Resumo: O presente trabalho traz breves reflexões acerca do direito à autonomia da vontade, fundamentada no princípio da dignidade humana. Para melhor compreensão do tema são abordados assuntos muito importantes para o entendimento do tema, dentre eles, o aborto, assim como a análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. [1]
Palavras-Chave: Autonomia da Vontade. Dignidade Humana. STF.
Abstract: This paper presents brief reflections about the right of freedom of choice and autonomy of individual will, based on the principle of human dignity. For better understanding of the issue be addressed some issues that are very important for the understanding of the theme, among them, abortion, as well as the analyze made by the jurisprudence of the Supreme Court.
Keywords: Autonomy of the will. Human dignity. STF.
Sumário: Introdução. 1. Autonomia da vontade. 2. Dignidade da pessoa humana. 3. Análise de decisões pontuais do Supremo Tribunal Federal. Considerações finais. Referências.
Introdução
O presente trabalho tem como objeto o estudo dos elementos que compõe o núcleo central do que se chama de “dignidade da pessoa humana”, notadamente através de um de seus componentes fundamentais, ou seja, a autonomia da vontade individual.
A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, constituindo-se em conceito que, além de elemento orientador da produção legislativa e ação do Estado, também serve como princípio interpretativo da legislação. Muitas vezes até mesmo em nome deste princípio é cada vez maior o âmbito de intervenção do Estado na autonomia da vontade dos indivíduos. Essa substituição da autonomia individual pela alegada sabedoria do Estado interventor pode, em determinados casos, resultar em verdadeira violação da dignidade que se pretendia proteger.
Se o respeito à dignidade da pessoa humana demanda o respeito pela vida, liberdade, integridade física e moral dos indivíduos, então sempre que o Estado proíbe o exercício da liberdade de escolha, o uso do discernimento individual, é possível estar-se diante de uma violação à dignidade, o que se visa, pelo menos em discurso, evitar. A pessoa humana, considerada como criatura autônoma, independente, capaz de tomar decisões conscientes e informadas, escolhendo o que é bom ou não para si, precisa ser tutelada pelo Estado? Em que situações deveria ser reconhecida a impossibilidade, inutilidade ou proibição de se permitir ao indivíduo que exerça de forma autônoma a sua vontade?
Encontrar os fundamentos que autorizam o Estado a intervir na autonomia da vontade individual, fazendo escolhas no lugar dos indivíduos, é o primeiro passo para a resolução do problema de pesquisa. É que tomando esses pressupostos por fundamento da possibilidade de afastamento do direito de exercício da autonomia da vontade, por raciocínio inverso serão encontrados os fundamentos da autonomia da vontade. Ou seja, somente quando não estiverem presentes os fundamentos da autonomia da vontade é que o Estado, em nome da proteção da dignidade da pessoa humana, como atributo individual que vai além da autonomia da vontade, poderá fazer escolhas e exercer o direito de externalizar uma vontade, no lugar dos indivíduos.
Alcançar esta compreensão permite analisar, sob o ponto de vista constitucional, qual o limite para a intervenção do Estado na esfera privada. Especificamente, a análise de algumas decisões do Supremo Tribunal Federal será confrontada com as respostas às questões anteriormente mencionadas, a fim de responder se, no Brasil, a jurisprudência se preocupa e, em que medida, com intervenções não justificáveis à autonomia da vontade individual.
Neste ponto, encontra-se o problema que balizará a pesquisa, pois se busca responder ao seguinte: O Supremo Tribunal Federal tem reconhecido situações nas quais é permitido ao Estado fazer escolhas individuais no lugar dos indivíduos, em diminuição do campo de atuação de sua autonomia?
O estudo inicia com alguns apontamentos sobre a autonomia da vontade, segue com a problemática acerca da definição da dignidade da pessoa humana para, depois, tratar especificamente de algumas decisões emblemáticas do Supremo Tribunal Federal. Ressalta-se que não há pretensão de se esgotar o tema versado pela presente pesquisa, mas manteve-se o cuidado de abordá-lo com responsabilidade através do estudo ora realizado.
1 – Autonomia da vontade
A autonomia da vontade pode ser considerada como um dos componentes essenciais da proteção à liberdade tutelada constitucionalmente aos indivíduos, já que ela incide no âmbito das escolhas individuais, na esfera atribuída pelo Direito para auto-regulação das relações privadas. É, portanto, um dos princípios basilares do direito privado, pois segundo Luis Edson Fachin (1998, p. 119), é a “pedra angular do sistema civilístico”. O autor prossegue, considerando que o direito fundamental à autonomia da vontade tem como base a compreensão do ser humano com agente moral, dotado de razão, capaz de decidir o que é bom e o que é ruim para si, e que deve ter liberdade para guiar-se de acordo com suas escolhas, desde que elas não perturbem os direitos de terceiros.
Assim, cabe a cada ser humano decidir os rumos da sua vida, pois não deve o Estado estabelecer os caminhos que cada indivíduo deve trilhar. Está é a ideia da autonomia da vontade, que se constitui em um dos elementos fundamentais do direito mais amplo de liberdade do indivíduo.
A autonomia da vontade como direito fundamental dá ao sujeito de direito a capacidade de determinar o seu próprio comportamento individual, tanto em aspectos vinculados à ideia de escolhas existenciais, como também nos aspectos de negócios jurídicos de natureza patrimonial.
Imannuel Kant (2006, p. 35) pressupõe o homem como livre (e também todos os seres racionais em geral). Em outras palavras, significa pressupô-lo como portador de uma vontade pura, ou seja, uma vontade capaz de agir segundo princípios práticos que a sua própria vontade impõe, ou seja, a vontade pode ser determinada simplesmente pela razão.
