Resumo: O artigo em comento objetiva estabelecer uma análise da incidência do verbete sumular nº 237 do Supremo Tribunal Federal, no que concerne ao emprego da usucapião como defesa, utilizando, para tanto, os entendimentos doutrinários acerca do tema, em conjunção com legislação vigente. Um dos aspectos mais proeminente do Direito, enquanto ciência, está intimamente atrelado ao seu progressivo e constante aspecto de mutabilidade, albergando em seu âmago as carências da sociedade, as realidades fática que possuem o condão de motivar a renovação do sedimento normativo. Neste aspecto, cuida salientar que o instituto civil da usucapião rememora à Lei das Doze Tábuas, de 455 antes de Cristo, sendo um instrumento direcionado para a aquisição da propriedade, quer seja de bens móveis, quer seja de bens imóveis. Para tanto, o único requisito observado concernia à posse continuada por um (annus) ou dois anos (biennun). A partir de tais ideários, a pesquisa desenvolvida está assentada no método de revisão bibliográfica, conjugado, no decorrer do artigo, da legislação nacional pertinente, com vistas a esmiuçar os requisitos enumerados.
Palavras-chaves: Usucapião. Aquisição Originária. Código Civil.
Sumário: 1 Considerações Iniciais; 2 Usucapião: Abordagem Histórica; 3 Usucapião: Abordagem Conceitual do Tema; 4 Da Usucapião como Defesa: Comentários ao Verbete Sumular nº 237 do Supremo Tribunal Federal
1 Considerações Iniciais
Em linhas inaugurais, ao se dispensar uma análise ao tema central do presente, necessário se faz examinar a Ciência Jurídica, assim como suas múltiplas e distintas ramificações, a partir de um viés norteado pelas relevantes modificações que passaram a permear o seu arcabouço teórico-doutrinário, bem como seu sedimento normativo. Nesta perspectiva, valorando os aspectos característicos de mutabilidade que passaram a emoldurar o Direito, é plenamente possível grifar que não subsiste a visão na qual a ciência ora aludida era algo pétreo e estanque, indiferente à gama de situações produzidas pela coletividade, enquanto elemento de convívio entre o ser humano. Como resultante do acinzelado, infere que não mais vigota a imutabilidade dos cânones que outrora orientavam o Direito, o aspecto estanque é achatado pelos anseios e carências vivenciados pela sociedade.
Ainda nessa trilha de exposição, “é cogente a necessidade de adotar como prisma de avaliação o brocardo jurídico 'Ubi societas, ibi jus', ou seja, 'Onde está a sociedade, está o Direito', tornando explícita e cristalina a relação de interdependência que esse binômio mantém”[1]. Com efeito, a utilização da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, como axioma maior de sustentação é mecanismo proeminente, quando se tem, como objeto de ambição, a adequação do texto genérico e abstrato das normas, que integrem o arcabouço pátrio, às nuances e complexidades que influenciam a realidade moderna. Ao lado disso, há que se citar o voto magistral proferido pelo Ministro Eros Grau, ao apreciar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº. 46/DF, “o direito é um organismo vivo, peculiar porém porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa, a sua força, o seu fascínio, a sua beleza”[2]. Com grossos traços e cores fortes, prossegue o eminente Ministro Eros Grau abordando que:
“É do presente, na vida real, que se toma as forças que lhe conferem vida. E a realidade social é o presente; o presente é vida — e vida é movimento. Assim, o significado válidos dos textos é variável no tempo e no espaço, histórica e culturalmente. A interpretação do direito não é mera dedução dele, mas sim processo de contínua adaptação de seus textos normativos à realidade e seus conflitos”[3].
