Resumo: Traçar o caminho de uma hermenêutica filosófica em estrita conexão com o direito tem sido uma tarefa complexa, mas de singular importância para o universo jurídico. Nesse sentido, o presente trabalho visa expor as ideias de Jarkko Tontti, que na obra Right and Prejudice, busca na fenomenologia heideggeriana o ponto de partida para que sejam clarificadas as relações entre ‘ser e direito’ e ‘tempo e direito’.
Palavras-chave: hermenêutica jurídica; ser; tempo; direito.
Sumário: 1 – Considerações iniciais; 2 – Sobre o ser e o direito; 3 – O passado como a temporalidade primária do direito; 3 – Conclusão.
1 – Considerações iniciais:
Com a indagação singular que compõe o presente chamado, inicia-se no campo filosófico uma relação simbiótica entre a filosofia de Heidegger e o universo do direito. Talvez pudesse soar exagerada ou demasiadamente forçosa essa fusão se não fosse a hermenêutica fenomenológica heideggeriana a responsável por manter esse elo inquebrantável. Afinal, o que seria do direito sem a hermenêutica, senão apenas textos?
Partir dessa relação, taxada por muitos como romântica, não significa embeber-se por um manifesto romantismo, pois antes de qualquer preconceito, existe um convite à reflexão. Em um cenário de crise do direito moderno, a ideia de que haja uma pré-compreensão pautada pela análise fenomênica expressa como ser-no-mundo, vem reconstruir esse direito através da vivência, ou seja, através do mergulho existencial no mundo mesmo, capaz de descontextualizá-lo, tendo em vista que também o texto jurídico busca o poder ser como possibilidade de desvelamento do ser.
Conectar o direito com a questão fundamental do ser é buscar um conceito de direito alicerçado na hermenêutica filosófica, tomando como paradigma o caminho no qual o Dasein heideggeriano reside no mundo. Nesse caminho ousado, os contornos filosóficos construídos pelo finlandês Jarkko Tontti desempenham papéis protagonistas, fazendo do Ser e do Tempo importantes elementos que compõem o conceito de direito.
Na obra Right and Prejudice, Tontti volta-se para a investigação da hermenêutica filosófica como um contraponto à filosofia analítica. Todavia, são nos capítulos ‘Being and law’ e ‘Time and Law’ que ele estabelece especificamente a ideia de uma conexão do direito com o ser e também com o tempo. Ficaremos, pois, adstritos a esses dois momentos.
2 – Sobre o ser e o direito:
O olhar filosófico de Heidegger, embora distante dos contornos do universo jurídico, não deixou de influenciar o direito. Para Tontti, vários juristas dedicaram-se na busca por uma transposição da filosofa heideggeriana para o plano da normatividade. Assim, por exemplo, Carl Schmitt, embora embebido por uma tendência anti-metafísica evidente em sua postura decisionista, dava a entender que o direito se conectaria com o ser através do caminho no qual o Dasein reside no mundo.
O grande problema decorrente desses modelos através dos quais se buscava um protótipo de uma hermenêutica filosófica interconectada ao campo jurídico era a ausência da pretensão de que o direito fosse conectado com a fundamental questão do ser, isso porque para Tontti, embora o direito fosse um artefato linguístico humano, ele não poderia ser pensado como questão fundamental do ser, ficando adstrito tão somente a uma conexão com o ser, dado seu caráter ontológico regional.
Ao contrário de autores como Hirvonen e Minkkinen, que defendem a filosofia do direito como possibilidade de uma ontologia fundamental do direito, Tontti insiste no caráter regional da ontologia do direito:
“Eu gostaria de propor buscar estabelecer uma ontologia regional do direito, perguntando o que é o modo de ser do direito, como o específico artefato humano chamado direito é, de que forma esse ser particular opera como artefato linguístico humano e como forma de prática humana” (TONTTI, 2004, p. 86)[1].