Fernando Noronha (2003, p. 50) entende que a autonomia privada da vontade consiste na liberdade das pessoas regularem os seus interesses e também os seus negócios unilaterais, tanto no âmbito pessoal quanto no aspecto patrimonial, especialmente com destaque à produção e à distribuição de produtos e à prestação de serviços, ressaltando, ainda, que importantes princípios fundamentam-se na autonomia privada, como o da liberdade contratual, do consensualismo e do efeito relativo dos contratos.
Nesse sentido, Eduardo Pires e Jorge Renato dos Reis (2010, p.) entendem que não cabe ao Estado, à coletividade ou a qualquer outra entidade estabelecer os fins que cada indivíduo deve seguir, os valores que deve crer e as atitudes que deve tomar, pois não se pode negar ao ser humano a possibilidade jurídica de decidir de forma autônoma, ou seja, da forma como preferir e que melhor lhe aprouver.
A autonomia da vontade, entendida como o poder que o indivíduo tem para estabelecer negócios jurídicos com terceiros, tem como objetivo constituir relações jurídicas privadas que atendam a necessidades determinadas, observando os preceitos legais. Ao Estado, não cabe obstar tais práticas, mas proporcionar que as pessoas exerçam seu direito ao exercício da autonomia da vontade, com a criação de mecanismos para evitar abusos e injustiças, ou seja, preservando o direito de terceiros, mas possibilitando que cada pessoa exerça seus direitos.
Verificado o âmbito da autonomia da vontade, importante entender-se o alcance da dignidade da pessoa humana.
2 – Dignidade da pessoa humana
A dignidade da pessoa humana, segundo o pensamento filosófico e político da antiguidade clássica00, guardava relação com a posição social ocupada pelo indivíduo e o seu grau de reconhecimento pelos demais membros da comunidade, possibilitando falar-se em uma qualificação da dignidade e admitindo-se classificar as pessoas como mais dignas ou menos dignas, conforme menção histórica de Roger Guardiola Bortuluzzi (2015, p.).
Além disso, Rizzatto Nunes (2009, p. 48) considera a dignidade da pessoa humana como um supraprincípio constitucional, entendendo que a dignidade da pessoa humana se encontra acima dos demais princípios constitucionais.
Para Immanuel Kant (2006, p. 134), novamente, pela teoria da autonomia da vontade, o ser humano seria capaz de autodeterminar-se e agir conforme as regras legais, qualidade encontrada apenas em criaturas racionais. Logo, todo ser racional existe como um fim em si mesmo e não como um meio para a imposição de vontades arbitrárias. Também aprofunda o conceito de pessoa a ponto de se encontrar um sujeito tratado como “um fim em si mesmo” e nunca como meio para atingir determinada finalidade, defendendo que a dignidade humana é qualidade congênita e inalienável de todos os seres humanos, que impede a coisificação do homem e se materializa mediante a capacidade de autodeterminação que os indivíduos possuem por meio da razão.
Importante, ainda, a opinião de Narciso Leandro Xavier Baez e Douglass Cassel (2011, p. 11), quando ponderam que a dignidade humana exige respeito e proteção, tanto por parte da sociedade quanto pelo Estado, pois é o resultado de certo consenso social, servindo de parâmetro para o exercício do poder de controle da sociedade e das autoridades, as quais se incumbem de protegê-la contra quaisquer formas de violação. Afirmam que os direitos humanos (gênero) são um conjunto de valores éticos, positivados ou não, que têm por objetivo proteger e realizar a dignidade humana em suas dimensões: básica (protegendo os indivíduos contra qualquer forma de coisificação ou de redução do seu status como sujeitos de direitos) e cultural (protegendo a diversidade moral, representada pelas diferentes formas como cada sociedade implementa o nível básico da dignidade humana).
Para Jussara Maria Leal de Meirelles (2000, p. 43), o reconhecimento do homem como sujeito de dignidade é elemento fundante da ordem jurídica brasileira. Desde os alicerces do Estado Democrático de Direito destacam-se a cidadania e a dignidade da pessoa humana.
Além disso, Ricardo Pereira Silva (2015, p.), tratando da dignidade da pessoa humana, ampara sua opinião em dois pressupostos: a) todas as pessoas humanas devem ser igualmente respeitadas;e b) o respeito deve ser assegurado independentemente do grau de desenvolvimento individual das potencialidades humanas.
Já Ingo Wolfgang Sarlet (2004, p. 51) entende que: “A dignidade da pessoa humana, na condição de valor fundamental, atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais, exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões. Pelo seu conceito de dignidade da pessoa humana, é possível verificar que corresponde à qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover a sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.”
Por fim, é fundamental esclarecer que, na pesquisa, a expressão dignidade humana é utilizada, para representar, de maneira abstrata, um atributo reconhecido a toda a humanidade, inerente ao ser humano, enquanto a expressão dignidade da pessoa humana, é utilizada de maneira mais pontual, associada a situações concretas, de acordo com o contexto do desenvolvimento moral e social individual. A distinção é a mesma de que se utiliza por Ingo Wolfgang Sarlet (2004, p., 52).
Entendida a dignidade da pessoa humana, o estudo, mesmo breve, de decisões pontuais do Supremo Tribunal Federal comporta o próximo segmento deste estudo.
3 – Análise de decisões pontuais do supremo tribunal federal
Algumas decisões do Supremo Tribunal Federal, que serão relacionadas adiante, mostram o que se entende por autonomia da vontade individual e sua relação com a dignidade da pessoa humana, de acordo com cada caso concreto.
No Habeas Corpus n. 84.025-6[2], do Rio de Janeiro, julgado em 4 de março de 2004, relator o Ministro Joaquim Barbosa, consta da ementa: “HABEAS CORPUS PREVENTIVO. REALIZAÇÃO DE ABORTO EUGÊNICO. SUPERVENIÊNCIA DO PARTO. IMPETRAÇÃO PREJUDICADA.1. Em se tratando de habeas corpus preventivo, que vise a autorizar a paciente a realizar aborto, a ocorrência do parto durante o julgamento do writ implica a perda do objeto. 2. Impetração prejudicada.”