Como bem pontuado, o fascínio da Ciência Jurídica jaz, justamente, na constante e imprescindível mutabilidade que apresenta, decorrente do dinamismo que reverbera na sociedade e orienta a aplicação dos Diplomas Legais e os institutos jurídicos neles consagrados. Ao lado do esposado, quadra negritar que a visão pós-positivista que passou a permear o Direito, ofertou, por via de consequência, uma rotunda independência dos estudiosos e profissionais da Ciência Jurídica. Por necessário, há que se citar o entendimento de Verdan, “esta doutrina é o ponto culminante de uma progressiva evolução acerca do valor atribuído aos princípios em face da legislação”[4]. Destarte, a partir de uma análise profunda de sustentáculos, infere-se que o ponto central da corrente pós-positivista cinge-se à valoração da robusta tábua principiológica que Direito e, por conseguinte, o arcabouço normativo passando a figurar, nesta tela, como normas de cunho vinculante, flâmulas hasteadas a serem adotadas na aplicação e interpretação do conteúdo das leis. Gize-se a brilhante manifestação apresentada pelo Ministro Marco Aurélio, que, ao abordar acerca das linhas interpretativas que devem orientar a aplicação da Constituição Cidadã, expôs:
“Nessa linha de entendimento é que se torna necessário salientar que a missão do Supremo, a quem compete, repita-se, a guarda da Constituição, é precipuamente a de zelar pela interpretação que se conceda à Carta a maior eficácia possível, diante da realidade circundante. Dessa forma, urge o resgate da interpretação constitucional, para que se evolua de uma interpretação retrospectiva e alheia às transformações sociais, passando-se a realizar a interpretação que aproveite o passado, não para repeti-lo, mas para captar de sua essência lições para a posteridade. O horizonte histórico deve servir como fase na realização da compreensão do intérprete”[5].
Nesta toada, os princípios jurídicos são erigidos à condição de elementos que trazem em seu âmago a propriedade de oferecer uma abrangência ampla, contemplando, de maneira única, as diversas espécies normativas que integram o ordenamento pátrio. Em razão do esposado, tais mandamentos passam a figurar como supernormas, isto é, “preceitos que exprimem valor e, por tal fato, são como pontos de referências para as demais, que desdobram de seu conteúdo”[6]. Percebe-se, a partir da teoria em testilha, que os dogmas jurídicos são desfraldados como verdadeiros pilares sobre os quais o arcabouço teórico que compõe o Direito se estrutura, segundo a brilhante exposição de Tovar[7]. Por óbvio, essa concepção deve ser estendida a interpretação das normas que dão substrato de edificação à ramificação Civilista da Ciência Jurídica, mormente o princípio da função social da propriedade, no que pertine ao instituto da usucapião e seus múltiplos desdobramentos. Trata-se, portanto, de assentar uma ótica analítica influenciada robustamente pela extensão dos princípios jurídicos, os quais, corriqueiramente, têm o condão de permitir a adequação da norma abstrata a situações concretas, assegurando, desta feita, a contemporaneidade do ordenamento jurídico.
2 Usucapião: Abordagem Histórica
In primo loco, cuida argumentar que o instituto civil da usucapião rememora q Lei das Doze Tábuas, de 455 antes de Cristo, como bem anota Farias & Rosenvald[8], afigurando-se como instrumento empregado para a aquisição da propriedade, quer seja de bens móveis, quer seja de bens imóveis. Para tanto, o único requisito observado implicava na posse continuada por um (annus) ou dois anos (biennun). O primeiro prazo era destinado a móveis e outros direitos (coeterum rerum), ao passo que o segundo prazo era aplicado aos imóveis (fundi)[9]. Nesta trilha, guarda harmonia como o expendido os ensinamentos de Madeira, ao lecionar sobre a Sexta Tábua, dicciona que “além de diversas outras disposições, estabelece tal tábua o prazo de dois anos para usucapir bens imóveis e de um ano para o usucapião de bens móveis (VI.5)” [10].
