Resumo: Trata o presente trabalho da questão da morte dada ou propiciada ao doente avançado ou terminal sob os pontos de vista ético (bioético) e jurídico, mais especificamente jurídico – penal. Parte-se de um conceito de “pessoa humana” para, mediante o estabelecimento de um referencial antropológico – filosófico, estudar a questão da discussão que hoje se trava entre a solução da oferta de uma morte digna ou de um processo de morrer com cuidados que respeitem a dignidade humana, inclusive na fase final da vida.
Palavras – chave: Pessoa Humana – Eutanásia – Homicídio – Ética – Bioética – Medicina – Direito.
Abstract: This paper treats the question of killing or afforded death to the advanced or terminal patient under the ethical (bioethical), legal and, more specifically criminal viewpoints. It starts with a concept of "human person" for, by establishing a anthropological – philosophical benchmark, study the issue of discussion that rages today between the solution offering a dignified death or a dying process that care respect human dignity, including the final phase of life.
Keywords: Human Person – Euthanasia – Homicide – Ethics – Bioethics – Medicine – Law.
Sumário: 1.Introdução – 2. O Conceito de Pessoa Humana – 3. A (I)Legitimidade e (I)legalidade da morte dada aos moribundos: confluência entre antropologia, ética e direito – 4. Conclusão – 5. Referências.
1-Introdução
Todo o ordenamento jurídico brasileiro, vindo da Constituição Federal e passando pela legislação ordinária protege de maneira muito especial e atenta a vida humana e isso se repete de modo geral no Direito Comparado.
Entretanto, a gênese desse fenômeno jurídico somente pode ser bem compreendida mediante um aprofundamento sobre a base antropológica que norteia toda essa preocupação conformadora de normas jurídicas protetivas. Um conceito do que seja um ser – humano digno de tutela em sua vida, do que seja uma “pessoa humana” é a chave para a compreensão da razão de ser de toda a rede jurídica tutelar de que se está falando, bem como para a devida interpretação e aplicação das normas que regulam a matéria.
Por isso, neste trabalho partir-se-á de um estudo do conceito de “pessoa humana” para, a partir daí, poder, com segurança, analisar o conteúdo e aplicabilidade das normas jurídicas que tutelam a vida humana, especialmente aquela que se encontra em seu limite final. Nesse caminho árduo serão abordados problemas cruciais como a eutanásia, o suicídio assistido, os cuidados paliativos, enfim, todos os procedimentos que envolvem o tratamento dado com pretensões de legitimidade para pessoas que estão em fase terminal de doenças ou complicações da saúde graves.
A abordagem do tema, como não poderia deixar de ser, é interdisciplinar, de modo que serão postos em questão problemas não somente jurídicos, mas também antropológicos, morais e éticos (mais especificamente bioéticos). Será perceptível que as concepções antropológicas, morais e bioéticas envolvidas podem e realmente norteiam de forma muito importante não somente a formulação, a aplicação, as propostas de reformulação e a interpretação das normas jurídicas.
Ao final, serão as principais ideias expostas ao longo do texto retomadas, apresentando-se uma síntese conclusiva.
2-O conceito de “pessoa humana”
Há um costume ou condicionamento bastante arraigado de interpretar o vocábulo “pessoa” como dotado sempre de uma qualificação ocultada apenas para evitar redundância, ou seja, dizer “pessoa” equivaleria sempre a dizer “pessoa humana”. Conforme esclarece Durant, “a palavra pessoa é empregada, então, para criticar a igualdade, o valor e a dignidade de cada ser humano por oposição ao mundo dos animais e das coisas”.[1]
Nesse passo “pessoa” e “ser humano” são encarados necessariamente como sinônimos, operando uma drástica distinção entre “sujeitos” e “coisas”, sendo que somente poderiam ascender à categoria de sujeitos os humanos; outros seres vivos não – humanos jamais poderiam escapar do estatuto que lhes é reservado: aquele que os torna meras coisas ou objetos.
Assim apresentam-se as definições clássicas de pessoa, tais como a de Boécio: “substância individual de natureza racional”. O homem é considerado pessoa por ser capaz de refletir sobre si e de se autodeterminar: “capta o sentido das coisas e dá às suas expressões, com razão, liberdade e consciência”.[2]
Mas esse traço distintivo tão simplista e arbitrário não é isento de críticas. A definição do que seja uma “pessoa” não é algo tão simples, de modo que a polêmica sobre a questão tem povoado as discussões filosóficas ao longo dos séculos. O tema é tão profundo que ensejaria o desenvolvimento de um trabalho específico que fugiria aos objetivos desta exposição e, certamente, extrapolaria inclusive os limites do conhecimento deste autor.
Pretende-se por ora tão somente abordar o tema em linhas gerais, de maneira a possibilitar alguma reflexão em especial quanto à discussão acerca das linhas limítrofes traçadas entre o homem e os demais seres vivos para sua inclusão ou exclusão do conceito de pessoa. Ainda assim a empreitada é desafiadora, pois como aduzem Prigogine e Stengers, a “tragédia do espírito moderno” consiste no fato de que o homem “desvendou o enigma do Universo, mas apenas para substituí-lo por um outro: o enigma de si próprio”. [3]
Em um opúsculo bastante esclarecedor Mondin arrola os principais critérios apontados como cruciais para a definição de da chamada “pessoa humana”.[4]
O ponto de partida para uma definição de pessoa é apontado por muitos como a posse de uma cultura, ou seja, “o conjunto de todas as atividades e de todos os produtos que são frutos da iniciativa e da genialidade humana”. Por isso, a primeira definição de homem e, por conseguinte, de pessoa, seria aquela que o toma como “um ser cultural (e não natural)”.[5] Trata-se da emergência humana perante a natureza, tornando o homem por excelência o chamado “ser antinatura”.
