Márcio Gutterres Taranto explica o obiter dictum como “passagens usadas para que o discurso se refira sobre um dado ponto do direito”[15]. Entretanto, o obiter dictum, não pode ser tido como despiciendo, já que pode indicar as diretrizes vindouras de determinado órgão julgado acerca de determinado tema.
À guisa de exemplificação cite-se o recurso de embargos infringentes, no qual o voto vencido em um órgão colegiado é obiter dictum, uma vez que seus fundamentos poderão ser utilizados para uma tentativa futura de superação do precedente.
Ao se comparar a força vinculativa da coisa julgada e dos precedentes judiciais, deve-se destacar que na primeira as partes estão vinculadas a decisão proferida no limite do objeto em litígio; enquanto na segunda o julgador não está vinculado a decisão tomada como precedente, mas pode ser induzido, dependendo do caso concreto.
Nas lições do jurista Luiz Guilherme Marinoni, trata-se de “norma jurídica criada pelo magistrado, à luz do caso concreto, a partir da conformação da hipótese legal de incidência às normas constitucionais”.[16]
Portanto, “só se pode considerar como ratio decidendi a opção hermenêutica que, a despeito de ser feita para um caso concreto, tenha aptidão para ser universalizada”.[17]
Nesse contexto, algumas questões merecem destaque, como bem observou Marcelo Souza ao estudar o assunto:
“(i) se uma decisão traz mais de um motivo como fundamento de sua decisão (mais de uma ratio decidendi), tem-se entendido que todas as rationes obrigam, “não podendo o tribunal, em caso posterior, escolher simplesmente uma dentre elas como obrigatória e relegar a(s) outra(s) à qualidade de dictum”; (ii) num julgamento proferido por órgão colegiado, se, a despeito de chegar a um mesmo resultado, os membros do colegiado o fazem por razões diversas, tem-se entendido que falta ratio decidendi discernível “e, portanto, está a corte do caso posterior livre para decidir com base em outro parâmetro”; (iii) por fim, se for difícil identificar a ratio decidendi de uma decisão, seja porque a sua fundamentação é insuficiente, seja porque não há uma tese jurídica bem delineada, entende-se que ela deve ser considerada desprovida de ratio “e, por conseguinte, de autoridade obrigatória”.[18]
Por fim, exceto nas decisões que julgam o incidente de uniformização de jurisprudência (arts.476-479 do CPC), o incidente de decretação de inconstitucionalidade (arts. 480-482 do CPC) ou o julgamento por amostragem de recursos extraordinários ou especiais repetitivos (arts. 543-B e 543-C, CPC), o órgão judicial não precisa indicar explicitamente a ratio decidendi, competindo aos julgadores posteriormente o exame do precedente e sua aplicação ao caso concreto.[19]
1.2 Civil Law e Common Law
Os principais sistemas jurídicos da atualidade são o Direito Romano-Germânico (Civil Law ou Continental Law), a Common Law, o Direito Consuetudinário, o Direito Muçulmano, e o Sistema Jurídico Misto (Common Law incorporada à Civil Law), merecendo destaque no presente estudo a Civil Law e Common Law.[20]
A diferença central entre a Civil Law e Common Law reside na importância que a jurisprudência ocupa em cada um deles, bem como sua eficácia e forma de instrumentalização, razão pela qual se passa a uma breve análise histórica de cada um deles para melhor compreensão.
A Common Law tem sua origem em 1066, ano em que o direito britânico tornou-se um poder único em todo o Estado inglês, a partir da instauração de um poder administrativo central intenso, não sendo mais definido por cada tribo (mediante as County Courts).[21]
Registre-se que desde a Idade Antiga já se observava que os costumes poderiam ser utilizados como instrumentos aptos a guiar as decisões dos tribunais, porém, somente a partir dos séculos XII e XIII, e, especialmente, no reinado de Henrique II, viu-se a implantação do chamado stare decisis, que é a obediência aos precedentes na forma que conhecemos atualmente.[22]
Por conseguinte, observou-se uma mudança de paradigmas no que tange a jurisprudência, uma vez que o formalismo processual empregado na condução dos processos conflitava com a proposta de um novo sistema jurídico, motivo pelo qual houve uma evolução ininterrupta e gradual com vistas a combater as normas que guiavam a produção jurisprudencial naquele período.
Entretanto, a ausência de precedentes e a lentidão processual, além de outros obstáculos, tornariam ineficazes as sugestões apresentadas pelo novo regime de modo que, no século XV, surgiu um sistema adversário a Common Law, conhecido por equity, que tinha como principal objetivo sanar eventuais equívocos presentes nos casos submetidos a julgamento perante os Tribunais Reais Ingleses.[23]
Na equity, excepcionalmente, era facultado às partes recorrerem ao soberano quando a decisão proferida pelos Tribunais lhe fosse desfavorável aos seus interesses, sendo a demanda submetida a novo julgamento junto ao confessor do Rei, denominado Chanceler (Counsellor), sendo suas decisões, em regra, acatadas pelas Cortes de Common Law.
Todavia a excepcionalidade tornou-se regra, criando uma jurisdição paralela, ocasião em que se selou um pacto entre os Tribunais da Common Law e a jurisdição do Chanceler durante o período de coexistência dualista entre equity e Common Law, de modo a que as duas jurisdições pudessem amparar-se mutuamente, nos seus julgados.[24]
Importante ressaltar que o surgimento da equity coincide com o Estado Absolutista que tem por principal característica a concentração dos três poderes (Legislativo, Judiciário e Executivo) nas mãos do governante, gerando um incômodo entre o rei e o parlamento, porquanto a Câmara dos Comuns atuava na advocacia dos ideais anti-absolutistas no parlamento comprometendo a autoridade real.[25]
No século XVII, a Revolução Gloriosa pôs fim à interferência estatal promovendo a reformulação da organização judiciária inglesa, por meio dos Judicature Acts no século XIX, que confirmou a ruptura entre os tribunais da Common Law e da equity, possibilitando que ambos pudessem aplicar as regras de uma ou de outra, proporcionando a modernização da Common Law.
Atualmente, a Common Law, é reconhecida nos países colonizados pela Coroa britânica, assim como nos Estados Unidos (exceto no Estado da Lousiana, que é partidário da Civil Law), na Austrália, no Canadá (salvo Quebec) e na Índia, dentre outros.[26]
De outro giro, a Civil Law remonta a época do império romano que construiu o arcabouço do que seria o sistema jurídico codificado na forma que conhecemos, já que tem procedências no direito continental europeu, essencialmente como ramo derivado do direito romano, balizado pela codificação nas doutrinas alemã e francesa do século XIX.
Para melhor compreensão do tema, merece destaque a lição de Andréia Costa Vieira que explica o termo Civil Law:
“[…] o termo Civil Law refere-se ao sistema legal adotado pelos países da Europa Continental (com exceção dos países escandinavos) e por, praticamente, todos os outros países que sofreram um processo de colonização, ou alguma outra grande influência deles – como os países da América Latina. O que todos esses países têm em comum é a influência do Direito Romano, na elaboração de seus códigos, constituições e leis esparsas. É claro que cada qual recebeu grande influência também do direito local, mas é sabido que, em grande parte desses países, principalmente os que são ex-colônias, o direito local cedeu passagem, quase que integralmente, aos princípios do Direito Romano. E, por isso, a expressão Civil Law, usada nos países de língua inglesa, refere-se ao sistema legal que tem origem ou raízes no Direito da Roma antiga e que, desde então, tem-se desenvolvido e se formado nas universidades e sistemas judiciários da Europa Continental, desde os tempos medievais; portanto, também denominado sistema Romano-Germânico.” [27]
Da simples leitura da conceituação, observa-se que a jurisprudência e os costumes ocupam papel secundário como fonte do direito na cultura jurídica romano-germânico, conforme pontua o ilustre jurista Miguel Reale ao analisar a questão:
“[…] caracteriza-se pelo primado do processo legislativo, com atribuição de valor secundário às demais fontes do direito. A tradição latina ou continental (Civil Law) acentuou-se especialmente após a revolução francesa, quando a lei passou a ser considerada a única expressão autêntica da nação, da vontade geral, tal como verificamos na obra de Jean-Jacques Rousseau, Du Contrat Social”. [28]
O sistema da Civil Law, hoje, é empregado nos países de tradição romano germânica, podendo-se citar a Alemanha, o Brasil, a Espanha, a França, a Itália e Portugal.
O direito processual civil brasileiro sempre adotou o sistema jurídico da Civil Law, segundo o qual, a legislação é a fonte primária do direito.
A Civil Law foi instituída com a chegada da família real portuguesa ao Brasil, tendo a legislação pontifícia (Bula 1506 do Papa Júlio II) ratificado o Tratado de Tordesilhas, que conferia ao Estado Português o direito de legislar sobre o Brasil. Posteriormente, em 1514, o Papa Leão X corroborou a legislação de 1506, tendo o Papa Júlio III feito o mesmo em 1551.[29]
Posteriormente, em 1534 são criadas as capitanias hereditárias com vistas a possibilitar orientação uniforme na análise de casos que vinham surgindo; em 1549 as normas jurídicas de Portugal tinham plena vigência no Brasil, mas também prevalecia para a Colônia um direito especial (regimentos, cartas régias, cartas de lei, alvarás etc.); no período de 1580 a 1640 o Brasil foi dominado pela Espanha, razão pela qual neste período houve leis comerciais, escravos, índios e minas; em 1808 foi editada a Carta Régia e em 1822 é proclamada a Independência da República, ocasião em que o Brasil passa a ter sua própria estrutura jurídica.[30]
Em seguida, em 1823, foi convocada a Assembléia Constituinte para preparar a primeira constituição brasileira, outorgada em 1824 por Dom Pedro I, que detinha mais poderes que o Executivo, Legislativo e Judiciário, já que o imperador era responsável pela nomeação dos presidentes das províncias, bem como pela codificação de leis ordinárias dentro de um código civil e um código criminal e, posteriormente, um código comercial, além de seus respectivos processos.[31]
A segunda constituição foi promulgada em 1891, e instituiu o presidencialismo, a liberdade partidária, o habeas corpus e o princípio da independência dos poderes legislativo, executivo e judiciário; entretanto, o voto ainda permanecia só para alguns.[32]
A terceira é de 1934 conferiu mais poder ao governo federal e permitiu o voto para as mulheres. A quarta constituição foi outorgada em 1937, por Getúlio Vargas, e institucionalizou o regime ditatorial, com caráter absolutista, instituiu a pena de morte, eliminou a liberdade partidária além de estabelecer eleição indireta para Presidente da República, devendo ser destacada entre outras ações, a reforma do Código Penal (1940).[33]
A quinta constituição é a de 1946, onde foram restabelecidos os direitos individuais, porem em 1964 o Brasil foi submetido a um período de ditatura sob o comando do general Costa e Silva, sendo os direitos individuais novamente suprimidos.[34]
A constituição de 1969 possui como principal característica a outorga de poder aos militares e ao Presidente, enquanto a Carta Cidadã, de 1988, restaura os direitos e liberdades dos cidadãos. [35]
Assim, observa-se que, historicamente, as Constituições pátrias enquadram-se na família da Civil Law.