O objeto do Habeas Corpus cuidava da questão do nascimento de feto com anencefalia, sem possibilidade de sobrevivência fora do útero. A paciente, Gabriela Oliveira Cordeiro, de 18 anos, residente em Teresópolis(RJ), entrou com pedido de autorização judicial para realização de aborto, por meio da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, tendo em vista que houve constatação, por exames médicos, de que o feto era portador de grave anomalia (anencefalia, ausência da calota craniana e cérebro rudimentar).
Importante salientar que o feto padecia de patologia irreversível e incontornável, e que seria fácil imaginar-se o desespero e a tristeza que tomou conta dos pais, ponderou o Ministro Relator, que elogiou a iniciativa do casal que, ao invés de recorrer à ilegalidade, buscou junto ao Poder Judiciário obter a interrupção da gravidez. No relatório, o Ministro Joaquim Barbosa também disse que a paciente estaria sofrendo constrangimento ilegal por parte da Quinta Turma, do Superior Tribunal de Justiça.
O Ministro Joaquim Barbosa concedeu parcialmente a ordem, para cassar a decisão do Superior Tribunal de Justiça, assegurando à paciente o direito de tomar, caso seja essa a sua vontade, a decisão de, assistida por médico, interromper a gravidez, desde que isso ainda seja viável do ponto de vista médico, visto haver indícios de que a gravidez já estaria em estágio avançado, estendendo igualmente a ordem a todo corpo médico e paramédico que eventualmente se envolvesse no possível evento hospitalar.
Conforme consta do Acórdão, é necessário salientar que a impetrante foi obrigada a carregar a gravidez indesejada por cerca de 8 (oito) meses, por forças de decisões judiciais desencontradas, ao ponto do Ministro Relator denominá-las de absolutamente irregulares. A fim de reverter o quadro, foi impetrado Habeas Corpus, perante o Supremo Tribunal Federal, em favor da gestante, sendo o mesmo declarado prejudicado pelo Plenário, pois a criança nasceu e viveu por apenas 7 (sete) minutos, o que foi informado junto ao Plenário, por ocasião do julgamento.
O pano de fundo da decisão, ou seja, a discussão envolvida no Habeas Corpus é emblemática, haja vista que se tem uma vontade, mas essa vontade sofre limitações. Partindo-se da comprovação da anencefalia fetal, verifica-se que o feto não sobreviveria de forma alguma, e que sua eventual sobrevivência poderia se tornar, após o parto, verdadeira tortura psicológica para os pais, principalmente para a mãe, uma vez que a gestação do feto anencefálico afrontaria o princípio da dignidade da pessoa humana.
Luís Roberto Barroso (2002, p.) pressupõe: “Impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviver, causando-lhe dor, angústia e frustração, importa violação de ambas as vertentes de sua dignidade humana. A potencial ameaça à integridade física e os danos à integridade moral e psicológica na hipótese são evidentes. A convivência diuturna com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto dentro de seu corpo, que nunca poderá se tornar um ser vivo, podem ser comparadas à tortura psicológica. A Constituição Federal, como se sabe, veda toda forma de tortura (art. 5º, III) e a legislação infra-constitucional define a tortura como situação de intenso sofrimento físico ou mental.”
No mesmo sentido, para Maíra Costa Fernandes (2011, p.): “ Forçar a mulher a manter a gestação de feto anencéfalo contra sua vontade é uma manifesta afronta ao seu direito à integridade física, já que representa verdadeira ameaça a sua vida e um desrespeito a sua autonomia reprodutiva e aos seus direitos sobre o próprio corpo. Também representa uma violação à integridade moral da gestante (protegida pelo art. 5º, X, da CRFB), que terá sua imagem abalada e sua moral atingida por todo tipo de constrangimento perante a sociedade, seja no ambiente de trabalho ou no familiar. Não raras vezes a mulher passará pelas mais delicadas situações e se verá obrigada a responder a perguntas que, tão prazerosas em outras circunstâncias, tornam-se traumatizantes no caso da gestação de um feto que, de antemão, já se sabe que não sobreviverá: "como vai o neném?", "quando será o chá de bebê?". Esta não é uma questão simples, como poderiam asseverar alguns, mas extremamente penosa para quem a vive.“
Obrigar um ser humano a levar em seu ventre um feto que sabe que irá morrer é sem dúvida para a mulher uma tortura moral e psicológica. Portanto, o Estado deve fornecer a opção favorável em determinado caso de aborto, como o eugênico, e não por imposição.
Na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 54[3], julgada em 12 de abril de 2012, relator o ministro Marco Aurélio, consta da ementa: “ESTADO – LAICIDADE. O Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações. FETO ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER – LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO – DIREITOS FUNDAMENTAIS – CRIME – INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.”
Houve o pedido para que a Corte Constitucional conferisse ao Código Penal uma interpretação conforme a Constituição, declarando que o aborto de feto anencéfalo não seria considerado crime. Como Requerente atuou a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, tendo como procurador, o Advogado Luís Roberto Barroso, atualmente Ministro do próprio Supremo Tribunal Federal.
O julgamento da ADPF 54 foi uma das mais importantes questões analisadas pela Corte, conforme consta de parte do voto do Ministro Relator: “A questão posta nesta ação de descumprimento de preceito fundamental revela-se uma das mais importantes analisadas pelo Tribunal. É inevitável que o debate suscite elevada intensidade argumentativa das partes abrangidas, do Poder Judiciário e da sociedade. (…) Com o intuito de corroborar a relevância do tema, faço menção a dois dados substanciais. Primeiro, até o ano de 2005, os juízes e tribunais de justiça formalizaram cerca de três mil autorizações para a interrupção gestacional em razão da incompatibilidade do feto com a vida extrauterina, o que demonstra a necessidade de pronunciamento por parte deste Tribunal. Segundo, o Brasil é o quarto país no mundo em casos de fetos anencéfalos. Fica atrás do Chile, México e Paraguai. A incidência é de aproximadamente um a cada mil nascimentos, segundo dados da Organização Mundial de Saúde, confirmados na audiência pública. Chega-se a falar que, a cada três horas, realiza-se o parto de um feto portador de anencefalia. Esses dados foram os obtidos e datam do período de 1993 a 1998, não existindo notícia de realização de nova sondagem.”
O Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos –oito a dois, julgou procedente o pedido veiculado na ADPF 54, entendendo que não seria crime a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, em que pese o disposto nos arts. 124[4], 126[5] e 128[6], todos do Código Penal.
Para o Ministro Relator, seria inadmissível que o direito à vida de um feto que não tem chances de sobreviver prevaleça em detrimento das garantias à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à saúde e à integridade física, psicológica e moral da mãe, todas previstas na Constituição. Obrigar a mulher a manter esse tipo de gestação significa colocá-la em uma espécie de cárcere privado em seu próprio corpo, deixando-a desprovida do mínimo essencial de autodeterminação, o que se assemelha à tortura.
Afirmou que cabe à mulher, e não ao Estado, pesar valores e sentimentos de ordem privada, para optar pela interrupção, ou não, da gravidez.O Ministro afirmou também que o anencéfalo jamais se tornará uma pessoa e que em síntese, não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura.
Quanto à autonomia da mulher, entendeu-se que cabe à mulher, e não ao Estado, sopesar valores e sentimentos de ordem estritamente privada, para deliberar pela interrupção, ou não, da gravidez.
O Ministro Gilmar Mendes considerou a hipótese de aborto, defendendo que essa situação está compreendida como causa de excludente de ilicitude, por ser comprovado que a gestação de feto anencéfalo é perigosa à saúde da gestante.
Em seu voto, sustentou a Ministra Rosa Weber: “Para o direito, o que está em jogo, no caso, não é o direito do feto anencefálico à vida, já que, de acordo com o conceito de vida do Conselho Federal de Medicina (CFM), jamais terá condições de desenvolver uma vida com a capacidade psíquica, física e afetiva inata ao ser humano, pois não terá atividade cerebral que o qualifique como tal. O que está em jogo é o direito da mãe em escolher se ela quer levar adiante uma gestação cujo fruto nascerá morto ou morrerá em curto espaço de tempo após o parto, sem desenvolver qualquer atividade cerebral, física, psíquica ou afetiva, própria do ser humano.”
Sustentou que a gestante deve ficar livre para optar sobre o futuro de sua gestação do feto anencéfalo: “Todos os caminhos, a meu juízo, conduzem à preservação da autonomia da gestante para escolher sobre a interrupção da gestação de fetos anencéfalos”. Votou pela procedência da ação, para dar interpretação conforme os artigos 124 e 126 do Código Penal, excluindo, por incompatível com a Lei Maior, a interpretação que entende a interrupção ou antecipação do parto, em caso de anencefalia comprovada, como crime de aborto.
O Ministro Joaquim Barbosa acompanhou o voto do Relator, por entender que, em se tratando de feto com vida extrauterina inviável, não haveria possibilidade alguma de que esse feto sobrevivesse fora do útero materno. Desse modo, a antecipação desse evento, em nome da saúde física e psíquica da mulher, não se contrapõe ao princípio da dignidade da pessoa humana. Ao se fazer a ponderação entre os valores jurídicos tutelados pelo direito, a vida extrauterina inviável e a liberdade e autonomia privada da mulher, deve prevalecer a dignidade da mulher, deve prevalecer o direito de liberdade desta de escolher aquilo que melhor representa seus interesses pessoais, suas convicções morais e religiosas, seu sentimento pessoal.
O Ministro Luiz Fux entendeu que o Código Penal é da década de 1940 e que nessa época não era possível prever e identificar um feto anencéfalo. Atualmente, trata-se de uma questão de saúde pública que deve ser respeitada em prol da mulher.A Ministra Cármen Lúcia considerou que o feto não teria viabilidade fora do útero, devendo-se proteger a mulher, que fica traumatizada com o insucesso da gestação.
O Ministro Ayres Britto em seu voto, afirmou que não se pode falar em aborto de anencéfalo porque o que as mulheres carregam no ventre, nesses casos, é um natimorto cerebral, sem qualquer expectativa de vida extrauterina. “Dar à luz é dar a vida, e não a morte”, afirmou, acrescentando que se os homens engravidassem, a interrupção da gravidez de anencéfalos “estaria autorizada desde sempre”.
O Ministro Celso de Mello entendeu que a Suprema Corte, estaria reconhecendo que a mulher, apoiada em razões fundadas nos seus direitos reprodutivos e protegida pelos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação pessoal e da intimidade, teria o direito insuprimível de optar pela antecipação terapêutica de parto nos casos de comprovada malformação fetal por anencefalia.
Em seu voto, lembrou que há diversos conceitos de vida, sobre seu início e fim, e que a Constituição não define quando ela se inicia. Entretanto, o Ministro lembrou que o critério deve ser mesmo o previsto na Lei 9.434/97 e na Resolução 1.752/97 do Conselho Federal de Medicina, onde consideram morto um ser humano quando atinge a morte encefálica. Por analogia, o feto anencéfalo não seria um ser humano vivo, porque jamais vai desenvolver atividade cerebral. Portanto, sequer haveria tipicidade de crime contra a vida na interrupção antecipada de tal parto.
O voto do Ministro Ricardo Lewandowski seguiu duas linhas de raciocínio. Na primeira, ele destacou os limites objetivos do controle de constitucionalidade. Observou que o Congresso Nacional, se assim o desejasse, poderia ter alterado a legislação para incluir os anencéfalos nos casos em que o aborto não é criminalizado, mas até hoje não o fez e sustentou que o Congresso se encontra profundamente dividido. O segundo ponto foi a possibilidade de uma decisão favorável ao aborto de fetos anencéfalos torne-se lícita a interrupção da gestação de embriões com diversas outras patologias que resultem em pouca ou nenhuma perspectiva de vida extrauterina.
