Depoimento com redução de danos: uma forma de minimizar a revitimização de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual em Araguaína-TO

Resumo: Este trabalho visa expor, de forma conceitual e teórica, o projeto depoimento com redução de danos. Foram abordados, de maneira simples e objetiva, conceitos importantes, histórico da temática ea conformidade do projeto com o ordenamento jurídico pátrio. Visa também demonstrar que é possível proteger psicologicamente crianças e adolescentes vitimizadas, evitando a repetição desnecessária de oitivas e os danos provocados por terceiros. Para maior compreensão do tema, passa-se por uma demonstração da atual sistemática de oitiva das crianças e adolescentes, chamando-se a atenção para a necessidade da presença de uma equipe multidisciplinar não apenas nas delegacias, mas também nas promotorias e juizados da infância e juventude. Traz também o posicionamento defendido por alguns autores cujos estudos contribuem para uma compreensão mais ampla e aprofundada dos diferentes níveis e processos em que a revitimização ocorre, os entraves à implantação do projeto e as consequências deste para os princípios do contraditório e ampla defesa. Faz-se um comentário sucinto sobre o depoimento sem dano em Araguaína. Por fim, à guisa de conclusão,aborda o depoimento com redução de danos como uma alternativa ao ultrapassado modelo vigentede inquirir crianças e adolescentes vítimas de violência sexual em nossa cidade.

Palavras-chave: Depoimento sem Dano. Criança. Adolescente. Violência. Revitimização.

Abstract: This work aims to expose, conceptual and theoretical form, the project statement with harm reduction. Were addressed in a simple and objective way, important concepts, historical theme, the compliance of the project with the Brazilian legal system. It also aims to demonstrate that it is possible to psychologically protect our children and adolescents, avoiding unnecessary repetition of hearings and the damage caused by them. For greater understanding of the issue, stands out as is the current system of hearsay lets kids and teens victimized, as well as the need for a multidisciplinary team not just the police, but prosecutors and the courts and courts of childhood and youth. Also discusses authors whose studies contribute to a broader and deeper understanding of the different levels and processes in which revictimization occurs, barriers to project implementation and consequences of this for the principles of adversarial and legal defense. It is a brief comment on the testimony without damage Araguaína. Finally, in conclusion, discusses the evidence with harm reduction as an alternative to the current outdated model of inquiring child and adolescent victims of sexual violence in our city.

Keywords: Testimony Without Harm. Child. Teenager. Violence. Revictimization.

Sumário:1. Introdução. 2. Conceito de criança e adolescente e a doutrina da proteção integral.3. Violência e revitimização: conceitos. 3.1 Vitimologia: crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. 4. Materialidade nos crimes que envolvem violência sexual contra crianças e adolescentes.5. Depoimento com redução de danos: breve histórico e conceitos.5.1 Depoimento com redução de danos frente ao ordenamento jurídico pátrio. 5.1.1 Depoimentos com redução de danos x princípios do contraditório e ampla defesa.6. Entraves à implantação do Depoimento com redução de danos.7. Depoimento com redução de danos em Araguaína.8. Conclusão. Referências.

1. Introdução

Os crimes contra a dignidade sexual geralmente são praticados na clandestinidade. Quando as vítimas são crianças e adolescentes, além da falta de vestígios, há componentes emocionais e psicológicos que dificultam a apuração desses delitos: o segredo, o medo e os traumas. A ausência de vestígios transfere uma enorme responsabilidade à fala da criança que, muitas vezes, será a única a prova a ser produzida durante a persecução penal.

Da agressão à sentença há um longo percurso, um verdadeiro calvário que leva as vítimas a ter que se apresentar perante várias autoridades. Ao serem inquiridas reiteradamente nos moldes tradicionais, as crianças revivem todo trauma, pois se deparam com ambientes inadequados, profissionais desqualificados, além de terem que repetir aos policiais, conselheiros tutelares,promotor de justiça e, por último, ao juiz, todo horror dos abusos, sendo, em seu íntimo e psicológico, revitimizadas, o que pode ocasionar danos irreversíveis ao seu desenvolvimento e personalidade, além de ferir um princípio e fundamento da nossa Carta Magna, que é a dignidade da pessoa humana.

A abordagem da temática justifica-se pela constatação de que as instituições responsáveis pela persecução penal, ao invés de estarem adotando procedimentos de defesa e proteção de crianças e adolescentes, na verdade, comportam-se, mesmo que involuntariamente, às vezes, como verdadeiras violadoras dos direitos humanos.  

Ante ao exposto, surgem então as seguintes indagações: a oitiva de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual no Juizado da Infância e Juventude de Araguaína tem preocupação com a política criminal de redução de danos? As crianças e adolescentes vítimas de violência sexual são inquiridas num ambiente adequado e por equipes multidisciplinares?

O tema foi se consubstanciando na cabeça do pesquisador a partir de experiências vividas no cotidiano da atividade policial militar na cidade de Araguaína. Aqui são atendidas, com frequência, ocorrências envolvendo crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, mormente situações de violência sexual.

O presente artigo justifica-se, portanto, por sua relevância social na medida em que facilita a obtenção da prova testemunhal através da inquirição da vítima, pois, muitas vezes, esta é a única pessoa presente na cena do crime, juntamente com o agressor. Além de diminuir os casos de impunidade, vez que estudos revelam que, onde se implantou o projeto, há seis vezes mais elucidação dos crimes dessa natureza.