A atual, inclusive, possui dispositivos que permitem a edição de leis infraconstitucionais para regulamentar matérias não constitucionais.
Nesse sentido, deve-se ressaltar que desde a proclamação da República, o sistema jurídico brasileiro foi submetido a mudanças, especialmente em virtude da influência do sistema norte-americano (Common Law), que se baseia essencialmente na análise de precedentes judiciais para se extrair uma regra de direito, mais precisamente no que diz respeito ao controle de constitucionalidade.
A partir desse contexto, percebe-se que a aproximação do sistema jurídico brasileiro ao da Common Law decorre da necessidade decriação de mecanismos aptos a modificar a legislação para conferir celeridade e efetividade da justiça em virtude da crescente judicialização no Brasil.
Destarte, concluída essa sucinta exposição acerca da Civil Law e Common Law, passa-se à análise da importância do estudo do precedente judicial no ordenamento jurídico vigente.
1.3 A importância do estudo do precedente judicial
Segundo informações prestadas pelo Conselho Nacional de Justiça, a judicialização no Brasil pode ter atingido seu limite, tornando-se imperiosa a criação de mecanismos que visem a redução quantitativa das demandas judiciais.[36]
Nessa senda, embora o Brasil adote o sistema da Civil Law, que tem por fonte primária a lei, não se pode olvidar a necessidade criação de mecanismos que reduzam a judicialização das demandas, promover a celeridade no julgamento daquelas já ajuizadas e conferir maior margem de segurança na tomada de decisões ao se admitir o precedente judicial como fonte formal do direito.
À guisa de exemplificação, cite-se o Código de Processo Civil de 1939 que, em seu artigo 861, trazia disposição expressa de que o Tribunal poderia promover o pronunciamento prévio sobre a interpretação de qualquer norma jurídica.
Além disso, o Anteprojeto do Código de Processo Civil, de autoria de Alfredo Buzaid (1964), pretendia restabelecer os antigos assentos que vigoravam anteriormente (art. 519 e item 29 da exposição de motivos), com o que as decisões judiciais teriam então efeito vinculativo.[37]
Igualmente, a Constituição de 1946 apresentou projetos de implantação do referido sistema de precedentes vinculantes.
No que se refere ao ordenamento constitucional vigente, cumpre destacar a edição da Emenda Constitucional n.45 de 2004, que dentre outras alterações, destacou a criação das súmulas vinculantes, previstas no art.103-A da Carta de 1988 e regulada pela Lei n. 11.417/2006, que elevaram os precedentes judicial à categoria de fonte formal do direito processual civil brasileiro.
Ao abordar o assunto, Luiz Guilherme Marinoni explica como o sistema jurídico brasileiro pode se aproximar da Common Law:
“[…] Não há qualquer empenho em ressaltar que o juiz, no Estado constitucional, deixou de ser mero servo do legislativo. A dificuldade em ver o papel do juiz sob o neoconstitucionalismo impede que se perceba que a tarefa do juiz do civil law, na atualidade, está muito próxima da exercida pelo juiz do common law. É exatamente a cegueira para a aproximação destes juízes que não permite enxergar a relevância de um sistema de precedentes no civil law.”[38]
Some-se as propostas já apresentadas o art.38 da Lei n.8.038/90, que admite ao Relator, negar seguimento a recurso que contrarie, nas questões de direito, súmula do respectivo Tribunal, nos termos do art.557 do Código de Processo Civil, nos feitos que tramitem perante o Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça; o art.896 da Consolidação das Leis do Trabalho que igualmente permitiu ao Relator negar seguimento ao recurso de revista, se a decisão recorrida estiver em consonância com enunciado de súmula do Tribunal Superior do Trabalho; o art.285-A, também do Código de Processo Civil, que permite a prolação de sentença de improcedência quando a matéria for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença em outros casos idênticos, sendo desnecessária a citação; além dos arts.543-B e 543-C, bem como os art.544, §§3º e 4º, todos do Estatuto Processual em vigor.[39]
2 A DINÂMICA DO PRECEDENTE
Segundo a lição do processualista Fredie Didier Junior, “Precedente é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo núcleo essencial pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos.” [40]
Ao abordar o tema, as processualistas Gisele Leite e Denise Heuseler, em seu artigo Commonlização à brasileira, defendem a interação como mecanismo de aproximação entre os sistemas da Civil Law e da Common Law, desde que observadas às peculiaridades de cada ordenamento. [41]
Entretanto, a utilização do precedente judicial como fonte do direito não é assunto de fácil compreensão, razão pela qual oportuno o paradigma estabelecido por Edward Allan Farnsworth no que concerne a sua utilização como técnica ao afirmar que “é tão difícil aprende-lo por meio da leitura de uma discussão de doutrina, quanto o é aprender a andar de bicicleta através do estudo de um livro sobre mecânica, acrescendo que o assunto é controverso.”[42]
Nesse contexto, deve-se compreender que a utilização do precedente judicial como norma e fonte do direito deve-se observar algumas técnicas, como por exemplo, a redação, confronto, interpretação e aplicação, bem como as suas hipóteses de superação, além da diferenciação entre a súmula e o precedente, razão pela qual se passa a análise de cada um separadamente.
2.1 Súmula x jurisprudência x precedente
O direito processual civil possui fontes formais e não formais, sendo a lei a principal fonte do direito, mas admitindo-se a aplicação supletiva da analogia, costumes e princípios gerais como fontes formais.
Na esfera das fontes não formais, estão valorosos fontículos subsidiários, como por exemplo a jurisprudência, a súmula, a doutrina e a equidade que auxiliam no deslinde dos casos levados a julgamento, conforme preveem os arts. 4º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e 126 do Código de Processo Civil, razão pela qual passaremos neste tópico a estudar mais minuciosamente alguns deles.
O termo súmula, proveniente do latim summula, de acordo com o Glossário Jurídico disponível no site do STF, “é uma síntese de todos os casos, parecidos, decididos da mesma maneira, colocada por meio de uma proposição direta e clara”[43], ou seja, trata-se de uma orientação que serve como elemento na formação da convicção em decisões a serem proferidas por tribunais inferiores e juízes.
As súmulas surgiram no ordenamento jurídico vigente a partir de 1º de março de 1964, embora seus primeiros verbetes tenham sido publicados em 13 de dezembro de 1963, em sessão plenária, da Comissão de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, composta pelos Ministros Gonçalves de Oliveira, Victor Nunes Leal (relator) e Pedro Chaves. [44]
Por ocasião daquela sessão, o Min. Rel. Victor Nunes apresentou a definição do que seria a sumula assim como a sua função:
“(…) na Súmula, o Supremo Tribunal Federal inscreve, em enunciados distintos, devidamente classificados por assunto, o seu entendimento sobre as questões mais controvertidas na jurisprudência e sobre as quais o Supremo Tribunal chegou a uma opinião firme, em face da sua composição contemporânea, ainda que não compartilhada por todos os Ministros.” [45]
Sua finalidade precípua era auxiliar na solução de casos corriqueiros, porém não pretendia proporcionar aos interessados segurança jurídica, isonomia ou cautela, mas tão somente buscar celeridade no andamento dos processos, o que poderia acarretar injustiças, porquanto poderia dar tratamentos iguais a casos diferentes.
Ao abordar o tema, o ilustre processualista Luiz Guilherme Marinoni pontuou que “não foram realizadas discussões doutrinárias apropriadas acerca da sua aplicação, bem como decisões que explicassem a sua origem e as razões para a sua adoção ou não diante das peculiaridades do caso sob julgamento.” [46]
Destarte, devem ser utilizados critérios racionais aptos a concluir que determinada súmula pode ter a sua abrangência estendido ou restringido para permitir a solução do caso sob julgamento. Logo, observa-se que não há falar-se em caráter imperativo na aplicação da súmula, mas servindo exclusivamente de orientação para futuras decisões.
Evaristo Aragão Santos, por sua vez, define jurisprudência como o “conjunto das decisões num mesmo e constante sentido”[47], ressalvando que:
“o termo jurisprudência é polissêmico. Desde a juris + prudentia, decorrente da produção intelectual dos jurisconsultos romanos a respeito de questões jurídicas que lhes foram apresentadas para apreciação e parecer, passando pela designação da ideia de 'ciência do direito' até a acepção mais corrente em nosso cotidiano, relacionada a massa geral das manifestações dos Tribunais (de maneira uniforme ou não) ou, mais restritivamente, na opinião bastante aceita de Limongi França, como o conjunto de pronunciamentos do Judiciário 'num determinado sentido, a respeito de certo objeto, de modo constante, reiterado e pacífico'”.[48]
Para melhor compreensão da jurisprudência no cenário jurídico brasileiro, merece destaque as lições do Professor Ricardo Marcelo Fonseca, jurista e historiador da Universidade Federal do Paraná, que traçou um breve histórico desta fonte não formal do direito na solução das controvérsias jurídicas levadas diariamente aos tribunais:
“(…) no contexto de um “antigo Regime” sui generis como o brasileiro, dotado, é certo, de grande pluralidade político-jurídica e de ausência da ideia de uma fonte legal exclusiva e excludente de outras formas de juridicidade, o papel da jurisprudência (aderente ao conteúdo profundamente costumeiro das práticas cotidianas, apontando para uma solução tópica – e não abstrata e sistemática – das controvérsias, tendo como norte a noção de equidade e justiça no caso concreto), foi central e caracterizante da experiência jurídica colonial brasileira, constituindo um dos elementos principais dentro do complexo sistema das fontes do período.