Mondin repisa essa temática, qualificando-a de adequada “porque o homem não é como as plantas e os animais, um puro produto das leis da natureza, e não é nem o resultado de uma prodigiosa autotese, isto é, fez-se sozinho, mas é fruto de uma sapiente colaboração entre natureza e cultura”. [6] E segue destacando o fato de que “diversamente dos outros seres vivos, cujo ser é inteiramente produzido, pré – fabricado pela natureza, o homem é em grande medida o artífice de si mesmo. Enquanto as plantas e os animais sofrem, no ambiente natural em que se encontram, o homem é capaz de cultivá-lo e de transformá-lo profundamente, adequando-o às próprias necessidades”.[7] Em suma, o homem não se adapta ao ambiente, mas adapta o ambiente às suas necessidades.
Note-se que então essa seria a primeira característica a apartar os demais seres vivos não – humanos do estatuto de “pessoas”. Sem essa qualidade de emergência, de autonomia ante aos determinismos naturais o ser não superaria o mero “status” de “coisa”.
No seguimento outro atributo é apontado, inclusive como pré – condição do primeiro. Esse atributo é a “liberdade”. É ela que, segundo Sartre “permite ao homem tornar-se o artífice de si mesmo”.[8] Na verdade a liberdade insere-se totalmente na qualidade de emergência anteriormente tratada. Ela se traduz e mostra sua face de maneira plena quando se constata a capacidade humana de superação dos mecanismos de determinação natural da conduta. Por isso só o homem pode ser bom ou mau, pode fazer mal a si mesmo, inclusive tirar a própria vida em total confronto com o instinto de autoconservação. Essa capacidade de escolha de caminhos, de acesso a normas de conduta gerais e abstratas que podem ser obedecidas ou transgredidas, seria outra característica exclusiva humana a reservar-lhe a qualificação de pessoa. Mas tudo isso forma um amálgama indissolúvel com a qualificação do homem como ser cultural.
A espiritualidade exsurge também como elemento importante na definição do homem e em sua constituição como pessoa. Para Mondin, a espiritualidade, embora menos evidente que sua materialidade, necessitando ser demonstrada e argumentada, nem por isso torna-se um fenômeno secundário. Ela é implícita nas definições anteriormente abordadas do homem como ser cultural e livre. São exemplos ou manifestações dessa espiritualidade imanente ao homem e que constituem elementos de sua configuração como pessoa, “a autoconsciência, a reflexão, a contemplação, o colóquio, a adoração, a autotranscendência etc.”. Tudo isso são condições que o espírito proporciona para a existência da liberdade, pois que só o espírito “é essencialmente livre”. O homem se sobreleva aos limites do espaço – tempo, ao ambiente, aos determinismos naturais e instintivos porque “leva consigo um elemento de imaterialidade e de espiritualidade, porque possui uma dimensão interior de natureza espiritual: a alma, a mente e o espírito”. Essa concepção que dá especial relevo à espiritualidade humana como elemento diferenciador dos demais seres vivos nos é legada sob o aspecto religioso pelo cristianismo e sob o enfoque metafísico pela filosofia oriental e platônica.[9]
Também o existencialismo heideggeriano não deixou passar “in albis” o assunto ora tratado. Segundo Derrida, a afirmação de Heidegger de que o animal não tem mundo traz como conseqüência sua não espiritualidade.[10] Isso porque o mundo é essencialmente espiritual; seu “ser” somente pode ser acessado pelo espírito que perscruta e não pela mera relação material.
A negação da espiritualidade atrelada à vedação do acesso a um mundo animal parece entrar em franca contradição com as famosas três teses de Heidegger:
1 – “A pedra é sem mundo”.
2 – “O animal é pobre de mundo”.
3 – “O homem é formador de mundo”.
Ora, se o animal é “pobre” e o homem é “rico” em mundo, sendo este espírito, então a conclusão mais coerente seria “menos espírito para o animal, mais espírito para o homem”, o que não implicaria numa “privação” de espírito para o animal, senão numa certa “restrição” deste. Mas, para Derrida, na verdade, “essa pobreza não é uma indigência, com pouco de mundo”, tendo induvidosamente “o sentido de uma privação, de uma falta”.[11] Essa “pobreza” do animal implicaria não em uma diferença de grau, mas sim de natureza da relação do animal e do homem com o “ser”. “O animal não tem uma relação menor, um acesso mais limitado a um ente, tem uma relação ‘diversa’” (grifo no original).[12]
Entretanto, o não ter mundo e, conseqüentemente, espírito do animal não corresponde ao mesmo “sem – mundo” da pedra, da matéria inanimada enfim. No caso do animal há “privação” porque ele pode ou poderia ter um mundo, ao passo que a pedra não tem mundo na forma de uma “simples ausência”: [13]
“O animal pode ter um mundo, posto que ele acede ao ente, mas é privado de mundo porque não acede ao ente como tal e no seu ser”. Ele não questiona, não nomeia nem classifica, permanece agrilhoado à mera relação material com os seres, embora, diferentemente da matéria inanimada, mantenha certa relação com o ser. No exemplo de Heidegger, “a abelha operária (…) conhece a flor, sua cor e seu perfume, mas ela não conhece o estame da flor como estame, não conhece suas raízes, o número de estames etc.”. Também o lagarto é outro exemplo de que Heidegger se vale, descrevendo sua permanência sobre a rocha ao sol e destacando que ele igualmente “não se reporta à rocha e ao sol como tais, como aquilo a respeito do que se pode colocar questões, justamente e dar resposta”. No entanto, o animal chega a ter uma relação com a pedra e o sol, enquanto a pedra não tem nenhuma relação com eles”.[14]
Mas a relação do animal com as coisas, devido à falta da espiritualidade, o distancia sobremaneira da mesma relação entre o homem e as mesmas coisas, e, conseqüentemente distancia de forma abissal a animalidade da humanidade. Nas palavras de Michel Haar, citadas por Derrida: “O salto do animal que vive ao homem que diz é tão grande, senão maior, que o da pedra sem vida ao ser vivo”.[15]
A tradição oriental não deixa de perceber essa gradação da espiritualidade nos seres, resumindo-a poeticamente em versos:
“O espírito dorme na pedra,
Sonha na flor,
Acorda no animal
E sabe que está acordado no ser humano”[16]
A ascensão à condição de pessoa nesse contexto pressupõe então a presença da espiritualidade como característica indeclinável. E quando Heidegger aponta para a “pobreza e a privação” dos animais em espírito, isso implica em certa “hierarquização e avaliação”, na qual, sem dúvida, os animais são relegados a um segundo plano.[17]
Quando essa espiritualidade atribuída ao homem é enfocada sob um prisma teológico, passa-se a uma outra definição de pessoa que também tende a reservar somente aos seres humanos essa qualificação. Só o homem é o ser feito “à imagem e semelhança de Deus”, o único “Teomorfo”. [18]
Agora a espiritualidade é aquilo que possibilita ao homem e só ao homem ascender ao divino.
