Resumo: Entender o que é a arbitragem requer a compreensão acerca de como tal instituto se efetiva. Em nosso país, uma lei específica o rege. Abordar sua natureza jurídica, sua capacidade e o seu objeto importa, e muito, ao domínio desse juízo paraestatal. Da mesma maneira, a apreciação do que venha a ser a convenção de arbitragem, sobre o papel dos árbitros e qual o valor da sentença proferida são outros pontos relevantes para o estudo. Importante estabelecer o valor que cada um desses itens representa para que o juízo arbitral possa alcançar maior aceitação e conquistar ainda mais usuários.
Palavras-chave: Arbitragem. Juízo Paraestatal. Procedimento.
Abstract: Understanding what is arbitration requires the understanding of how such institute effective. In our country, a specific law governing it. Address their legal nature, their capacity and their matter object, and much, to the domain of parastatal judgment. Similarly, the appreciation of what will be the arbitration agreement on the role of referees and what the value of the sentence pronounced are other areas for the study. Important to establish the value that each of these items is that the arbitration can achieve greater acceptance and gain more users.
Keywords: Arbitration. Parastatal judgment. Procedure.
Sumário: 1) O longo caminho; 2) Conceito de arbitragem; 3) A Lei nº 9.307/1996; 4) Natureza jurídica; 5) Capacidade e objeto; 6) Convenção de arbitragem; 7) Árbitros; 8) Sentença; 9) Referências.
1 – O longo caminho
“E amanhã não seremos o que fomos / nem o que somos” Ovídio [1]
Benjamin Franklin já disse que “nunca houve uma guerra boa nem uma paz ruim”[2]. Tito Lívio afirmou: “uma paz certa é melhor e mais segura do que uma vitória esperada”[3]. E alternativas para resolver as disputas emanadas da sociedade não são novidade. Talvez soe moderno chamar de alternativo o que, em todos os tempos e em todos os lugares, traduziram maneiras cotidianas e imediatas de resolver problemas entre as pessoas, mas o fato é que os métodos não adversariais antecederam o próprio surgimento da jurisdição, como passaremos a explicar.
A proteção aos direitos eclodiu do instinto humano de preservação, baseado na concepção do que era certo ou errado para o clã, a tribo ou a cidade antiga. Em etapa preliminar ao advento da jurisdição, e até ao aparecimento das primeiras leis, era a justiça de mão própria ou autotutela que imperava, uma vez que as instituições eram ainda tênues e insusceptíveis de resolver os choques de interesse (CINTRA, DINAMARCO E GRINOVER, 2002).
Apenas em momento histórico muito posterior é que vem a tona um novo modelo apto a suplantar a justiça privada, com o desenvolvimento do rito processual, ainda na Roma antiga. As pessoas terminaram por perceber os males desse sistema, e isso as fez buscar, ao invés de uma solução parcial, imposta e fatalmente injusta, qual seja aquela emanada de ato de uma das partes, outra opção, imparcial, amigável e justa, através de árbitros de confiança mútua, com o fito de resolver os conflitos. “Historicamente, pois, surge o juiz antes do legislador” (CINTRA, DINAMARCO E GRINOVER, 2002, p.22).
Nesse novo método, as partes em crise compareciam a um terceiro indiferente ao litígio, escolhido em comum acordo, que ficava encarregado de julgar a causa. Esta técnica, que antecedeu a afirmação estatal e a sua consequente intromissão nos ditames cíveis, restringindo-se ao âmbito privado, mediante a preferência dos próprios litigantes, representava um verdadeiro juízo arbitral. Após isso, cresceu, gradativamente, a tendência do Estado de absorver o poder de ditar as soluções para os conflitos, notadamente depois que este trouxe para seu já vasto arcabouço de atribuições a titularidade da nomeação deste “terceiro” envolvido.
A evolução do processo romano pode ser dividida em três fases. A primeira delas, dita legis actiones, foi marcada pela formalidade e oralidade do procedimento. Dois estágios distintos eram bastante claros nesse período: a) o in iure, o qual ocorria dentro de um tribunal e perante um magistrado (pretor), responsável por examinar os requisitos da ação e fixar o objeto do litígio, para, então, designar um arbiter a resolver a questão conflituosa, e o b) in iudicio, onde o árbitro, ou grupo de jurados, escolhido pelo juiz, teria a tarefa de, analisado o caso, as provas e as eventuais testemunhas, proferir a sentença. Desta feita, como a vingança particular quedara por ser incompatível com os novos preceitos legais, ocorreu a mudança da “arbitragem facultativa” para a “arbitragem obrigatória”, com a antes exceção galgando ao status de regra, sob a gestão centralizadora do Estado. “Essa é a marca do direito romano, que o difere do atual, em que o juiz não pode delegar a jurisdição. Daí falar-se em equivalentes jurisdicionais ou substitutivos da jurisdição, quando nos referimos, hoje, à arbitragem” (FIUZA, 2002, passim; SANTOS, 1999, passim).
Com efeito, privilegiando sua racionalidade, o homem repensou as maneiras que poderia empregar na melhor e mais eficaz composição de seus conflitos. Nesse ínterim, foi da autotutela ao arbitramento cogente, e não parou por aí. Tendo-se em conta que a justiça privada antecedeu aos juízes e tribunais estatais, pode-se afirmar que a prática arbitral não se restringe ao patamar de mero feito, mas sim vem a completar o sentido maior do processo. E tal desenvolvimento conduziu à jurisdicionalização, como veremos.
Na segunda fase da alteração, conhecida como ordo judiciorum privatorum (149 a.C. a 294 d.C.), o direito romano conheceu a expansão da competência do pretor (juiz), que concentrou funções, passando não só a conhecer do mérito dos litígios, como também a sentenciar, não mais complacendo em nomear ou aceitar a nomeação de um árbitro. E essa alteração na ordem jurídica deflagrou uma terceira fase, denominada cognitio extra ordinem, com a nomeação de juízes oficiais, funcionários públicos, encerrando o ciclo histórico em que se viu a justiça privada ascender à justiça pública (SANTOS, 1999).