(…) Com a independência de Portugal, em 1822, o Brasil busca fazer um grande esforço de “modernização” (a Constituição de 1824, copiada em grande medida dos modelos liberais estadunidense e francês, é um exemplo emblemático deste processo). (…) Neste processo, como não poderia deixar de ser, a jurisprudência deve ser uma mera serva da lei escrita. O juiz, para usar as célebres palavras de Montesquieu, deve limitar a ser a “boca inanimada da lei”. Os julgados devem unicamente ser o resultado de um processo lógico de subsunção de um fato concreto a uma norma abstrata – uma operação de silogismo, portanto. O arcabouço de leis que vai sustentar este processo, por outro lado, é visto como um sistema que tende à completude e que, portanto, deve esgotar a juridicidade. Os julgados são como que um efeito secundário e reflexo da expressão do direito em sua forma mais significativa, a lei escrita. O juiz deve ser seu profeta. O famoso art. 4º das disposições preliminares do Code Civil napoleônico de 1804 (que aduzia que o “o juiz que se recusar a julgar sob o pretexto de silêncio, obscuridade ou de silêncio da lei, poderá ser processado como culpado por denegação de justiça”) é, já no século XX, transposto no Brasil pelo art. 4o da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-lei no 4.657 de 4 de setembro de 1942), segundo o qual “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Há uma lógica de continuidade, na qual a atividade judicial deve se orientar somente pela lei.
(…) no final do século XX e início do século XXI, esta fase é que, vai mostrando seus limites e dando lugar a outra forma de expressão jurídico-política, o “Estado Constitucional”. Aqui a lei perde a sua centralidade. Deixa ela de ser a fonte indiscutível da juridicidade, na medida em que seus mecanismos de produção são identificados e relacionados a critérios supralegais que devem orientar a sua produção e interpretação contidos em outro documento que passa a ocupar a centralidade histórica: a Constituição. Enquanto documento que, em teoria, é resultado do conjunto das forças sociais e que, sobretudo a partir do segundo pós-guerra, enquanto instrumento jurídico que coloca um conjunto de objetivos e tarefas a serem implementadas na sociedade, na administração pública e no sistema jurídico em geral, a Constituição passa a ser o vértice valorativo do sistema, carregado de uma carga axiológica que não pode ser ignorada pelo legislador infraconstitucional. Com isso, a Constituição passa a ser o lugar da avaliação da pertinência axiológica, procedimental e material da lei. (…) Diante dessa mutação histórica – que vem acompanhada de uma complexificação nas demandas judiciais e, em grande medida, na crise do sistema judicial tradicional, o ordenamento jurídico brasileiro insere mudanças importantes no que se refere ao papel da jurisprudência no sistema das fontes e que são representativas deste contexto dito “pós-moderno””. [49]
Extrai-se da síntese histórica que a partir do final do século XX, a jurisprudência assume novo papel no contexto jurídico, possibilitando ao Poder Judiciário o exercício de uma função legislativa atípica e ao julgador a possibilidade de implementar uma nova fonte formal do direito.
Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho ao fazem um breve contraste entre a súmula e a a jurisprudência, ao abordarem as fontes do direito:
“A súmula adotada por um tribunal nada mais é do que a enunciação sintética de uma ratio decidendi, ou seja, constitui a síntese enunciada das razões de decidir de determinado caso concreto. A função da súmula é preencher parcialmente a indeterminação e a vagueza que resultam de textos normativos, reduzindo a complexidade da interpretação, o que não significa que ela própria prescinda de interpretação.
Ao contrário, os verbetes que compõem as súmulas demandam exegese, pois a sua justificação está em que seja aplicada a mesma ratio decidendi entre casos que sejam substancialmente idênticos.
A dificuldade consiste em diagnosticar o grau de identidade que deve ter o caso que se pretende resolver com os casos (ou o caso) de que sobreveio determinado verbete.”[50]
Marcus Vinícius Rios Gonçalves ressalta que embora a jurisprudência ainda não seja reconhecida como fonte formal do direito no direito processual civil brasileiro, uma vez que funda-se precipuamente na lei como principal fonte do direito, já se admite tanto a doutrina quanto a jurisprudência como fontes não formais do direito, bem como destaca a utilidade dos precedentes judiciais para corroborar o desfecho pretendido pelo julgador. [51]
No que concerne ao precedente José Rogério Cruz e Tucci explica que “o precedente então nasce como uma regra de um caso e, em seguida, terá ou não o destino de tornar-se a regra de uma série de casos análogos.” [52]
Importante destacar que não se deve confundir o conceito de súmula com precedente, conforme bem explica o processualista Luiz Guilherme Marinoni:
“De modo que, se todo precedente é uma decisão, nem toda decisão constitui um precedente. Note-se que o precedente constitui decisão acerca de matéria de direito – ou, nos termos do commom law, de um point of law – e não de matéria de fato. A maioria das decisões judiciais diz respeito às decisões de fato. Quando são enfrentados pontos de direito, as decisões muitas vezes se limitam a anunciar o que está escrito na lei, não revelando propriamente uma solução judicial acerca da questão de direito, no sentido de que a solução de que ao menos de uma interpretação da norma legal. De qualquer forma, a decisão que interpreta a lei, mas segue julgado que a consolidou, apenas por si só não constitui precedente. Contudo, para constituir precedente, não basta que a decisão seja a primeira a interpretar a norma. É preciso que a decisão enfrente todos os principais argumentos relacionados à questão de direito posta na moldura do caso concreto. Até porque, os contornos de um precedente podem surgir a partir da analise de vários casos, ou melhor, diante de uma construção da solução judicial da questão de direito que passa por diversos casos.”[53]
A partir da aludida explanação observa-se que a decisão que apenas resolve uma questão fática, aplica a lei literalmente ou reafirma um precedente não possui os requisitos necessários para caracterizar um precedente, porquanto "o precedente é a primeira decisão que elabora a tese jurídica ou é a decisão que definitivamente a delineia, deixando-a cristalina".[54] Portanto, não há falar-se em conflito entre as sumulas dos tribunais e precedentes judiciais.
Bruno Garcia Redondo esclarece a diferença de precedente, jurisprudência e súmula, em seu artigo Aspectos essenciais da teoria geral do precedente judicial: identificação, interpretação, aplicação, afastamento e superação, utilizando as definições apresentadas por Michele Taruffo e Fredie Didier Jr:
“Como visto, o precedente consiste em decisão judicial proferida em um caso concreto cujo núcleo (tese jurídica extraída da ratio decidendi) pode servir de norma geral e diretriz para a resolução de demandas semelhantes.
Quando o precedente é reiteradamente aplicado, passando a refletir o posicionamento dominante do tribunal, diz-se que o mesmo se torna jurisprudência. Note-se, assim, que a jurisprudência não significa mera existência de um ou de alguns julgados em determinado sentido, mas sim a orientação reiterada, atual e prevalecente no âmbito de determinado tribunal.
Súmula, por seu turno, consiste no conjunto de enunciados normativos da ratio decidendi da jurisprudência (precedentes reiterados e predominantes no tribunal). Cada enunciado de súmula consagra, assim, um texto, que reflete a norma geral extraída da jurisprudência. Pelo fato de ser expressado por meio de texto escrito, o enunciado da súmula será objeto de interpretação, razão pela qual deve ser preferivelmente redigido em termos precisos e claros, para que não se afaste da ratio decidendi extraída da jurisprudência.
Assim como os precedentes, as súmulas podem ser classificadas em: (a) vinculantes ou obrigatórias, quando dotadas de eficácia vinculante em relação aos julgados que lhes forem posteriores; (b) obstativas da revisão de decisão, quando aptas a impedir a apreciação de recurso ou da remessa necessária; e (c) persuasivas, quando de aplicação livre, não vinculante nem obrigatória, servindo somente de indícios para uma solução racional.”[55]
Ao abordar a teria dos precedentes judiciais, a jurista Michele Taruffo defende que o precedente deve ser avaliado sob as quatro dimensões, quais sejam: institucional, objetiva, estrutural e de eficácia.[56] Portanto, apenas o acordo das mencionadas dimensões pode fornecer uma definição do precedente em determinado ordenamento jurídico. [57]
José Rogério Cruz e Tucci sustenta que “na atualidade, o direito brasileiro adota um modelo misto quanto à eficácia dos precedentes judiciais, a saber: (a) precedentes com eficácia meramente persuasiva; (b) precedentes com relativa eficácia vinculante; e (c) precedentes com eficácia vinculante”. [58]
A partir dessas breves explicações, pode-se concluir que a diferença entre a súmula e o precedente reside no momento em que é editada, mas trata-se em verdade da segurança jurídica que é atribuída a cada uma delas, já que as súmulas decorrem dos precedentes e devem ser aplicadas em determinado contexto por ocasião do julgamento do caso concreto.
2.2 Técnica de redação de enunciado sumulado
De acordo com Fredie Didier Jr, para se elaborar um enunciado sumulado, deve-se evitar termos vagos, abertos, gerais, gerais, abstratos e ambíguos, devendo a ratio decidendi ser objetiva fim de impedir questionamentos acerca da sua aplicação em casos vindouros.[59]
Para exemplificar um enunciado sumulado no qual a técnica redacional foi má empregada, cita a súmula vinculante n.11 do STF, que apresenta texto amplo, no qual foram utilizadas acepções vagas e não oferece segurança jurídica, indicando a provável necessidade de edição de novos enunciados para concretizar o texto inserto na norma. [60]
Para corroborar a defesa da aludida técnica, o referido jurista baiano publicou em seu site (www.frediedidier.com.br – editorial n.49), artigo no qual faz uma crítica acerca da técnica de elaboração dos precedentes:
“Se é certo que o papel da jurisprudência é cada vez mais importante, também é certo que é preciso um estudo mais rigoroso da teoria do precedente e um aprimoramento na utilização das técnicas desenvolvidas a partir desse conjunto teórico. E uma das técnicas mais importantes é, justamente, a técnica de “redação do preceito normativo jurisprudencial”, a ratio decidendi, a “norma jurídica geral” construída a partir de casos concretos. (…)
A “súmula vinculante”, cuja existência se justifica para dar segurança/ previsibilidade à solução de “determinadas situações típicas”, neste caso terá pouca serventia. Não se quer aqui entrar no mérito da questão do uso ou não de algemas. A proposta não é esta. A preocupação é com a má-técnica do STF na formulação do precedente, que é vinculante.