Com efeito, há que se salientar que, durante o período da vigência da Doze Tábuas Romanas, a aquisição da propriedade estava restrita aos cidadãos romanos, ou seja, “somente o cidadão romano podia adquirir a propriedade; somente o solo romano podia ser seu objeto, uma vez que a dominação nacionalizava a terra conquistada”[11]. Com o passar dos séculos, as fronteiras do Império Romano são expandidas, quando começa a se observar o alargamento da possibilidade de usucapir, vez que o possuidor peregrino, passam a ter acesso ao instituto em comento, o qual passa a figurar como uma espécie de prescrição.
Desta feita, vislumbra-se um instrumento de exceção (excepitio), cujo pilar de sustentação tange à posse por longo tempo da coisa, atentando-se para os prazos de 10 (dez) e 20 (vinte) anos. Neste sentido, “o legítimo dono não mais teria acesso à posse se fosse negligente por longo prazo, mas a exceção de prescrição não implicava perda da propriedade”[12]. Assim, ainda que o peregrino pudesse valer-se da exceção, o que já se revelava um avanço no pensamento da época no que pertine à concepção de cidadão e peregrino/estrangeiro, esta não tinha o condão de retirar o domínio do proprietário negligente. Neste sentido, oportunamente, Ferreira destaca:
“Os dois institutos (usucapio e praescriptio) passaram a coexistir. O primeiro só vigorou para os peregrinos e também quanto aos imóveis provinciais a partir de 212; o segundo (longi temporis) teve vigência desde o ano de 199, sendo que a diferença entre ambos era quanto ao prazo – ano e biênio para a usucapio, dez anos (para os presentes – inter praesentes) e vinte anos (para ausentes – inter absentes) para a praescriptio. O prazo foi aumentado devido à grande extensão do império romano. Essa prescrição de longo tempo foi estendida aos imóveis provinciais e coisas móveis, e constituía um meio de defesa processual – praescriptio, isto é, uma prescrição extinta da ação reivindicatória”[13].
Justiniano, em 528 depois de Cristo, funde em um único instituto a usucapio e a praescriptio, vez que, em decorrência a própria evolução do Direito Romano e dos instrumentos ora aludidos, não mais se observava diferenças entre a propriedade civil (objeto da usucapio) e a pretoriana (passível de praescriptio). Houve, a partir das ponderações estruturadas, a unificação dos institutos em um único, denominado usucapião, possibilitando ao possuidor de longo tempo (longi temporis) a utilização ação de cunho reivindicatório, com o escopo de obter a propriedade e não uma mera a exceção, contrapondo-se ao que ocorria no instituto da praescriptio. Em decorrência da evolução do Direito Romano, constata-se que a usucapião, de maneira simultânea, se converteu em modo de perda e aquisição de propriedade, razão pela qual é chamada de “prescrição aquisitiva”. Logo, em razão da fusão dos institutos, verifica-se que a praescriptio passa a se desdobrar em dois instrumentos distintos: a primeira de caráter geral destinada a extinguir todas as ações e a segunda, um modo de adquirir, representado pela antiga usucapião. Ambas as instituições do mesmo elemento: a ação prolongada do tempo. Trata-se de instituto que passou a gozar de rotunda relevância no Direito.
3 Usucapião: Abordagem Conceitual do Tema
Com o escopo de sedimentar as bases sólidas acerca do instituto em estudo, quadra trazer à baila as noções conceituais, doutrinariamente, estruturadas acerca da usucapião. Pois bem, como se infere dos argumentos algures apresentados, o instituto da usucapião afigura-se como instrumento que tem o condão de dar azo à aquisição da propriedade, em razão da posse continuada, no decorrer de determinado defluxo de tempo, sendo, para tanto, imprescindível a observação dos requisitos acinzelados pelo arcabouço jurídico pátrio. Complementando tal ótica, pode-se destacar, com grossos traços, que a prescrição configura modo originário de aquisição de propriedade e de outros direitos reais pela posse prolongada da coisa, acrescida de demais requisitos legais. Em substrato similar, leciona Rodrigues que a usucapião é “modo originário de aquisição de domínio, através da posse mansa e pacífica, por determinado espaço de tempo, fixado na lei”[14] (usucapio est adjectio dominii per continuationem possessionis temporis lege definit).