Deus passa a ser o paradigma que deve ser perseguido pelo homem que pode buscar a perfeição. Todo o esforço humano deve consistir então em aproximar-se o máximo possível de Deus e essa aproximação só é viável por meio da exaltação do espírito que é aquilo que enseja a supremacia do humano perante o restante da criação.
Mondin descreve essa concepção com bastante propriedade:
“O modelo, sobre o qual o homem deve decalcar o desenho da sua própria personalidade, não pode encontrá-lo nas criaturas inferiores: nem nas plantas, nem nos animais, nem nos astros. Nem mesmo no melhor dos outros homens, porque por mais que possa ser bom, inteligente, sábio, forte, santo, os homens são sempre dotados de uma humanidade imperfeita. De resto, a humanidade primitiva não pode avaliar-se pela exemplaridade de nenhum outro ser humano. O único modelo adequado à aspiração de infinitude do homem, encontra-se inscrito na própria espiritualidade. Não pode ser outro que um modelo infinito: infinito como espírito, infinito como inteligência, infinito como vontade, como liberdade, como bondade, como amor. O único modelo adequado que o homem deve assumir, para levar à plenitude da própria pessoa é, (…), Deus mesmo. Por este motivo, para a realização plena de si mesmo, que é ontologicamente teoforme, o homem deve fazer-se um imitador de Deus”.[19]
Nada mais que isso é o que propõe o Frei Tomás de Kempis em sua obra sugestivamente intitulada “Imitação de Cristo”. Na forma de um diálogo entre uma “Alma fiel” e Jesus Cristo, faz brotar da boca do segundo a seguinte orientação:
“Filho, se desejas de verdade ser feliz, Eu devo ser teu fim último e supremo. Essa intenção purificará teu coração, tantas vezes apegado desregradamente a si mesmo e às criaturas. Porque se em alguma coisa te buscas a ti mesmo, logo desfaleces e afrouxas. Refere, pois, tudo a Mim, principalmente porque Eu sou quem te dá tudo”.[20]
Eis aí outra característica tomada como imprescindível para possibilitar a qualificação de um ser como “pessoa”, a transcendência possível em direção ao divino, o encontro de si mesmo na glória de Deus, cuja “imagem e semelhança” é atributo exclusivo humano.
Michelangelo (1475 – 1564), pintor, escultor, arquiteto e poeta italiano brindou a posteridade com uma obra prima que bem pode ser tomada como um dos grandes símbolos dessa concepção. Trata-se do afresco pintado na Capela Sistina denominado “A criação de Adão”, no qual o homem estende seu braço e seu dedo indicador toca aquele que representa o Deus Criador. Reproduzir a cena, trocando o homem por um macaco, por exemplo, consistiria em uma transgressão de enormes proporções a toda uma tradicional visão religiosa e filosófica.
Pode haver outros critérios além dos já mencionados para a definição de pessoa, mas estes são os mais aventados, de maneira que as argumentações geralmente giram em torno dessas questões. Apenas exemplificando, em 1972, Joseph Fletcher arrolou quinze critérios ou características de pessoa: “inteligência mínima, consciência de si, domínio de si mesmo, sentimento do tempo, noção de futuro, percepção do passado, aptidão para se comunicar com os outros, interesse pelos outros, comunicação, domínio de sua existência, curiosidade, desenvolvimento e variabilidade, equilíbrio entre a razão e os sentimentos, a idiossincrasia e a função neocortical”. Posteriormente, em 1974, avaliando as críticas que seus critérios ensejaram reduziu-os a quatro: “a consciência de si, a capacidade de interação, felicidade e a função neocortical”.[21]
Como conseqüência de todo o exposto, só o homem poderia ser tomado como pessoa (“persona”), pois que pessoa significa o que é mais perfeito em toda a natureza, o que consiste na natureza racional (São Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, 23, 2).[22] E isso torna o humano um “valor absoluto, não um valor instrumental”, pertencendo “à ordem do ‘frui’ e não àquela do ‘uti’. Na linguagem de Santo Agostinho, o homem (pessoa) existe “para usar e não para ser utilizado”.[23] Também de forma semelhante manifesta-se Kant, qualificando todo ser racional como um fim em si mesmo e jamais como um simples meio para quaisquer objetivos.[24]
O conjunto dessas concepções necessariamente exclui os animais de qualquer possibilidade de acesso ao estatuto de “pessoas” e suas correlatas prerrogativas.