O STF deve lembrar que o “papel normativo” da jurisprudência tem outras características. Situações como essas não poderiam ser “sumuladas”, exatamente porque, em razão das suas peculiaridades concretas, devem sempre ser examinadas a posteriori, e não a priori.”[61]
Entretanto, Lenio Luiz Streck apresentou crítica à técnica de redação do precedente judicial ao afirmar que súmulas e precedentes são figuras jurídicas distintas, haja vista que às súmulas consideradas “comuns” jamais pode ser apreciada como precedente stricto sensu, que são vinculantes, principalmente pelo fato de que há diferença entre a criação de um texto a concretização de uma norma. [62]
Defendeu ainda que a contradição existente do STF atuar como aplicador e concretizador das normas por ocasião do julgamento das reclamações, porquanto dispensa a utilização de outros tribunais. [63]
Por fim, asseverou que “precedentes são formados para resolver casos concretos e eventualmente influenciam decisões futuras; enquanto as súmulas são editadas visando à ‘solução de casos futuros’.” [64]
Para que haja correta aplicação do precedente judicial ao caso concerto, competirá ao magistrado a função de conferir se a demanda sob julgamento encontra similitude com o precedente, devendo analisar os elementos objetivos da demanda em comparação aos elementos caracterizadores casos antecedentes, por meio da utilização de técnicas de confronto, interpretação e aplicação (distinguish) e de técnicas de superação (overruling e overriding), as quais merecem algumas considerações.
2.3 Técnicas de confronto, interpretação e aplicação do precedente: distinguishing
O termo distinguishing refere-se, de acordo com o Dicionário Jurídico Black’s Law Dictionary [65]:
“Ao cotejo analítico das circunstâncias fundamentais à formação dos precedentes e as circunstâncias fundamentais do caso em questão para, a partir das semelhanças ou diferenças entre os casos, ter-se por aplicável ou inaplicável o precedente”
Sobre o tema, o jurista Marco Antônio da Costa Sabino assevera que:
“Na aplicação do precedente, é preciso, preliminarmente, verificar se há lugar para tanto, vale dizer, se o segundo caso comporta a alocação do dado precedente. Por isso, os juízes do common Law exercem, em primeiro lugar, a técnica da distinção, ou distinguishing. Por essa técnica, o juiz deve aproximar os elementos objetivos dos casos em que se constituíram precedentes potencialmente aplicáveis e o caso objeto do precedente, ou mesmo, ampliá-lo.”[66]
Dentre as hipóteses de diferenciação podem-se citar os fatos fundamentais discutidos e aqueles que serviram de base à ratio decidendi (tese jurídica) constante no precedente e peculiaridades que obstem a aplicação do precedente, dentre outros.[67]
Renata Polichuk sustenta a racionalização ratio decidendi na análise dos fatos com responsabilidade:
“Os fatos que originaram o precedente devem ser vistos de forma ampla, permitindo sua aplicação e utilidade ao sistema, mas de forma restrita, percebendo as distinções necessárias para que a isonomia seja efetivamente mantida. Isto implica dizer que a aplicação dos precedentes deve ser sensível para que casos iguais ou assemelhados efetivamente recebam o mesmo tratamento por parte do Poder Judiciário, contudo, dentro desta mesma perspectiva isonômica é preciso permitir que os casos diferentes recebam, na igual medida, tratamento diferenciado.’[68]
Conforme pontuado por Lenio Luiz Streck, precedente é um o resultado de um caso, portanto, possui nome, sobrenome e individualidade, merecendo destaque o exemplo apresentado por Marcelo Alves Dias de Souza, citado por Didier:
“Em Bridges v. Hawkesworth [1985] LI 21 QB 75, a um consumidor foi reconhecido o Direito de guardar o dinheiro que ele encontrou no chão de uma loja. Diferentemente, em South Staffordshire Water Company v. Sharwood [1896] 2 QB 44, a uma pessoa que encontrou dois anéis de ouro na lama do fundo de um reservatório de água não foi reconhecido o direito de retê-los, porque o lugar em que os achou não estava aberto ao público.”[69]
Na hipótese de haver diferenças que distingam o caso concreto do paradigma, será facultado ao magistrado aplicar tanto a ampliative distinguish quanto a restrictive distinguish como técnica de confronto, interpretação e aplicação (distinguish) para solução da controvérsia.
Quando o julgador entender que as peculiaridades do caso concreto impedem a aplicação da tese jurídica consagrada no precedente, poderá dar-lhe uma interpretação restritiva (restrictive distinguish).
De outro giro, se restar demonstrado que as particularidades do caso concreto não afastam as similitudes com o paradigma, poderá proferir decisão com base nos aos casos anteriores, aplicando-se nessa hipótese, a ampliative distinghishing.
O estudo do distinguish revelou um método por meio do qual é possível fazer o confronto, interpretação e aplicação do precedente, mas se o julgador concluir que a circunstância se amolda a proposição que ensejou o precedente, deve-se verificar se é o caso de aplicá-lo ou superá-lo, conforme as técnicas de superação do precedente: overruling e overriding a serem abordadas no item 2.4.
Nada obstante, se após a checagem a não houver aproximação entre o caso concreto e o precedente, ter-se-á um resultado, não sendo o precedente aplicável ou por aplicação extensiva.
Entretanto, caso a questão jamais tenha sido analisada, o magistrado estará diante da hipótese de um hard case, ou seja, casos de maior complexidade em virtude de conflitos existentes entre as diferentes normas constitucionais incidentes sobre a matéria, ao passo que nos casos em que houver decisões previas estar-se diante de um clear case.
2.4 Técnicas de superação do precedente: overruling e overriding
Conforme exposto anteriormente, se o magistrado verificar que a hipótese submetida a julgamento adapta-se aos elementos do precedente deve-se verificar se a decisão pode ser aplicada ou encontra-se superada.
A primeira possibilidade de superação do precedente ocorre por meio do ato de poder legislativo, porquanto não há impedimento no que concerne à edição de uma norma que revogue o antigo precedente. [70]
A próxima alternativa decorre da substituição expressa do precedente por ser considerado ultrapassado ou equivocado – per incuriam ou per ignorantia legis (overruling). Portanto, há uma revogação do antigo paradigma hermenêutico – ratio decidendi – que perde seu valor vinculante (overruled).
Por conseguinte, tem-se o overrulling, onde há revogação total por outro precedente ou outra orientação para determinado caso, que se subdivide em express overrulling e implied overrruling. [71]
De acordo com Leonarco Greco, há express overrruling, quando tribunal resolve expressamente adotar nova orientação, abandonando a anterior, enquanto o implied overrruling, ocorre quando uma orientação é adotada em confronto com posição anterior, embora sem expressa substituição desta última. [72]
Marcelo Dias Souza narra que a Câmara dos Lordes inglesa defendia que o precedente obrigatório (binding precedent) era inabalável até o ano de 1966, ratificando a proposta de que pela teoria do stare decisis. [73]
Entretanto, em 26 de julho de 1966 a House of Lords editou o Practice Statement of Judicial Precedent, segundo o qual, a própria Corte passou a admitir uma alteração em seu posicionamento no que concerne ao alcance da doutrina do stare decisis, rompendo a visão positivista até então adotada.[74]
Dentre as hipóteses de superação do precedente, Celso Albuquerque de Melo destaca que as mais comuns são quando o precedente está injusto e/ou incorreto, se revelar inexequível ou tornar-se obsoleto e desfigurado.[75]
Quanto aos efeitos, o overrruling se divide em prospectivo e retrospectivo, sendo que o primeiro mantém a orientação para os fatos ocorridos até então, sendo que suas alterações somente devem ser aplicadas a fatos posteriores, razão pela qual possui efeitos ex nunc[76], podendo ser citado o HC 83.255/SP como um caso de prospective overruling.
“DIREITO INSTRUMENTAL – ORGANICIDADE. As balizas normativas instrumentais implicam segurança jurídica, liberdade em sentido maior. Previstas em textos imperativos, hão de ser respeitadas pelas partes, escapando ao critério da disposição. INTIMAÇÃO PESSOAL – CONFIGURAÇÃO. Contrapõe-se à intimação pessoal a intimação ficta, via publicação do ato no jornal oficial, não sendo o mandado judicial a única forma de implementá-la. PROCESSO – TRATAMENTO IGUALITÁRIO DAS PARTES. O tratamento igualitário das partes é a medula do devido processo legal, descabendo, na via interpretativa, afastá-lo, elastecendo prerrogativa constitucionalmente aceitável. RECURSO – PRAZO – NATUREZA. Os prazos recursais são peremptórios. RECURSO – PRAZO – TERMO INICIAL – MINISTÉRIO PÚBLICO. A entrega de processo em setor administrativo do Ministério Público, formalizada a carga pelo servidor, configura intimação direta, pessoal, cabendo tomar a data em que ocorrida como a da ciência da decisão judicial. Imprópria é a prática da colocação do processo em prateleira e a retirada à livre discrição do membro do Ministério Público, oportunidade na qual, de forma juridicamente irrelevante, apõe o "ciente", com a finalidade de, somente então, considerar-se intimado e em curso o prazo recursal. Nova leitura do arcabouço normativo, revisando-se a jurisprudência predominante e observando-se princípios consagradores da paridade de armas.” (HC 83255, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 05/11/2003, DJ 12-03 2004 PP-00038 EMENT VOL-02143-03 PP-00652 RTJ VOL-00195-03 PP-00966).[77]
No que tange ao retrospective overruling, trata-se de precedente contemporâneo e não estabilizado, razão pela qual possui efeitos ex tunc, porquanto não está apto a proporcionar segurança jurídica aos envolvidos.[78]
Cite-se como exemplo de retrospective overruling a decisão proferida no HC 84078/MG do Supremo Tribunal Federal da lavra do então rel. Min. Eros Grau, que proibiu a execução provisória da pena ainda que esteja tramitando recurso de natureza extraordinária.