2. Conceito de criança e adolescente e a doutrina da proteção integral.

A criança e o adolescentevivenciam um intenso processo de transformação física e psicológica. Cabrera, Wagner Júnior e Freitas Jr. (2006, p. 09) afirmam que: “com efeito, a infância e a adolescência podem ser traduzidas como um período de rápidas e constantes modificações físicas e culturais, cujo sujeito, em pouco tempo, terá atingido a maturidade adulta”.E, como sujeitos de direitos que são, merecem, nesse período, atenção especial por parte da família e do Estado.

Todavia, nem sempre foi assim. A criança, especialmente antes da Constituição de 1988, era tratada como objeto e não como sujeito de direitos. No dizer de Queiroz (2013), os Códigos de Menores de 1927 e 1979 são semelhantes na medida que foram marcados por um corte categórico no âmbito de incidência de suas normas, as quais se referem apenas a uma classe social de infância. Os destinatários dessas normas eram somente aqueles que estivessem em “situação de perigo moral ou material” ou em “situação irregular”.

Ainda segundo Queiroz (2013), naquela época havia uma forte criminalização da infância em situação de pobreza. A simples ausência de condições econômicas da família para sustentar a criança era motivo suficiente para o Estado retirá-la do convívio familiar, decretando a perda ou a suspensão do poder familiar, e levá-la a um estabelecimento estatal “adequado”.

Nesse mesmo diapasão é a ilação de Saraiva (2005, p. 51), ao afirmar que no tempo de vigência dos Códigos de Menores:

“a grande maioria da população infanto-juvenil recolhida às entidades de internação do sistema FEBEM no Brasil, na ordem de 80%, era formada por crianças e adolescente, “menores”, que não eram autores de fatos definidos como crime na legislação penal brasileira. Estava consagrado um sistema de controle da pobreza, que Emílio Garcia Mendez define como sociopenal, na medida em que se aplicavam sanções de privação de liberdade a situações não tipificadas como delito, subtraindo-se garantias processuais. Prendiam a vítima. Esta também era a ordem que imperava nos Juizados de Menores.”

Todavia, essa doutrina da situação irregular estabelecida nos antigos Códigos de Menores cedeu lugar àprioridade da doutrina de proteção integral preconizada pela Lei no 8.069/1990, Estatuto da Criança e do Adolescente, em consonância com a Constituição Federal de 1988.De acordo com Liberati (2012, p. 54), a doutrina da proteção integral:

“preconiza que o direito da criança não deve e não pode ser exclusivo de uma “categoria” de menor, classificado como “carente”, “abandonado” ou “infrator”, mas deve dirigir-se a todas as crianças a todos os adolescentes, sem distinção. As medidas de proteção devem abranger todos os direitos proclamados pelos tratados internacionais e pelas leis internas dos Estados”.

Trata-se de verdadeiro princípio que, juntamente com o princípio da dignidade da pessoa humana e da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, são verdadeiros alicerces dos direitos da criança e adolescentes. É que inferimos de acurada leitura do Art. 227 da CF/88, que diz:

“é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

O conceito legal de criança e adolescente encontra-se consolidado no Estatuto da Criança e Adolescente. De acordo com o Art. 2º da Lei 8.069/1190 –ECA, “considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquele entre doze e dezoito anos de idade”. Esse conceito está afinado com a Convenção Sobre os Direitos da Criança, aprovado pela ONU em 20/11/1989, assinada pelo Brasil em 26/01/1990 e aprovada pelo Decreto Legislativo no 28, de 14/09/1990, que diz:

“para efeitos da presente Convenção considera-se como criança todo ser humano com menos de dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes” (Art. 1º ).

O objetivo da legislação como um todo não é outro senão salvaguardar os interesses das crianças e adolescentes enquanto sujeitos de direito em situação de vulnerabilidade. Dessa forma assegura-se, portanto, a preservação da dignidade da pessoa humana de crianças e adolescentes com o escopo de garantir, ainda que minimamente, condições adequadas de crescimento e desenvolvimento como pessoas.

3. Violência e revitimização: conceitos

O fenômeno da violência confunde-se com a própria história da humanidade. Com o desenvolvimento das civilizações ela foi ganhando destaque no arranjo social, sendo elevada ao status de uma das grandes preocupações do indivíduo em sociedade. Fala-se violência em seu sentido lato, abrangendo todas as suas formas de manifestação, seja física, psicológica, material, afetiva, sexual etc, no âmbito doméstico ou não.

Krug et al, citando o relatório mundial sobre violência e saúde, publicado pela ONU em 2002, afirma que a violência

“é o uso intencional da força física ou do poder real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha qualquer possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação” (2002, p. 05).

A violência pode ser vista sob diversas facetas. Trata-se de fenômeno complexo, com inúmeras causas que diferem de sociedade para sociedade. Em algumas são marcantes a violência de gênero, em outras a violência econômica, já em outras a violência bélica, religiosa e por aí vai.

De acordo com Minayo (2007), temos tendência a achar que violento é o outro. Todavia filósofos e psicanalistas mostram que a não violência é uma construção social e pessoal. Do ponto de vista social, o remédio contra a violência é a capacidade que a sociedade tem de incluir, ampliar e universalizar os direitos e os deveres de cidadania. No âmbito pessoal, a não violênciadiz respeitoao reconhecimento da humanidade e da cidadania do outro, o desenvolvimento de valores de paz, de solidariedade, de convivência, de tolerância, de capacidade de negociação e de solução de conflitos pela discussão e pelo diálogo.