Para buscar sustentação a essa proposta, Tontti estabelece uma ligação entre a ontologia regional do direito e as tentativas de se elaborar uma ontologia fundamental do direito. Sob esse prisma, ele volta-se para o pensamento heideggeriano tomando-o como paradigma de desenvolvimento de uma ontologia fundamental do direito.
Tontti afirma que Heidegger, ao resgatar o passado grego, teria encontrado no termo dike o significado para uma ordem inicial conectada à noção de verdade entendida como desvelamento. Nesse sentido a justiça, entendida como dike, constituiria a ordem fundamental das coisas, permitindo que o ser-aí-no-mundo também existista como ser-aí-no-direito ou ser-aí-no-justo.
Por outro lado, em contrapartida à busca por uma ontologia fundamental do direito, Tontti recorre às afirmações de Wolf de que, na verdade, o que se é buscado é a normatividade fundamental do ser-aí. E vai mais longe, transpondo ao texto as três características – articuladas na mitologia grega – que seriam o núcleo da ontologia do direito: fundamentação, conjunção e vinculação
Segundo Tontti, o cenário de articulação dessas três características foi constituído por Wolf através da interpretação dos atributos dos deuses gregos Themis e Dike de uma forma que fosse corroborada as posições da fundamentação, conjunção e vinculação como características básicas do ser-direito. Assim, Themis é a Deusa da providência, a responsável por unir deuses e humanos ao direito do ser. Por outro lado, Dike é reveladora da verdade, sendo seu tempo um futuro que, assim como ocorre no Dasein, ainda se apresenta como tarefa inacabada. Por isso, para Tontti, a ontologia fundamental de Wolf, pautada nos temas de verdade e providência, redundaria em “reformulações das dimensões do historicismo primordial e da temporalidade do direito” (TONTTI, 2004, p. 90).
Tontti entremeia-se ainda nas ideais de Hirvonen que, assim como Wolf, também desenvolveu uma versão de uma ontologia fundamental do direito a partir da experiência grega da dike. Hirvonen afirma que desde Platão há uma mudança no sentido da justiça como dike, que passa a significar dikaiosyne, ou seja, o sinônimo do absoluto e permanente na natureza. Sob tal perspectiva, nessa hermenêutica dialética, a dike seria a aporia do ‘ser-no-direito’, ou seja, apenas uma derivação do ser no direito fundamental, incapaz de pressupor um acesso permanente às formas de justiça ou conhecimento. Logo, dike seria sinônimo de direito de ser.
A esse juízo formulado sobre a dike corresponderia, na visão de Tontti, o que Heidegger chama de verdade como abertura (desvelamento), ou seja, a ideia de que uma proposição seja considerada verdadeira ou falsa somente nas bases de uma ontologia existencial aberta. Entretanto, ainda que analisada cuidadosamente a ontologia fundamental do direito em conexão com o tempo, isso é, analisada a existência temporal do Dasein e a temporalidade do direito de ser primordial, percebe-se que Hirvonen omitiu-se na investigação da temporalidade do direito como um artefato humano linguístico. Teria faltado, portanto, não somente a Hirvonen como também a Wolf responder a pergunta: “Como a primordial temporalidade do Dasein afeta os artefatos humanos e práticas humanas do ser, como o direito? (TONTTI, 2004, p. 94).
Minkkinen também é citado por Tontti dentro do grupo daqueles que tentaram formular uma ontologia fundamental do direito partindo da hermenêutica heideggeriana, já que ele volta-se para a filosofia do direito como primeira filosofia, se opõe à perspectiva ôntico-regional do direito e acaba por dividir sua filosofia em duas fases. A primeira fase, denominada ontológica-ontológica, tem no direito um fator constitutivo do ser-aí, isso porque o direito atua como componente estrutural do próprio ser. Quanto à segunda fase é esta epistemológica-ontológica, pois nela o direito atua como espécie de portal para o conhecimento. Assim, para Minkkinen o ser-direito significa uma correção tanto no campo epistemológico quanto no campo ético.