No entanto, há quem advogue uma definição menos restritiva de pessoa. Peter Singer indica uma série de aproximações entre animais e humanos que, a seu ver, poderiam justificar a atribuição da qualidade de pessoas também aos primeiros. Parte de uma definição psicológica de pessoa, proposta por John Locke: “Um ser pensante inteligente, dotado de razão e de reflexão, e capaz de cogitar de si como si mesmo, uma mesma coisa pensante, em diferentes tempos e lugares”.[25] É bastante conhecido o quanto as ciências (zoologia, etologia, psicologia, genética, anatomia comparada etc.) foram capazes de demonstrar que as características supra elencadas e outras mais não são exclusividade humanas, embora apresentem certas peculiaridades distintivas.
Na tentativa de distinção entre os homens e os animais, os primeiros já foram identificados e individualizados por diversas características tomadas como exclusivas. O homem já foi descrito como animal político, animal social, animal que ri, animal que fabrica utensílios, animal religioso, animal que cozinha, animal que dialoga, animal que é proprietário, animal racional, animal livre etc.[26]
Não obstante, tais definições, muito mais do que distinguir o homem dos animais, visavam “propor algum ideal de comportamento humano” [27] e efetivamente não operavam nenhuma distinção relevante do ponto de vista moral a alijar os seres não – humanos do estatuto de “pessoas”, de “sujeitos” aos quais se deve uma obrigação moral, mesmo porque, nem sempre podem ser tomados de forma geral e imparcial, como características verdadeiramente exclusivas dos humanos.
Em seus comentários à obra de Coetzee, Bárbara Smuts deixa clara sua impressão de que nossa classificação de pessoa tem uma base arbitrária, não se referindo ao fato concreto de que um ser possa ou não ser encarado como pessoa, mas sim à nossa disposição em assim encará-lo de acordo com a forma mais ou menos preconceituosa pela qual o vemos. O conceito de pessoa estaria, na verdade, ligado à possibilidade de uma relação social entre dois sujeitos que se afetam mutuamente e, especialmente, no reconhecimento dessa “relação pessoal”. Se os humanos não reconhecem os animais dessa forma, mas lhes atribuem o mero “status” de “coisas”, isso não quer dizer que eles são apenas “coisas”, mas que nós lhes atribuímos essa condição de forma preconceituosa e arbitrária, desconsiderando nossa possível “relação pessoal”. Nas palavras da autora, “quando um ser humano se relaciona com um indivíduo não – humano como objeto anônimo, mais do que como um ser com sua própria subjetividade, é o humano, e não o outro animal que renuncia à pessoalidade”.[28] Portanto, o que limita nossas relações com os animais é “a visão estreita com que pensamos quem são eles e que tipos de relações podemos ter com eles”.[29]
Tratar-se-ia, assim, de uma manifestação do chamado “especismo”, pois a qualidade de pessoa não deveria permanecer atrelada ao mero pertencimento à espécie “Homo Sapiens”. Deveria estar sim ligada a certos requisitos comuns a todos os seres sensíveis. Singer assim responde sobre o tema em entrevista a Bob Abernethy:
“A simples condição de fazer parte da espécie (“Homo Sapiens”) não basta. As qualidades que considero importantes são, em primeiro lugar, a capacidade de vivenciar a experiência de alguma coisa – isto é, a capacidade de sentir dor, ou de ter algum tipo de sentimento. Isto é realmente fundamental; e, no entanto, é algo que temos em comum com uma quantidade imensa de animais não – humanos”.[30]
É justamente a reformulação de um paradigma que concentra no homem e apenas nele toda a preocupação moral, que pode operar uma inovadora abordagem do tema dos Direitos dos Animais e, numa etapa seguinte, da própria relação da humanidade com a natureza. Entretanto, há que ponderar o perigo ínsito na identificação do homem com a animalidade pura e simples, bem como, especialmente, o alijar de determinados seres humanos da condição de pessoas devido à falta de certos requisitos. Nada há de negativo em buscar uma elevação do “status” dos animais e de sua consideração e tratamento como seres sensientes. Não obstante, a aproximação exagerada ou até mesmo a identificação do humano com o animal perverte a vertente antropológica e pode levar a efeitos contrários aos que os defensores dos animais pretendem. Ao invés de vermos os animais sendo tratados à semelhança dos humanos em suas relações morais, podemos passar a ver, como já ocorreu na história várias vezes, seres humanos sendo degradados ao tratamento dado a animais ou ainda abaixo disso. É inegável que o homem é dotado de corporeidade e que tem pontos comuns com a animalidade, mas o salto dado na hominização, especialmente sob o aspecto espiritual não pode ser olvidado.
Tratando do otimismo exagerado e midiático em que se envolve o mundo atual em relação às pesquisas genéticas, alerta, com acerto cirúrgico Guillebaud:
“Os defensores do otimismo cientificista irritam-se quando convocamos essa memória para denunciar os possíveis desvios da genética. Para eles, essa incansável convocação de Hitler é exasperante. Eles veem nela um modo cômodo de encorajar todas as prudências ‘obscurantistas’ ou as reações ‘tecnofóbicas’ (os dois termos estão na moda). Estão errados. A referência intuitiva a esse passado não é irracional. É realmente a intransponível exceção nazista e a Shoah que fizeram nascer, em contrapartida, nossa preocupação obsessiva com o humano do homem. A cronologia histórica é testemunha disso. É depois da abertura dos campos e das valas comuns que o trágico foi convidado, para todo o sempre, para essa questão. Depois da Shoah, rompemos com aquilo que podia haver de cortês, de indiferente, de quase divertido, nos séculos XVII ou XVIII, nas reflexões sobre a animalidade ou humanidade da criatura (Plutarco, La Mettrie, Descartes e outros mais…). O sistema concentrador nazista fabricou desta vez, no sentido estrito do termo, uma subumanidade. Para o bem. Para a verdade. O homem inteiro, por meio do judeu ou do cigano, foi reduzido forçosamente à animalidade ou condenado ao estatuto de objeto ou de coisa. Os corpos supliciados, seus dentes, sua pele, seus cabelos, se tornaram matéria – prima… Em 1945 – 1946, subitamente, ‘o Ocidente descobriu (então) com horror que podíamos destruir uma verdade mais preciosa que a própria vida: a humanidade do ser humano”. [31]
Por seu turno, Henry chama a atenção para a barbárie da “naturalização” do homem pela ciência moderna, tornando-o indistinguível das coisas. [32]
A lição histórica não pode ser esquecida e exatamente por isso, quando se trata de vida e morte de seres humanos, estejam eles em que condição estejam, o substrato primeiro de qualquer discussão tem de ser um referencial teórico antropológico que não permita o olvidar da humanidade do homem e impeça, em qualquer situação, sua reificação.