Quanto à violência sexual contra crianças e adolescentes, esta, comumente, manifesta-se através dos abusos. Segundo Kemp (1996 apud AZAMBUJA, 2010, p. 217), violação sexual contra criança é também definida:

“como o envolvimento de crianças e adolescentes dependentes e imaturos quanto ao seu desenvolvimento em atividades sexuais que eles não têm condições de compreender plenamente e para as quais são incapazes de dar consentimento, ou que violam as regras sociais e os papéis familiares”.

Esses abusos podem ocorrer tanto dentro como fora do contexto familiar. Esse detalhe é importante para caracterizar a vitimização de crianças como primária ou secundária. Para Potter (2010), a vitimização primária é causada pelo crime em si, enquanto a vitimização secundária é causada pelo uso inadequado dos meios de controle social. Pode ocorrer nas esferas criminal, cível e administrativa. Ainda para Potter (2010, p. 20),

“a violência praticada contra crianças e adolescentes deixa uma marca no corpo que sofre a violência e a dor, e estas produzem consequências que são, normalmente, destrutivas para o bem-estar físico e psicológico da vítima criança/adolescente. No entanto, essa violência atinge tamanha grandeza quando a vítima de delito sexual volta a experimentar o sofrimento doloroso ao ter que relatar os fatos na instância judicial […] São violados seus mais amplos direitos fundamentais, como a dignidade humana, a privacidade e a intimidade, através do tratamento desumano, degradante, vexatório e constrangedor durante a investigação do delito […] Esse aspecto é marcante, especialmente quando a criança/adolescente depõe diante do acusado, e em diferentes ocasiões no ambiente intimidatório do Foro […] A esse processo de revitimização dá-se o nome de revitimização secundária, que outra coisa não é senão a violência institucional do sistema processual-penal, fazendo das vítimas novas vítimas, agora do estigma processual investigatório.”

Calhau (2010), corroborando o pensamento de Potter, afirma que a vitimização primária é o prejuízo derivado do crime praticado, ao passo que a vitimização secundária, também chamada de institucional, seria o sofrimento adicional que a dinâmica da justiça criminal (Poder Judiciário, Ministério Público, policiais e sistema penitenciário), com suas mazelas, provoca normalmente nas vítimas.

De acordo com o Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência contra Crianças e Adolescentes (2007, apud SANTOS, 2010, p. 40), revitimização:

“é o processo de ampliação do trauma vivido pela vítima de violência, em função de procedimentos inadequado realizado sobretudo nas instituições oficiais, durante o atendimento da violência notificada. Também é chamada de dupla vitimização.”

Sem falar nos aspectos relacionados ao atendimento feito à criança vítima de violência sexual, logo após o fato (crime) em si. Primeira a chegar no local, a Polícia Administrativa normalmente aciona o Conselho Tutelar. Este aciona toda rede de proteção. Em seguida a criança é inquirida primeiramente numa delegacia. Será inquirida ainda pelo menos mais duas vezes na instrução penal. Assim revive várias vezes o mesmo trauma (revitimização).

Portanto, sugere Potter e Bitencourt (2009), que o fundamental é que as crianças, vítimas de violência sexual, sejam percebidas e compreendidas como sujeitos de direito que são, não como um objeto da persecução criminal ou meio de prova, pois a sociedade, em nenhuma hipótese, tem o direito de revitimizá-las, seja a pretexto da busca da verdade real, seja para assegurar a mais ampla defesa do eventual acusado.

3.1.Vitimologia: crianças e adolescentes vítimas de violência sexual.

A vítima possui papel de inquestionável valor para o estudo do Direito Penal. Compreendê-la é fundamental para o próprio entendimento da dinâmica do crime. Sob o enfoque da vítima é possível, por exemplo, discutir as causas da vitimização e sua prevenção. Para Nucci (2008) vítima é o sujeito passivo do crime, ou seja, a pessoa que teve o interesse ou o bem jurídico protegido diretamente violado pela prática da infração penal. 

Quanto ao conceito de vitimologia, as palavras de Mayr são cristalinas. Para ele:

“vitimologia é o estuda da vítima no que se refere à sua personalidade, quer do ponto de vista biológico, psicológico e social, querdo de sua proteção social e jurídica, bem como dos meios de vitimização, sua inter-relação com o vitimizador e aspectos interdisciplinares e comparativos” (1990, p. 18).

Para Fernandes e Fernandes (2010, p. 480) a vitimologia “desponta como um dos ramos da criminologia, ramo que, sob a filtragem do Direito Penal e da Psiquiatria, tem por escopo a observação biológica, psicológica e social da vítima em face do fenômeno criminal”.

Fernandes e Fernandes (2010) ainda vão além ao afirmarem que a vitimologia tem como propósitos não apenas o estudo da vítima ou de delito, mas da vítima em geral, da pessoa que sofreu um dano, uma lesão, a destruição de um bem, seja por culpa de terceiro ou própria. Dito isto, passaremos ao estudo das crianças vítimas de violência sexual.