No século III d.C. se alcançou o zênite dessa mutação, na qual o Estado saíra enormemente fortalecido, ditando aos cidadãos os meios para resolver os diversos litígios. Nas palavras de Lopes (2002, p.53), essa fase foi marcada pela “valorização dos juristas, centralização dos poderes de julgamento em um único órgão e a novidade do recurso ou apelação”. Roma se publicizava, instaurando a ditadura dos processos (cada tipo de ação tinha um procedimento específico), e assumindo o poder absoluto sobre as contendas, o que, no decorrer dos anos, permitiu uma nova relação de forças na convergência das atividades relacionadas à Justiça, suprimindo-se a figura do arbiter, submetendo toda a população à autoridade institucionalmente constituída e concentrando as fases in iure e in iudicio nas mãos de um juiz. (FIUZA, 2002).
Essa etapa é muito importante. É ela uma das maiores modificações vivenciadas na histórica jurídica. Foi nesse contexto que surgiu o magistrado como representante, verdadeira extensão, do órgão estatal, e, acompanhado dele, a jurisdição em sua feição de poder-dever. Rumo à modernidade, paulatinamente, o Estado concentrou ainda mais poderes e tornou-se o pacificador social por padrão. Pela jurisdição, os juízes agiam em substituição às partes, que não podiam mais fazer justiça com as próprias mãos, pois se vedou a autodefesa. A elas, que não mais podiam agir, restou a possibilidade de fazer agir, provocando o exercício da função jurisdicional, exclusivamente nas mãos do Estado. E essa forma de conceber a jurisdição somente poderia ser exercida por intermédio do processo (Cintra, Dinamarco e Grinover, 2002).
Nascia a jurisdição, ampla e irrestrita, vista como uma das prerrogativas do Estado, uma das construções legais a sustentar o poder soberano de todo um país. É através dela que o mesmo interfere como um terceiro substituto das partes titulares dos interesses envolvidos, solucionando o conflito em concreto e fazendo valer a vontade do direito objetivo que rege a lide, sob os princípios da imparcialidade e da neutralidade. Esta é a fórmula repassada através dos séculos, e que continua em transformação.
2 – Conceito de arbitragem
Utilizar a arbitragem nos dias atuais equivale a “jogar o passado na direção do futuro somente para ver o presente tropeçar”, haja vista que, sem exageros, tendo-se exaurido as vias contenciosas de sempre, o mundo começa a voltar-se para os métodos alternativos de discussão dos conflitos, que outrora fundamentaram a alvorada da ordem jurídica. “Se o Estado tem o monopólio da jurisdição, não tem o monopólio da realização da justiça. Esta pode ser alcançada por vários meios, sendo a jurisdição apenas um deles” (CÂMARA, 1997, p.3, apud, MORAIS, 1999, p.122)[4].
Como visto anteriormente, desde a antiguidade clássica, passando pela égide dos sistemas da civil law e da common law, as tendências extrajudiciais sempre se fizeram presentes no cotidiano das pessoas, orbitando em torno daquilo que é denominado Justiça, como um espectro de possibilidades que nunca fora inteiramente utilizado. “O mundo atual, o mundo sem autoridade consagrada, está colocado diante de uma dupla impossibilidade: a impossibilidade do passado e a impossibilidade do futuro” (CHATEAUBRIAND, 1974, p. 664) (apud, OST, 2005, p.10).
Diremos, então, que o instituto legal da arbitragem representa um tipo de jurisconstrução social oposta à justiça sob o comando do Estado. Logo, afirmar-se-á que o conceito de arbitragem refoge a uma determinação precisa. E “a arbitragem pode ser definida como o meio privado e alternativo de solução de conflitos referentes aos direitos patrimoniais e disponíveis através do árbitro, normalmente um especialista na matéria controvertida, que apresentará uma sentença arbitral” (SCAVONE JÚNIOR, 2010, p.15). Marinoni (2007, p.761), assenta precisamente que a arbitragem é “colocada ao lado da estrutura jurisdicional do Estado, através da qual se atribui a alguém – por iniciativa e manifestação de vontade dos interessados – o poder de decidir certo litígio a respeito de interesses disponíveis, de forma cogente”. Esse é o método mais utilizado de solução de litígios fora da esfera do Judiciário[5] (DOLINGER;TIBURCIO, 2003; MOURA, 2007).
José Maria Rossani Garcez (2004, p.71), com lucidez, fornece a definição que balizará o artigo:
“A arbitragem pode ser definida como uma técnica que visa a solucionar questões de interesse de duas ou mais pessoas, físicas ou jurídicas, sobre as quais as mesmas possam dispor livremente em termos de transação e renúncia, por decisão de uma ou mais pessoas – o árbitro ou os árbitros – os quais têm poderes para assim decidir pelas partes por delegação expressa destas, resultante de convenção privada, sem estar investidos dessas funções pelo Estado.”
Para nós, é a arbitragem um oportuno processo de solução de conflitos por intermédio da atuação de um terceiro, ou de terceiros, estranho(s) a contenda e à jurisdição pública, indicado(s), em comum acordo, pelas partes, em decorrência de documento obrigacional de nome convenção arbitral, nos termos prescritos em lei. MESC de imponente relevância nos cenários nacional e internacional, está colocada a disposição dos jurisdicionados, de qualquer nível social, para o debate de questões de maior ou menor complexidade, sendo disciplinado pela Lei nº.9.307/96.
3 – A Lei nº 9.307/1996
O Código de Processo Civil de 1973 em nada acrescentou para o desenvolvimento da prática da arbitragem no Brasil[6], uma vez que o receio do legislador em inovar fez com que um regime ortodoxo e pouco pragmático imperasse, mantendo-nos em posição altamente desfavorável frente aos demais países que, àquele tempo, aperfeiçoavam o emprego dos MESC’s na esfera cível e comercial, até como oportuna saída para a consumação da Justiça.
