Para a grande maioria das ações de indenização decorrentes de acidente de trânsito, o prazo prescricional aplicável é de três anos, conforme o art. 206, § 3.º, V, do Código Civil. Entretanto, essa afirmação é apenas o ponto de partida: o sistema jurídico reserva exceções relevantes (cinco anos, quatro anos, dois anos, um ano e até mesmo prazos prescricionais administrativos e penais), dependendo de quem são as partes, qual a natureza do pedido (pessoal ou real, contratual ou extracontratual, cobrança de seguro, ressarcimento ao SUS, regressiva do INSS, ilícito penal) e onde a ação será proposta (Justiça comum, Juizado Especial Cível, Justiça Federal ou Trabalhista). Este artigo esclarece, em profundidade, todas as hipóteses de prescrição em acidentes de trânsito, os marcos interruptivos, a contagem diferenciada, a jurisprudência dominante, as estratégias processuais e as perguntas mais frequentes, de modo que advogados, seguradoras, vítimas e órgãos públicos possam identificar corretamente o prazo e evitar a extinção do direito de ação.
fundamentos constitucionais e legais da prescrição
A prescrição é instituto de ordem pública que limita o tempo de exercício da pretensão, garantindo segurança jurídica. Suas bases estão no art. 5.º, XXXV, da Constituição (acesso à Justiça) combinado com o art. 205 do Código Civil (regra geral) e com os arts. 206 e 207 (prazos específicos e causas impeditivas). Para acidentes de trânsito, aplica-se predominantemente o art. 206, § 3.º, V — “pretensão de reparação civil” — fixando três anos. Contudo, normas especiais (Código de Defesa do Consumidor, Leis 6.194/1974 – DPVAT, 8.213/1991 – INSS, 8.742/1993 – LOAS, 9.503/1997 – CTB, 9.099/1995 – Juizados), bem como a legislação penal, trabalhista e administrativa, podem definir prazos próprios.
reparação civil entre particulares: três anos
Quando a vítima ajuíza ação indenizatória por danos materiais, morais, estéticos e lucros cessantes contra o motorista causador ou o proprietário do veículo, o prazo é de três anos contados do dia do acidente (súbita ciência do dano). Essa regra vale tanto para choques entre veículos quanto para atropelamentos de pedestre, colisões em estacionamentos ou acidentes em área privada sem relação contratual. Jurisprudência:
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STJ, AgInt no REsp 1.903.456/RS: aplicou três anos a ação de ciclista atropelado.
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TJ-SP, Ap. 1002345-72.2024: reconheceu prescrição trienal em colisão com moto aquaplanada.
ações fundadas em culpa contratual: cinco anos
Se a relação entre vítima e réu está amparada em contrato de transporte, incide o prazo quinquenal do art. 27 do CDC (para consumidor) ou do art. 206, § 5.º, I (para dívidas líquidas de instrumento). Exemplos:
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Passageiro de ônibus intermunicipal que sofre lesão;
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Cliente de aplicativo de transporte que se acidenta dentro do veículo;
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Usuário de serviço de guincho contratado que danifica o carro durante remoção.
Nesse contexto, o fornecedor responde objetivamente (art. 14 CDC) e o prazo prescricional é de cinco anos a contar do evento ou do conhecimento do dano e de sua autoria.
seguro obrigatório dpvat: três anos
O art. 206, § 3.º, IX, CC (“prestações alimentares”) era invocado para o DPVAT, mas o STJ firmou entendimento pelo prazo de três anos (Súmula 405): “a ação do beneficiário contra a seguradora submete-se ao prazo prescricional de três anos”. O ponto de partida é a data do acidente para invalidez ou morte; para despesas médicas, da ciência das despesas.
interrupção e suspensão
O protocolo administrativo perante a Seguradora Líder (ou análoga) não interrompe a prescrição; somente a citação válida ou despacho efetivo (art. 240 CPC) têm esse efeito. A minoria da 4.ª Turma/STJ admite que denegação administrativa constitui ato de reconhecimento do direito, reiniciando a contagem, mas esse entendimento ainda não é pacífico.
ação regressiva do inss: cinco anos da citação
Art. 120 da Lei 8.213 autoriza o INSS a demandar o causador para reaver valores pagos em benefícios acidentários (auxílio-doença, aposentadoria). O Supremo (STF, RE 1 381 279 – Tema 1197) fixou: “prescrição quinquenal contada da citação do beneficiário na execução fiscal, aplicando-se a regra do art. 1.º-C da Lei 9.494/1997”. Assim, a autarquia tem cinco anos contados do último pagamento de benefício ou da ciência do dano, a depender da discussão.
ação regressiva do sus/entes públicos
Hospitais públicos que custeiam atendimento a vítimas podem ajuizar regressiva contra o tortfeitor. O prazo segue a prescrição quinquenal contra particulares (art. 1.º, Decreto 20.910/1932) se o autor é ente público. Contagem começa na data do atendimento ou do ressarcimento.