Quando se fala em crianças vítimas de violência sexual no Brasil, dados bastante consistentes são os apresentados pelo Mapa da Violência, que é uma série de estudos realizados pela Unesco, pela Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana (RITLA) e pelo Instituto Sangari, com apoio do Ministério da Saúde e Ministério da Justiça. Segundo estudos do Mapa da Violência (2011, p. 70) publicado em 2012, informa que:

“em 2011 foram atendidos no país um total de 10.425 crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. A grande maioria do sexo feminino: 83,2%. Com poucas oscilações entre as faixas etárias, podemos ver também que vai ser entre os 15 e os 19 anos que os índices femininos atingem sua máxima expressão: 93,8%. Ao todo, foram 16,4atendimentos para cada 100 mil crianças e adolescentes. A maior incidência de atendimentos registra-se na faixa de 10 a 14 anos, com uma taxa de 23,8 notificações para cada 100 mil adolescentes”.

Quanto ao agressor desse tipo de violência – pode haver mais de um agressor -, o mesmo estudo demonstra que:

“na maior parte dos casos foi um amigo ou conhecido da criança ou da família – 28,5% dos atendimentos, com incidência elevada em todas as faixas etárias, especialmente dos 5 aos 14 anos de idade das vítimas. Desconhecidos configuram a segunda categoria individual em ordem de relevância, com 17,9% de frequência, com grande incidência dos 15 aos 19 anos, indicados em 44,2% dos atendimentos. Também, com menor intensidade, os desconhecidos apresentam elevada incidência como agressores de crianças com menos de 1 ano de idade” (2012, p. 72).

Ainda segundo o estudo (2012), Araguaína está entre os 70 municípios com um mínimo de 20 mil crianças e adolescentes ou mais, na faixa de 1 a 19 anos de idade, que registraram as maiores taxas de atendimento pelo SUS por violências físicas ou sexuais, segundo as notificações que constam nas bases do SINAN (Sistema de Informação de Agravo de Notificação), ligado ao Ministério daSaúde. Em 2011 foram registrados 37 casos de violência sexual na cidade. No Estado, Araguaína só perde para Palmas, que tem 113 registros no mesmo ano.

Importante ressaltar a subnotificação dos crimes contra a dignidade sexual, principalmente a intrafamiliar contra crianças e adolescentes. Azambuja (2010) cita estimativa da Organização Mundial da Saúde no sentido de que apenas um em cada 20 casos chega a ser notificado, ocultando assim reais situações de violência.

4. Materialidade nos crimes que envolvem violência sexual contra crianças e adolescentes.

Investigar abuso sexual infanto-juvenil é uma tarefa nada fácil. Principalmente quando o abuso é intrafamiliar. Isso porque há um envolvimento, de acordo com Azambuja (2010), daquilo que os psicólogos chamam de síndrome do segredo, que nada mais seria que a ocultação dos fatos. No abuso fora do lar, a providência imediata é a denúncia, dando-se total crédito à palavra da vítima. Todavia, quando o abuso é no seio da família, muitas vezes há descrédito na palavra da criança, há o medo, falta de cooperação ou desinteresse no esclarecimento. O acontecimento se torna segredo da família.

Como muitas vezes os abusos não deixam vestígios, ou seja, materialidade, principalmente nos atos libidinosos diversos da conjunção carnal, a palavra da vítima ganha profunda relevância. Não se deve olvidar, todavia, que a palavra da vítima, sempre que possível, deve estar em consonância com os outros elementos probatórios. De acordo com Avena:

“embora a palavra do ofendido deva ser considerada com reservas, exigindo-se que seja sempre confrontada com os demais elementos de prova existentes nos autos, não se pode deixar de reconhecer que, em alguns casos, possui alto valor, como nas hipóteses de crimes contra a dignidade sexual, os quais, cometidos na clandestinidade, não apresentam testemunhas. Neste sentido, é pacífica a jurisprudência” (2010, p. 245).

Não se está supervalorizando a palavra da vítima em detrimento dos outros instrumentos probatórios. Este pensamento é defendido por Felix,

“não há, em nenhum momento, defesa no sentido de ser a prova testemunhal mais valorosa que as demais provas do processo. O que se estar a buscar é a melhora dessa prova, sem desvalorizar as demais, e, em primeiro plano, a proteção dos direitos da criança e do adolescente, reduzindo os danos causados a esses pelo aparato judicial” (2011, p. 14).

De acordo com Balbinotti (2008), a falta de credibilidade à fala da criança se estende não só no ambiente intrafamiliar, mas também no sistema legal. A crença de que ‘crianças mentem e adultos falam a verdade’ ou de que ‘a comunicação das crianças é menos válida ou menos confiável’ traz muitos prejuízos para processo judicial.

É diante desse cenário de dificuldade na prospecção de provas suficientemente robustas para colocar autores de abusos contra crianças atrás das grades que o projeto depoimento sem dano surge como importante alternativa.

5. Depoimento com redução de danos: breve histórico e conceitos.

O ponto de partida para o surgimento da técnica do depoimento sem dano, de acordo com Santos e Gonçalves, foi a chamada Câmara Gesell, que poderia ser conceituada como:

“um dispositivo criado pelo psicólogo norte-americano Arnold Ge­sell (1880-1961) para o estudo das etapas do desenvolvimento infantil. Constituída por duas salas divididas por um espelho unidirecional, que permite visualizar a partir de um lado o que acontece no outro, mas não vice-versa, a Câmara Gesell passou a gozar de reconhecimento constitucional no que concerne à tomada de depoimento de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência sexual” (2008, p. 15).

Ainda para aqueles autores, as práticas de tomada de depoimento com redução de danos indicam que estas são muito recentes na história da humanidade. As mais antigas foram registradas em Israel, Canadá e Estados Unidos e datam da década de 1980. Prosseguindo:

“é interessante observar que os países pioneiros iniciaram a busca de métodos alternativos de não-revitimização de crianças e adolescentes vítimas de violência (abuso e exploração sexual) antes mesmo da aprovação da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, um marco legal impulsionador de ações de defesa dos direitos da criança no mundo” (2008, p. 34-35).