Tinha-se, portanto, “um entrave histórico, pois, embora a arbitragem seja conhecida no país desde a primeira constituição do Império, a de 1824, e tenha sido expressamente prevista no Código Civil de 1916 (artigos 1037 a 1048) e nos Códigos de Processo Civil de 1939 e 1973, somente com a Lei nº. 9.307/96 recebeu um instrumental moderno e seguro para a sua utilização” (GARCEZ, 2004, p. 73).
Dentre os principais equívocos para tamanho empecilho, elencam-se a não vinculação e a não obrigatoriedade da cláusula compromissória, a não atribuição da prerrogativa jurisdicional aos árbitros, a pendência de apreciação e de reconhecimento dos laudos arbitrais pelo Poder Judiciário, a admissão de recurso de apelação contra a sentença homologatória do dito laudo, e a necessidade de que a decisão estrangeira tivesse que preencher os requisitos da “dupla homologação”[7].
Porém, o legislativo reagiu à apatia da arbitragem no país, tanto que, somente na década de 1980, três anteprojetos de lei tramitaram no Congresso Nacional, com a finalidade de tentar adequar ou mesmo restaurar a plena efetividade do juízo arbitral. Mas foi no ano de 1991 que se lançou a “Operação Arbiter”, com o objetivo de, fazendo uso do que se mostrasse pertinente ou possível nos malogrados anteprojetos anteriores, redigir uma Lei que realmente pudesse suprir os pedidos da sociedade civil no tocante à revitalização da arbitragem entre nós.
Notável comissão relatora, que incluía renomados estudiosos (Selma Maria Ferreira Lemes, Pedro Antônio Batista Martins e Carlos Alberto Carmona), e que contou com a participação ativa de entidades como a FIESP, Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, e do Instituto Brasileiro de Direito Processual, recolocou os eixos na questão, pois, em linhas gerais, prestigiou-se o princípio da autonomia da vontade e se fortaleceu a arbitragem institucional, tratando de forma conjunta a cláusula e o compromisso arbitral, que receberam a denominação de “convenção de arbitragem”. Também se equiparou o laudo à sentença, tendo-se a preocupação de adaptar o diploma aos textos legais conexos e de explicitar o acesso ao judiciário aos eventualmente prejudicados, o que deu eficácia aos tratados internacionais aplicáveis à matéria, superando o problema da homologação da decisão arbitral e do respectivo recurso de apelação (CARMONA, 1993, apud FIGUEIRA JÚNIOR, 1999).
O processo legislativo teve início em 3 de junho de 1992, pelas mãos do então Senador Marco Maciel, que se dignou a apresentar o esboço de lei ao Congresso Nacional, onde o projeto recebeu o número 78, tendo sido aprovado pela Câmara dos Deputados em junho de 1996. Devolvido ao Senado Federal, que o aprovou em setembro daquele mesmo ano, com a alteração de apenas dois artigos (FIGUEIRA JÚNIOR, 1999), fato que não abalou a norma em si, a “Lei Maciel” ganhou, após 60 dias, enfim, o mundo fático.
Assim, a Lei nº 9.307/96, chamada “Lei da Arbitragem”, com seus 7 capítulos e 44 artigos[8], veio a integrar, positivamente, a legislação nacional, verticalizando um microssistema excepcional e próspero, que equiparou o país às nações detentoras das mais atualizadas técnicas no tema das soluções extrajudiciais. O jurista Joel Dias Figueira Júnior (1999, p.110) reflete que não estamos diante apenas de um novo sistema processual, por quanto “a Lei 9.307/96 representa muito mais do que isso, ou seja, significa verdadeira revolução em nossa cultura jurídica à medida que coloca lado a lado a jurisdição estatal e a privada, à escolha do jurisdicionado […]”. Basso (1996, p.15), conclui que, definitivamente, “a nova Lei traz a revitalização da arbitragem através de postulados realistas e com a intenção de fazê-la perdurar e sedimentar-se definitivamente como uma alternativa a que se pode recorrer, mesmo quando a justiça funcione sem problemas”[9].
Primafacie, embora já notória a questão, importante se faz mencionar, para fins de completude acadêmica, a legítima preocupação com a constitucionalidade ou não do regime de arbitragem assumido pelo país a partir do ano de 1996[10], diante de princípios insertos na Constituição Federal, haja vista o artigo 5°, inciso XXXV, desta, o qual ultima que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Indubitável que a tal cláusula pétrea da Lei Maior exaure o assunto, de modo até simplista, pois a ninguém é negado o acesso à Justiça Comum, não havendo norma infraconstitucional que possa ir de encontro a essa regra-matriz. No entanto, sabe-se que plena é a vigência da Lei de Arbitragem, inclusive com as modificações e os reflexos por ela provocados em termos de direito processual e material. Constatado isso, o Supremo Tribunal Federal declarou, no ano de 2001, em questão levantada incidentalmente em Agravo Regimental no processo de Sentença Estrangeira (STF-SE-5.206-DJU de 19/12/2001)[11], a constitucionalidade das formas de instituição da arbitragem, bem como os efeitos da sentença arbitral e as alterações no Código de Processo Civil previstos na Lei 9.307/96, de forma que se encerrou o debate, ganhando força inquestionável o disciplinamento ali presente. A Lei de Arbitragem é sim constitucional.
Mais recentemente, para fins de completude deste trabalho, há que se mencionar que, à data de 3 de abril de 2013, fora instalada uma comissão de juristas encarregada de, no prazo de seis meses, apresentar o esboço de um projeto com vistas a atualizar a Lei nº 9.307/1996. O objetivo será o de estimular ainda mais a prática arbitral em nosso país, através de uma ampla reformulação da mesma. A Lei de Arbitragem teria, com a iniciativa, alguns preceitos melhor esclarecidos, adequando seu texto a normas legais posteriores, afora a absorção da jurisprudência recente sobre o assunto. Persegue-se, com isso, a meta de reduzir consideravelmente a visível sobrecarga do Poder Judiciário pátrio e de estimular o consenso entre os próprios particulares. Na presidência da mencionada comissão está o ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, o qual, apenas para frisar a relevância do tema, deixou claro que, um diagnóstico sobre os problemas apresentados por essa prática extrajudicial, deverá abranger as questões envolvendo a administração pública. Participam da iniciativa o ex-senador Marco Maciel, o ministro Walton Alencar Rodrigues, do Tribunal de Contas da União, e a jurista Ellen Gracie, ministra aposentada do Supremo Tribunal Federal (LIMA, 2013).