Para o Ministro Cezar Peluzo: “Uma decisão judicial isentando de sanção o aborto de fetos portadores de anencefalia, ao arrepio da legislação penal vigente, abriria a possibilidade de interrupção da gestação de inúmeros outros casos. Segundo o Ministro, o anencéfalo morre e ele só pode morrer porque está vivo. Lembrou ainda que a questão dos anencéfalos tem de ser tratada com “cautela redobrada”, diante da imprecisão do conceito, das dificuldades do diagnóstico e dos dissensos em torno da matéria. Os apelos à liberdade e autonomia pessoais são “de todo inócuos” e “atentam contra a própria ideia de um mundo diverso e plural”. A discriminação que reduz o feto “à condição de lixo”, a seu ver, “em nada difere do racismo, do sexismo e do especismo”. Todos esses casos retratam, de acordo com o voto, “a absurda defesa e absolvição da superioridade de alguns sobre outros”.”
Ao encerrar seu voto, o Presidente do Supremo Tribunal Federal à época, ressaltou, ainda, que não cabe ao Tribunal atuar como legislador positivo e que o Poder Legislativo não incluiu o caso dos anencéfalos nas hipóteses que, no art. 124, do Código Penal, autorizam o aborto.
Nos argumentos de Luís Roberto Barroso que argumentou que como o feto anencéfalo não desenvolveu o cérebro, ele não teria qualquer condição de sobrevivência extrauterina e que fazer a gestante seguir com a gravidez seria apenas para prolongar o sofrimento da mãe, considerando que a morte da criança ao nascer,seria cientificamente inevitável.
Na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 3510[7], do Distrito Federal, julgada em 29 de maio de 2008, Relator o Ministro Ayres Britto, consta da ementa: ”CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DE BIOSSEGURANÇA. IMPUGNAÇÃO EM BLOCO DO ART. 5ª DA LEI Nº 11.105, DE 24 DE MARÇO DE 2005 (LEI DE BIOSSEGURANÇA). PESQUISAS COM CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO DIREITO À VIDA. CONSTITUCIONALIDADE DO USO DE CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS EM PESQUISAS CIENTÍFICAS PARA FINS TERAPÊUTICOS. DESCARACTERIZAÇÃO DO ABORTO. NORMAS CONSTITUCIONAIS CONFORMADORAS DO DIREITO FUNDAMENTAL A UMA VIDA DIGNA, QUE PASSA PELO DIREITO À SAÚDE E AO PLANEJAMENTO FAMILIAR. DESCABIMENTO DE UTILIZAÇÃO DA TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONFORME PARA ADITAR À LEI DE BIOSSEGURANÇA CONTROLES DESNECESSÁRIOS QUE IMPLICAM RESTRIÇÕES ÀS PESQUISAS E TERAPIAS POR ELA VISADAS. IMPROCEDÊNCIA TOTAL DA AÇÃO. I – O CONHECIMENTO CIENTÍFICO, A CONCEITUAÇÃO JURÍDICA DE CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS E SEUS REFLEXOS NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DA LEI DE BIOSSEGURANÇA. As "células-tronco embrionárias" são células contidas num agrupamento de outras, encontradiças em cada embrião humano de até 14 dias (outros cientistas reduzem esse tempo para a fase de blastocisto, ocorrente em torno de 5 dias depois da fecundação de um óvulo feminino por um espermatozóide masculino). Embriões a que se chega por efeito de manipulação humana em ambiente extracorpóreo, porquanto produzidos laboratorialmente ou "in vitro", e não espontaneamente ou "in vida". Não cabe ao Supremo Tribunal Federal decidir sobre qual das duas formas de pesquisa básica é a mais promissora: a pesquisa com células-tronco adultas e aquela incidente sobre células-tronco embrionárias. A certeza científico-tecnológica está em que um tipo de pesquisa não invalida o outro, pois ambos são mutuamente complementares. II – LEGITIMIDADE DAS PESQUISAS COM CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS PARA FINS TERAPÊUTICOS E O CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. A pesquisa científica com células-tronco embrionárias, autorizada pela Lei n° 11.105/2005, objetiva o enfrentamento e cura de patologias e traumatismos que severamente limitam, atormentam, infelicitam, desesperam e não raras vezes degradam a vida de expressivo contingente populacional (ilustrativamente, atrofias espinhais progressivas, distrofias musculares, a esclerose múltipla e a lateral amiotrófica, as neuropatias e as doenças do neurônio motor). A escolha feita pela Lei de Biossegurança não significou um desprezo ou desapreço pelo embrião "in vitro", porém a mais firme disposição para encurtar caminhos que possam levar à superação do infortúnio alheio. Isto no âmbito de um ordenamento constitucional que desde o seu preâmbulo qualifica "a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça" como valores supremos de uma sociedade mais que tudo "fraterna". O que já significa incorporar o advento do constitucionalismo fraternal às relações humanas, a traduzir verdadeira comunhão de vida ou vida social em clima de transbordante solidariedade em benefício da saúde e contra eventuais tramas do acaso e até dos golpes da própria natureza. Contexto de solidária, compassiva ou fraternal legalidade que, longe de traduzir desprezo ou desrespeito aos congelados embriões "in vitro", significa apreço e reverência a criaturas humanas que sofrem e se desesperam. Inexistência de ofensas ao direito à vida e da dignidade da pessoa humana, pois a pesquisa com células-tronco embrionárias (inviáveis biologicamente ou para os fins a que se destinam) significa a celebração solidária da vida e alento aos que se acham à margem do exercício concreto e inalienável dos direitos à felicidade e do viver com dignidade (Ministro Celso de Mello). III – A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DO DIREITO À VIDA E OS DIREITOS INFRACONSTITUCIONAIS DO EMBRIÃO PRÉ-IMPLANTO. O Magno Texto Federal não dispõe sobre o início da vida humana ou o preciso instante em que ela começa. Não faz de todo e qualquer estádio da vida humana um autonomizado bem jurídico, mas da vida que já é própria de uma