Depois, a nova prática se espalhou por outros continentes. Cézar (2010) menciona que a África do Sul adotou o projeto em 1991, através do Decreto 135 de Emenda à Lei Criminal. A França o instituiu em 1998, enquanto a Argentina, através da Lei no 25.852, promulgada pelo Congresso Nacional, em 04 de dezembro de 2003 e sancionada em 06 de janeiro de 2004, também implementou a sistemática.

No Brasil o depoimento sem dano, segundo Fávero (2010), teve início em 2003, em Porto Alegre. Cezar (2007, apudFÁVERO, 2010, p. 186), idealizador do projeto na capital gaúcha, relata que:

“ao assumir a magistratura em vara criminal, deparava com dificuldades para inquirições em juízo” de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual, sendo que as informações prestadas na fase policial não se confirmavam em juízo, o que criava situações de constrangimento e desconforto para todos, principalmente às crianças e aos adolescentes, e as ações terminavam, na sua maior parte, sendo julgadas improcedentes, com base na insuficiência de provas.”

Ao falar sobre o projeto depoimento sem dano em sua dissertação, Santos (2010) diz que o projeto se propõea observar todas as garantias processuais à criança inquirida em juízo, por meio da adoção de procedimentos especiais que a respeite em sua condição de pessoa em desenvolvimento. Tais procedimentos consistem em ouvir a acriança em recinto diverso das salas de audiência, ambiente inadequado para uma pessoa que terá de falar sobre tema constrangedor, como é a violência ou a exploração sexual.

Sobre o que seja o Depoimento com Redução de Danos, nada melhor que o relato do desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Dr. José Antonio Daltoé Cézar (2007 apud TABAJASKI et all, 2010, p. 64), como já dito alhures, autor do projeto pioneiro que iniciou o depoimento sem dano no Brasil, na 1ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegreque, em síntese, fala:

“trata-se de, na ocasião dos depoimentos das crianças e dos adolescentes vítimas de violência sexual, retirá-las do ambiente formal da sala de audiências e transferi-las para uma sala especialmente projetada para esse fim, devendo estar devidamente ligada , por vídeo e áudio, ao local onde se encontram o magistrado, promotor de justiça, advogado, réu e serventuários da justiça, os quais também podem interagir durante o depoimento. Assim, é possível realizar esses depoimentos de forma mais tranquila e profissional, em um ambiente mais receptivo e com a intervenção de técnicos previamente preparados para tal tarefa. Dessa forma, diminuem-se as chances de más práticas de entrevista, tais como perguntas inapropriadas, impertinentes, agressivas e desconectadas não só do objeto do processo, mas principalmente das condições pessoais do depoente.

O depoimento, que é gravado, na íntegra, em áudio e vídeo (em formato digital), é degravado e juntado aos autos. Além da degravação, é feita uma cópia da entrevista em disco, a qual é juntada na contracapa do processo […].”

Assim, infere-se que o objetivo precípuo do depoimento com redução de danos é reduzir os danos e sofrimentos psicológicos às crianças vítimas de violência sexual que precisam ser ouvidas em juízo. No dizer de Potter (2010), o depoimento sem dano busca adequar os princípios do processo penal, em especial o contraditório e ampla defesa, com os princípios da dignidade da pessoa humana e absoluta prioridade ao atendimento dos direitos da criança e do adolescente.

Wolf, analisando o trabalho desenvolvido na 1ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre, observou que o depoimento de crianças e adolescentes se desenvolve em três momentos:

“a) Acolhimento: quando da intimação para a criança ou adolescente comparecer à audiência é solicitado que se apresente 30 minutos antes do início da mesma. Essa providência evita o encontro com réu e possibilita um contato com o profissional, prévio à audiência. Nesse momento, junto com o adulto acompanhante, é realizado esclarecimento sobre o objetivo dessa convocação e lhes são explicados os procedimentos da audiência e o funcionamento dos equipamentos eletrônicos; como o réu poderá estar presente, é esclarecido à criança que lhe será perguntado, no início da oitiva, sobre a permanência do mesmo na sala de audiências, que poderá optar pela sua permanência;

b) Depoimento propriamente dito: o depoimento inicia já com o equipamento eletrônico ligado, quando a assistente social ou psicóloga solicita que a criança/adolescente se manifeste sobre a permanência do réu na sala de audiências. É-lhe explicado que poderá deixar de responder perguntas ou pedir as explicações que necessitar. Na primeira parte do depoimento são realizadas, pela profissional, perguntas gerais e abertas sobre a situação da criança e depois lhe é solicitado seu relato sobre o fato ocorrido. Nesse momento  pode haver a interferência do juiz, mas o mais usual tem sido a profissional esgotar suas perguntas, que estão baseadas na leitura prévia do processo e nas requisições feitas antecipadamente pelo juiz e, só após, o mesmo complementa suas questões, estendendo também a possibilidade de questionamento ao representante do Ministério Público e ao defensor do réu.

c) Retorno: ao final do depoimento e já com os equipamentos desligados, é possibilitada à criança ou ao adolescente falar sobre a audiência; é repassado com seu acompanhante algum aspecto relevante que tenha sido observado e que possa interferir no seu bem-estar futuro, sendo também verificado como estão sendo vivenciadas as decorrências do fato que originou o processo. Caso seja considerado necessário, são realizados encaminhamentos para avaliação e acompanhamento na rede de saúde” (2010, p. 123).