Minkkinen, embebido pelas figuras de linguagem, cria ainda uma metáfora atribuindo ao direito a condição de uma ferramenta, mais especificamente a de um martelo. Desse modo, afirma ele que o martelo tem sua função mais evidenciada quando se quebra, isso porque em situações de distúrbio todo o referencial da totalidade do Dasein que reside no mundo é momentaneamente mais detectável. Nesse mesmo sentido, o reconhecimento do direito é maior quando verifica-se uma dada violação, afinal, o direito se metaforiza como ferramenta que constitui a totalidade estrutural e referencial de todo Ser-aí.
A teoria de Minkkinen também não escapou das críticas de Tontti, que a definiu como irrelevante do ponto de vista de uma ontologia fundamental por fundir discussões que tem muito pouco em comum. Todavia, para Tontti, a principal dificuldade desse modelo filosófico estaria relacionada à problemática do termo ‘direito’, que deveria ser substituído pelo termo ‘normatividade’, de modo a evitar erros e resolver muitos dos problemas da ontologia fundamental do direito. Nesse sentido, o direito se caracterizaria como um Ser (entidade) desprovido de um papel protagonista na relação com a ontologia fundamental que, por óbvio, não se limita apenas a questões relacionadas ao ser. O direito seria pensado, portanto, como ontologia regional e apenas nesse sentido haveria possibilidade de se desenvolver uma primordial normatividade do ser-aí, através de uma conexão com a ontologia fundamental heideggeriana.
Insta ainda salientar, por fim, que Tontti discorda da ideia de que deva ser instituído um primordial direito de ser como capaz de explicar o direito constituindo o próprio ser justamente porque o direito de ser não tem uma conexão especial com o direito como ser. Por esse motivo é que se defende a substituição do termo ‘direito’ pelo termo ‘normatividade’. Para ele, incorpora-se ao ser uma normatividade e uma dimensão de conflito que somente pode ser o ser-aí, o Dasein, a normatividade no mundo. Nessa esteira, “trazer juntos os tópicos da fundamental ontologia e da filosofia do direito facilmente conduz a mal-entendidos se se usa o termo ‘direito’” (TONTTI, 2004, p. 99).
3 – O passado como temporalidade primária do direito:
Um novo retorno à Grécia, trazendo para a contemporaneidade Cronos (tempo) como a divindade que estabelece o direito, foi o ponto de partida encontrado por Tontti para explicar a relação tempo-direito. A partir daí, tomando como paradigma essa interconexão, a Escola Analítica do Direito emerge como preciso objeto de estudo, pois voltada à interpretação do mundo presente, formado por regras e princípios, ela vê na função da doutrina jurídica uma sistematização e interpretação do ordenamento jurídico válido, sendo, portanto, um exemplo singular de que “a a-historicidade e atemporalidade caracterizaram e ainda continuam a caracterizar a maioria das correntes de pensamento na teoria do direito.” (TONTTI, 2004, p.101).
Na visão de Tontti, a abordagem analítica do Direito representaria o que em Heidegger é chamada de ‘vulgar concepção do tempo’, em contraponto a uma filosófica concepção do tempo. Assim, sob essa ótica, a fluência do tempo seria uma interminável e linear sucessão de ‘agoras’, que apareceriam e desapareceriam continuamente. Nesse diapasão, o trabalho de Winkler, que vai de encontro com o normativismo puro de Kelsen ao propor uma teoria empírico-racional explicando os significados da visão naturalística da temporalidade do direito como interminável continuação do agora, exemplifica essa concepção vulgar do tempo.
Ainda buscando valorizar a primazia do presente, mas de forma menos radical que Winkler, Kirste afirma que ao direito caberia não apenas determinar o que seria relevante para ele no passado, mas também planejar o futuro através da legislação. Sob essa perspectiva, o passado legal seria um presente-passado e o futuro legal seria um presente-futuro, isso porque para ele, o tempo como uma estrutura social do direito, controla sua própria ordem e cria sua própria temporalidade, que se difere da temporalidade natural. Todavia, assegura Tontti que tal ponto de vista é deveras exagerado e “vai em direção a uma explicação positivista do direito” (TONTTI, 2004, p. 103).