3-A (i)legitimidade e (i)legalidade da morte dada aos moribundos: confluência entre antropologia, ética e direito
Partindo de um referencial teórico antropológico, ético e filosófico que tem como marco o conceito de pessoa humana como unidade corporal e espiritual e, portanto, sujeita a uma dignidade especial, surge o problema de como lidar com a questão daqueles que estão no final de suas jornadas vitais.
Uma primeira questão conceitual a ser enfrentada diz respeito à distinção entre “doença avançada” e “doença terminal”. Nem sempre é bem delineada a definição dessas expressões frequentemente utilizadas nas discussões acerca do tratamento das pessoas acometidas de doenças letais graves em fase crítica.
Segundo Floriani, é no campo da oncologia que se tem avançado mais para esse estudo. Assim sendo, “doença avançada” tem sido definida como “aquela que não tem possibilidades de tratamento curativo, com expectativa de vida relativamente curta, ainda que esse tempo possa ter uma grande variabilidade, às vezes de anos”. Doutra banda, o conceito de “doença terminal” apresenta maiores dificuldades de delimitação, principalmente no caso de enfermidades que costumam apresentar eventuais fases de recuperação, ainda quando o paciente já apresenta um quadro degenerativo de saúde bastante avançado. A verdade é que a configuração da terminalidade em doenças que não apresentam um curso linear de desenvolvimento é bastante difícil. Ainda que com essas observações, é possível referir em um sentido amplo que a terminalidade é “a fase final de uma doença avançada, que levará o paciente à morte em horas, dias ou semanas, e que se caracteriza por uma deterioração irreversível das funções orgânicas”. [33] Enfim, pode-se afirmar que a terminalidade se caracteriza como a fase final e definitiva de uma doença avançada.
Seja diante de uma doença em fase avançada ou terminal, o problema que se coloca é aquele da conduta diante do ser humano nessas condições de forma a respeitar sua dignidade. Respeitar essa dignidade seria dar morte ao doente ao menos na fase terminal? Com ou sem o seu consentimento? Seria propiciar ao doente tirar a própria vida? Seria cuidar desse paciente, ensejando-lhe um bom processo de morte com dignidade e minimizando os sofrimentos físicos, psíquicos e espirituais? Qual o caminho a ser tomado, segundo as orientações éticas e jurídicas, construídas sobre o alicerce antropológico do conceito de pessoa humana?
Frise-se ainda que o fenômeno de envelhecimento da população e o aumento da longevidade apresentam enorme relevância para a problemática ora abordada, pois cada vez mais haverá a necessidade do enfrentamento do dilema criado pela existência de uma parcela populacional dependente de cuidados no fim da vida, os quais passam a configurar uma questão de saúde pública de ordem mundial. [34] Em “As Intermitências da Morte”, Saramago dramatiza, com maestria que lhe é peculiar, as dificuldades passadas por uma sociedade em que a morte deixa de fazer seu trabalho de renovação, com o surgimento de uma população imortal, porém, incapacitada e debilitada pela velhice. [35]
Neste ponto releva salientar que na atualidade vêm surgindo na seara filosófica sugestões de uma “ética negativa” ou “ética do não – ser” em contraposição à ética clássica que se assenta na perseverança do “ser”. Nesse diapasão, Cabrera afirma que “nenhum filósofo enfrentou a possibilidade de uma moralidade do não ser, ou seja, as consequências éticas decorrentes de uma rejeição radical do ser”. [36] Quanto a isso, “a Ética tradicional foi construída como se a vida fosse algo compulsivo, jamais enfrentou a possibilidade de tratar-se de uma escolha”. [37] Efetivamente, uma das maiores, senão a maior questão filosófica posta ao homem é o saber se a vida merece ser vivida. Camus chega a afirmar que “só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio”. [38]
Uma “ética negativa ou do não – ser” apresenta um problema filosófico de grande seriedade, qual seja, se houver realmente a possibilidade de uma “moralidade do não ser”, então, em certas situações viver pode ser considerado como “a máxima imoralidade”. [39]