Essas fases e a inquirição em si são realizadas por uma equipe multidisciplinar, formada geralmente por um assistente social e por um psicólogo, que realizam as mesmas atividades na audiência. Para Wolf (2010), o foco da intervenção deve estar na atividade em si e não na formação dos profissionais. O importante é que tanto assistentes sociais como psicólogos, possuam as competências profissionais que são requeridas para essa abordagem.

Portanto, esse tipo de produção de provas não tem outro objetivo senão assegurar os princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa, além de efetivar os direitos de crianças e adolescentes, reduzindo o medo, ansiedade e valorizando o testemunho da criança. É uma metodologia de trabalho técnico que, além de aplicar a lei, mostra-se como alternativa viável e capaz de substituir a desatualizada e ultrapassada prática processual vigente, no que tange aos direitos fundamentais dos impúberes.

5.1. Depoimento com redução de danos frente ao ordenamento jurídico pátrio.

A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil, como já citado acima, dispõe em seu art. 12:

“Art. 12. Os Estados partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e da maturidade das crianças. Com tal propósito, proporcionar-se-á à criança, em particular, a oportunidade de ser ouvida em todo processo judicial ou administrativo que afete a mesma, quer diretamente quer por intermédio de um representante ou órgão apropriado, em conformidade com as regras processuais de legislação nacional”.

Mesmo tendo sido recepcionada pelo Brasil, o dispositivo, na prática, ainda carece de regulamentação. Isso porque, segundo Fávero (2010, p. 184), “as normas para ouvir os adultos são as mesmas utilizadas para inquirir crianças e adolescentes”. É o que se infere da leitura do art. 201 do Decreto-Lei no 3.689/1941, que institui o Código de Processo Penal: “sempre que possível, o ofendido será qualificado e perguntado sobre as circunstâncias da infração, quem seja ou presuma ser o seu autor, as provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas declarações”.

Bem, se não há dispositivo regulamentando, com base em quê se procede a oitiva de crianças e adolescentes, na abordagem depoimento com redução de danos? A resposta está no art. 217 do Código de Processo Penal, que diz:

“Art. 217. Se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará a inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma, determinará a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor.”

Fávero (2010)cita os artigos 150 e 151 do Estatuto da Criança e do Adolescente como dispositivos também importantes, pois fundamentam a adoção da equipe técnica, chamada no projeto depoimento com redução de danos de equipe multidisciplinar. Os dispositivos, respectivamente, dizem:

“Art. 150. Cabe ao Poder Judiciário, na elaboração de sua proposta orçamentária, prever recursos para manutenção de equipe interprofissional, destinada a assessorar a Justiça da Infância e da Juventude.

Art. 151. Compete à equipe interprofissional dentre outras atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito, mediante laudos, ou verbalmente, na audiência, e bem assim desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e outros, tudo sob a imediata subordinação à autoridade judiciária, assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico.”

Diante da ausência de normas específicas e após a implementação, com sucesso, do projeto depoimento com redução de danos em Porto Alegre, é que começaram a aparecer propostas legislativas com o intuito de alterar alguns dispositivos tanto do Estatuto da Criança e do Adolescente quanto do Código de Processo Penal. Como exemplo, temos os Projetos de Lei no4.126/2004 e no5.329/2005.

De acordo com o PL no5.329/2005, que altera dispositivos processuais penais sobre oitiva da vítima, em caso de crimes cometidos contra criança ou adolescente, de autoria do Deputado Paulo Pimenta, seria acrescentado mais dois parágrafos ao artigo 201 do Decreto-Lei no 3.689/1941. Esses parágrafos teriam a seguinte redação:

“A oitiva da vítima, da Criança ou Adolescente será dispensada se já houver nos autos laudo de profissional qualificado na saúde mental ou equipe interprofissional integrada contendo a versão por ela narrada que demonstrem a existência do crime.

Quando a vítima for criança ou adolescente, sua oitiva será condicionada a um laudo elaborado por perito judiciário médico psiquiatra, psicólogo ou equipe interdisciplinar integrada afirmando suas condições favoráveis para prestar depoimento em audiência judicial.”

Já o PL no4.126/2004, que hoje tramita no Senado Federal, da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, prevendo a alteração de dispositivos da Lei no8.069/1990, Estatuto da Criança e do Adolescente, é mais específico, pois traz à baila elementos do que já vem sendo praticado pelo projeto depoimento sem dano. A redação do art. 197-B ficaria da seguinte forma:

“Na inquirição de criança e adolescente, vítima ou testemunha de delitos de que trata essa seção, adotar-se-á, preferencialmente, o seguinte procedimento: I – A inquirição será feita em recinto diverso da sala de audiências, especialmente projetada para esse fim, o qual conterá os equipamentos próprios e adequados à idade e à etapa evolutiva do depoente; II – Os profissionais presentes À sala de audiências participarão da inquirição através de equipamentos de áudio e vídeo, ou de qualquer outro meio técnico disponível; III – A inquirição será intermediada por profissional devidamente designado pela autoridade judiciária, o qual transmitirá ao depoente as perguntas do juiz e das partes […].”