A proposta do Tontti, em sentido contrário, funda-se numa visão dialética, voltada para o direito como objeto de uma ontologia regional que envolve artefatos humanos particulares. Assim, para ele:
"(…) o modo específico de ser do Dasein encontra o seu sentido na temporalidade e, porque todas as operações relativas ao direito são possibilidades ônticas do Dasein, devemos nos perguntar sobre a ontologia regional daquele artefato humano particular, o direito, através da dimensão do tempo como o horizonte de cada estudo ontológico" (TONTTI, 2004, p. 103).[2]
Nessa perspectiva, o entendimento seria uma ferramenta metodológica capaz de explicar a existência do ser-aí, cujo modo temporal aparece necessariamente em todos os artefatos humanos, incluindo o direito. Por esse motivo, Tontti resgata a dimensão temporal do direito, por entende-la como condição de possibilidade do Dasein.
Envolto por uma visão dialética, Tontti volta-se para a análise do modo de existência de todos os artefatos humanos que, por tomarem uma forma de continuidade, fazem transparecer uma cadeia temporal de interpretação, cuja a atividade interpretativa se dá dentro de uma dialética do passado, presente e futuro. Sob esse prisma, uma dialética hermenêutica, obviamente, necessitaria de uma ontologia regional do direito como entidade temporal e interpretativa.
Ainda voltado para as tentativas de explicar a funcionalidade dialética das diferentes temporalidades sociais do direito, Tontti coloca em evidência o modelo de Ost, que discorre sobre quatro categorias de tempos normativos a partir dos quais seria possível repensar o fenômeno da temporalização. A primeira categoria, portanto, é constituída pela memória que, vinculada ao passado e ao presente, emerge na tradição não escrita, nos costumes e nos precedentes como uma condição necessária que inevitavelmente nos afeta. A segunda categoria, encontra no perdão o mecanismo capaz de impedir não apenas que a memória seja apagada, mas que ela possa determinar incondicionalmente o presente. A terceira categoria, a promessa, surge como uma forma primária de um tempo jurídico ou de um tempo social, orientando-os para o futuro. Por fim, a quarta categoria, evidenciada pelo questionamento, encontra referencial através de uma abertura no mundo jurídico para um espaço crítico no qual novas formas interpretativas são mantidas, isso porque com a chegada do novo, o caminho em direção ao futuro do direito tem seu formalismo atenuado.
É importante também salientar que as quatro categorias supramencionadas devem ser verificadas sempre em conjunto. A supremacia da memória, por exemplo, poderia conduzir a uma estagnação do direito no passado, impossibilitando mudanças. Por esse motivo, uma contraparte dialética tornar-se-á necessária para trazer o perdão como forma de flexibilidade do imutável:
"O perdão é uma inovação e uma segunda chance. Ele libera o presente das cadeias normativas do passado, mas ainda preserva a memória. O perdão dá um futuro à memória”. (TONTTI, 2004, p. 106)[3]
O perdão, entretanto, como categoria da temporalidade, também não deve ser visto de forma isolada, pois corre o risco de causar uma amnésia decorrente de violenta manipulação da memória social. Nessa esteira, avoca-se a promessa como possibilidade de um olhar voltado para o futuro, sem se esquecer que, se visualizada fora de seu conjunto, ela faz com que o direito perca a sua flexibilidade e deixe de se ajustar aos anseios sociais. Por isso, faz-se necessário o questionamento, a fim de estruturar uma justiça social condicionada à dialética entre “o direito de esquecer e o dever de lembrar” (TONTTI, 2004, p. 106).
Em relação ao modelo proposto por Ost entende Tontti que, embora a dialética dessas quatro temporalidades assegure um equilíbrio saudável em direção à justiça social, nela não há uma preocupação voltada para a temporalidade primária do direito sob um ponto de vista ontológico, ou seja, do direito como artefato linguístico humano inevitavelmente atrelado ao Dasein. O fato é que não se levou em consideração a questão de que “a fundamental historicidade do Dasein penetra o modo de ser de todas as práticas sociais e institucionais, artefatos humanos linguísticos, tal como o direito” (TONTTI, 2004, p. 109).