concreta pessoa, porque nativiva (teoria "natalista", em contraposição às teorias "concepcionista" ou da "personalidade condicional"). E quando se reporta a "direitos da pessoa humana" e até dos "direitos e garantias individuais" como cláusula pétrea está falando de direitos e garantias do indivíduo-pessoa, que se faz destinatário dos direitos fundamentais "à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade", entre outros direitos e garantias igualmente distinguidos com o timbre da fundamentalidade (como direito à saúde e ao planejamento familiar). Mutismo constitucional hermeneuticamente significante de transpasse de poder normativo para a legislação ordinária. A potencialidade de algo para se tornar pessoa humana já é meritória o bastante para acobertá-la, infraconstitucionalmente, contra tentativas levianas ou frívolas de obstar sua natural continuidade fisiológica. Mas as três realidades não se confundem: o embrião é o embrião, o feto é o feto e a pessoa humana é a pessoa humana. Donde não existir pessoa humana embrionária, mas embrião de pessoa humana. O embrião referido na Lei de Biossegurança ("in vitro" apenas) não é uma vida a caminho de outra vida virginalmente nova, porquanto lhe faltam possibilidades de ganhar as primeiras terminações nervosas, sem as quais o ser humano não tem factibilidade como projeto de vida autônoma e irrepetível. O Direito infraconstitucional protege por modo variado cada etapa do desenvolvimento biológico do ser humano. Os momentos da vida humana anteriores ao nascimento devem ser objeto de proteção pelo direito comum. O embrião pré-implanto é um bem a ser protegido, mas não uma pessoa no sentido biográfico a que se refere a Constituição. IV – AS PESQUISAS COM CÉLULAS-TRONCO NÃO CARACTERIZAM ABORTO. MATÉRIA ESTRANHA À PRESENTE AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. É constitucional a proposição de que toda gestação humana principia com um embrião igualmente humano, claro, mas nem todo embrião humano desencadeia uma gestação igualmente humana, em se tratando de experimento "in vitro". Situação em que deixam de coincidir concepção e nascituro, pelo menos enquanto o ovócito (óvulo já fecundado) não for introduzido no colo do útero feminino. O modo de irromper em laboratório e permanecer confinado "in vitro" é, para o embrião, insuscetível de progressão reprodutiva. Isto sem prejuízo do reconhecimento de que o zigoto assim extra-corporalmente produzido e também extra-corporalmente cultivado e armazenado é entidade embrionária do ser humano. Não, porém, ser humano em estado de embrião. A Lei de Biossegurança não veicula autorização para extirpar do corpo feminino esse ou aquele embrião. Eliminar ou desentranhar esse ou aquele zigoto a caminho do endométrio, ou nele já fixado. Não se cuida de interromper gravidez humana, pois dela aqui não se pode cogitar. A "controvérsia constitucional em exame não guarda qualquer vinculação com o problema do aborto." (Ministro Celso de Mello). V – OS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AUTONOMIA DA VONTADE, AO PLANEJAMENTO FAMILIAR E À MATERNIDADE. A decisão por uma descendência ou filiação exprime um tipo de autonomia de vontade individual que a própria Constituição rotula como "direito ao planejamento familiar", fundamentado este nos princípios igualmente constitucionais da "dignidade da pessoa humana" e da "paternidade responsável". A conjugação constitucional da laicidade do Estado e do primado da autonomia da vontade privada, nas palavras do Ministro Joaquim Barbosa. A opção do casal por um processo "in vitro" de fecundação artificial de óvulos é implícito direito de idêntica matriz constitucional, sem acarretar para esse casal o dever jurídico do aproveitamento reprodutivo de todos os embriões eventualmente formados e que se revelem geneticamente viáveis. O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana opera por modo binário, o que propicia a base constitucional para um casal de adultos recorrer a técnicas de reprodução assistida que incluam a fertilização artificial ou "in vitro". De uma parte, para aquinhoar o casal com o direito público subjetivo à "liberdade" (preâmbulo da Constituição e seu art. 5º), aqui entendida como autonomia de vontade. De outra banda, para contemplar os porvindouros componentes da unidade familiar, se por eles optar o casal, com planejadas condições de bem-estar e assistência físico-afetiva (art. 226 da CF). Mais exatamente, planejamento familiar que, "fruto da livre decisão do casal", é "fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável" (§ 7º desse emblemático artigo constitucional de nº 226). O recurso a processos de fertilização artificial não implica o dever da tentativa de nidação no corpo da mulher de todos os óvulos afinal fecundados. Não existe tal dever (inciso II do art. 5º da CF), porque incompatível com o próprio instituto do "planejamento familiar" na citada perspectiva da "paternidade responsável". Imposição, além do mais, que implicaria tratar o gênero feminino por modo desumano ou degradante, em contrapasso ao direito fundamental que se lê no inciso II do art. 5º da Constituição. Para que ao embrião "in vitro" fosse reconhecido o pleno direito à vida, necessário seria reconhecer a ele o direito a um útero. Proposição não autorizada pela Constituição. VI – DIREITO À SAÚDE COMO COROLÁRIO DO DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA DIGNA. O § 4º do art. 199 da Constituição, versante sobre pesquisas com substâncias humanas para fins terapêuticos, faz parte da seção normativa dedicada à "SAÚDE" (Seção II do Capítulo II do Título VIII). Direito à saúde, positivado como um dos primeiros dos direitos sociais de natureza fundamental (art. 6º da CF) e também como o primeiro dos direitos