O projeto depoimento com redução de danos ainda é encarado como um projeto piloto, pois não existe legislação, ainda, tornando-o obrigatório. Por enquanto, têm-se alguns julgados favoráveis ao projeto e a Resolução no 33/2010, do Conselho Nacional de Justiça. Esta faz algumas recomendações importantes aos tribunais, dentre as quais destacamos a primeira: “a implantação de sistema de depoimento vídeogravado para as crianças e os adolescentes, o qual deverá ser realizado em ambiente separado da sala de audiências, com a participação de profissional especializado para atuar nessa prática”.

5.1.1. Depoimento com redução de danos x princípios do contraditório e ampla defesa.

Questão bastante interessante é o debate no campo jurídico gerado em torno da escuta de crianças e adolescentes. Questiona-se se não estariam sendo afrontados os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, corolários de qualquer Estado que se queira denominar “democrático de direito”. Para Oliveira (2012), ampla defesa consiste na possibilidade do acusado usar de todos os meios lícitos para se esquivar das acusações que lhe são dirigidas, desde que não seja contrário à lei. Sobre o contraditório, prossegue:

“O princípio basilar da sistemática processual estabelece que as partes devem ser ouvidas e ter oportunidade de se manifestar em igualdade de condições. O processo só atingirá seus fins se houver equilíbrio entre as partes. É conhecida a expressão paridade de armas, pela qual alguns autores se referem ao contraditório. Ela condena a ideia de que, no processo, as partes devem ter as mesmas oportunidades, não devendo uma ser mais “municiada” do que a outra. É o tratamento paritário dos sujeitos parciais da relação jurídica processual” (2012, p. 29-30).

Como o depoimento com redução de danos ainda não está regulamentado, como já visto, não se deve olvidar que alguns cuidados devem ser tomados para que o ato não seja eivado de vícios que possam acarretar nulidades. De acordo com Cézar (2010, p. 82), “as comarcas onde já se encontra o projeto Depoimento Sem Dano instalado necessitam da anuência de todas as partes envolvidas no processo para que possa ele ser validado como prova judicial”.

A ideia central do contraditório passa pela ciência que as partes devem ter dos atos ou acontecimentos processuais. Destarte, cada parte deve ter a oportunidade de reagir ou não aos atos que não lhes sejam favoráveis. Nesse aspecto, Gomes diz:

“Qualquer que seja o conteúdo conferido ao princípio do contraditório, não há qualquer relação com a temática do depoimento com redução de danos, que, como já visto, consiste em técnica especial de inquirição da vítima ou da testemunha menor, com a direta participação das partes interessadas (logo, com ciência e oportunidade de reação).”

Assim, verifica-se que a metodologia não tem o condão de anular o ato processual que, no dizer de Bitencourt (2007), será válido desde que atenda determinadas exigências, como garantia de uma perfeita audição, visão e diálogo com a vítima na sala especial e os demais sujeitos que participam do processo, preservando-se as garantias processuais.Portanto, em se tratando da metodologia depoimento com redução de danos, não há que se falar em desrespeito aos preceitos constitucionais do contraditório e ampla defesa.

6. Entraves à implantação do depoimento com redução de danos.

Por ser uma metodologia relativamente nova no Brasil, a escuta de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual ainda gera inflamados debates na doutrina e jurisprudência. Todavia, esse, com toda certeza, não é o único grande entrave à implementação do projeto. De acordo com Cezar (2010), as discrepâncias já começam com a indagação sobre se acrianças e adolescentes devem ou não ser ouvidas em processos judiciais. Ora, como os crimes sexuais geralmente não deixam marcas, a inquirição da vítima é, em grande parte dos casos, a única prova a ser produzida. Logo, a inquirição da vítima é peça chave para um desfecho positivo do processo.

Gomes expressa, com maestria, as principais dificuldades enfrentadas para que a prática se efetive. Segundo o referido autor:

“sem dúvidas, o maior inimigo à efetivação do depoimento com redução de danos – além dos desarrazoados ataques doutrinários – é a falta de recursos humanos suficientes (equipe técnica especializada) e de infraestrutura (salas especiais com circuito interno unidirecional de televisão), principalmente em comarcas interioranas (2010, p. 148).”

Quanto aos espaços físicos da sala de audiências, estes não foram projetados para acolher crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Cezar (2010) retrata que aqueles ambientes são projetados de maneira a criar subserviência entre o juiz e as partes, além de trazer em seu interior muitas pessoas que têm de participar daquele ambiente, todas elas estranhas à figura do depoente.

Outro problema apontado é a relutância do Conselho Federal de Psicologia e do Conselho Federal dos Assistentes Sociais em participar das inquirições. Para Fávero (2010), quando o assistente social atua como intérprete da fala do juiz ou das partes, não é uma prática pertinente ao serviço social, pois trata-se de procedimento policial e judicial, pertinentes à investigação policial e à audiência judicial.

Quanto ao posicionamento do Conselho Federal de Psicologia, Potter (2010, p. 49) assegura que para o aludido órgão, “a inquirição proposta através de psicólogo não configura um método de trabalho psicoterápico nem de entrevista psicológica, ambos resguardados pelo Código de Ética do Psicólogo”.

Wolff (2010), em seu trabalho, traz o posicionamento do Conselho Federal de Psicologia sobre a matéria. Segundo o Conselho, a participação de crianças e adolescentes nas audiências, além de revitimizá-las, as expõem desnecessariamente ao aparato jurídico penal. Isso também pode trazer consequências negativas para seu desenvolvimento.

Entretanto, os defensores da metodologia alegam que a função dos profissionais é a de interlocutores das partes e não a produção de laudos ou pareceres, o que realmente contrariaria os códigos de ética do psicólogo e do assistente social. Nada que a iminente mudança legislativa em tramitação no Congresso Nacional não venha a corrigir, conforme já citado no item 4.1.

7. Depoimento com redução de danos em araguaína.

Araguaína possui delegacia, promotoria e uma vara especializada na investigação e apuração dos crimes em que são vítimas crianças e adolescentes. Contudo, nenhuma daquelas instituições possui sala especial destinada a colher o depoimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual.

A titular da Delegacia da Infância e Juventude, Dra. Balma Martins de Araújo, em conversa que ocorreu no dia 20.10.2014,no complexo de delegacias de Araguaína, às 09h30min, informou que conhece o projeto e o acha bastante interessante. Contudo, acha uma utopia que a iniciativa seja implantada na delegacia da infância e juventude, por cuja titularidade responde, pois “a estrutura para se trabalhar hoje é bastante precária, chegando inclusive a faltar papel e toner para as atividades do cotidiano”. Falou ainda ter dificuldade em inquirir crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, haja vista não ter nenhum curso específico que a qualifique para tal ato.

Nem a promotoria nem o juizado da infância e juventude também possuem sala especial. No juizado há apenas uma brinquedoteca. Segundo Iana Lira, escrevente judicial, em conversa que ocorreu no dia 20.10.2014, por volta da 10h30min, “uma empresa de segurança foi contratada para ver a possibilidade de transformar a brinquedoteca numa sala especial destinado a inquirir crianças e adolescentes vítimas de violência sexual”. O prédio é alugado, o que torna difícil um investimento por parte do estado numa estrutura provisória.

No juizado, as crianças são ouvidas diretamente pela magistrada. O órgão já conta com uma equipe multidisciplinar composta por psicólogos e assistentes sociais cedidos pelo Governo do Estado. Mas esta equipe apenas acompanha a oitiva, não intervindo no ato. A melhor notícia, entretanto, foi a de que o novo Fórum de Araguaína, em construção na Avenida Filadélfia, contará com sala especial devidamente equipada. Assim, portanto, emerge a esperança de que, em nossa cidade, as crianças e adolescentes não mais sofram, durante a busca da verdade real, a chamada violência institucional. Esta pode ser tão ou mais traumatizante que a violência em si mesma.

8. Conclusão

O processo penal tradicional já demonstrou não ser suficiente para tutelar e efetivar os direitos das crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, não cumprindo, assim, seu papel de assegurar proteção aos direitos humanos. A chamada cultura inquisitiva, ou busca da verdade a qualquer preço, não pode ter lugar num estado dito democrático de direito como o Brasil, onde a dignidade da pessoa humana é um de seus fundamentos.

O depoimento com redução de danos busca justamente destacar o superior interesse da criança. Infere-se, assim, que seu objetivo precípuo não é simplesmente estabelecer mais uma técnica processual de oitiva da vítima ou testemunha, mas criar parâmetros que assegurem aela valor à sua fala, facilitando a aplicação da lei e, concomitantemente, protegendo seus interesses.

Nesse aspecto, o depoimento com redução de danos não deve ser encarado como uma panaceia, pois, de maneira nenhuma, tem o condão de extirpar o sofrimento causado pela violência e por suas consequências. Deve ser encarado, sim, como uma maneira de se evitar danos ainda maiores às crianças, sendo, na atual sistemática, procedimento importantepara assegurar proteção à sua condição especial de pessoa em desenvolvimento.

Em Araguaína, apesar dos atores responsáveis pela persecução criminal e penal conhecerem a sistemática do depoimento com redução de danos, pode-se afirmar que ainda não há, efetivamente, uma preocupação com a política criminal de redução de danos em favor das acrianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Há boa vontade, é fato, mas que esbarra na falta de estrutura nas delegacias, promotorias e juizado da infância e juventude. As oitivas, atualmente, são realizadas em ambientes inadequados. A equipe multidisciplinar, presente apenas no juizado, apenas acompanha o depoimento, não fazendo nenhuma intervenção.

A esperança está na construção do novo Fórum que, conforme mencionado alhures, contará com sala especialmente projetada para a inquirição de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual. Diante da falta de estrutura, delegados, promotores e juízes devem trabalhar de maneira coordenada para que, dentro do ordenamento jurídico vigente, a criança seja ouvida o mínimo possível, reduzindo, assim, o tempo em que é exposta ao relatar a violência sofrida.

Sugere-se que seja realizado um trabalho interdisciplinar, profissional e integrado, investindo na capacitação de peritos, psicólogos, assistentes sociais, de modo a torná-losespecialistas em crianças e adolescentes. Isso porque o moderno processo penal deve se preocupar também com a proteção à saúde e a redução dos danos psíquicos às crianças e adolescentes vítimas de violência sexual.

Portanto, é hora do sistema de justiça compreender a importância do seu papel na doutrina da proteção integral. Para isso, é preciso repensar procedimentos, técnicas, revisar condutas. A mudança é morosa, mas o passo mais importante já foi dado: o desejo que todos do sistema de justiça de Araguaína demonstraram em promover mudanças, numa busca coletiva pela efetivação dos direitos das crianças e adolescente vítimas de abuso sexual.

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Informações Sobre o Autor

José Roberto Carneiro Alves

Graduado em Direito, graduado em Administração de Empresas e graduado em Segurança Pública. Especialista em Direitos Humanos e Cidadania e especializando em Direito Penal e Direito Processual Penal


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