É inegável que a tradição desempenha um papel central na teoria de Tontti, motivo pelo qual ele a aborda exaustivamente. Nesse sentido, sem incorrer na tautologia do raciocínio ligado ao tema, ele passa à discussão do papel da tradição no direito, recorrendo a obra ‘O Império do Direito” de Ronald Dworkin.
Segundo Tontti, a construção da interpretação jurídica em Dworkin se dá através de três estágios. No primeiro estágio, denominado pré-interpretativo, o intérprete observa as regras e os padrões de uma cultura particular. No segundo estágio, conhecido por interpretativo, o intérprete estabelece alguma justificativa geral para os principais elementos da prática identificados no primeiro estágio. Por fim, no terceiro estágio, pós-interpretativo, o intérprete ajusta sua noção do que a prática realmente requer, de forma a melhor servir a justificativa que ele aceita na etapa anterior. Sob esse prisma, fala-se em uma interpretação construtivista que entende o direito como integridade.
O modelo de direito como integridade alcança o campo prático através de uma construção teórica que Dworkin denomina ‘romance em cadeia’. Esta ideia, trabalha com a hipótese de que um certo número de romancistas concorde em escrever, cada um deles, apenas um capítulo de um romance cujo tema já tenha sido proposto. Obviamente, haverá dificuldades na adequação que o segundo autor deverá fazer de seu texto para que não contradiga o primeiro autor. Essas dificuldades aumentarão a cada capítulo, visto ser a interação entre adequação e justificação complexa, exigindo um minucioso balanço entre diferentes visões políticas fundadas na tradição. O importante é que a decisão do juiz não fuja do que seja adequado ou justo, mostrando-se coerente o suficiente para que se torne a única resposta correta.
A essa proposta construtivista apresentada por Dworkin, contrapõe Tontti afirmando que o problema do romance em cadeia seria a ausência de abertura a outros intérpretes do direito (doutrinadores, legisladores e juristas), o que deixaria a interpretação adstrita tão somente aos juízes. Desse modo, tal modelo vislumbraria o direito apenas de uma perspectiva ôntica, sem se perguntar sobre o real significado de ser do direito, que é tentar se estabelecer por meio de uma ontologia regional.
Tontti entende ainda que "o papel da tradição e da distinção entre adequação e justificação, a pretensão concernente a coerência e única resposta correta e o fato de que ele [Dworkin] não leva devidamente em conta a dimensão do conflito na interpretação (TONTTI, 2004, p. 113)", seriam também pontos específicos que enfraqueceriam a tese construtivista dworkiniana. Assim, ao distinguir adequação e justificação, Dworkin não teria compreendido a natureza da historicidade como uma condição de pensamento por ter pautado seu modelo na ideia de que a tradição do direito não consegue dar explicações suficientes para questões jurídicas difíceis, abrindo-se espaço para um debate moral ou político. Do mesmo modo, a defesa da tese da única resposta correta, que encontra embasamento na ideia de coerência da tradição, seria uma falácia, tendo em vista que todas as tradições têm dimensões conflituosas conducentes a dimensões contraditórias. Por fim, teria havido negligência no que tange ao papel do conflito como importante elemento da interpretação, pois ao defender a harmonia da tradição e a única resposta correta, Dworkin teria desprezado os conflitos interpretativos que compõem a estrutura normativa do direito.
Incansável na busca por caminhos capazes de conectar a tradição ao direito, Tontti também recorre a Krygier, a quem atribui o estudo da tradição sob a ótica de três elementos básicos. O primeiro desses elementos seria a referência ao passado, que ao dispor ser toda a tradição composta de elementos oriundos do passado real ou imaginário, reflete-se no sistema jurídico por meio da institucionalização da manutenção do passado através de escritas autoritativas e persuasivas. O segundo elemento, a autoridade no presente, que atua como permissão ou negação da possibilidade de resgate do passado para o presente, elucubra a impossibilidade do sistema jurídico mudar o passado, isso porque o caminho correto seria selecionar o que seja importante para o direito através do presente (presentismo). O terceiro e último elemento, a transmissão, existe porque a tradição não se manifesta automaticamente, ainda que o passado mantenha uma autoridade no presente.