Faz-se mister avençar que para a substancialização da usucapião, é imprescindível a conjugação de determinados, que abrangem tanto às pessoas a quem o instituto da usucapião importa, às coisas em que a usucapião pode incidir quanto à forma que a mesma se constituirá. Destarte, denotam-se três categorias distintas em que os mencionados requisitos podem ser albergados, quais sejam: pessoais, reais e formais. No que concernem aos requisitos pessoais, segundo os dizeres de Orlando Gomes[15], os requisitos pessoais são exigências relativas à pessoa do possuidor (usucapiente) que ambiciona adquirir a coisa através da usucapião, bem como do proprietário, que, em decorrência da aquisição da propriedade pelo usucapiente, perde a sua. Ab initio, revela-se importante destacar que o adquirente da propriedade, através da usucapião, seja considerado capaz e detenha qualidade para adquiri-la de tal forma.
Por oportuno, há que se registrar que por se tratar de uma prescrição aquisitiva, logo, aplicam-se ao instituto em comento as mesmas causas impeditivas e suspensivas da prescrição, entalhadas nos artigos 197 e 198, ambos da Lei Nº 10.406, de 10 de Janeiro de 2002[16], que institui o Código Civil. Deste modo, “não correndo a prescrição entre ascendentes e descentes, entre marido e mulher, entre incapazes e seus representantes, nenhum deles pode adquirir bem do outro por usucapião”[17]. Vale registrar que, uma vez dissolvida a sociedade conjugal e terminado o poder familiar, os prazos têm início e passam a ser contados. Em relação àquele que sofre os efeitos decorrentes da prescrição aquisitiva, não se infere nas normas pátrias qualquer exigência relativa à capacidade, bastando, tão-somente, que seja proprietária da coisa hábil (res habilis) de ser usucapida. Há que se registrar, neste ponto, que os incapazes podem sofrer os efeitos decorrentes da usucapião, vez que cabe àqueles que os representam impedir a ocorrência. Farias & Rosenvald não coadunam com tal entendimento, para tanto, expõem que “da mesma forma ninguém poderá usucapir um bem de titularidade do menor de 16 anos de idade ou de pessoa sob regime de curatela”[18].
Em se de requisitos reais, quadra salientar que, neste item, atrelam-se às coisas e direitos suscetíveis de serem usucapidos, pois há direitos e coisas que a prescrição aquisitiva não incide. Assim, há certos bens que são eivados de imprescritibilidade, a exemplo dos bens públicos, ou seja, aqueles pertencentes a pessoas jurídicas de direito público interno. “Quanto aos bens dominiais, não se admite sejam adquiridos por usucapião, embora suscetíveis de aquisição por outros modos”[19]. Quadra destacar que a prescrição aquisitiva incide apenas nos direitos reais que recaem sobre coisas prescritíveis. Consoante aduz Farias & Rosenvald, “somente os direitos reais que recaiam em coisas usucapíveis poderão ser obtidos por este modo de aquisição originário (seja a título de propriedade, servidão, enfiteuse, usufruto, uso e habitação” [20].
Os denominados requisitos formais da usucapião são responsáveis por atribuir a fisionomia característica da prescrição aquisitiva, oscilando de acordo com os lapsos temporais estabelecidos nos dispositivos legais. Todavia, independentemente da espécie de usucapião, é pungente a necessidade de dois requisitos, a saber: a posse (possessionis) e o lapso temporal (tempus). Aos que se caracterizam pela duração mais curta, exige-se, ainda, a boa-fé (bona fides) e o justo título. A posse ensejadora da usucapião deve ser exercida com animus domini, sendo considerada como o mais importante de seus requisitos, vez que atua como base de sustentação do próprio instituto. Nesse sentido, valiosa é a lição de Orlando Gomes, em especial, quando acrescenta, em relação ao tema em construção, com bastante propriedade, que:
“A posse que conduz à Usucapião, deve ser exercida com animus domini, mansa e pacificamente, contínua e publicamente. a) O animus domini precisa ser frisado para, de logo, afastar a possibilidade de Usucapião dos fâmulos da posse. […] Necessário, por conseguinte, que o possuidor exerça a posse com animus domini. Se há obstáculo objetivo a que possua com esse animus, não pode adquirir a propriedade por usucapião. […] Por fim, é preciso que a intenção de possuir como dono exista desde o momento em que o prescribente se apossa do bem”[21].