constitutivos da seguridade social (cabeça do artigo constitucional de nº 194). Saúde que é "direito de todos e dever do Estado" (caput do art. 196 da Constituição), garantida mediante ações e serviços de pronto qualificados como "de relevância pública" (parte inicial do art. 197). A Lei de Biossegurança como instrumento de encontro do direito à saúde com a própria Ciência. No caso, ciências médicas, biológicas e correlatas, diretamente postas pela Constituição a serviço desse bem inestimável do indivíduo que é a sua própria higidez físico-mental. VII – O DIREITO CONSTITUCIONAL À LIBERDADE DE EXPRESSÃO CIENTÍFICA E A LEI DE BIOSSEGURANÇA COMO DENSIFICAÇÃO DESSA LIBERDADE. O termo "ciência", enquanto atividade individual, faz parte do catálogo dos direitos fundamentais da pessoa humana (inciso IX do art. 5º da CF). Liberdade de expressão que se afigura como clássico direito constitucional-civil ou genuíno direito de personalidade. Por isso que exigente do máximo de proteção jurídica, até como signo de vida coletiva civilizada. Tão qualificadora do indivíduo e da sociedade é essa vocação para os misteres da Ciência que o Magno Texto Federal abre todo um autonomizado capítulo para prestigiá-la por modo superlativo (capítulo de nº IV do título VIII). A regra de que "O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas" (art. 218, caput) é de logo complementada com o preceito (§ 1º do mesmo art. 218) que autoriza a edição de normas como a constante do art. 5º da Lei de Biossegurança. A compatibilização da liberdade de expressão científica com os deveres estatais de propulsão das ciências que sirvam à melhoria das condições de vida para todos os indivíduos. Assegurada, sempre, a dignidade da pessoa humana, a Constituição Federal dota o bloco normativo posto no art. 5º da Lei 11.105/2005 do necessário fundamento para dele afastar qualquer invalidade jurídica (Ministra Cármen Lúcia). VIII – SUFICIÊNCIA DAS CAUTELAS E RESTRIÇÕES IMPOSTAS PELA LEI DE BIOSSEGURANÇA NA CONDUÇÃO DAS PESQUISAS COM CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS. A Lei de Biossegurança caracteriza-se como regração legal a salvo da mácula do açodamento, da insuficiência protetiva ou do vício da arbitrariedade em matéria tão religiosa, filosófica e eticamente sensível como a da biotecnologia na área da medicina e da genética humana. Trata-se de um conjunto normativo que parte do pressuposto da intrínseca dignidade de toda forma de vida humana, ou que tenha potencialidade para tanto. A Lei de Biossegurança não conceitua as categorias mentais ou entidades biomédicas a que se refere, mas nem por isso impede a facilitada exegese dos seus textos, pois é de se presumir que recepcionou tais categorias e as que lhe são correlatas com o significado que elas portam no âmbito das ciências médicas e biológicas. IX – IMPROCEDENCIA DA AÇÃO. Afasta-se o uso da técnica de "interpretação conforme" para a feitura de sentença de caráter aditivo que tencione conferir à Lei de Biossegurança exuberância regratória, ou restrições tendentes a inviabilizar as pesquisas com células-tronco embrionárias. Inexistência dos pressupostos para a aplicação da técnica da "interpretação conforme a Constituição", porquanto a norma impugnada não padece de polissemia ou de plurissignificatidade. Ação direta de inconstitucionalidade julgada totalmente improcedente.
Na discussão dos votos dos Ministros, observou-se em que se constituem as células-tronco embrionárias, ou seja, aquele conjunto de células encontradas em cada embrião humano de até 14 dias, sendo que alguns cientistas reduzem esse prazo para até 5 dias, fase em que se convencionou denominar esse aglomerado de células de blastocisto. Registrou o Ministro Relator, que o objeto das pesquisas permitidas pela legislação desafiada não alcança toda e qualquer célula-tronco, mas tão somente aquela produzida com manipulação humana, porquanto produzidos em laboratório (in vitro). Em seguida, diz não ser missão do Supremo Tribunal Federal aferir quais das duas pesquisas é a mais promissora, se aquela com células-tronco embrionárias ou aquela com células-tronco adultas, mesmo porque tais pesquisas não são excludentes uma da outra, mas, ao contrário, complementares.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade impugnava o art. 5º[8] da Lei de Biossegurança – Lei nº 11.105/2005, sob a alegação de violação ao direito à vida e à dignidade da pessoa humana.
O Ministro Ayres Britto, votou pela total improcedência da ação. Sustentou que para existir vida humana, é preciso que o embrião tenha sido implantado no útero humano e que deve haver a participação ativa da futura mãe. Entendeu que o zigoto (embrião em estágio inicial) é a primeira fase do embrião humano, a célula-ovo ou célula-mãe, mas representa uma realidade distinta da pessoa natural, porque ainda não tem cérebro formado.
A Ministra Ellen Gracie acompanhou integralmente o voto do relator. Para ela, não há constatação de vício de inconstitucionalidade na Lei de Biossegurança e que não se pode opor a garantia da dignidade da pessoa humana, nem a garantia da inviolabilidade da vida.O Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, de forma diversa do Ministro Relator, julgou a ação parcialmente procedente.A Ministra Carmen Lúcia também acompanhou integralmente o voto do relator. Para ela, as pesquisas com células-tronco embrionárias não violam o direito à vida, pelo contrário, contribuem para dignificar a vida humana.
O Ministro Ricardo Lewandowski julgou a ação parcialmente procedente, votando de forma favorável às pesquisas com as células-tronco. No entanto, restringiu a realização das pesquisas a diversas condicionantes, conferindo aos dispositivos questionados na lei interpretação conforme a Constituição Federal.