Para Tonnti, o modelo de Krygier separa a tradição do conhecimento, o que seria um erro do ponto de vista da dialética hermenêutica, que crê estar justamente nessa cisão os meios para que se torne possível entender o direito sob o ponto de vista ontológico. Desse modo, para elucidar esse equívoco, Tontti propõe pelo menos cinco modos de transmissão da tradição no direito que, negligenciados por Krygier, carregam em comum a interpretação como elemento central.
Os cinco modos de transmissão da tradição propostos por Tontti, apresentam-se como atividades linguísticas inerentes ao entrelaçamento da linguagem com a historicidade, daí o inegável papel desempenhado pela interpretação. Assim, o conhecimento jurídico aprece como o primeiro modo, dispondo sobre a impossibilidade de aplicação do direito sem a fabricação de um conjunto de fatos jurídicos. O segundo modo, constituído pelos precedentes, leva em consideração as heranças político-culturais que atuam como interpretações do passado legal, seguidas da aplicação desse passado legal interpretado ao presente. O terceiro modo, a prática jurídica, evidencia-se através do trabalho dos operadores do direito nos tribunais como intérpretes da tradição, (re)construindo-se novos papéis para a tradição interpretada. O quarto modo, a legislação, justifica-se na ideia defendida pela escola histórica de que o direito não é puramente baseado num ato volitivo mas conectado à tradição. Por fim, o quinto modo, o ensino jurídico, considerado como o primeiro estágio das instituições, percorre o caminho existente na tradição do pensamento jurídico em direção às futuras gerações, buscando estabelecer uma atitude crítica de suspeição e distanciação.
O fato é que apenas através desses cinco modos de transmissão acima descritos é que o papel da tradição no direito se manifesta. Tontti insiste, portanto, na necessidade de que exista uma dialética temporal capaz de assegurar essa relação, que nada mais seria que uma simbiose entre ‘tempo e direito’.
"Através dos cinco modos de transmissão a narrativa dialética e temporal do direito continua a existir. Eles vinculam a narrativa do direito com o passado e tradições transmitidas e, simultaneamente, através deles este passado é aplicado ao presente e ao longo das tradições é alterado “(TONNTI, 2004, p. 124).[4]
4 – Conclusão:
Em ‘Being and Law’, assim como em ‘Time and Law”, Tontti busca uma resposta para a questão ontológica do direito do ponto de vista de uma filosofia hermenêutica construída através da dialética. Através da noção heideggeriana do tempo como o horizonte geral a que toda ontologia é obrigada, ele tenta elaborar um conceito ontológico plausível de direito que, vislumbrado como um artefato humano linguístico profundamente ligado à historicidade e ao conflito, precisa ser entendido como ontologia regional.
A percepção do passado como a temporalidade primária do direito, que apresenta uma narração e uma estrutura linguística, parece ser, portanto, o alicerce das ideias propostas por Tontti no ensaio ora trabalhado. Sob essa ótica, a ideia de pertencimento do ser na tradição provoca um movimento dialético do tempo, sendo o passado interpretado do ponto de vista do presente e ao mesmo tempo, voltado para as projeções do futuro. Há, enfim, um caminho interpretativo que sinaliza novamente para o chamado inicial: é possível que haja uma hermenêutica jurídica heideggeriana?
KIRSTE, Stephan. Constituição como início do direito positivo: a estrutura temporal das constituições. Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito, Recife-PE, n. 13, p. 111-165, 2003.
OST, François. O tempo do Direito. São Paulo: Edusc, 2005.
Notas:
Informações Sobre o Autor
Charles Nunes Bahia
Advogado; Mestrando em Teoria do Direito pela PUC Minas