4 – Natureza jurídica
A arbitragem, em uma definição latu, se caracteriza todas as vezes que um conflito de interesses é resolvido mediante decisão imposta por terceira pessoa que não esteja investida na função de magistrado. Em strictu sensu é que surgem problemas, pois a celeuma reside em estabelecer se o instituto da arbitragem pertence ao campo do direito processual, e, portanto, tem natureza pública, ou se integra a esfera civil, tendo aspecto privado. Funda-se o debate na constatação de que, no que tange aos direitos disponíveis, não pode o Estado privar as pessoas de escolherem o modo pelo qual desejam ver seus conflitos resolvidos, afinal os árbitros obtêm suas faculdades da livre e indiscutível disposição das partes e não da lei.
Porém, os críticos dessa tese defendem que, como a função jurisdicional é uma das formas em que se exterioriza a soberania estatal, e sendo tal poder uma atribuição indelegável, o legislador não poderia conceder este papel a um particular que não preenchesse os caracteres de um agente público formalmente investido para a atividade, pois a índole da arbitragem, qual seja a atividade de julgar, embora permaneça exclusivamente na seara contratual e, portanto, privada, é sim derivada do ordenamento público e, consequentemente, restrita apenas ao Estado. Não muito distante desse posicionamento, os defensores da tese privatista alegam que o vínculo que se cria entre o árbitro e as partes é eminentemente contratual, possível somente em virtude da zona de autonomia de vontade que gozam os particulares e em razão de um pacto preestabelecido, pelo menos nas questões onde a ordem pública não está diretamente interessada. Disso, ficaria afastada a jurisdição estatal.
Contudo, a doutrina especializada opta, majoritariamente, pela corrente pública:
[…] “a justiça estatal e a justiça arbitral são dois modos distintos de jurisdição, e, portanto, de composição dos conflitos. Magistrados e árbitros são todos os dois juízes; apenas um é um juiz público, nomeado pelo Estado, enquanto o outro um juiz privado, escolhido pelas partes. Idênticas as suas funções, sendo que a do árbitro decorre de investidura contratual. Justiça arbitral e justiça estatal distinguem-se apenas pelos órgãos que as exercem”(FIGUEIRA JÚNIOR, 1999, p.154).
Silva (2004, p.47) é categórico ao afirmar que a arbitragem é função notadamente jurisdicional, pois “é o árbitro juiz de fato, dada a natureza de sua investidura e de direito, porque, nesse caso, aplica as regras legais ao caso concreto. Tanto os juízes estatais quanto os arbitrais são investidos de suas funções pelo povo, indiretamente, no primeiro caso, e diretamente, no que tange ao juízo arbitral” [12]. O processualista Fredie Didier Júnior (2007, p.72), defende a tese de que a arbitragem tem sim função jurisdicional, dada a força que a decisão arbitral detém, pois, a seu ver “a arbitragem, no Brasil, não é equivalente jurisdicional: é propriamente jurisdição, sem qualquer diferença, a não ser que é privada e o juiz é escolhido pelos litigantes”. Similar opinião é defendida por Morais (1999, p.196), uma vez que “sendo a função de julgar de natureza pública, essa mesma natureza se projeta sobre quem tem a responsabilidade de fazê-la, não devendo haver distinção segundo seja funcionário público ou uma pessoa que careça de uma vinculação jurídica permanente com o Estado”. “Em síntese, conforme se observa, a arbitragem brasileira é resultado da colocação em prática do direito fundamental de auto-regramento, e é considerada […] como sendo a própria jurisdição, que neste caso é exercida por particulares autorizados para tanto pelo Estado” (ALVES; BATISTA, 2011, p.2).
Esses posicionamentos, no entanto, divergem do defendido por Luís Guilherme Marinoni (2007, p.764), para quem “a atividade arbitral não pode, ao menos segundo as teorias de jurisdição que se costuma adotar atualmente, ser tida como jurisdicional”. Este autor, diga-se de passagem, com belo fundamento – muito embora não compartilhado por este artigo -, baliza seu entendimento no fato de que o árbitro, embora esteja preso aos princípios constitucionais relacionados ao devido processo legal, não tem o poder de conceder medidas de urgência, devendo a parte interessada buscar tal providência junto à Justiça Comum, figurando “inutiliter data” a sentença arbitral a este respeito. Logo, não se poderia reconhecer plenitude ao juízo arbitral, tampouco estabelecer um caráter jurisdicional a essa prática, visto que recorre à Justiça sob controle estatal para dar força a algumas de suas decisões e até para executar seus julgados[13].
Mas é Alexandre Freitas Câmara (2005, p.12-15), numa clareza invejável de raciocínio, quem põe termo à questão:
“É preciso, ainda, afirmar minha convicção no sentido de que a arbitragem é verdadeiro processo. Esta afirmação deve ser explicada com cuidado, para que não seja mal compreendida. Encontra-se superado pela melhor doutrina processual o velho preconceito de afirmar que só existe processo jurisdicional. Mais modernamente, encontra-se em doutrina a afirmação de que se deve considerar processo todo procedimento realizado em contraditório. Explique-se: há no direito uma série de procedimentos, entendidos estes como sequencias ordenadas de atos destinados à elaboração de um provimento. Toda vez que um procedimento se realiza em contraditório, isto é, toda vez que na sequencia de atos que compõe o procedimento se tem assegurada a participação (ao menos potencial) dos interessados (assim entendidos todos aqueles que serão alcançados pelos efeitos de tal provimento), ter-se-á um processo.