“EMENTA: HABEAS CORPUS. INCONSTITUCIONALIDADE DA CHAMADA "EXECUÇÃO ANTECIPADA DA PENA". ART. 5º, LVII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ART. 1º, III, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. O art. 637 do CPP estabelece que "[o] recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância para a execução da sentença". A Lei de Execução Penal condicionou a execução da pena privativa de liberdade ao trânsito em julgado da sentença condenatória. A Constituição do Brasil de 1988definiu, em seu art. 5º, inciso LVII, que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". 2. Daí que os preceitos veiculados pela Lei n. 7.210/84, além de adequados à ordem constitucional vigente, sobrepõem-se, temporal e materialmente, ao disposto no art. 637 do CPP. 3. A prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar. 4. A ampla defesa, não se à pode visualizar de modo restrito. Engloba todas as fases processuais, inclusive as recursais de natureza extraordinária. Por isso a execução da sentença após o julgamento do recurso de apelação significa, também, restrição do direito de defesa, caracterizando desequilíbrio entre a pretensão estatal de aplicar a pena e o direito, do acusado, de elidir essa pretensão. 5. Prisão temporária, restrição dos efeitos da interposição de recursos em matéria penal e punição exemplar, sem qualquer contemplação, nos "crimes hediondos" exprimem muito bem o sentimento que EVANDRO LINS sintetizou na seguinte assertiva: "Na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinqüente". 6. A antecipação da execução penal, ademais de incompatível com o texto da Constituição, apenas poderia ser justificada em nome da conveniência dos magistrados — não do processo penal. A prestigiar-se o princípio constitucional, dizem, os tribunais [leia-se STJ e STF] serão inundados por recursos especiais e extraordinários e subseqüentes agravos e embargos, além do que "ninguém mais será preso". Eis o que poderia ser apontado como incitação à "jurisprudência defensiva", que, no extremo, reduz a amplitude ou mesmo amputa garantias constitucionais. A comodidade, a melhor operacionalidade de funcionamento do STF não pode ser lograda a esse preço. 7. No RE 482.006, relator o Ministro Lewandowski, quando foi debatida a constitucionalidade de preceito de lei estadual mineira que impõe a redução de vencimentos de servidores públicos afastados de suas funções por responderem a processo penal em razão da suposta prática de crime funcional [art. 2º da Lei n. 2.364/61, que deu nova redação à Lei n. 869/52], o STF afirmou, por unanimidade, que o preceito implica flagrante violação do disposto no inciso LVII do art. 5º da Constituição do Brasil. Isso porque — disse o relator — "a se admitir a redução da remuneração dos servidores em tais hipóteses, estar-se-ia validando verdadeira antecipação de pena, sem que esta tenha sido precedida do devido processo legal, e antes mesmo de qualquer condenação, nada importando que haja previsão de devolução das diferenças, em caso de absolvição". Daí porque a Corte decidiu, por unanimidade, sonoramente, no sentido do não recebimento do preceito da lei estadual pela Constituição de 1.988, afirmando de modo unânime a impossibilidade de antecipação de qualquer efeito afeto à propriedade anteriormente ao seu trânsito em julgado. A Corte que vigorosamente prestigia o disposto no preceito constitucional em nome da garantia da propriedade não a deve negar quando se trate da garantia da liberdade, mesmo porque a propriedade tem mais a ver com as elites; a ameaça às liberdades alcança de modo efetivo as classes subalternas. 8. Nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direitos. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade (art. 1º, III, da Constituição do Brasil). É inadmissível a sua exclusão social, sem que sejam consideradas, em quaisquer circunstâncias, as singularidades de cada infração penal, o que somente se pode apurar plenamente quando transitada em julgado a condenação de cada qual Ordem concedida.” (HC 84078, Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 05/02/2009, DJe-035 DIVULG 25-02-2010 PUBLIC 26-02-2010 EMENT VOL-02391-05 PP-01048) [79]
Além disso, deve-se observar o antecipatory overruling, que é uma espécie de não aplicação preventiva por órgãos inferiores do precedente das Cortes superiores, justamente por essa, em recentes decisões, ter sinalizado que irá superar os seus precedentes. [80]
Nesse sentido, merece destaque a lição de Luiz Guilherme Marinoni quanto a utilização da antecipatory overruling como técnica de substituição dos precedentes:
“Entenda-se por anticipatory overruling a atuação antecipada das Cortes de Apelação estadunidenses em relação ao overruling dos precedentes da Suprema Corte. Trata-se, em outros termos, de fenômeno identificado como antecipação a provável revogação de precedente por parte da Suprema Corte. Desde 1981, as Cortes de Apelação vêm, excepcionalmente, considerando circunstâncias que indicam que um precedente da Suprema Corte – em princípio aplicável ao caso sob julgamento – provavelmente será revogado. Isso para deixar de adotá-lo. A doutrina americana fala em revogação antecipada, mas, em verdade, o correto seria aludir a não aplicação de precedente em vias de revogação pela Suprema Corte. As Cortes de Apelação utilizam como fundamentos para a antecipação: i) o desgaste do precedente pelas próprias decisões da Suprema Corte; ii) uma tendência da Suprema Corte que permita concluir que o precedente será revogado; iii) ter a Suprema Corte demonstrado que está a espera de um caso apropriado para realizar o overruling. Esses motivos algumas vezes são associados aos seguintes: i) alteração na composição da Suprema Corte ou mudança do ponto de vista pessoal dos Justices; ii) inconsistência do precedente em relação às decisões anteriores da Corte, a identificar provável equívoco; iii) percepção de que o precedente não surtiu, em termos práticos, o efeito que dele se esperava. Está em jogo, em face do anticipatory overruling, questão de grande importância. Trata-se de saber se o stare decisis ou o sistema de precedentes obrigatórios, sustentado na submissão da Corte inferior diante das decisões da Corte que lhe é superior, pode se conciliar com a revogação antecipada ou com a não aplicação dos precedentes que, apesar de não revogados, provavelmente deixarão de ser aplicados pela Suprema Corte. Indaga-se, assim, se "the doctrine of stare decisis is flexible enough to permit anticipatory overruling by United Statescourts of appeals" (a doutrina do stare decisis é flexível o bastante para permitir o overruling antecipatório pelas Cortes de Apelação dos Estados Unidos). Embora a questão seja altamente polêmica, admite-se, em sede doutrinária, que a revogação antecipada possa conviver com o stare decisis americano, ou melhor, que está atenuação na autoridade de imposição dos precedentes é saudável à própria lógica do sistema de precedentes obrigatórios. Não obstante, a Suprema Corte americana, ao se deparar com casos em que as Cortes de Apelação realizaram o anticipatory overruling, não tratou da legitimidade do instrumento. Afirma-se que isso talvez decorra não só do fato de a questão nunca ter sido posta diretamente para decisão. Talvez a Corte tenha preferido não ter de optar entre proibir e liberar a antecipação. Assim, o instrumento permaneceria disponível às Cortes inferiores, mas sem uma chancela explícita, que, perigosamente, poderia inspirar a sua disseminação e utilização indiscriminada. Ou seja, parece que a Suprema Corte apostou no silêncio para limitar o overruling antecipatório a circunstâncias particularmente apropriadas.”[81]
Por conseguinte, ooverriding constitui substituição parcial do precedente em função da superveniência de uma regra ou princípio legal, ou seja, uma espécie de derrogação.
“É importante distinguir ainda entre overruling e reversal. Enquanto aquele representa uma técnica de superação do precedente, este último representa tão somente a reforma, por uma Corte superior, de uma decisão proferida por órgão inferior. É o que ocorre nos casos em que, no julgamento de um recurso, o órgão ad quem altera o entendimento firmado pelo órgão a quo. O reversal não configura, pois, uma técnica de superação, mas apenas urna técnica de controle.”[82]
Em que pese os métodos de superação do precedente mais conhecidos sejam no Brasil sejam overruling e overriding, os países que adotam o sistema da common law aplicam outras técnicas de alteração de precedentes, vejamos.
De acordo com Diego da Silva Gonçalves, na técnica da sinalização (technique of signaling), o órgão judicante sustenta o entendimento desgastado em respeito à segurança jurídica, porém, sinaliza que a sua revogação será breve, sendo que esta muitas vezes é utilizada como termo da modulação dos efeitos do overruling (prospective overruling).[83]
Na modificação de um precedente (transformation), busca-se amoldar a solução do caso com o precedente transformado ou reconstruído, mediante a atribuição de relevância aos fatos que foram considerados de passagem, apesar do resultado ser incompatível com a ratio decidendi do precedente.[84]
De acordo com o jurista Melvin Aron Eisenberg, citado por Luiz Guilherme Marinoni, a técnica da elaboração de distinções inconsistentes (the drawing of inconsistent distinctions) é aquela em que se dispensa a aplicação de um precedente quando as proposições sociais que fundamentam a regra são incongruentes com a regra vigente, sem, contudo, revogá-la.[85]
Celso de Albuquerque Silva aponta a função das técnicas de superação do precedente no ordenamento jurídico vigente:
“Modernamente, a modificação da doutrina vinculante é vista como um aprimoramento do pensamento jurídico passado para adequá-lo ao desenvolvimento social. Dentro dessa ótica, a invalidação parcial ou total de uma doutrina vinculante é considerada como um instrumental intrasistêmico para assegurar a necessária flexibilidade ao ordenamento jurídico”.[86]
Nas lições de Haroldo Lourenço, não se admite express overrruling no que tange as sumulas vinculantes em virtude do procedimento estabelecido no art.103-A §2º da CF/08, regulamentado pela Lei n.11.417/06, ressalvadas a aplicação das técnicas do restrictive distinguishig ou do ampliative distinguishing. [87]
A utilização dos aludidos métodos de superação permitem a flexibilização da ciência jurídica, principalmente no que concerne ao controle de constitucionalidade, tornando o sistema atualizado.
3 O PRECEDENTE JUDICIAL COMO NORMA E FONTE DO DIREITO NO BRASIL
Tramita atualmente na Câmara dos Deputados o projeto do novo CPC, o qual está em fase final de discussão, tendo como principal intento alcançar a celeridade da justiça, de acordo com o princípio da duração razoável do processo inserto pela Emenda Constitucional n.45/2004.
Atualmente, nas hipóteses de omissão legislativa, por força do princípio da indeclinabilidade da jurisdição, o juiz deve se pautar na analogia, nos costumes e nos princípios gerais de direito para viabilizar a prestação jurisdicional, nos termos dos arts.4º, da LINDB e 126, do CPC.
Entretanto, desde o pós positivismo observou-se uma aproximação dos sistemas de civil law e da common law, porém a doutrina ainda diverge acerca da utilização do precedente judicial como norma e fonte do direito.
3.1 Precedente como ato-fato jurídico
O estudo do precedente judicial como ato-fato jurídico pressupõe a compreensão da teoria dos fatos, atos e negócios jurídicos, previstas no livro III do Código Civil de 2002.