cobrança de despesas médicas particulares: três anos
Quando a vítima paga hospitais e quer reaver do causador, é reparação civil extracontratual → três anos. Se acionar convênio de saúde, a operadora regredirá contra o réu no mesmo prazo trienal.
responsabilidade penal e prescrição
Crime de lesão corporal culposa de trânsito (art. 303 CTB) prescreve nos termos do Código Penal: até 3 ou 4 anos, conforme pena aplicada. Para homicídio culposo de trânsito (art. 302), o máximo da pena (até 8 anos) gera prescrição de 12 anos (art. 109 CP). A prescrição penal não se confunde com a civil — é possível que a punibilidade esteja extinta e o direito à indenização permaneça, e vice-versa.
pretensão trabalhista
Acidentes de trajeto ou com veículo a serviço geram ação na Justiça do Trabalho por dano moral ou material. Aqui vigora a prescrição bienal/quinquenal (art. 7.º, XXIX, CF): dois anos após a extinção do contrato, alcançando créditos dos últimos cinco anos.
juizado especial cível
Para danos até 40 salários-mínimos, aplica-se o Juizado Especial Cível estadual: prazo de três anos conforme art. 206, § 3.º, V. O pedido de citação postal interrompe a prescrição no protocolo da inicial.
marco inicial da prescrição no dano em evolução
Quando o dano não se manifesta de imediato (p. ex., trauma raquimedular que causa paraplegia meses depois), o prazo começa na data em que a vítima teve ciência inequívoca da lesão (Súmula 278 STJ). Em invalidez permanente, é a data da consolidação das sequelas ou do laudo do INSS.
causas suspensivas ou impeditivas
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Incapacidade absoluta (menor de 16 anos): prescrição suspensa até atingir 16 anos (art. 198, I, CC).
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Interdição civil: suspensa até cessar.
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Negociação entre as partes não interrompe; apenas a confissão ou reconhecimento formal.
efeitos práticos da prescrição
Acolhida a preliminar, o processo é extinto com resolução de mérito (art. 487, II, CPC). A pretensão torna-se inexigível; todavia, dívidas prescritas podem ser invocadas como exceção de compensação (art. 206, § 5.º, II).
estratégia processual para evitar prescrição
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Protocole pedido administrativo somente se faltar documento essencial; caso contrário, ajuíze logo a ação.
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Utilize protesto judicial (art. 726 CPC) para interromper prescrição em caso de negociação prolongada.
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Em litisconsórcio contra motorista e seguradora, ajuíze no mesmo ato; a interrupção contra um não vale para outro se os pedidos forem distintos.
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Data-compra do carro não influencia: prescrição liga-se ao acidente, não ao contrato de compra.
exemplos práticos
colisão entre carros particulares
Acidente em 02/01/2022. Ação indenizatória deve ser ajuizada até 02/01/2025. Se a vítima protocolou pedido de acordo extrajudicial em 10/2024, mas só ajuizou em 04/2025, o prazo expirou: prescrição reconhecida.
passageiro de ônibus
Lesão em 15/06/2021. Responsabilidade objetiva da empresa transportadora; prazo cinco anos → 15/06/2026.
dpvat (acidente 2019)
Protocolo em 2024: prescrição consumada (três anos). Mas se se trata de menor de 10 anos, prazo suspenso até 16 anos → ainda há direito.
ação regressiva do inss
Benefício pago de 03/2022 a 09/2023. INSS ajuíza regressiva em 01/2028. Ultrapassou cinco anos → prescrição.
perguntas e respostas
Fiz BO depois de dois anos; isso interrompe prescrição?
Não. Boletim de ocorrência não tem efeito interruptivo na esfera civil.
Seguro particular tem prazo específico?
Ação do segurado contra seguradora (cobertura de casco) prescreve em um ano (art. 206, § 1.º, II, “b”, CC).
Prescrição renova se o réu muda de endereço?
Não. A citação válida interrompe; se réu se oculta e não é citado, processo pode ser extinto sem julgamento do mérito.
Posso cobrar franquia do meu seguro ao causador depois de três anos?
Não, a pretensão pessoal está prescrita.
Prescrição penal afeta cível?
São independentes; ainda que crime prescreva, permanece direito à indenização, salvo se sentença penal negar culpa (art. 935 CC).
conclusão
Compreender o prazo prescricional aplicável a acidentes de trânsito é decisivo para salvaguardar direitos de vítimas, seguradoras e entes públicos. A regra-geral de três anos para reparação civil pode expandir-se a cinco anos em relações de consumo ou regressivas estatais, reduzir-se a um ano em seguros privados ou seguir parâmetros penais e trabalhistas completamente distintos. Identificar corretamente quem demanda, contra quem, qual pedido e em que foro é a bússola que impede a nau da indenização de encalhar no rochedo da prescrição — um obstáculo processual duro, mas essencial à segurança jurídica.