Assim sendo, pode-se falar em processo administrativo, em processo legislativo e, até mesmo, em processo arbitral, ao lado do tradicionalmente reconhecido processo jurisdicional. Este se distingue dos demais processos por ter como elemento intrínseco uma relação processual que se estabelece entre Estado-Juiz, autor e réu […]. O processo jurisdicional, portanto, é processo como os outros (o administrativo, por exemplo), por ser um procedimento realizado em contraditório, mas se distingue dos demais por ter intrínseca uma relação jurídica diferente das que se apresentam nos demais tipos de processo. Pode-se, assim, afirmar que o procedimento em contraditório é um “módulo processual”, cuja presença é capaz de atribuir a determinado instituto a natureza de processo, mas para que tal processo seja jurisdicional é necessário que, além deste “módulo processual”, forme-se a relação jurídica processual entre as partes e o Estado.
[…] Sendo a arbitragem um procedimento que se realiza obrigatoriamente em contraditório […], faz-se presente o “módulo processual”, devendo-se considerar, pois, que a arbitragem é um processo. Não, porém, um processo jurisdicional, pois a jurisdição é monopólio do Estado, não podendo ser exercida pelo árbitro, o qual é um ente privado. Ademais, não se faz presente na arbitragem a relação jurídica processual jurisdicional, qual seja aquela que se estabelece entre as partes e o Estado-Juiz. Não há, portanto, como se admitir a natureza jurisdicional da arbitragem, embora não se possa negar o múnus público exercido pelo árbitro, em sua atividade privada, de busca da pacificação social. Com isto, coloco-me numa posição publicista frente à arbitragem, negando a tese de quem vê neste instituto uma figura exclusivamente regulada pelo direito privado.”
Logo, inclinamo-nos a defender que estamos diante de uma jurisdição com caráter híbrido, entre o público e o privado, figura singular no ordenamento jurídico nacional. E a própria Lei da Arbitragem deixa bastante claro que é sim um tipo de justiça efetivada entre particulares com nuances de poder estatal, e, consequentemente, detentora de natureza pública, por duas óbvias razões: a) “os árbitros, quando no exercício de suas funções ou em razão delas, ficam equiparados aos funcionários públicos […]” (artigo 17, Lei nº. 9.307/96), e b) a sentença final (ou laudo) é oponível perante o Poder Judiciário, mesmo que não tenha força executória de tutelas de urgência, nem de medidas cautelares ou antecipatórias de direito.
Câmara (2005) e Marinoni (2007), respeitados os excertos outrora reproduzidos, na exata medida de seus entendimentos, estão corretos. Nada pode ser comparado à prática arbitral, daí que classificá-la como essencialmente pública ou privada é tarefa difícil. Não há parâmetros válidos aptos a delinear uma resposta. Falamos apenas do que conhecemos. É a arbitragem, simplesmente, uma mutação das duas órbitas. Eis nossa conclusão[14].
E temos que agradecer a Furtado Cunha (2010, p.229 e 231, respectivamente), que, muito apropriadamente, destaca:
“Como divisor único, divisor de águas, entre a jurisdição pública e privada – atuais jurisdições existentes -, o Estado estabeleceu os direitos disponíveis como marco divisório das duas espécies. Contudo, assegurou a jurisdição pública como regra, diante da garantia constitucional do direito de petição aos Poderes Públicos e facultou como opção a jurisdição privada; a arbitragem. Tem-se, assim, que, todo e qualquer direito (concreto ou abstrato) que admita transação, conceitua-se como disponível e, como tal, autoriza a solução de conflito que os envolva, através da jurisdição privada. A arbitragem.
Há apressados que concluem: então temos dois Poderes judiciários! Não, não temos dois Judiciários: Estatal e Particular. Temos, sim, um único. O Poder Judiciário, a quem compete o exercício da jurisdição. Órgão estatal, parcela da soberania, responsável pelo dizer do direito e realizar da justiça, como forma de manter a ordem e cultivar a paz. Em verdade, foi instituído um segundo braço; outro caminho; um segmento novo para realização da justiça, conferido, desta feita, à própria sociedade. Têm-se, assim, dois caminhos a trilhar em busca da harmonia ao seio da sociedade. O Poder Judiciário é uno, indivisível e único; porém dois são os caminhos, as vias, para realizá-lo: o caminho ou a via da jurisdição pública e o caminho ou via da jurisdição privada; particular.”
“Em verdade, a arbitragem é a jurisdição exercida fora do âmbito do Estado” (SCAVONE JÚNIOR, 2010, p.59). “Não é de se estranhar a repulsa que causa há alguns a eventual ‘supremacia’ da jurisdição Arbitral sobre a Estatal, quando é a mesma eleita para dirimir controvérsias em lugar da outra; entretanto, não se mantém necessária, dado tratar-se apenas de vias paralelas e não sobrepostas […]” (KALINSKIBAYER, 2003, p. 304).
Fato é que essa forma de se efetivar a justiça é, no Brasil, um caminho aberto, ainda por ser inteiramente desbravado, de maneira que falar acerca dele, quanto mais explicá-lo, é realmente complicado e requer que o expectador tenha “mente aberta” e discernimento para que seja deixada de lado a clássica dicotomia didática do direito, em público e privado. Na clássica lição, “a propriedade e o direito têm cabeça de Jano, com face dupla. A uns volta uma das faces, aos demais, a outra. Daí vem a imagem totalmente diferente das duas entidades que os homens concebem” (IHERING, 2000, p.28). Considerando essa entidade divina da mitologia romana, ousaremos inovar, haja vista que a arbitragem igualmente simboliza términos e começos, o passado e o futuro. É a totalidade de ação em uma única vertente. Em seu “templo”, as portas se abrem não apenas em momentos de guerra, mas também em tempos de paz. Negociar conflitos, transacionar interesses, solucionar embates são condições de seu trabalho, requisitos primários de sua existência. Diremos, portanto, que a prática arbitral encerra os dois enfoques, público e privado, não em duas, mas em uma única face, por expressa autorização legal, uma vez que é o próprio Estado que reconhece o quão válido e necessário é essa forma de se efetivar a jurisdição nos dias de hoje, a quem quer que interesse dele utilizar-se. Diferentemente do que se tinha conhecimento, é um novo “ser” em desenvolvimento.