De acordo com Caio Mário, baseada na concepção de Savigny, “fatos jurídicos são os acontecimentos em virtude dos quais começam, se modificam ou se extinguem as relações jurídicas”.[88]
O mesmo raciocínio é aplicado por Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, ao afirmarem que “o fato jurídico é aquele acontecimento capaz de produzir efeitos (isto é, capaz de criar, modificar, substituir ou extinguir situações jurídicas concretas) trazendo consigo uma potencialidade de produção de efeitos, mas não necessariamente fazendo com que decorram tais consequências”. [89]
Em regra, os fatos jurídicos classificam-se em comuns (ajurígenos), jurídicos “lato sensu” e atos jurídicos “lato sensu”, merecendo destaque o fato jurídico em sentido amplo.
Segundo Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Nery, fatos ajurígenos são “aqueles fatos que não interessam ao direito” [90], a exemplo da chuva que cai em alto-mar (fatos naturais) ou de uma pessoa que fala sozinha em sua casa (fatos humanos), pois não produzem qualquer alteração no mundo jurídico.
Em relação aos fatos jurídicos, os juristas Fábio Vieira Figueiredo e Brunno Pandori Giancoli definem fato jurídico (strictu sensu) como “todo e qualquer acontecimento da vida que seja relevante para o mundo do Direito”, dividindo em duas espécies: fato jurídico (strictu sensu) e ato jurídico (latu sensu).[91]
Nesse contexto, merece destaque a lição dos doutrinadores Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho acerca do fato jurídico em sentido amplo:
“fato jurídico, entendido como o evento concretizador da hipótese contida na norma, comporta, em seu campo de abrangência, não apenas os acontecimentos naturais (fatos jurídicos em sentido estrito), mas também as ações humanas lícitas ou ilícitas (ato jurídico em sentido amplo e ato ilícito, respectivamente), bem como aqueles fatos em que, embora haja atuação humana, esta é desprovida de manifestação de vontade, mas mesmo assim produz efeitos jurídicos (ato-fato jurídico)”[92]
Ao abordar o fato jurídico em sentido estrito, o ilustre Washington de Barros Monteiro presta importantes esclarecimentos acerca do tema:
“dentre esses fatos, uns são de ordem natural, alheios à vontade humana, ou, para os quais, essa vontade apenas concorre de modo indireto, tais como o nascimento, a maioridade, a interdição e a morte, em relação à pessoa natural; o desabamento de um edifício, o abandono do álveo pelo rio, a aluvião e a avulsão em relação às coisas; o decurso do tempo, o caso fortuito e a força maior, em relação aos direitos em geral”[93]
Por fim, adentramos ao estudo do ato-fato, que segundo Fredie Didier deve ser entendido como “um ato humano que produz efeitos jurídicos independentemente da vontade de quem o pratica. E ato, porque agir humano, mas fato, porque é tratado pelo direito como um acontecimento em que a vontade humana é irrelevante”.[94]
A partir da aludida conceituação, extrai-se que o núcleo do ato-fato jurídico é a ação humana, sendo irrelevante o anseio do agente. Portanto, o precedente judicial deve ser visto como um fato pelo legislador, uma vez que encontra-se fundado em uma decisão judicial revestida de forma própria, ou seja, um ato jurídico.
Em se tratando de decisão judicial, seus efeitos são em conformidade com a lei, admitindo-se em alguns casos seu efeito vinculante, de modo que torna-se necessário o estudo dos princípios constitucionais norteadores na aplicação de um precedente judicial.
3.2 Princípios Constitucionais Norteadores na Aplicação do Precedente Judicial
É sabido que a utilização do precedente como fonte do direito pode ser feita por meio da aplicação de princípios constitucionais para dirimir as controvérsias submetidas a julgamento, especialmente ao se fazer uma comparação entre o art.4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
3.2.1 Princípio da Igualdade
Previsto no caput do art.5º da CF, o principio da igualdade decorre a sistema de Common Law adotado no Brasil, uma vez que as decisões devem estar vinculadas a lei. Portanto, o julgador deverá fazê-lo de forma igualitária para os interessados.
A técnica para se atingir uma prestação jurisdicional igualitária é pela utilização da eficácia vinculante dos precedentes judiciais, consagrando a máxima da mihi factum, dabo tibis ius, possibilitar conhecer antecipadamente o julgamento quando houver similitude de demandas com vistas a garantir o princípio da segurança jurídica.
Havendo coesão entre jurisprudência e prestação jurisdicional, será presumível a unicidade das relações jurídicas entre todos e a universalidade, haja vista que o princípio da igualdade possibilita a resolução de conflitos semelhantes com os mesmos efeitos.
3.2.2 Princípio do contraditório
O Princípio do Contraditório insere-se, em primeiro olhar, no contexto de garantir igualdade de tratamento às partes envolvidas no processo.
É o que ensina Ada Grinover, que apresenta o seguinte entendimento sobre o referido princípio:
“O princípio do contraditório também indica a atuaçãoo de uma garantia fundamental de justiça organizada, o princípio da audiência bilateral encontra expressão no brocardo romano auditatur et altera pars. Ele é tão intimamente ligado ao exercício do poder, sempre influente sobre a esfera jurídica das pessoas, que a doutrina moderna o considera inerente mesmo à própria noção de processo. (…)
O juiz, por força de seu dever de imparcialidade, coloca-se entre as partes, mas equidistante delas: ouvindo uma, não pode deixar de ouvir a outra; somente assim se dará a ambas a possibilidade de expor suas razões, de apresentar suas provas, de influir sobre o convencimento do juiz. Somente pela soma da parcialidade das partes (uma representando a tese e a outra, a antítese) o juiz pode corporificar a síntese, em um processo dialético. É por isso que foi dito que as partes, em relação ao juiz, não têm papel de antagonistas, mas sim de “colaboradores necessários”: cada um dos contendores age no processo tendo em vista o próprio interesse, mas a ação combinada dos dois serve à justiça na eliminação do conflito ou controvérsia que os envolve”. [95]
Em análise mas detida, contudo, é possível perceber tratar-se de princípio inerente à própria noção de processo.
Nesse sentido, em um sistema em que se estime a construção de precedentes judiciais, o contraditório passa a ser mais do que mera garantia de bilateralidade processual para ser entendido como mecanismo que permite a participação das partes no próprio processo de construção da norma jurídica individualizada, refletida no ato decisório.
Esta visão mais ampla do Princípio do Contraditório encontra eco na doutrina de Fredie Didier Jr., de acordo com quem:
“O contraditório tem sido visto como garantia de que a solução final de uma situação concreta deve ser alcançada mediante a participação efetiva daqueles sujeitos diretamente envolvidos no processo.
Sucede que, como se vem dizendo, mesmo num ato decisório que resolve um conflito específico, é possível identificar uma norma geral, que é a ratio decidendi, isto é, a tese jurídica desenvolvida pelo órgão jurisdicional em sua fundamentação e com base na qual ele alcançou a solução final.
Essa norma geral, já o dissemos, é geral justamente porque pode desprender-se daquele caso específico e ser aplicada em situações outras, futuras, cujas circunstâncias de fato sejam semelhantes às que delinearam a situação dentroda qual ela se formou.
A partir do momento em que percebemos isso – que, mesmo em processos específicos, é possível construir-se uma norma geral, aplicável a situações futuras o princípio do contraditório, visto como direito de participação na construção da norma jurídica, precisa ser repensado. Isso porque ele não mais pode ser visto apenas como sendo um direito de participação na construção da norma jurídica individualizada (aquela estabelecida no dispositivo da decisão); há de ser visto também como um direito de participação na construção da norma jurídica geral (a ratio decidendi, a tese jurídica estabelecida na fundamentação do julgado)”.[96]
3.2.3 Princípio da celeridade
Com a edição da Emenda Constitucional n.45/2004, o princípio da celeridade foi inserido como inciso LXXVIII do art.5º da CF com vistas à diminuição do tempo gasto no tramite das demandas judiciais para conferir a efetividade da justiça.
Sobre o tema, Luiz Guilherme Marinone ensina que:
“Na verdade, o legislador está obrigado a instituir um procedimento que confira ao cidadão uma resposta tempestiva, já que o direito de acesso à justiça, albergado no art. 5º, XXXV, da CF, decorre do princípio de que todos têm direito a uma resposta tempestiva ao direito de ir ao juiz para buscar a realização de seus direitos. Mais ainda se evidencia este direito com o advento do novo inciso de seus direitos. Mais ainda se evidencia este direito com o advento do novo inciso LXXVIII do art.5º da CF, que estabelece expressamente o direito à tempestividade da prestação jurisdicional.”[97]
O emprego dos precedentes judiciais é necessário para promover a presteza no julgamento daquelas já ajuizadas, reduzindo a incredulidade do cidadão no Poder Judiciário.
3.2.4 Princípio da Economia Processual
Segundo os ensinamentos de Ada Pelegrini Grinover, “o princípio da economia processual preconiza o máximo resultado na atuação do direito com o mínimo emprego de possível de atividades processuais”.[98]
Ao se utilizar raciocínio jurídico análogo à semelhante situação fática, se verifica a utilização do efeito vinculante às decisões dos Tribunais de modo a conferir eficiência na prestação jurisdicional.
Destarte, se atingida à eficiência pretendida haverá em celeridade no julgamento das demandas e diminuição no volume de casos ajuizados perante o Poder Judiciário.
3.2.5 Princípio da Segurança Jurídica
Dispõe o inciso XXXVI, do art. 5º da Constituição Federal que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. [99]
Interessante a explicação dada por J.J Gomes Canotilho acerca do referido axioma:
“A ideia de segurança jurídica reconduz-se a dois princípios materiais concretizadores do princípio geral de segurança: princípio da determinabilidade de leis expresso na exigência de leis claras e densas e o princípio da proteção da confiança, traduzido na exigência de leis essencialmente estáveis, ou, pelo menos, não lesivas da previsibilidade e calculabilidade dos cidadãos relativamente aos seus efeitos jurídicos.”[100]
Desta forma, a orientação uniforme acerca de determinado tema legitima a utilização dos precedentes judiciais, ao passo que permite ao jurisdicionado maior segurança em suas decisões, permitindo-se refletir se é valido ou não recorrer ao Poder Judiciário em busca do direito que entende ter.
3.2.6 Princípio da Razoável Duração do Processo
A partir da Emenda Constitucional n.45/04, houve a inserção do inciso LXXVIII ao art.5º da Carta Magna, que assegurou a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação, razão pela qual a força normativa dos precedentes é adequada para promover a razoável duração do processo, evitando dilações indevidas.
3.2.7 Princípio da motivação das decisões judiciais
O Princípio da motivação das decisões judiciais , inicialmente importante para que o particular pudesse promover determinado grau de controle sobre o exercício da função jurisdicional, pode ser entendido como um dos princípios que cresceu em importância e significado ao longo do tempo.