Essa proposta de uma “ética negativa” tem sua valia enquanto instância crítica e de abertura de novos horizontes para o pensamento. Mas, também pode ser uma árvore de frutos venenosos que pode descambar para um “niilismo” absoluto e uma total desvalorização da vida humana. Conforme destaca Cabrera, “crescer é gradativamente adentrar-se na morte, vivê-la cada vez mais, até, finalmente, morrê-la”. [40] Essa é uma verdade iniludível, cuja aceitação não deve levar à prostração ou desespero, mas à aceitação da morte como um processo ou parte da vida, como a finitude inexorável que inclusive valoriza a própria vida. Nesse passo, uma “ética negativa” pode ser produtiva para afastar a absoluta e rígida rejeição da morte que muitas vezes conduz à submissão de pessoas a tratamentos fúteis que somente prolongam o processo de morte, acrescendo sofrimento e não vida, o que certamente viola a dignidade humana. Não obstante, durante a leitura da obra de Cabrera, por exemplo, os mais desavisados podem ser levados a interpretá-la como uma espécie de apologia ao suicídio e mais ainda como uma devastadora ideologia que abarca o nada como fim da moralidade. Pode parecer que a questão não esteja em levantar hipóteses em que o ser não seja melhor que o não – ser, mas em afirmar que o não – ser é sempre melhor. Essa interpretação faz com que a crítica ínsita ao pensamento de uma “ética negativa” se volte contra si mesma num mimetismo da ética tradicional que impõe o ser como invariavelmente melhor que o não – ser. Daí para uma cultura do suicídio e da própria destruição do mundo, para a qual já somos dotados de poderes, o passo é mínimo. E se é possível retirar alguma lição ou entendimento da observação da natureza, não é em direção ao nada que se caminha. Luc Ferry, embora reconhecendo a inexistência de uma vontade dirigida a fins na natureza e muito menos uma suposta “bondade natural”, aduz, com fulcro na doutrina de Hans Jonas, a existência de uma tendência ou uma linha coerente a guiar os processos naturais. Sem poder abrir mão da linguagem metafórica para explicar-se, resume essa tendência na expressão de Jonas que afirma que “a vida diz sim à vida”. O que muitas vezes se interpreta como “vontade” da natureza, seria constatável mais propriamente como uma inclinação, uma propensão, não necessariamente dirigida por um desejo, pela conservação e propagação da vida, um “perseverar no ser”.[41] Note-se que não há necessidade de apelar para uma vida após a morte, para argumentos de índole religiosa, mas apenas para o fato de que o “ser” é presente e o “nada” apenas subjaz a ele sem experiência autônoma. Nas palavras de Sartre:
“O nada, não sustentado pelo ser, dissipa-se enquanto nada, e recaímos no ser. O nada não pode nadificar-se a não ser sobre um fundo de ser: se um nada pode existir, não é antes ou depois do ser, nem de modo geral, fora do ser, mas no bojo do ser, em seu coração, como um verme”. [42]
Assim a proposta de uma “ética negativa ou do não – ser” torna-se vazia e perigosa se absolutizada. No entanto, pode ser útil e profícua enquanto instância dialética com a ética tradicional focada no ser, impondo-lhe alguns limites e questionamentos que poderiam muitas vezes passar despercebidos. E Cabrera demonstra claramente essa intenção dialética quando faz a crítica da aplicação universal, sistemática e invariável de qualquer norma moral. Em certas situações práticas, a aplicação cega de uma norma moral, seja ela qual for, pode tornar-se fonte de imoralidade. Por isso é preciso contar com aquilo que o autor denomina como “astúcia da indeterminação”, a qual possibilita a noção de que um princípio moral que não permite exceções e que se aplica igualmente e invariavelmente “sempre, a todo mundo, em todo lugar, em todo tempo, e sempre da mesma maneira” é uma das coisas mais assustadoras que podem existir e inclusive à qual se dá o nome de “máquina moral infernal”. [43] E não se trata aqui de uma defesa do chamado “Relativismo Moral”, mas da aplicação proporcional e razoável das normas e princípios que regem a moralidade. Como afirma Hare, já que “não temos acesso direto ao que um Deus bom poderia querer”, somente nos resta “o recurso a nossa própria razão imperfeita”, que “é o melhor meio de que dispomos”. [44]
Não parece razoável que o ato de matar ou de possibilitar os meios para o suicídio de um doente terminal ou avançado possa ser tomado como paradigma ou regra na solução de uma situação – limite onde convergem as questões da dignidade humana e da vida. A presença do “outro” diante de mim impõe uma relação ética na qual não é permitida a apropriação da vida ou mais propriamente a aniquilação do outro. [45] O dever moral que dessa relação emerge é o dever de “cuidado”. O cuidar deve ser o paradigma, jamais o matar ou o ensejar a autodestruição. Aliás, como ironicamente bem lembra Saramago, “a morte, por si mesma, sozinha, sem qualquer ajuda externa, sempre matou muito menos que o homem”. [46] Certamente a humanidade não precisa acrescer mais essa barbárie à sua longa lista de violências e extermínios.
No contexto acima é que surgem movimentos e pensamentos fulcrados nos “cuidados paliativos” e no modelo de atendimento “Hospice”.