5 – Capacidade e objeto
Dispõe o artigo 1º da Lei da Arbitragem: “As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”[15].
“Todas as coisas já foram ditas, mas como ninguém escuta é preciso sempre recomeçar”[16], assim há que se fixarem como essenciais à arbitragem: a) a capacidade em contratar e b) a disponibilidade do direito em ser passível de transação. O artigo 7º do Código de Processo Civil norteia que “toda pessoa que se acha no exercício de seus direitos tem capacidade para estar em juízo”. E os requisitos de admissibilidade da demanda válida são os mesmos da teoria geral do processo tradicional: interesse para agir, legitimidade ad causam, e possibilidade jurídica do pedido[17].
Como se depreende das normas acima, para que se possa falar em juízo arbitral, é necessário que as partes, pessoas físicas ou jurídicas civilmente capazes, assim o tenham convencionado contratualmente, mediante estabelecimento de cláusula compromissória ou de posterior compromisso arbitral, respeitado o direito de escolha, princípio da autonomia da vontade[18], determinando-se, precisamente, o objeto litigioso[19], observados os requisitos legais.
A respeito do objeto alvo de arbitragem as coisas complicam e a maior atenção é requisitada, daí que não avançaremos além do estritamente necessário ao pleno desenvolvimento desse labor[20].
O artigo 1º, in fine, da Lei de Arbitragem não deixa dúvidas: o juízo arbitral cinge-se tão somente a “direitos patrimoniais disponíveis”. Scavone Júnior (2010, p.22) diz que “a disponibilidade dos direitos se liga, conforme pensamos, à possibilidade de alienação e, demais disso e principalmente, àqueles direitos que são passíveis de transação” [21].
Os direitos indisponíveis – matérias patrimoniais de natureza sensível -, são aqueles referentes a procedimentos especiais de jurisdição voluntária, interesse público, direitos difusos e coletivos (porquanto indivisíveis), causas criminais, falimentares, e que envolvam bens de menores ou de civilmente incapazes, todos os quais são afetos a Justiça Comum. Ademais, o artigo 852 do Código Civil instrui que: “é vedado compromisso [convenção] para solução de questões de estado, de direito pessoal de família e de outras que não tenham caráter estritamente patrimonial”.
Para concluir, no geral, torna-se inviável a arbitragem quando incoerente com o prescrito na Lei, vez que se trata de nulidade absoluta da convenção por ser impossível seu objeto, nos termos do artigo 139, inciso I, combinado com o artigo 166, inciso II, ambos do Código Civil[22], de maneira que, havendo incerteza sobre a natureza do bem litigioso, isto é, se o objeto é ou não disponível, caberá à Justiça Comum dirimir a prejudicial, declarando a viabilidade, ou não, do juízo arbitral.
Os três últimos parágrafos são muito importantes. Não se trata tão somente de reconhecer a disponibilidade legal do objeto, mas sim de se aferir se a livre negociação acerca do direito é possível. A transação de interesses acha-se no cerne dessa prática extrajudicial. Com isso em mente, talvez a redação do artigo primeiro da Lei de Arbitragem, para fins da linha adotada para estudo e do que pretende o nosso trabalho de pesquisa, devesse ser a seguinte: “As pessoas capazes de contratar, incluídas o Estado, poderão valer-se da arbitragem para dirimir todo e qualquer litígio relativo a direitos patrimoniais passíveis de transação, nos termos da lei”. Estariam, com isso, resolvidos grandes desafios teóricos em se efetivar a arbitragem em certas áreas estigmatizadas como de direito indisponível. Falaríamos agora em direito transacionável ou não. Eis uma mera sugestão.
6 – Convenção de arbitragem
A arbitragem decorre da vontade expressa pelas partes na dita “convenção de arbitragem”, que é gênero, do qual são espécies a cláusula compromissória e o compromisso arbitral[23].
O artigo 851 do Código Civil prescreve que “é admitido compromisso, judicial ou extrajudicial, para resolver litígios entre pessoas que podem contratar”. E o artigo 3º, da Lei de Arbitragem, diz que “as partes interessadas podem submeter à solução de seus litígios ao juízo arbitral mediante convenção de arbitragem, assim entendida a cláusula compromissória e o compromisso arbitral”.
Em resumo, ninguém é obrigado a participar de arbitragem. No entanto, dada a possibilidade de escolha, havendo um acordo de vontades, legalmente formalizado, não poderá, qualquer das partes, recusar a solução alternativa. Eis o que se depreende da inteligência dos arts. 267, VII, e 301, IX, do Código de Processo Civil[24]. Scavone Júnior (2010, p.67), leciona: “Sendo assim, em razão do contrato, que é um acordo de vontades, surgem duas obrigações, ou seja, a obrigação de não fazer, que implica em não ingressar com pedido junto ao Poder Judiciário e, consequentemente, de fazer, que consiste em levar os conflitos à solução arbitral”. Isso porque a convenção estabelecida tem força vinculante, não podendo as partes buscarem o Poder Judiciário, ressalvados os casos previstos em lei.
Cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes, na vigência de um contrato (doméstico ou internacional), comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam surgir no decorrer do cumprimento daquele “relacionamento”, obrigando-as a cumprir a opção feita, qual seja pela justiça privada. Em síntese, é promessa de que, futuramente, na iminência de um conflito, as partes irão firmar compromisso arbitral, elegendo árbitros para solucionar a divergência. Assim, o artigo 853, in verbis, do Código Civil: “Admite-se nos contratos a cláusula compromissória, para resolver divergências mediante juízo arbitral, na forma estabelecida em lê especial”.
“Entre as diversas funções da cláusula compromissória, ressalta a de constituir-se em prova de que as partes admitiram submeter-se ao regime arbitral para solver suas pendências na execução de um contrato. Esse é o elemento consensual, sem o qual a arbitragem não pode existir validamente” (STRENGER, 1996, p.109). “É possível que o contrato no qual as partes convencionaram a arbitragem através da cláusula compromissória, ao mesmo tempo em que destina parte dos eventuais conflitos à solução arbitral, espelha obrigação certa, líquida e exigível, configurando título executivo” (SCAVONE JÚNIOR, 2010, p.69).