O Ministro Eros Grau votou pela constitucionalidade do artigo 5º da Lei de Biossegurança, com três ressalvas: primeiro, que se crie um comitê central no Ministério da Saúde para controlar as pesquisas.Segundo, que sejam fertilizados apenas quatro óvulos por ciclo e terceiro, que a obtenção de células-tronco embrionárias seja realizada a partir de óvulos fecundados inviáveis ou sem danificar os viáveis.
O Ministro Joaquim Barbosa ressaltou que a permissão para a pesquisa com células embrionárias prevista na Lei de Biossegurança não recai em inconstitucionalidade. Para ele, a proibição das pesquisas com células embrionárias, nos termos da lei, é como se fosse fechar os olhos para o desenvolvimento científico e os benefícios que dele podem advir.
O ministro Cezar Peluzo proferiu voto favorável às pesquisas com células-tronco embrionárias. Para ele, essas pesquisas não ofendem o direito à vida, porque os embriões congelados não equivalem a pessoas, ressaltando a necessidade do Congresso Nacional aprovar instrumentos legais para tanto.
O Ministro Marco Aurélio acompanhou integralmente o voto do relator. Considerou que o artigo 5º da Lei de Biossegurança, impugnado na ADI, está em harmonia com a Constituição Federal, notadamente com os artigos 1º e 5º e com o princípio da razoabilidade. O artigo 1º estabelece, em seu inciso III, o direito fundamental da dignidade da pessoa humana e o artigo 5º, caput, prevê a inviolabilidade do direito à vida.
O Ministro Celso de Mello entendeu que o Estado não pode ser influenciado pela religião: “O luminoso voto proferido pelo eminente ministro Carlos Britto permitirá a esses milhões de brasileiros, que hoje sofrem e que hoje se acham postos à margem da vida, o exercício concreto de um direito básico e inalienável que é o direito à busca da felicidade e também o direito de viver com dignidade, direito de que ninguém, absolutamente ninguém, pode ser privado.
Para o Ministro Gilmar Mendes, o artigo 5º da Lei de Biossegurança é constitucional, mas defendeu que a Corte deixasse expresso em sua decisão a ressalva da necessidade de controle das pesquisas por um Comitê Central de Ética e Pesquisa vinculado ao Ministério da Saúde.
O julgamento da ADI n. 3.510, pelo Supremo Tribunal Federal, reconheceu sua improcedência e concluiu que, à luz do neoconstitucionalismo, a utilização das células-tronco embrionárias em pesquisa terapêutica é possível. Uma vez declarada a constitucionalidade de uma norma pelo Supremo Tribunal, ficam os órgãos do Poder Judiciário obrigados a seguir essa orientação e, embora a decisão prolatada não tenha sido unânime, é válida e deve ter sua aplicabilidade respeitada.
Considerações finais
Com o desenvolvimento do presente trabalho, conclui-se que os direitos fundamentais, previstos nos incisos do art. 5º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, são extremamente importantes à efetivação dos direitos fundamentais de liberdade e, consequentemente, da autonomia da vontade.
A autonomia da vontade envolve diversas questões sobre o tema dos direitos fundamentais e estabelecer um conceito final de autonomia da vontade é tarefa árdua. Entretanto, para este trabalho a autonomia da vontade, um dos pilares do direito privado, pode ser entendida como a capacidade que o indivíduo possui de determinar o seu próprio comportamento individual, guiando sua vida de acordo com suas próprias escolhas, seja no aspecto estritamente pessoal, seja no âmbito profissional ou, especialmente, no contexto jurídico, quando realiza e efetiva os mais variados negócios jurídicos, pois o indivíduo vive, essencialmente, em sociedade.
A dignidade da pessoa humana, por conseguinte, questão que também é tormentosa no que diz respeito à conceituação, pode ser entendida, nesta atividade, como a qualidade congênita e inalienável inerente a todo e qualquer ser humano, impeditiva à coisificação da pessoa e que se materializa mediante a capacidade de autodeterminação que o indivíduo possui. Também deve ser considerada como um complexo de direitos e deveres fundamentais conferidos à pessoa contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, sem esquecer que está alçada à condição de princípio constitucional fundamental.
Com uma breve análise de alguns julgados do Supremo Tribunal Federal, verifica-se que, tanto um princípio básico de direito privado – autonomia da vontade, quanto um princípio constitucional fundamental – dignidade da pessoa humana, foram considerados e sopesados na resolução das questões apreciadas pelos Ministros.
Contudo, nem sempre as decisões são a favor da autonomia da vontade, já que para esta há limitação, ou seja, a dignidade da pessoa humana.
No julgamento do Habeas Corpus n. 84.025-6, referente ao aborto eugênico, houve flagrante prejuízo à mulher, paciente, não só na questão física, de sua própria saúde, mas no âmbito psicológico também, já que foi obrigada a carregar o feto até o final da sua gestação, vendo a criança viver por apenas sete minutos.O recurso foi julgado prejudicado por conta da notícia do nascimento da criança, que está comprovada no Acórdão, que viveu brevemente e faleceu logo em seguida.
No julgamento da ADPF n. 54, como se tratava de feto anencéfalo, decidiu-se que a prática de interrupção da gravidez não seria considerada crime, considerando, ainda, que o Estado é laico e que a conduta não estaria enquadrada nas previsões dos arts. 124, 126 e 128, constantes do Código Penal.
No julgamento da ADI n. 3510, referente à utilização de células-tronco embrionárias, reconheceu-se a possibilidade de sua utilização para realização de pesquisas terapêuticas, bem como a constitucionalidade do art. 5º, da Lei de Biossegurança, um dos objetos da medida judicial.
Importante ressaltar, por fim, que a autonomia da vontade envolve diversas questões sobre o tema dos direitos fundamentais, mas a dignidade da pessoa humana pode servir para estabelecer os verdadeiros e reais limites da utilização da autonomia da vontade de cada indivíduo.
Informações Sobre o Autor
Bruna Caroline Alves Bolsoni
Acadêmica de Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina UNOESC campus de Joaçaba/SC