A respeito do tema, Ada Pelegrini Grinover traça a seguinte evolução do princípio ora comentado:
“Na linha de pensamento tradicional a motivação das decisões judiciais era vista como garantia das partes, com vistas à possibilidade de sua impugnação para efeito de reforma. Era só por isso que as leis processuais comumente asseguravam a necessidade de motivação (CPP, art. 381; CPC, art. 165 c/c art. 458; CLT, art. 832).
Mais modernamente, foi sendo salientada a função política da motivação das decisões judiciais, cujos destinatários não são apenas as partes e o juiz competente para julgar eventual recurso, mas quisquis de populo, com a finalidade de aferir-se em concreto a imparcialidade do juiz e a legalidade e justiça das decisões.
Por isso, diversas Constituições – como a belga, a italiana, a grega e diversas latino-americanas – haviam erguido o princípio da motivação à estatura constitucional, sendo agora seguidas pela brasileira de 1988, a qual veio adotar em norma expressa (art. 93, inc. IX) o princípio que antes se entendia defluir do § 4º do art. 153 da Constituição de 1969”.[101]
Fredie Didier Jr. por sua vez, ao se debruçar sobre a questão, estabelece um vínculo entre a motivação das decisões judiciais e a própria natureza de um sistema que se pretenda permeado por precedentes para, a partir de tal vinculação, apontar, de modo semelhante à conclusão de Ada Grinover, para necessária valorização da função extraprocessual da fundamentação.
Na lição do referido doutrinador:
“Considerando que a eficácia normativa do precedente judicial é hoje uma realidade inexorável no nosso sistema jurídico, bem como que, em um sistema de precedente, a motivação é a pedra de toque, núcleo mesmo – até porque é nela que está o precedente – , é imprescindível exigir maior qualidade na fundamentação dos atos decisórios.
Não há mais como reputar suficiente à fundamentação de um ato decisório a mera repetição de termos postos na lei ou de ementas e excertos jurisprudenciais ou doutrinários. É preciso – e exigível – que a decisão judicial identifique exatamente as questões de fato que se reputaram como essenciais ao deslinde da causa e delineie também, de forma explícita, a tese jurídica adotada para a sua análise e para se chegar à conclusão exposta na parte dispositiva. É também preciso — e, igualmente, exigível – que, ao aplicar ou deixar de aplicar um precedente, o órgão jurisdicional avalie, de modo explícito, a pertinência da sua aplicação, ou não, ao caso concreto, contrapondo as circunstâncias de fato envolvidas aqui e ali e verifique se a tese jurídica adotada outrora é adequada, ou não, para o caso em julgamento.
Mais do que nunca, é necessário valorizar a função extraprocessual da fundamentação, percebendo que ela não serve apenas à justificação, para as partes envolvidas naquele processo específico, da solução alcançada pelo órgão jurisdicional.
Num sistema em que se valorizam os precedentes judiciais, a fundamentação serve também como modelo de conduta para aqueles indivíduos que não participam, nem nunca participaram, daquele processo específico, haja vista que poderá ser por eles invocado para justificar e legitimar sua conduta presente.
Assim, a regra segundo a qual as decisões judiciais devem ser fundamentadas há de ser vista de modo mais contundente, entendendo-se como adequado não qualquer fundamento exposto pelo órgão jurisdicional, mas sim aquilo que se reputa como fundamento útil para a solução do caso e para a perfeita identificação do precedente.[102]
3.3 Efeitos do precedente
Conforme exposto no item 3.1, de acordo com o projeto do novo Código de Processo Civil, o precedente deve ser analisado como ato-fato jurídico, isto é, um fato que produz efeitos em decorrência da ação humana, independentemente da vontade do sujeito.
José Rogério Cruz e Tucci explica quais seriam os efeitos dos precedentes judiciais, apresentando alguns exemplos:
“Os precedentes judiciais com eficácia meramente persuasiva são aqueles que não obrigam os juízes, que, no ordenamento jurídico brasileiro, são independentes e livres de subserviência hierárquica superior no exercício da atividade jurisdicional. O exemplo clássico de precedente desta natureza é a própria jurisprudência dos tribunais, que é persuasiva; e não vinculante.
Os precedentes com relativa eficácia vinculante são aqueles que são suficientes a fundamentar a decisão do julgador, pois decorrem de previsão legal expressa ou de construção pretoriana.
Por exemplo, o art.557 do CPC, autoriza o relator a indeferir liminarmente o recurso quando as suas razoes estiverem em confronto com súmula ou jurisprudência dominante do respectivo Tribunal, do STF ou Tribunal Superior.
Outro exemplo bastante comum de precedentes com relativa eficácia vinculante é a própria jurisprudência sumulada pelo STJ e STF.
Os precedentes com eficácia vinculante são aqueles que, como o próprio nome diz, devem ser obrigatoriamente observados, como as súmulas do STF, as decisões proferidas pelo STF e pelos Tribunais de Justiça no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade e as deciões proferidas no incidente dos processos repetitivos.”[103]
De acordo com Marcelo Alves Dias de Souza, os precedentes judiciais com eficácia meramente persuasiva são a regra no Brasil, porquanto não são imperativos aos magistrados. Todavia, como não há observância aos precedentes apresentados pelos advogados ou as decisões proferidas pelas instâncias superiores com vistas a viabilizar a eficácia vertical nas decisões, resta desprestigiada a eficácia meramente persuasiva.[104]
Em decorrência dessa inobservância, Luiz Guilherme Marinoni ressalta “situação ainda pior ocorre quando o juiz ou tribunal não respeita as suas próprias decisões (eficácia horizontal) ocasionando, dessa forma, o tratamento desigual a casos similares”.[105]
Ao abordar os precedentes com relativa eficácia vinculante, o então Ministro do STJ Sálvio de Figueiredo Teixeira, por ocasião do julgamento do REsp 14.945/MG defendeu que “não se justifica que os órgãos julgadores se mantenham renitentes à jurisprudência sumulada, cujo escopo, dentro do sistema jurídico, é alcançar a exegese de certeza aos jurisdicionados em temas polêmicos”.[106]
Quanto aos precedentes com eficácia vinculante, Haroldo Lourenço esclarece que as súmulas vinculantes editadas pelo STF não só impõem sua aplicação ao caso levado a julgamento, mas também impossibilitam a análise de recursos. [107]
“Os precedentes judiciais com eficácia meramente persuasiva são aqueles que não obrigam os juízes, que, no ordenamento jurídico brasileiro, são independentes e livres de subserviência hierárquica superior no exercício da atividade jurisdicional. O exemplo clássico de precedente desta natureza é a própria jurisprudência dos tribunais, que é persuasiva; e não vinculante.
Os precedentes com relativa eficácia vinculante são aqueles que são suficientes a fundamentar a decisão do julgador, pois decorrem de previsão legal expressa ou de construção pretoriana.
Por exemplo, o art.557 do CPC, autoriza o relator a indeferir liminarmente o recurso quando as suas razoes estiverem em confronto com súmula ou jurisprudência dominante do respectivo Tribunal, do STF ou Tribunal Superior.
Outro exemplo bastante comum de precedentes com relativa eficácia vinculante é a própria jurisprudência sumulada pelo STJ e STF.
Os precedentes com eficácia vinculante são aqueles que, como o próprio nome diz, devem ser obrigatoriamente observados, como as súmulas do STF, as decisões proferidas pelo STF e pelos Tribunais de Justiça no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade e as deciões proferidas no incidente dos processos repetitivos”.
Por fim, Min. Castro Filho ao julgar o Agravo Regimental em Agravo de Instrumento n. 428.452-MS concluiu que “ainda que as súmulas não sejam lei em sentido formal, traduzem elas o entendimento reiterado dos tribunais no que diz respeito à interpretação de determinada questão". [108]
3.4 A “súmula vinculante”
A Reforma do Poder Judiciário inseriu o art.103-A, caput, da Constituição Federal que dispõe sobre a possibilidade do Supremo Tribunal Federal, após decidir reiteradamente decisões de matéria exclusivamente constitucional, aprovar sumula com eficácia vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário, assim como órgãos da administração pública direta ou indireta, nas esferas municipal, estadual e municipal.[109]
A súmula vinculante encontra-se regulamentada pela Lei Federal n.11.417/06, que prevê em no §4º do art.2º, a aplicação do efeito vinculante a partir da publicação do enunciado em seção especial do Diário da Justiça e do Diário Oficial da União, ressalvada a hipótese do Excelso Pretório restringir o efeito vinculante para efeito posterior, por decisão de 2/3 dos seus membros, caso entenda que há excepcional interesse público ou em virtude da segurança jurídica. [110]
Caso haja inobservância à súmula vinculante, admite-se Reclamação perante o STF, que se julgada procedente, imporá a anulação do ato ou cessará os efeitos da decisão do ato impugnado, sendo determinado ao órgão encarregado que profira nova decisão, com ou sem aplicação da sumula. [111]
No que concerne ao seu objeto, será a validade, a interpretação e a eficácia de normas que gerem relevante multiplicação de processos sobre idêntica questão e grave insegurança jurídica, conforme dispõe o art.2º, §1º, da Lei 11.417/06. [112]
Considerando que os precedentes judiciais podem ser superados, é possível a revisão ou o cancelamento da sumula vinculante, desde que haja revogação ou modificação da lei que ensejou edição da súmula. [113]
Para corroborar essa possibilidade, deve-se lembrar que o ordenamento jurídico admite o express overrulling e o overriding de um enunciado, bem como restrictive distinguinshing e ampliative distinguinshing. [114]
Partindo da premissa que há quórum para edição da sumula, o mesmo deverá ser observado na hipótese de revisão ou cancelamento, bem como se aplicam seus efeitos vinculantes aos mesmos órgãos indicados no art.103-A, caput da CF. [115]
Conforme estabelece o art. 2º, §1º, da Lei 11.417/06, “o enunciado da súmula terá por objeto a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas acerca das quais haja, entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública, controvérsia atual que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre idêntica questão”. [116]
As principais características da sumula vinculante são a imperatividade e coercibilidade, sendo que a primeira decorre da obrigação na utilização de determinada direção diante casos concretos específicos, derivando na acolhida obrigatória de determinado sentido normativo, enquanto a segunda refere-se ao uso compulsório do enunciado sumular a ser aplicado. [117]
Possuem legitimidade para aprovar, revisar ou cancelar súmula vinculante, os mesmos sujeitos que tem iniciativa para propor a ação direta de inconstitucionalidade, de acordo com o disposto no §2º do art.103-A, CF. [118]
Em seguida, o art. 3º da Lei n.11.417/06, acrescentou aos legitimados, o Defensor Público-Geral da União, bem como os Tribunais Superiores, os Tribunais de Justiça de Estados ou do Distrito Federal e Territórios, os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais Regionais do Trabalho, os Tribunais Regionais Eleitorais e os Tribunais Militares. E ainda, o §1º do art.3º da mesma lei admite que o município ingresse incidentalmente em processo. [119]
Quanto ao procedimento de edição, revisão ou cancelamento, deve-se observado o processo estabelecido nas Resoluções n.381 e 388 do STF.