A existência da cláusula compromissória, quando ainda não há conflito instalado, é imperativa para a eficácia da arbitragem (pact sunt servanda), pois inexistindo ancoragem específica da mesma no corpo do contrato, impossível de se concretizar a solução extrajudicial, figurando como importante requisito para a segurança jurídica do negócio.
De todo o argumentado, a cláusula compromissória pode vincular a realização da arbitragem, rompendo-se com o posicionamento de que o seu descumprimento só seria capaz de gerar o direito à percepção de indenização por perdas e danos, constituindo verdadeira obrigação de fazer. Se estipulada contratualmente a solução pela via paraestatal, deve ela ser obedecida, a não ser que seja declarada nula nos termos da legislação.
Deve ser estipulada por escrito (não se presume jamais), podendo ser inserta no próprio contrato ou em termo apartado que a ele se refira (artigo 4º, §1º, Lei nº. 9.307/96). “Art. 7º. Existindo cláusula compromissória e havendo resistência quanto à instituição da arbitragem, poderá a parte interessada requerer a citação da outra parte para comparecerem juízo a fim de lavrar-se o compromisso, designando o juiz audiência especial para tal fim” (Lei de Arbitragem).
Eventual nulidade da cláusula compromissória, desde que absoluta, deverá ser decretada pelo juiz na primeira oportunidade que dela tomar conhecimento, independentemente de provocação das partes, consoante os artigos 166, 168 e 169, do Código Civil[25]. Sendo apenas anulável (artigos 171 e 172, do Código Civil), a cláusula produzirá efeitos até que seja anulado[26].
A cláusula deve, ainda, discriminar os elementos passíveis de serem arbitrados, haja vista que se podem ser estendidas as suas regras a todo o contrato ou não, determinar os árbitros, quando não se optar pela arbitragem institucional, definir as regras para o procedimento, tais como número de audiências e perícias, estipular o local a ser realizado o julgamento, e regulamentar outros pontos, a exemplo dos custos, da interposição de recursos, tentativa de reconciliação etc. [27] Marinoni (2007, p.767), ainda distingue a cláusula compromissória “cheia” da “vazia”. Para esse autor, a “cheia” é aquela em que surgem predeterminados todos os elementos essenciais para que possa se instaurar a arbitragem, ao passo que a “vazia” seria a que não os traz, ficando sua estipulação para o momento em que sejam realmente necessários.
"A cláusula compromissória é autônoma em relação ao contrato em que estiver inserta, de tal sorte que a nulidade deste não implica, necessariamente, a nulidade da cláusula compromissória” (artigo 8º, Lei de Arbitragem). Outra observação importante se faz quanto à presença da cláusula compromissória em contratos de adesão. O §2º do artigo 4º, da Lei de Arbitragem estabelece que, “nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição”, viabilizando a inserção da convenção vinculativa da arbitragem se esta for redigida em destaque, “de maneira a permitir sua imediata e fácil compreensão”.
Por seu turno, “o compromisso arbitral é a convenção através da qual as partes submetem um litígio à arbitragem de uma ou mais pessoas, podendo ser judicial ou extrajudicial” (artigo 9º, Lei n°. 9.307/96). Para Câmara (2005, p. 37), é “um contrato de direito privado, cujo efeito é a instauração de um processo arbitral”. “Trata-se de verdadeiro negócio jurídico de direito material que expressa a renúncia à atividade jurisdicional do Estado” (FIGUEIRA JÚNIOR, 1999, p.193).
O pressuposto de existência do compromisso é o acontecimento de uma discórdia, com a consequente colisão de interesses entre as partes do contrato, em oposto à cláusula compromissória, a qual deverá ser firmada e inscrita no contrato antes da ocorrência do litígio (GARCEZ, 2004, p. 71). “Observe-se, porém, que a ideia de compromisso é muito mais ampla que a de arbitragem, pois é através do primeiro que, pela manifestação livre da vontade, as partes de dirigem para o segundo, como forma de solução de conflitos de interesses” (STOLZE, 2007).
O compromisso arbitral poderá originar-se judicialmente, nas hipóteses de haver resistência de uma das partes signatárias da cláusula compromissória (artigo 7º, §7º, Lei da Arbitragem), com a propositura de ação com esse propósito, oportunidade em que a sentença valerá como se compromisso fosse, substituindo a convenção (em decorrência dessa demanda, o ajuste alcançado no tribunal tem que constar nos autos do processo), ou extrajudicialmente, o acordo tem que ser firmado por escrito público ou particular, assinado pelas partes, na presença de duas testemunhas, para que este assuma o perfil de contrato (§§ 1º e 2º, artigo 9º, Lei de Arbitragem).
Ao desfecho, cabe repisar que a diferença existente entre a cláusula compromissória e o compromisso arbitral é estritamente temporal, vez que, enquanto a cláusula visa resolver futuras controvérsias através da arbitragem, no compromisso têm-se já a existência do conflito, onde as partes concordam que a solução seja obtida através da justiça privada. Morais (1999, p.210), ao falar sobre a validade e eficácia da cláusula compromissória e do compromisso arbitral[28], coloca que “qualquer que seja a convenção de arbitragem ela configura um impedimento processual. Se uma das partes, inobstante ter convencionado a utilização da arbitragem, for ao Judiciário, tal processo deverá ser extinto sem resolução do mérito”.
Anote-se, em tempo, que, invalidada a convenção de arbitragem, por nulidade, ineficácia ou inobservância dos requisitos legais, figurará ilegítima a instalação do juízo privado, e nulo o laudo gerado (artigo 32, inciso I, Lei de Arbitragem), restando às partes serem remetidas ao órgão do Poder Judiciário competente para julgar a causa (artigo 20, § 1º, in fine, Lei nº. 9.307/96).