Situa Floriani as bases do “moderno Movimento Hospice” com a fundação na Inglaterra, em 1967, do St. Christopher’s Hospice, propondo grandes transformações quanto aos cuidados ofertados aos pacientes e seu entorno. Esse movimento está intrinsecamente ligado aos denominados “cuidados paliativos”, os quais “implicam um conjunto de ações interdisciplinares visando oferecer uma ‘boa morte’ e aumentar a qualidade de vida dos pacientes acometidos por doenças em estágio avançado. Além disso, há uma preocupação com os familiares do paciente e com o cuidador, expressa mediante a oferta de cuidados estendidos ao processo de luto, havendo também ênfase no atendimento em clínica – dia e em programas de internação domiciliar”. [47]
O movimento Hospice e os cuidados paliativos procuram situar-se como uma mediania virtuosa entre a chamada “eutanásia” ou o “suicídio assistido” e o excesso, futilidade, encarniçamento ou obstinação terapêutica. Nem dar a morte a alguém, nem privar esse alguém de seu caminho natural em direção à finitude humana. Mas, amparar o moribundo em seu caminho para a morte, conforme bem retrata a expressão grega “Kalós Thanatós”, traduzível como a “jornada da boa morte”. [48] Não se acelera nem se adia a morte [49], aproximando-se mais de uma conduta de “ortotanásia”, a qual não se confunde nem mesmo com a chamada “eutanásia passiva”. A palavra “ortotanásia” advém do grego “orthós” (normal, correta) e “thánatos” (morte), designando, portanto, a “morte natural ou correta. Assim sendo, “a ortotanásia consiste na ‘morte a seu tempo’, sem abreviação do período vital (eutanásia) nem prolongamentos irracionais do processo de morrer (distanásia). É a ‘morte correta’, mediante a abstenção, supressão ou limitação de todo tratamento fútil, extraordinário ou desproporcional, ante a iminência da morte do paciente, morte esta que não se busca (pois o que se pretende aqui é humanizar o processo de morrer, sem prolongá-lo abusivamente), nem se provoca (já que resultará da própria enfermidade da qual o sujeito padece)”. [50] A intenção é a busca da chamada “boa morte”, definida desde 1997, pelo “Institute of Medicine como: “aquela que é livre de uma sobrecarga evitável e de sofrimento para o paciente, as famílias e os cuidadores; uma morte que ocorra, em geral, de acordo com os desejos dos pacientes e das famílias; e razoavelmente consistente com as normas clínicas, culturais e éticas”. [51]
Afora esse equilíbrio virtuoso diante do doente avançado e/ou terminal o sistema jurídico – penal brasileiro, movendo-se num referencial teórico antropológico de defesa da vida e da dignidade humanas, conforme proposto neste trabalho, criminaliza a execução eutanásica dos moribundos, ainda que a seu pedido, eis que a vida é considerada como bem jurídico indisponível. [52] Ocorre nesses casos o crime de homicídio (artigo 121, CP) que pode ser considerado privilegiado devido à presença de um sentimento de piedade na consecução da morte, o qual pode configurar o chamado “relevante valor moral” (artigo 121, § 1º., CP). A consequência do reconhecimento do privilégio é a redução da pena do “caput”, que é de reclusão, de 6 a 20 anos, de um sexto a um terço. Se por acaso o agente não mata o doente, mas lhe propicia os meios para que ele mesmo dê cabo da própria vida (suicídio assistido), ainda que a seu pedido, pode configurar-se, acaso o doente sofra lesões graves ou efetivamente morra o crime de Induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio (artigo 122, CP). Nesse caso não há previsão de privilégio, mas pode configurar-se, também pelo “relevante valor moral” propiciado pelo sentimento de piedade em relação ao enfermo, a atenuante genérica do artigo 65, III, “a”, CP. Nas atenuantes não é prevista uma redução fixa ou um intervalo de redução de pena na lei. Entretanto, é costume que a redução não ultrapasse um sexto. [53]
De outro lado, a ortotanásia que se compõe dos chamados cuidados paliativos quando as opções terapêuticas se revelam meras obstinações injustificadas, não configura qualquer infração penal ou moral. Trata-se da conduta jurídica e eticamente correta a ser adotada, seja pela família ou pelo profissional de medicina. Mesmo a omissão de tratamento, tirante os cuidados paliativos, é irrelevante, pois se trata de situação em que a terapêutica é retirada e não se faz nada porque nada mais há a fazer, a não ser amparar humanamente o paciente em sua jornada final. Ora, a omissão na seara criminal somente adquire relevância “quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado”, o que não ocorre quando se trata de ortotanásia e da opção correta pela adoção dos cuidados meramente paliativos. [54] Também não pode ser considerada moralmente reprovável e muito menos criminalmente persequível a chamada “eutanásia indireta”, informada pela “doutrina do duplo efeito”, quando um tratamento analgésico acaba abreviando concomitantemente o ciclo vital do doente. Não há nexo causal relevante para com a morte e a conduta do profissional e/ou cuidador que ministra o tratamento é em prol da saúde e do bem estar integral do paciente.[55]
Finalmente, a não manutenção de funções vegetativas de um corpo com morte encefálica, através de técnicas e aparatos da medicina contemporânea também constitui um irrelevante moral e jurídico. Trata-se apenas da remoção de um cadáver, pois que se considera como morte a chamada morte encefálica, inclusive por força de lei (artigo 3º., da Lei de Transplantes – Lei 9.434/97), o que torna a conduta em termos de homicídio verdadeiro crime impossível (inteligência do artigo 17, CP). [56] Já sob o ponto de vista moral, trata-se de uma questão absolutamente adiafórica, ou seja, nem boa nem má, neutra.
Vale salientar que há projetos de alteração do Código Penal para a previsão da Eutanásia como uma forma especial de homicídio com penas mínima e máxima bem menores que as previstas para o “caput” do artigo 121, CP. Assim também há projetos para que a prática da ortotanásia seja explicitamente enfrentada no ordenamento penal, indicando sua impunibilidade. Já o Código de Ética Médica (Resolução CFM 1931/09), no inciso XXII, dos seus “Princípios Fundamentais do Exercício da Medicina”, se adianta a regulamentar a ortotanásia, permitindo-a “nas situações clínicas irreversíveis e terminais”, quando “o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados”. [57]
Não somente sob o aspecto ético e deontológico, mas especialmente sob o ângulo criminal não se costuma dar a devida atenção a algo que ocorre cotidianamente na prática médica sob a influência de interesses financeiros espúrios e abjetos. Normalmente se foca na falta de cuidados adequados e não no exagero terapêutico, visando lucros indevidos. Floriani [58] é um dos poucos autores que lembra essa importante faceta. O estudioso se refere a indicações indevidas de internação e tratamento de pacientes em unidades hospitalares de alta tecnologia e elevados custos. Também chama a atenção para a realização de procedimentos diagnósticos e/ou terapêuticos de “indicação duvidosa”, visando tão somente auferir lucros, obviamente no âmbito da medicina privada. Há internações indevidas, prolongamentos de internações e tratamentos desnecessários, realização de exames inúteis de alto custo em doentes terminais etc., tudo visando ganho financeiro e atuando sobre o corpo do paciente como se este fosse nada mais que uma fonte de lucros. Essa situação é ainda pior do que a chamada obstinação terapêutica, a qual, mesmo equivocada, pode ser considerada uma posição filosófica e ética do profissional que se apega desesperadamente na luta contra a morte. Não, nesses casos não se trata de posição filosófica, de qualquer crença, ainda que ilusória, mas de pura e simples perversidade. E se trata de uma iniquidade tamanha que pode ainda ser fomentadora de desinteresse de médicos e entidades hospitalares da rede privada para a implantação de programas dentro da filosofia Hospice e cuidados paliativos, já que estes procedimentos tendem a reduzir e não aumentar os custos hospitalares.