Neste giro, cuida explicitar que o animus domini configura a posse qualitativa que possui o condão de evidenciar, ao mundo exterior, que o usucapiente atua como possuidor, externando comportamento ou postura de quem considera, de fato, proprietário da coisa. Mais que isso, na verdade, só existe o ânimo do dano quando a vontade aparente do possuidor se identifica com a do proprietário, isto é, quando explora a coisa com exclusividade e sem subordinação à ordem de quem quer que seja. Por derradeiro, quanto ao animus domini, há que se citar as considerações de Lenine Niquete, que aduz:
“[…] por definição, é o ‘animus domini’ a vontade (ainda que de má-fé) de possuir alguém como se fosse dono, donde o dizer-se que existe mesmo no ladrão, que sabe que a coisa lhe pertence. Mas […] entende-se que para caracterizá-lo não basta aquela vontade: é preciso que ela resulte da ‘causa possessionis’, isto é, do título em virtude do qual se exerce a posse: de modo que se esta foi iniciada por uma ocupação, pacífica ou violente, pouca importa, haverá o ânimo; se, ao contrário, originou-se de um contrato, como o de locação, por exemplo, que implica no reconhecimento do direito dominial de outrem, não se pode reconhecê-lo”[22].
Ao se examinar o instituto da usucapião, denota-se que, em relação aos bens móveis, o lapso temporal exigido é mais curto, porquanto o encurtamento tem como marco justificatório a dificuldade de individualizar os bens móveis usucapiendos, como também a facilidade de sua circulação. Quadra explicitar ainda que, na realidade, em termos econômicos, vigora o ideário de que bens móveis têm menor importância econômica. D'outro passo, o prazo exigido para usucapir bens imóveis é maior, em razão de se entender que “maior deve ser o lapso de tempo no qual o proprietário fique com a possibilidade de opor-se à posse do prescribente, reivindicando o bem”[23]. Vigora a premissa que o proprietário do bem imóvel detém maior interesse em conservá-lo, de tal maneira que sua inércia deve ficar sujeita à prova durante um ínterim maior do que em relação aos bens móveis. Ademais, há que salientar que a diversidade de prazos escora-se, também, em decorrência dos requisitos exigidos para a consumação da usucapião. Por exemplo, o lapso temporal é abreviado quando restam comprovados a boa-fé do usucapiente e o justo título da coisa usucapienda.
Ao lado disso, por oportuno, destaque-se, com fortes cores, que é plenamente viável juntar posse para promover a prescrição aquisitiva. É permitido ao possuidor acrescentar à sua posse a do seu antecessor, desde que ambas sejam consideradas contínuas e pacíficas, pois em ocorrendo o contrário, tal possibilidade não subsistirá. Isto é, a soma de posses é permitida no ordenamento jurídico pátrio, mas para sua utilização é necessário o preenchimento de alguns requisitos. Nesta esteira, há que se evidenciar que aquele que obtém posse precária, clandestina ou violenta, não poderá somar o período anterior para completar o decurso temporal exigido pelo instituto da usucapião/prescrição aquisitiva.