7 – Árbitros
“É na figura do árbitro, diz-se, que descansa a confiabilidade e eficácia da arbitragem como método de resolução de conflitos” (MORAIS, 1999, p.207). Até porque, “considera-se instituída a arbitragem quando aceita a nomeação pelo árbitro” (artigo 19, Lei nº. 9.307/96). Para Câmara (2005, p. 76), trata-se “de norma extremamente relevante, equiparável à norma contida no art. 263 do Código de Processo Civil, que determina o momento em que se considera proposta a demanda”.
Árbitro é “toda pessoa natural que, sem estar investida da judicatura pública, é eleita por duas ou mais pessoas para solucionar conflito entre elas surgido, prolatando decisão de mérito” (FIUZA, 1995, p.120) (apud, CÂMARA, 2005, p.45). “Pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes” (artigo 13, Lei de Arbitragem). “O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou à homologação do Poder Judiciário” (artigo 18, Lei nº. 9.307/96). “Ninguém é árbitro e sim está árbitro” (DOLINGER;TIBURCIO, 2003, p. 233).
Concluindo, o árbitro, assumindo o mister arbitral, inaugura uma função pública – não há como se questionar ou duvidar disso –, haja vista que a arbitragem é a jurisdição revestida de caráter privado, guarnecida pelo princípio da autonomia da vontade, lastreada no poder de escolha dos pactuantes envolvidos, e a sentença dele oriunda, além de ter força impositiva para os envolvidos nesse processo paraestatal, exclui a apreciação ou correção por parte do Judiciário, desde que observados os requisitos legais. É o juiz arbitral equiparado a funcionário público[29], enquanto (e somente enquanto) perdurar a obrigação extrajudicial, respondendo por seus atos, quer civil, quer penalmente falando, e gozando da proteção necessária, como se assim o fosse.
8 – Sentença
“A sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo” (artigo 31, da Lei de Arbitragem)[30]. De acordo com o Código de Processo Civil: “Art. 475-N. São títulos executivos judiciais: […] IV – a sentença arbitral”. “A única diferença é que o árbitro não é dotado de coerção de tal sorte que a execução demandará, diante da resistência , a atuação do juiz togado, a quem competirá materializar a sentença arbitral” (SCAVONE JÚNIOR, 2010, p.145).
Advinda de um tribunal arbitral, tal decisão segue a estrutura de uma sentença da justiça comum, com uma enorme diferença, pois, por força do artigo 23, caput, da Lei de Arbitragem, o limite para prolação do resultado é de seis meses, isso se prazo inferior não tiver sido convencionado antecipadamente pelas partes.
No curso da arbitragem, podem despontar questões ditas prejudiciais, que, enquanto antecedentes lógicos e necessários à apreciação do mérito, inviabilizam a sentença. E uma das conjeturas apreciadas é relativa à constatação, após iniciado o juízo privado, da existência de dúvidas sobre o objeto litigioso ser ou não possível (patrimonialmente disponível). Nessa ocorrência, insurge o artigo 25, da Lei nº. 9.307/96, o qual externa que “verificando-se que de sua existência, ou não, dependerá o julgamento, o árbitro ou o tribunal arbitral remeterá as partes à autoridade competente do Poder Judiciário, suspendendo o procedimento arbitral”[31]. O prazo para prolação da sentença será suspenso nesse período, retornando de onde parou se sanado o obstáculo, com a juntada aos autos da sentença ou acórdão transitados em julgado[32].
Estrutura-se a sentença em três partes (artigo 26, Lei de Arbitragem): “relatório”, que deverá conter, além da qualificação das partes, um resumo do litígio, “fundamentação”, que trará as razões de fato e de direito, e o “dispositivo”, em que os árbitros resolverão as questões que lhes forem submetidas, declarando, constituindo, desconstituindo, condenando ou ordenando a parte sucumbente em obrigação ou dever, e estabelecendo prazo para tal, se essa for a circunstância. Deverá, também, trazer data, local e assinatura dos julgadores[33], tendo que apresentar-se sob a forma escrita, velando pelo princípio da documentação processual. A ausência de quaisquer desses elementos suscita nulidade, de acordo com o artigo 32, inciso III, da Lei nº. 9.307/96.
A Justiça Comum não pode rever o mérito da decisão arbitral[34], mas apenas apreciar se os princípios legais e os requisitos formais e processuais de validade se fazem presentes naquela sentença, até por que a arbitragem não é supervisionada pelo juiz estatal, mas sim pela lei. Representam estas (o Judiciário e o juízo paraestatal) duas vertentes de aplicação da jurisdição, uma pública e a outra privada, ambas persecutórias da meta de uma ordem jurídica justa, daí de se poder asseverar a existência, inabalável, da dita “coisa julgada arbitral”.
A nulidade da decisão pode ser suscitada nas hipóteses do artigo 32, da Lei nº. 9.307/96, nos casos em que se tenha flagrante desrespeito à lei, podendo a parte interessada pleitear nesse sentido junto ao Poder Judiciário (artigo 33, caput, Lei de Arbitragem)[35].
9 – Considerações finais
Escolher é uma das diretrizes da vida. Opções, quaisquer que sejam, dos mais variados tipos e nuances, sempre são, e sempre serão a nós ofertadas. Isso em todos os aspectos da nossa existência social. Com isso gravado na memória, podemos então vislumbrar que a arbitragem, enquanto caminho válido rumo à efetivação de direitos, representa mais um desses dilemas, encerrados no ato de assumir uma forma diferente de tratar os problemas jurídicos.
Abrindo a oportunidade de um meio alternativo ao Poder Judiciário, esse instituto, por ser mais leve e célere que a máquina estatal, chama a atenção, e requer que cada vez mais operadores do Direito sobre ele se debrucem, buscando a compreensão e a amplitude de sua aplicação. Nesse ínterim, o artigo buscou “passear” por alguns dos aspectos do juízo arbitral, de maneira a contribuir no estudo de formas melhores de solucionar as contendas que diariamente surgem.
Referências:
Notas:
Informações Sobre o Autor
Thiago Nóbrega Tavares
Advogado Especialista em Direito Tributário e Mestre em Ciências Jurídicas