3.5 Distinção entre a eficácia do precedente, coisa julgada e eficácia da intervenção
Ao se estudar a teoria dos precedentes judiciais, importante observar os efeitos que emanam dos precedentes, quais sejam: vinculante/obrigatório, obstativo da revisão de decisões ou persuasivo.
Ao analisar o tema, Fredie Didier Jr. esclarece cada um deles:
“a) Precedente vinculante/obrigatório: i) a súmula vinculante em matéria constitucional; ii) o entendimento consolidado na súmula de cada um dos tribunais tem força vinculante em relação ao próprio tribunal; iii) os precedentes oriundos do Pleno do Supremo Tribunal Federal (STF), em matéria de controle difuso de constitucionalidade, ainda que não submetidos ao procedimento de súmula vinculante, tem força vinculante em relação ao próprio STF e a todos os demais órgãos jurisdicionais do país;
b) Precedente obstativo da revisão das decisões: que seria aquele tem o condão de obstar a apreciação de recursos ou de obstar a remessa necessária, sendo, em última análise, um desdobramento do efeito vinculante de certos precedentes, por exemplo, os casos dos artigos: 475, §3º; 518, §1º; 544, §§3º e 4º; e 557, todos do Código de Processo Civil;
c) Precedente persuasivo: que não tem força vinculante, apenas persuasiva; seria importante para as decisões posteriores quando o próprio legislador conferir autoridade a ele, precedente, como nos casos de julgamento liminar de improcedência do art.285-A, CPC; quando se admite a instauração do incidente de uniformização de jurisprudência, nos termos do art.476 e 479, CPC; ou ainda quando se admite a interposição de recursos que têm por objetivo uniformizar a jurisprudência com base em precedentes judiciais, tais como os embargos de divergência do art. 546, CPC e o recurso especial fundado em divergência (art. 105, III, “c”, CF).”[120]
Nas hipóteses do efeito vinculante do precedente, importante fazer a diferenciação entre a eficácia do precedente, coisa julgada e eficácia da intervenção.
O efeito vinculante da coisa julgada encontra-se no dispositivo, produz efeito inter partes e pode ser operacionalizada por meio de ação rescisória, querela nullitatis, desconstituição de sentença inconstitucional (art.475, §1º e 741, parágrafo único, CPC) e correção de erro material.
O efeito vinculante na eficácia de intervenção está na fundamentação de fato e direito constante na decisão, seus efeitos limitam-se ao assistente simples (art.55, CPC) e o instrumento de controle se dá pela exceptio male gestis processos (art.55, I e II, CPC).
O efeito vinculante da eficácia vinculativa do precedente judicial se origina na ratio decidendi, instituída na fundamentação da decisão, produzindo efeitos erga omnes e pode ser suscitada previamente pela intervenção do amicus curiae ou repressiva através do emprego de mecanismos de superação do precedente judicial.[121]
3.6 Alteração do precedente e eficácia retroativa
É sabido que a alteração do precedente judicial ocorre por meio da aplicação das técnicas de superação, porém questiona-se qual a eficácia da decisão que modifica a jurisprudência dominante.
Tércio Sampaio Ferraz Junior defende que compete ao Poder Judiciário modular os efeitos da decisão que modifica determinado entendimento daquela Corte, em obediência ao princípio da razoabilidade, desde que esse precedente não possua eficácia vinculante e obrigatória e, portanto, não possa ser usada como fonte formal do direito. [122]
Seguindo o mesmo raciocínio, Roque Antonio Carrazza sustenta que:
“(…) o princípio da segurança jurídica hospeda-se nas dobras do Estado Democrático de Direito, consagrado já no art.1º da Constituição Federal, e visa proteger e preservar as justas expectativas das pessoas. Para tanto, veda a adoção de medidas legislativas, administrativas ou judiciais, capazes de frustrar a confiança que as pessoas depositam nas normas jurídicas em vigor”.[123]
Celso Antonio Bandeira de Mello completa que se trata de uma “conjugação entre os princípios da segurança jurídica e da boa-fé”. [124]
À guisa de exemplificação, cite-se o art.146 do CTN e o parágrafo único do art.2º da Lei n.9.784/99.
Desta forma, conclui-se que se a mudança jurisprudencial afetar o equilíbrio nas relações jurídicas fundadas em posicionamento prévio admite-se a utilização do precedente superado, já indicando a modificação de paradigmas para casos posteriores ou ainda não julgados.
Destarte, a alteração do precedente possui eficácia ex nunc, como mecanismo de modulação dos efeitos da decisão judicial pelos tribunais superiores.
3.7 Avaliação crítica da pretendida Inovação a ser Introduzida pelo art.882 do Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil
O art.882 do Projeto de Lei n.166/2010[125], que dispõe sobre o Novo Código de Processo Civil, propõe a valorização da jurisprudência e da súmula como fonte do direito no Brasil, sendo omissa acerca da utilização dos precedentes judiciais tanto como norma quanto fonte do direito.
Embora já se admita a convergência entre os sistemas da Civil e Common Law no Brasil, os legisladores ainda não viabilizaram um instrumento apto a assegurar positivamente o precedente judicial e a jurisprudência como normas de valorização do precedente, bem como a explicitação de diretrizes para a utilização deste como fonte no ordenamento jurídico. [126]
De acordo com um artigo elaborado por Marcellus Polastri Lima e Hélio João Pepe de Moraes, a partir da leitura do aludido dispositivo surge à indagação “se a regra contida no caput desse dispositivo não deveria partir de uma previsão constitucional expressa através de uma Emenda à Constituição“, porquanto a norma traz conceitos vagos. [127]
Os referidos juristas defendem que a alteração legislativa deveria ser feita por meio de disposição constitucional expressa, uma vez que se trata de relevante modificação que afetará julgamentos futuros.
No mesmo raciocínio, Haroldo Lourenço afirma que a proposta elaborada para o novo Código de Processo Civil dispõe tão somente acerca da jurisprudência como fonte do direito, “sem distinguir de precedente, jurisprudência dominante, súmula, decisão judicial, tampouco, sobre as técnicas de superação e confronto dos precedentes, como overruling, overriding, distinguishing”. [128]
Por conseguinte, destaca que “não se cogita, sequer, na diferenciação da ratio decidendi e da obter dicta, não obstante se estimular a publicação de enunciados sumulares.” [129]
Nada obstante o Novo Código de Projeto Civil valorize a jurisprudência como possível fonte formal do direito, infelizmente nada menciona acerca da utilização dos precedentes judiciais gerando insegurança e inviabilizando a efetivação dos direitos garantidos ao cidadão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo apresentado no presente trabalho leva a concluir que o direito processual brasileiro não se encontra mais tão arraigado ao sistema da Civil Law, já se admitindo a utilização da jurisprudência como possível fonte formal do direto, a exemplo das súmulas vinculantes, de modo que se tornaram importantes instrumentos na resolução de litígios tanto que foram insertos no projeto de lei n.166/2010.
Todavia, se aprovado nos moldes propostos, a proposta do Novo Código de Processo Civil não corresponderá às expectativas da comunidade jurídica brasileira, porquanto versa pontualmente acerca do uso da jurisprudência como mecanismo balizador da segurança jurídica, não fazendo qualquer menção acerca dos precedentes judiciais como mecanismo apto a dirimir conflitos já judicializados.
Durante este trabalho, restou inequívoca a oportunidade de se extrair uma regra de padronização, a partir de uma ratio decidendi apresentada na fundamentação, ou seja, a aplicação dos precedentes judiciais decorre da subsunção dos precedentes ao caso concreto.
Ademais, restou demonstrada a possibilidade quanto à utilização do precedente judicial como norma e fonte do direito no Brasil desde que seja estabelecido um instrumento eficaz e seguro, preferencialmente por meio de emenda constitucional.
Registre-se que a inclinação quanto à inserção no ordenamento jurídico vigente pela via constitucional decorre única e exclusivamente da necessidade de se conferir efetividade dos direitos nele insertos, porquanto reforça o principio da legalidade inserto na Constituição, segundo o qual apenas a lei cria obrigações impositivas ao cidadão.
Além disso, o projeto é omisso no que tange acerca da forma de inserção dos precedentes judiciais no ordenamento jurídico, uma vez que tão relevante alteração legislativa deveria ser feita pela via constitucional, não infraconstitucional como pretendida, com a futura edição de uma emenda constitucional com vistas a assegurar a regulamentação dos precedentes judiciais e sua utilização pelos Tribunais pátrios.
Por outro lado, não se verifica nenhuma espécie de incompatibilidade entre o novo instituto (precedente como fonte do direito) com a já existente figura da súmula tampouco da jurisprudência, pois conforme estudado no item 2.1.1, tratam-se de institutos com finalidades completamente distintas.
Conclui-se, portanto, que ao se admitir a inovação a ser introduzida pelo artigo 882 do Projeto Novo Código Processo Civil nos termos em que foi proposta, estarão os jurisdicionados irremediavelmente prejudicados, diante da omissão legislativa acerca da introdução, regulamentação e utilização dos precedentes judiciais não somente como fonte, mas também mecanismos de integração do direito.
Informações Sobre o Autor
Márgara Bezerra do Nascimento
Pós-graduanda em Direito Constitucional e Direito Processual Civil Lato Stricto Sensu na Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus. Possui graduação em Direito pelo Instituto Luterano de Ensino Superior de Porto Velho 2010 e especialização em Direito Público pela Universidade Anhanguera Uniderp 2011. Desde agosto/2010 exerce a função de assessora de juiz perante a 3 Vara Cível da Comarca de Porto Velho. Tem experiência na área de Direito com ênfase em Direito Civil e Direito Processual Civil.