4 Da Usucapião como Defesa: Comentários ao Verbete Sumular nº 237 do Supremo Tribunal Federal
Em um primeiro momento, cuida explicitar que o Supremo Tribunal Federal, ao editar o verbete sumular nº 237, permitiu a arguição da usucapião em defesa nas ações petitórias e possessórias ajuizadas contra o possuidor que já completou o lapso temporal vindicado na legislação de regência. Com destaque, a alegação em comento materializa uma exceção de domínio, um meio de paralisar a pretensão do autor. Há que se rememorar que no campo de defesas indiretas de mérito, também nomeadas exceções substanciais, encontra-se aquela que faculta ao réu alegar a usucapião. Desta feita, mesmo nas situações em que o possuidor com prazo aquisitivo já consumado tenha descurado em ajuizar ação de usucapião pelo rito especial dos artigos 941 e seguintes da Lei nº 5.869, de 11 de Janeiro de 1973[24], que institui o Código de Processo Civil, não obstará de demonstrar os seus requisitos cumulativos em defesa, impedindo, assim, o êxito da pretensão contra si dirigida, desde que se desincumba do ônus da prova, atendendo, portanto, o regramento do artigo 333 do diploma alhures. Isto é, o proprietário não pode reivindicar um bem quando o seu domínio não lhe pertença.
“Ementa: Agravo Regimental em Recurso Especial. Ação reivindicatória. Alegação de usucapião como matéria de defesa. Possibilidade. Ressalva do Tribunal de origem de que o acolhimento da tese da prescrição aquisitiva não importa na aquisição do domínio. Ação própria. Necessidade. Contradição. Inexistência. […] Na espécie, o Tribunal de origem ressaltou que a alegação de usucapião pode ser utilizada como matéria de defesa na ação reivindicatória; todavia, o pleno reconhecimento da satisfação de todos os requisitos exigidos para o usucapião é matéria reservada para a ação própria. Assim, acolhida a alegação de usucapião como matéria de defesa em ação reivindicatória, os réus não dispõem de título para a transcrição da propriedade no Cartório de Registro de Imóveis. 3. Dessa sorte, a conclusão adotada pelo Tribunal de origem está em consonância com a jurisprudência desta Corte Superior, de que "o acolhimento da tese de defesa, estribada na prescrição aquisitiva, com a conseqüente improcedência da reivindicatória, de forma alguma, implica a imediata transcrição do imóvel em nome da prescribente, ora recorrente, que, para tanto, deverá, por meio de ação própria, obter o reconhecimento judicial que declare a aquisição da propriedade" (REsp 652.449/SP, Rel. Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em 15/12/2009, DJe 23/03/2010). […]” (Superior Tribunal de Justiça – Quarta Turma/ AgRg no REsp nº 1.270.530/MG/ Relator: Ministro Luis Felipe Salomão/ Julgado em 21.03.2013/ Publicado no DJe em 05.04.2013).
“Ementa: Civil. Usucapião como defesa. Reexame de provas. Pode o réu, em ação reivindicatória, alegar em sua defesa a ocorrência de usucapião, independentemente de previa declaração judicial em ação própria, mas não cabe em recurso especial, o reexame das provas que serviram as instâncias ordinárias para dizer injusta a posse, e deferir a reivindicação”. (Superior Tribunal de Justiça – Terceira Turma/ REsp nº 19.773/CE/ Relator: Ministro Dias Trindade/ Julgado em 07.04.1992/ Publicado no DJ em 18.05.1992, p. 6.983).
Entretanto, o réu deve impreterivelmente observar o corolário da eventualidade, alegando a usucapião na contestação, sob pena de preclusão, em face da inexistência de outro momento processual oportuno para apresentação da exceção substancial. Neste aspecto, quadra reconhecer a inaplicabilidade da redação do artigo 193 da Lei Nº 10.406, de 10 de Janeiro de 2002[25], que institui o Código Civil, porquanto é ofuscante a distinção entre a prescrição extintiva, também denominada de liberatória, que pode ser alegada em qualquer grau de jurisdição, da prescrição aquisitiva, que será imediatamente alegada, importando o silêncio do réu em renúncia tácita. Caso o réu tenha logrado êxito em se desincumbir de provar a aquisição do domínio pela via da exceção substancial da usucapião, o magistrado julgará improcedente a pretensão petitória contra ele endereçada. Destaque-se que só pode reivindicar o proprietário que busca reaver os poderes dominiais injustamente tomados por outrem, porém não aquele que já os perdeu, em virtude da obtenção da afirmação da usucapião.