O Código de Ética Médica repudia a mercantilização do exercício da medicina, desde seus Princípios Fundamentais (inciso IX), de modo que sob o prisma deontológico – administrativo a conduta acima aventada é absolutamente inadmissível. [59]. E criminalmente, como ficaria a situação? Nesses casos, a submissão do paciente a procedimentos diagnósticos e terapêuticos e internações desnecessárias com dolo por parte do profissional de medicina pode configurar diversas infrações penais, tais como Constrangimento Ilegal (artigo 146, CP), Lesão Corporal (leve, grave ou gravíssima, conforme o caso – artigo 129 e §§ 1º. e 2º.), Estelionato (artigo 171, CP) e eventual Associação Criminosa (artigo 288, CP) quando a atuação é institucionalizada ou perpetrada por grupo criminoso formado por 3 ou mais pessoas. Em todos os casos os crimes seriam agravados nos termos do artigo 61, II, “a” (motivo torpe); “d” (meio insidioso e cruel); “g” (violação de dever inerente à profissão); “h” (vítima enferma e/ou eventualmente criança, mulher grávida ou idoso) e ainda eventualmente, “b” (para assegurar a vantagem de outro crime, quando a lesão e/ou constrangimento estiverem conexos ao estelionato). Frise-se que ainda que a conduta seja institucionalizada por entidade médica e/ou hospitalar, não será viável a responsabilização criminal da pessoa jurídica, a qual somente é prevista em nosso ordenamento no que tange aos crimes ambientais (inteligência do artigo 225,§ 3º., CF c/c artigo 3º., da Lei 9.605/98).
4-Conclusão
Não há exagero em afirmar que os dilemas e questões que surgem no final da vida foram fundamentais para o advento da bioética e de outras matérias ligadas à humanização da medicina.
Entende-se que o ordenamento jurídico brasileiro, ao não recepcionar a prática da eutanásia e do suicídio assistido, conforme ocorre em alguns modelos de Direito Comparado, está imprimindo um critério interpretativo coerente com a conformação de nosso Estado Constitucional.
Conforme leciona Cambi, “havendo mais de um modo de interpretar a Constituição, deve-se optar por aquele que melhor concretize o valor dignidade da pessoa humana. Assim, se uma regra jurídica puder ser interpretada de mais de uma forma, deve-se escolher aquela que esteja em maior conformidade com a dignidade humana, excluindo, por outro lado, exegeses que contrariem ou não acolham integralmente tal valor jurídico. A dignidade humana é a premissa antropológica do Estado Constitucional e o conceito chave de Direito Constitucional. Não pode haver Estado e, muito menos, Estado de Direito Constitucional sem se fazer referência à pessoa humana, porque a pessoa é um fim em si mesmo, não um meio para se conseguir um fim, devendo o Estado estar a seu serviço, não o inverso”. [60]
Entretanto, as expressões “dignidade humana” ou “pessoa humana” podem ter seus significados moldados de diversas formas, lembrando a advertência de Miles de que existe um provérbio que diz que “até o Demônio pode citar as Escrituras”. [61] Por isso é importante manter sempre um referencial teórico de pessoa humana e, consequentemente, de sua dignidade especial, tendo em vista seu conteúdo corporal, psíquico e espiritual e jamais permitindo sua redução a meio ou a coisa. É no seio desse referencial antropológico que à pessoa humana moribunda não se pode estender a morte, mas sim a mão na jornada da finitude em uma conduta de cuidados “eficientes e amorosos”, conforme destaca Floriani, fazendo referência a Cicely Saunders. [62]
Recentemente, no Congresso Direito e Fraternidade 2013, realizado na cidade de São Paulo-SP, debateu-se sobre o tema do “Princípio da Fraternidade no Direito” como “instrumento de transformação social”. No texto – base do encontro há manifestação destacável de Carlos Augusto Alcântara Machado, dando ênfase ao teor do Preâmbulo da Constituição Federal de 1988, onde “o constituinte originário adjetivou o vocábulo sociedade, qualificando-o como fraterna. Não se contentou o legislador-mor em fornecer as bases de uma sociedade politicamente organizada e juridicamente institucionalizada. Foi mais além: comprometeu-se com a edificação de uma sociedade fraterna”. [63] Mas, a verdade é que desde que os ideais de “liberdade, igualdade e fraternidade” ganharam, especialmente a partir da Revolução Francesa de 1789, grande relevância no cenário jurídico e social, se tem demonstrado muita preocupação com a liberdade e a igualdade e muito, muito pouco se tem realmente focado na questão da fraternidade. Certamente, este é um tema a ser repensado no mundo jurídico, mediante a busca de não somente fazer menção à fraternidade em textos legais, mas reforçá-la enquanto categoria jurídica efetiva.
Comunga-se da conclusão sobre a urgência de que a disciplina de cuidados paliativos passe a fazer parte obrigatória das grades curriculares das graduações dos profissionais de saúde. [64] Assim também é imprescindível que as redes hospitalares públicas e particulares passem a investir em estrutura e formação de cuidados paliativos baseados no modelo Hospice, a fim de proporcionar uma vivência digna da própria morte às pessoas. Este tema do fim da vida humana e sua dignidade é um daqueles onde o Princípio da Fraternidade pode ensejar grandes transformações sociais.
Referências:
Notas:
Informações Sobre o Autor
Eduardo Luiz Santos Cabette
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.