Ao lado disso, o artigo 7º da Lei nº 6.969, de 10 de Dezembro de 1981[26], que dispõe sobre a aquisição, por usucapião especial, de imóveis rurais, altera a redação do §2º do art. 589 do Código Civil e dá outras providências, permite que a sentença decorrente da ação em que a usucapião rural foi alegada, como matéria de defesa, com reconhecimento na sentença da exceção de usucapião e consequente juízo de improcedência, possa ser considerada como título a ser levado imediatamente ao registro imobiliário. Denota-se, portanto, que a alegação de usucapião pelo réu substancializaria um pedido contraposto em ação de natureza dúplice. Com efeito, o permissivo em comento, dotado de caráter excepcional, é passível de críticas, porquanto os litisconsortes necessários não são convocados para a demanda, logo, a propriedade é constituída em favor do usucapiente sem que os interessados possam se manifestar, o que conduz a conclusão de que perante eles a sentença, apesar de transitada em julgado, é inexistente.
Destarte, se a alegação da usucapião rural em defesa apresenta esta peculiaridade de criar uma sentença declaratória de domínio e constitutiva de propriedade, independentemente de qualquer ação autônoma posterior, sendo carecido ao magistrado atenção ao dever de celeridade, sobretudo as cautelas do §3º do artigo 5º da legislação supramencionada[27], com a integração à lide dos demais litisconsortes necessários. Ao lado disso, é imprescindível a intervenção do Ministério Público na condição de custus legis, porquanto a decisão repercutirá no registro público. Ora, os litisconsortes necessários não são convocados para a demanda, a propriedade será constituída em favor do usucapiente sem que haja a possibilidade de interessados apresentarem suas manifestações, o que edifica a conclusão que perante eles a sentença transitada em julgado é inexistente. A solução mais correta seria a recusa ao registro da sentença em que não restar demonstrada a participação de todos os sujeitos de direito interessados.
Há que se sublinhar que a sentença só terá eficácia de coisa julgada material no que concerne aos que foram partes no processo, não sendo oponível aos confinantes nem a terceiros que não tenham sido cientificados, sem esquecer que o antigo titular somente será atingido pelo registro da sentença se ele tiver sido o autor da ação em que se acolheu a usucapião. Ao tomar conhecimento do ato decisório, o proprietário poderá ajuizar ação reivindicatória com base em seu título da propriedade, sendo dispensado o ajuizamento da ação rescisória, porquanto o comando estatal não opera coisa julgada contra o litisconsorte passivo que não foi citado para integrar a relação processual, eis que a sentença será tida como inexistente, não tendo, portanto, nada há ser desconstituído. O vício que inquina o ato decisório é tão grave que a ação rescisória se torna dispensável, sobretudo em decorrência da afronta ao princípio do devido processo legal (dwe process of law) e da ampla defesa.
Cuida explicitar que os comentários apresentados até o momento guarda plena pertinência à usucapião urbana, eis que o artigo 13 da Lei nº 10.257, de 10 de Julho de 2001[28], que regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências, que também concede foros de duplicidade à alegação de usucapião em defesa, nas ações de usucapião individual e coletivo, alocados nos artigos 9º e 10º do diploma legal supramencionado. Com efeito, há que se reconhecer, a partir das ponderações explicitadas, a aplicação da efetividade na concretização da usucapião como mecanismo de atendimento ao princípio constitucional da função social da posse e do direito fundamental à moradia. Para tanto, o emprego da alegação da usucapião, em sede de defesa, encontrando consonância com o verbete sumular 237 do Supremo Tribunal Federal busca tal atendimento.
Informações Sobre o Autor
Tauã Lima Verdan Rangel
Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES