Resumo: O presente artigo busca analisar a imunidade parlamentar prisional como uma forma de estratégia dogmática e retórica para imunização da criminalidade de poder, em especial quanto aos delitos de corrupção praticados por parlamentares. Assim, é analisado o fenômeno da corrupção, apresentando seu conceito, bem como destacando seus efeitos deletérios para a coletividade, em especial para os direitos humanos. Em seguida foi destacada a imunidade parlamentar prisional como um dos obstáculos para o enfrentamento dos atos de corrupção praticados pelos parlamentares. Assim, foi analisado o instituto da imunidade parlamentar, conforme sua previsão na CF, com ênfase na imunidade processual relativa às prisões provisórias. Buscou-se destacar como o pensamento tradicional da doutrina e jurisprudência fundamenta a necessidade das imunidades parlamentares e sua legitimidade como garantia do parlamento perante outros poderes. Também se buscou demonstrar que as imunidades parlamentares prisionais atualmente acabam se traduzindo em verdadeiros privilégios, gerando impunidade para os parlamentares, especialmente diante das recentes alterações ocorridas no CPP em relação às prisões provisórias. Conclui-se que referido instituto, no que tange à sua vertente processual, não se coaduna com o modelo de Estado Democrático de Direito, pois além de gerar possível impunidade, viola princípios constitucionais, como o princípio da isonomia.
Palavras-chave: Corrupção. Imunidades parlamentar prisional. Prisões provisórias. Impunidade. Estado Democrático de Direito.
Sumário: Introdução. 1. Corrupção pública e sua influência negativa para a concretização dos direitos humanos. 2. Estratégias retóricas para imunizar a criminalidade de poder: prerrogativas e imunidades como fatores de impunidade. 3. A imunidade parlamentar prisional e suas razões retóricas e dogmáticas: um convite à impunidade da criminalidade de poder. 4. A insustentabilidade da imunidade parlamentar no Estado Democrático de Direito. Considerações Finais.
Introdução
É inquestionável que a Administração Pública exerce um papel fundamental para preservação do princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Realmente, da Administração Pública depende a concretização de direitos sociais fundamentais, como saúde, educação, alimentação, trabalho, habitação, lazer, segurança publica, enfim, direitos essenciais para a própria sobrevivência humana, com o mínimo de dignidade.
Nesse sentido, a concretização de tais direitos é incompatível com uma administração desonesta e negligente. Fundamental, portanto, que todo agente público – em especial os gestores públicos – atue com observância irrestrita aos princípios que regem a boa Administração Pública, não sendo por outro sentido que foram eles cristalizados no art. 37, caput, da Constituição Federal de 1988, regra que serve de norte para o administrador público – em sentido amplo -, da qual não pode se afastar, sob pena de sacrificar vários direitos fundamentais.
Portanto, um dos mais graves problemas enfrentados pela coletividade é justamente o de garantir uma administração proba, o que atualmente parece ser uma utopia, vez que diuturnamente a população brasileira testemunha, estarrecida, inúmeros escândalos de corrupção envolvendo agentes públicos e políticos de diversos escalões, que agem de forma a capturar o Estado, fazendo com que ele funcione a seu favor, numa total inversão de valores.
Tal postura é nefasta para os postulados do Estado Democrático de Direito, pois contribui negativamente com o crescimento do abismo social, exterminando direitos essenciais da população, deixando o Brasil numa triste e paradoxal situação no cenário mundial, pois, apesar dos avanços em relação ao índice de desenvolvimento humano – IDH, figura ainda como um dos países com os mais altos índices de desigualdade social.
Realmente, a despeito de o Brasil estar entre os dez países do mundo com o PIB mais alto, é o oitavo país com o maior índice de desigualdade social e econômica do mundo, possuindo um desempenho vergonhoso em relação ao IDH, mantendo no ranking mundial elaborado pela ONU a posição de nº 85 (Relatório de Desenvolvimento Humano de 2013), apesar de ser considerado a 7ª maior economia do mundo segundo o Banco Mundial. Por isso que alguns, como o economista Edmar Bacha, se referiam ao Brasil como “Belíndia” (década de 70), pois os ricos são como os ricos da Bélgica; e os pobres e miseráveis são como os pobres da Índia. Atualmente alguns se referem ao Brasil como “Ingana”, ou seja, impostos da Inglaterra e serviços públicos de Gana.
O quadro realmente é desanimador, estando a população desencantada, em especial com a classe política dos parlamentares, que não maioria das vezes não é punida de forma adequada, passando uma sensação na população de impunidade, a qual reputamos como absolutamente correta, bastando para tanto observar o percentual de condenados cumprindo penas por atos de corrupção, sendo equivocado pensar que as coisas mudaram com o conhecido caso “mensalão” (AP 470) julgado pelo STF.
Mas a impunidade endêmica em relação à corrupção da classe política pode ser explicada por diversos motivos, inclusive dogmáticos. Com efeito, estratégias retóricas e dogmáticas de imunização se transformam em relatos vencedores, com efeitos devastadores para o Estado Democrático de Direito.
Nessa linha, o presente estudo, em virtude de sua limitação, pretende destacar uma dessas estratégias, que é a conhecida imunidade parlamentar relacionada à prisão processual (imunidade prisional), que, ao lado de outras estratégias existentes no sistema (v.g. o foro por prerrogativa de função), funciona como verdadeira barreira imunizatória daquilo que denominamos criminalidade de poder.
Defendemos que um dos caminhos para a efetividade da atuação repressiva passa por uma dogmática voltada para o interesse público, que combata as estratégias retóricas que buscam imunizar os atos de corrupção dos poderosos. Denunciá-las é preciso. Porém, é fundamental também desconstruí-las, partindo-se da premissa de que o jurista deve buscar soluções para os problemas.
Com efeito, conforme destaca João Maurício Adeodato[1], “O jurista deve estar apto a observar o direito sob os mais diversos ângulos, seja sem considerar o modo como o Estado deseja solucionar os conflitos, seja em decorrência dessa solução. Não se podem examinar problemas jurídicos levando unicamente em conta a maneira como o Estado os manipula ou, para usar uma expressão de Luhmann, o “procedimento neutralizador”: mormente em países periféricos, o jurista deve ser capaz de perceber as soluções que eventualmente se efetivam à revelia dos órgãos estatais, assim como verificar e criticar a inoperância destes na solução de determinados problemas, observar o papel da violência na vida jurídica e até, se for o caso, revelar sua perplexidade, abandonando axiomas de plenitude apriorística”.
1. Corrupção pública e sua influência negativa para a concretização dos direitos humanos
Sob o prisma léxico, múltiplos são os significados do termo corrupção, expressão que se origina do latim corruptione, que dá a idéia de corromper, que por sua vez significa decomposição, putrefação, depravação, desmoralização, devassidão, suborno ou peita, chegando-se até a afirmar que suas raízes se insinuam no cerne da alma humana, eis que os atos que a caracterizam se encontram ligados a uma fraqueza moral.[2] Assim, em resumo, a corrupção tanto pode indicar a idéia de destruição como a de mera degradação, ocasião em que assumirá uma perspectiva natural, como acontecimento efetivamente verificado na realidade fenomênica, ou meramente valorativa.
Porém, interessa para os objetivos do presente estudo a secular [3] corrupção pública, que é mutante[4] e se traduz de diversas formas[5], impossíveis de serem enumeradas. Porém, valendo-se de um conceito preliminar, a corrupção pública pode ser explicada nos atos desviantes dos agentes públicos (em sentido amplo) frente à Administração Pública, materializados na conduta abusiva no exercício de mandato, cargo, emprego ou função pública, com o objetivo de obter ganhos privados ou vantagens variadas e, consequentemente, lesando o patrimônio público material e moral.
Não se desconhece que a corrupção também incide – de forma igualmente grave – na esfera particular, sendo emblemática a questão da sonegação fiscal no Brasil. Com efeito, ao lado da corrupção pública temos a corrupção privada, cada vez mais crescente. Obviamente para que exista um corrupto na esfera pública há que existir um corruptor, daí porque a corrupção privada merece ser adequadamente combatida, com instrumentos legislativos eficientes, como a recente Lei Anticorrupção (Lei nº. 12.846/2103), que “dispõe sobre a responsabilidade administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira”.
Porém, a corrupção privada, pela sua complexidade e peculiaridades, merece estudo específico, o que foge aos objetivos desses comentários, que se aterá, como destacado, à corrupção pública. Aliás, é oportuno observar que a corrupção pública é terreno fértil para os maus empresários, afastando os bons negócios.
Com efeito, conforme acertadamente observa Cláudia Cruz Santos[6]: “Há, de resto, uma tendência para a actividade nos económica legítima preferir localizar-se em espaços menos corruptos e com uma imagem de estabilidade e transparência, enquanto os espaços onde existe maior corrupção e menos transparência ao nível das várias instâncias estaduais são mais atractivos para aqueles que desenvolvem negócios ilícitos – aos custos inerentes à corrupção somar-se-ão, por isso, todos os custos sociais associados à expansão das várias actividades ilícitas”.
Portanto, apesar da gravidade da corrupção privada, na esfera pública a questão da corrupção se agrava ainda mais, notadamente quando a Administração Pública deve respeito irrestrito aos princípios da legalidade, moralidade, publicidade, impessoalidade e eficiência, conforme dispõe o art. 37 da Constituição Federal, dos quais o agente público não pode se afastar, sob pena de comprometer o adequado funcionamento da administração e, conseqüentemente, a deficiência das prestações sociais de responsabilidade do Estado.[7]
Infelizmente, nos dias atuais, presenciamos diversos casos de corrupção pública campeando em todo Brasil, o que tem deixado a população atônita, mormente diante da audácia e o total descaso com a coisa pública e com os princípios consagrados na Constituição Federal, em especial os relacionados aos direitos humanos, uma vez que a população acaba sendo privada de suas necessidades básicas.
Não raramente são noticiados fatos nos quais recursos essenciais a direitos prioritários, como a saúde, são dolosamente desviados para benefício de particulares e servidores públicos, estes últimos valendo-se de suas funções para o cometimento de tão hedionda conduta. Em total inversão de valores os agentes políticos e “servidores” público se servem ao invés de servir, enquanto que grande parcela da população brasileira, como é notório, padece nas tristes filas dos hospitais públicos.
Não se questiona que a corrupção acarreta a diminuição na qualidade de vida da população, sendo considerada, de forma metafórica, uma patologia social[8], uma “doença mundial”[9], que compromete a manutenção do Estado Democrático de Direito, configurando, portanto, um ilícito que viola os direitos fundamentais da pessoa humana, na medida em que acaba representando sério risco a tudo que dá respeitabilidade ao homem, como direito à vida, dignidade, ao trabalho, à moradia, à educação, à justiça social, à alimentação, à segurança pública etc., enfim, das prestações sociais obrigatórias por parte do Estado, como representante da sociedade.
Com efeito, seus custos sociais são alarmantes. Em interessante estudo da FIESP, publicado em 2010, intitulado “Relatório Corrupção: custos econômicos e propostas de combate”[10], é observado que: “Um custo médio anual estimado da corrupção de 1,38% do PIB equivale a R$ 41,5 bilhões (em valores de 2008) e representa 60,2% dos investimentos (FBCF) públicos realizados em 2008 (excluindo os investimentos em estatais federais) e 7,4% dos investimentos (FBCF) totais”.
Observando uma das tabelas do referido relatório, “Tem-se que 27% do valor que o setor público gasta com educação representa o montante total que se perde com a corrupção no Brasil. O custo da corrupção constitui uma parcela ainda maior do orçamento público da saúde: cerca de 40%. Em relação à segurança pública (primeiro item de preocupação dos brasileiros, segundo pesquisa do IBOPE em 2007), o custo médio anual da corrupção de R$ 41,5 bilhões ultrapassa o gasto de R$ 39,52 bilhões dos estados e União em segurança pública em 2008. É possível afirmar ainda que o custo médio da corrupção representa 2,3% do consumo das famílias”.
Não bastasse os efeitos deletérios para os direitos sociais, a corrupção pública, em especial a praticada pelos governantes e parlamentares, acaba provocando um perverso efeito comportamental das pessoas, causando, conforme Maquiavel[11], a corrupção do povo, que encontra sua origem na corrupção de seus governantes, pois o fato de eles desrespeitarem com frequência as leis termina por induzir o mesmo comportamento no povo, fazendo-o perder a virtude cívica. Exatamente em vista de seu perverso efeito multiplicador (de cima para baixo) que Alejandro Nieto[12] assevera que a corrupção “ama as alturas”.
Os atos de corrupção acabam representando séria violação ao princípio da fraternidade (ou da solidariedade) que configura, juntamente com os princípios da liberdade e da igualdade, princípios axiológicos supremos dos sistemas de direitos humanos. Com efeito, como ensina Fábio Konder Comparato, é com base no princípio da solidariedade que os denominados direitos sociais passaram a ser reconhecidos como direitos humanos, na medida em que ostentam o importante papel de servir como garantia de amparo e proteção social aos hipossuficientes, para que assim possam viver dignamente.[13]
Não é por outro sentido que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, dispõe em seu art. 15 que “a sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela administração”.
Assim, os atos de corrupção praticados por agentes públicos criam verdadeiro paradoxo, uma vez que acabam por transformar o Estado em inimigo justamente daquele que representa e o qual deve proteger: o povo, provocando a segregação das pessoas, que são privadas de seus mínimos direitos.
Porém, a punição no âmbito penal, como já destacado, não parece atingir ao andar de cima, em especial as práticas corruptas praticadas pelos governantes e parlamentares, havendo uma terrível seletividade no sistema penal, que atinge apenas a classe baixa[14], o que é inequívoco diante dos dados estatísticas relacionados à condenação dos referidos agentes, responsáveis pela denominada “criminalidade dourada”[15]. Aliás, uma simples visita ao sistema prisional brasileiro é suficiente para confirmar tal afirmação.
A propalada igualdade não existe em matéria penal, sendo corretas as palavras de Galeano[16], que escreveu que “somos todos iguais perante a lei. Perante que lei? Perante a lei divina? Perante a lei terrena, a igualdade de desiguala o tempo todo e em todas as partes, porque o poder tem o costume de sentar-se num dos pratos da balança da justiça”.
Referida desigualdade, como já destacado, decorre de diversos fatores, entre os quais a existência de regras imunizadoras. Nas palavras de Alessandro Baratta[17], “Criam-se, assim, zonas de imunização para comportamentos cuja danosidade se volta particularmente contra as classes subalternas”. Na verdade, essas regras imunizadoras funcionam como verdadeiras estratégias retóricas para o relato vencedor. Apesar de serem variadas e presentes no sistema brasileiro, uma delas é emblemática: a imunidade parlamentar, cuja analise será objeto do próximo ponto.
2. Estratégias retóricas para imunizar a criminalidade de poder: prerrogativas e imunidades como fatores de impunidade
“Não são só os ladrões, diz o Santo, os que cortam bolsas, ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título, são aqueles a quem os reis encomendam os exercícios e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos: os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor, nem perigo: os outros, se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam”.[18]
Quando se utiliza aqui a expressão criminalidade de poder (ou também os delitos qualificados criminologicamente como crimes of the powerful[19]), estamos nos valendo dos ensinamentos de Luigi Ferrajoli[20], que observa: “La criminalidad que hoy más amenaza a los derechos, la democracia, la paz y el futuro mismo de nuestro planeta es actualmente la criminalidad del poder, un fenômeno ya no marginal ni excepcional como la criminalidad tradicional, sino inserto em El funcionamiento normal de la sociedad. Distinguiré, esquemáticamente, dos formas de criminalidad del poder, unidas por su caráter organizado: a) la de los de tipo econômico y mafioso; b) la de los crímenes de los poderes, bien de los grandes poderes económicos, o de los poderes públicos”.
Em face das limitações que nos é imposta pelas restrições temporais próprias do presente estudo, interessa-nos apenas o último tipo, que é criminalidade perpetrada especialmente pelos parlamentares, que se valem de seus mandatos para cometer ilícitos lesivos ao erário, quebrando o compromisso que deveriam ter com o direito, olvidando que o cumprimento dos padrões éticos pelos políticos é fundamental como forma de gerar confiança na Constituição e no próprio Estado Democrático de Direito[21].
Não se pretende com tal abordagem demonizar a figura dos parlamentares, pois, como Eugênio Raúl Zaffaroni[22], não “pensamos que todos os políticos são pessoas malignas, que estimulam o caminho dos massacres. Esse juízo somente conduz à antipolítica, que nada mais é do que a antessala das ditaduras”.
A questão é extremamente grave e, infelizmente, cada vez mais crescente no Brasil. Com efeito, em relação aos parlamentares federais, para exemplificar, é oportuno aqui citar interessante divulgação da 7ª edição da Revista Congresso em Foco[23] que, após pesquisa realizada entre 13 de junho a 14 de agosto de 2013, noticiou que de cada dez parlamentares, quatro estão pendurados no Supremo Tribunal Federal (STF) por suspeita de participação em crimes variados (corrupção, tráfico, homicídio etc.), ou seja, 224 deputados e senadores que respondem a 542 inquéritos e ações penais.
Conforme consta da matéria, existem estados, cuja bancada tem mais da metade de seus integrantes sob suspeita, como ocorre com os estados de Acre, Alagoas, Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia e Roraima. Inclusive, em relação ao estado do Mato Grosso foi apurado que 91% (noventa e um por cento) dos parlamentares aguardam julgamento de ações ou inquéritos no STF, o que vem sobrecarregando o STF.
No que se refere aos parlamentares estaduais, não dispomos de dados seguros sobre o volume de processos criminais os envolvendo em todo território brasileiro. Porém, pelas notícias de escândalos de corrupção que diariamente são divulgadas, possivelmente o percentual não irá destoar muito dos parlamentares, ou até mesmo poderia ser até maior caso todos os escândalos fossem realmente objeto de processos criminais, o que, infelizmente não ocorre, em vista de sérios obstáculos que acabam sendo combustíveis para a impunidade.
Realmente, conforme já destacado diversos fatores contribuem para a impunidade dos agentes políticos em relação aos atos de corrupção. Embora seja uma tarefa que não pode ser enfrentada neste lugar, podemos citar, a título de exemplo, os seguintes fatores[24]: 1) aceitação como normal de algumas condutas ilícitas dos agentes públicos (ex: uso de bens públicos – automóveis); 2) insuficiência de legislação material e processual; 3) falta de uma decidida vontade política dos poderes públicos para prevenir, controlar e castigar tais práticas delitivas; 4) a existência de imunidades parlamentares de cunho exagerado; 5) o foro por prerrogativa de função; 6) o caráter de clandestinidade dos atos de corrupção[25]; 7) a não capacitação dos agentes responsáveis pelo controle e combate da corrupção; 8) o fraco combate à lavagem de capitais obtidos por meios ilícitos[26] etc.
Conforme já observado, nos limitaremos a apenas um desses obstáculos: a imunidade parlamentar processual em relação à prisão.
3. A imunidade parlamentar prisional e suas razões retóricas e dogmáticas: um convite à impunidade da criminalidade de poder
As imunidades parlamentares são parte integrante do que os constitucionalistas denominam estatuto dos congressistas[27]. Atualmente previstas no art. 53 da Constituição Federal, configuram um conjunto de garantias conferidas aos membros do Congresso Nacional, bem como aos membros das diferentes casas legislativas das entidades federativas, tendo por fundamento e objetivo assegurar o livre exercício da atividade parlamentar.
Da forma como hoje conhecemos, se pode dizer que a imunidade parlamentar tem suas origens no processo revolucionário francês, conforme observa Eloy Garcia[28], sendo considerada pela doutrina constitucionalista tradicional uma prerrogativa estabelecida “menos em favor do congressista que da instituição parlamentar como garantia de sua independência perante outros poderes constitucionais”[29].
Dessa forma, a imunidade parlamentar é uma garantia político-institucional que objetiva resguardar a independência, o livre funcionamento do poder legislativo da possível ingerência de outros poderes, bem como de eventual ataque por parte de particulares por meio de ajuizamento de ações civis e penais utilizadas de forma desvirtuada, com o objetivo de inibir o regular desempenho das funções dos parlamentares. Logo, nasceu o instituto com a finalidade de impedir que o arbítrio venha a obstar a atividade parlamentar.
Nessa senda, alguns autores, como Carlos Maximiliano[30], consideram que o que está em jogo em relação às imunidades parlamentares é o interesse público e não o particular, ou seja, do parlamentar individualmente considerado. Logo, como destaca Carl Schmitt[31], não se trata de um direito individual do deputado, mas sim de um direito do parlamento como totalidade, daí porque é irrenunciável.
No Brasil, a imunidade parlamentar foi consagrada praticamente em todas as constituições, sendo a sua previsão quase a mesma desde 1824, ressalvando-se apenas duas alterações que sofreu em 1937 e pela EC 1, de 1969. Transportando-a para os dias atuais, atualmente encontra previsão no art. 53 da Constituição Federal.
Conforme referida previsão, podemos dividir as imunidades em duas dimensões: a) material ou inviolabilidade (absoluta), que consagra a inviolabilidade dos membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas Estaduais, da Câmara Legislativa Federal e das Câmaras Legislativas Municipais, por suas opiniões, palavras e votos (art. 53, caput, c/c os arts. 27, § 1º, 32, § 3º e 29, inc. VIII, todos da CF), tendo, portanto, natureza substantiva, excluindo a responsabilidade penal; b) formal, relativa ou processual, a gerar o estado de relativa incoercibilidade pessoal dos membros do Poder Legislativo Federal, Estadual e Distrital (freedom from arrest)[32], pelo que só poderão eles sofrer prisão provisória (processual ou cautelar) numa única hipótese: situação de flagrância em crime inafiançável (art. 53, § 2º, c/c os arts. 27, § 1º, e 32, § 3º, todos da Constituição Federal), permanecendo tal prerrogativa enquanto perdurar o mandato.
Importante destacar que também se insere no contesto da imunidade formal, relativa a direitos processuais, o foro por prerrogativa de função (CF, art. 53, § 1º), a possibilidade de sustar o andamento de eventual ação penal por meio de voto da maioria dos membros da respectiva casa (CF, art.53, § § 3º e 4º). Porém, interessa ao presente estudo, como já restou destacado, a imunidade processual relativa à prisão provisória, que pode ser nominada de imunidade prisional.
Antes de prosseguir com a imunidade prisional, destacamos a necessidade da manutenção da imunidade material, pois o seu esvaziamento ou eliminação poderia realmente colocar em cheque o livre desempenho da atividade parlamentar, em especial quando manifesta suas opiniões, que podem eventualmente ser críticas em relação aos demais poderes, inclusive em relação ao Poder Judiciário, sendo equivocada a alegação da evolução de tal poder, em especial no que se refere à sua independência.
Nessa linha, são acertadas as observações de Alberto Zaccharias Toron[33]: “(…) é muito simplista a ideia de que, porque a magistratura conquistou um alto grau de independência frente ao Executivo, a função jurisdicional, magicamente, como assinala Zagrebelsky, “tenha vestido os panos da imparcialidade, da neutralidade e da justiça”. Uma vez “libertados”, os juízes passaram a “ler as leis” e a interpretá-las segundo suas idiossincrasias pessoais e políticas e, não raro, reclamam-se exigências de garantias contra os abusos da própria magistratura. Ora, se essa realidade representa um perigo para o cidadão comum, o que dizer de um político no exercício do mandato cujas posições, opiniões, discursos e declarações à imprensa podem despertar a maior indignação e incompreensão do público em geral e, muito comumente, da parte dos próprios juízes, sobretudo quando o alvo da crítica são eles. Daí Konrad Hesse advertir que a inviolabilidade assegura o deputado de investidas que poderiam prejudicar suas tarefas constitucionais e, em particular, “contra atos do poder judiciário”.
A mesma conclusão, porém, não pode ser admitida em relação à imunidade parlamentar prisional, pois, da forma como se encontra disciplinada na Constituição Federal, não passa de uma verdadeira cláusula de imunização da criminalidade, uma vez que é assegurada para qualquer tipo de crime, mesmo que não guardem qualquer relação com a atividade dos parlamentares.
Para melhor visualização do problema é oportuno trazer à colação a previsão contida no § 2º do art. 53 da Constituição Federal, que assim dispõe: “Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão”.
A interpretação que prevalece em relação a tal regra é que a imunidade se refere tão somente às denominadas prisões provisórias, também conhecidas na doutrina e jurisprudência como prisões cautelares ou processuais, que no atual sistema processual penal pátrio são três: prisão em flagrante, prisão temporária e prisão preventiva. Portanto, não há qualquer restrição em relação à prisão decorrente de sentença condenatória transitada em julgado[34].
Voltando para as prisões provisórias, importante salientar que a natureza de tais medidas é cautelar. Logo, possuem o objetivo de assegurar o resultado do processo principal e só podem ser decretadas quando presentes dois requisitos fundamentais[35]: 1º) o fumus comissi delicti, ou seja, a existência de elementos a respeito da autoria e materialidade do crime praticado; 2º) o periculum libertatis, isto é, o perigo que representa a liberdade do réu para a saúde das investigações ou do processo principal. Assim, por exemplo, se um determinado investigado ou réu em processo criminal estiver ameaçando testemunhas, não havendo outra medida menos drástica, caso o crime seja doloso e tenha uma pena em abstrato superior a quatro anos, o juiz poderá decretar a prisão preventiva para assegurar a instrução criminal, como se perceber pela combinação dos arts. 312, caput e 313, caput e inciso I, ambos do Código de Processo Penal.
Das três espécies, por razões obvias, apenas o flagrante dispensa uma decisão judicial. Contudo, como se verá mais adiante, seu controle jurisdicional é imediato. As outras duas espécies somente podem ocorrer mediante prévia decisão judicial.
A primeira espécie que reclama decretação, a prisão preventiva, é uma das mais utilizadas na prática. Nesse ponto, é importante destacar os fundamentos que a legitimam. Segundo o art. 312 do Código de Processo Penal, ela pode ser decretada para garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal e para assegurar a aplicação da lei penal.
Não se questiona a natureza cautelar quando a prisão preventiva é decretada, por exemplo, para assegurar a conveniência da instrução criminal e para assegurar a aplicação da lei penal, vez que clara a referibilidade com o processo principal. Assim, na hipótese de o investigado ou réu estar destruindo provas ou prejudicando o regular andamento da instrução, é possível a decretação da custódia cautelar se valendo do primeiro fundamento. Também é legítima, valendo-se agora o segundo fundamento, quando há elementos que indiquem que o investigado ou réu estar tentando fugir da aplicação da lei penal, como, por exemplo, se ocultar no exterior.
Porém, os outros dois fundamentos (perigo para ordem pública e ordem econômica) não são endoprocessuais, ou seja, não guardam uma referibilidade com o processo principal, não podendo, portanto, a prisão preventiva ser considerada uma autêntica medida cautelar em tais situações. Por isso que os aludidos fundamentos sofrem severas críticas por parte da doutrina, pois não passam de conceitos jurídicos indeterminados.
Entendemos acertada, em parte, a crítica feita pela doutrina, pois referida previsão, pela sua vagueza, acaba conferindo um poder por demais discricionário ao julgador, permitindo uma manipulação do discurso, que pode encobrir, em relação principalmente ao fundamento da “ordem pública”, tendências de populismo penal, o que pode acarretar um encarceramento em massa da classe dos menos favorecidos, aumentando ainda mais a seletividade do sistema penal. Valendo-se dos ensinamentos de João Maurício Adeodato[36], podemos dizer que a expressão não passa de uma das várias formas de estratégia retórica, mais precisamente a “estratégia da vagueza”.
Voltando para os tipos de prisões provisórias, quanto à prisão temporária, ela está prevista na Lei nº. 7.960/1989, possuindo, como destacado, também uma natureza cautelar, exigindo-se para sua legitimidade a presença dos dois requisitos acima referidos. Porém, diferentemente da preventiva, que tem incidência na fase investigativa e durante o processo criminal, a prisão temporária só tem incidência na fase pré-processual (investigativa), sendo, portanto, destinada a assegurar a eficácia das investigações dos delitos relacionados no art. 1º, inciso III da citada lei (podendo ser incluído na relação dos delitos os previstos também na Lei nº 8.072/90, conhecida como Lei dos Crimes Hediondos).
Encerrando essas breves observações, é fundamental acentuar que, no Estado Democrático de Direito, as prisões provisórias só podem ser decretadas quando demonstrada a necessidade e desde que não existam outras medidas menos drásticas aos direitos fundamentais, pois isso é uma decorrência inerente ao princípio da presunção de inocência. Realmente, a prisão provisória não é a regra, mas sim exceção, que encontra consagração na própria Constituição Federal, como se pode extrair de seu art. 5º, inc. LXI, que dispõe que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente.
E nem poderia ser diferente, não havendo que se falar em incompatibilidade com o princípio da presunção de inocência, pois em um modelo de Estado Democrático de Direito, o Estado também possui deveres de proteção em relação a eventuais ataques à pessoa humana praticados por particulares.
Realmente, em certos casos extremos, não haverá alternativa ao Estado senão restringir cautelarmente a liberdade do agressor, pois, como destaca Rogerio Schietti Machado Cruz[37]:
“Inserem-se nesse preceito constitucional outros mandamentos endereçados ao Estado, que podem, eventualmente, resultar na restrição das liberdades públicas, em nome de outros bens e interesses também protegidos pelo poder estatal, por igualmente interessarem à comunidade”.
“Entre esses direitos sobressai o direito à segurança, colocado ao lado do direito à liberdade logo no caput do artigo 5º da Carta Magna, o que implica afirmar que o Estado está obrigado a assegurar tanto a liberdade do indivíduo contra ingerências abusivas do próprio Estado e de terceiros, quanto a segurança de toda e qualquer pessoa contra ataques de terceiros – inclusive do acusado – mediante a correspondente e necessária ação coativa (potestas coercendi) ou punitiva (ius puniendi)”.
Não obstante a legitimidade dos mencionados tipos de prisões provisórias no nosso sistema, como foi demonstrado, a Constituição Federal, em relação aos parlamentares, só permite a incidência da prisão em flagrante delito de crime inafiançável, como, aliás, já decidiu o STF[38]. Ainda assim, mesmo havendo tal tipo de prisão, a casa respectiva poderá deliberar, por votação da maioria, pela manutenção ou não da prisão, pouco importando a natureza do crime cometido.
Ocorre que hoje, após o advento da Lei nº 12.403/2011 (que alterou o Código de Processo Penal na parte relativa às prisões provisórias), o problema se agrava ainda mais, pois praticamente se criou uma imunidade absoluta para os parlamentares em relação aos crimes de corrupção.
Primeiramente, cabe observar que com a minirreforma imprimida pela Lei nº. 12.403/2011 temos como inafiançáveis os seguintes delitos: racismo, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e nos definidos como crimes hediondos e nos crimes definidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (CPP, art. 323).
Como é fácil perceber, os delitos de corrupção, cujas variadas formas estão previstos principalmente nos arts. 312 a 326 e nos arts. 359-A a 359-H, todos do Código Penal, bem como em leis especiais, como, por exemplo, a Lei de Licitações (Lei nº. 8.666/1993), não se enquadram no rol dos crimes inafiançáveis. Logo, pela literalidade do dispositivo constitucional, é impossível a prisão em flagrante delito.
Assim, imaginemos um exemplo no qual um deputado federal é flagrado recebendo propina para votar pela aprovação de determinado projeto de lei (qualquer semelhança com um caso real é mera coincidência). Mesmo diante de uma conduta que trai a confiança daqueles que lhe confiaram o voto, que viola os princípios basilares que regem o atuar público no Estado Democrático de Direito, que atua de forma totalmente desvirtuada e incompatível com a democracia, a prisão jamais poderá ser efetivada, diferentemente do que poderia ocorrer caso o agente corrupto fosse um servidor público do último escalão.
E mais, ainda que alguns tipos de crimes de corrupção pública venham no futuro a ser etiquetados como hediondos (como quer o populista PL 3760/2004) a prisão provisória será praticamente inócua, mesmo que sua manutenção se faça extremamente necessária para as investigações ou para instrução criminal.
A conclusão acima é extraída da atual sistemática das prisões provisórias. Pela nova redação do art. 310 do Código de Processo Penal, ao receber o auto de prisão em flagrante o juiz terá as seguintes alternativas: a) relaxará a prisão; b) converterá a prisão em flagrante em preventiva; c) concederá liberdade provisória, com ou sem fiança.
Se se invocar a literalidade da regra constitucional a respeito da imunidade prisional dos parlamentares é fácil concluir ser impossível a conversão da prisão em flagrante em preventiva, pois tal tipo de prisão foi vedado pela Constituição Federal. Logo, não restará outro caminho ao juiz a não ser relaxar a prisão (se for ilegal) ou conceder a liberdade provisória (caso seja legal).
Como se nota, restou praticamente impossibilitada a prisão provisória, pois o flagrante, na sua nova roupagem, tem uma vida brevíssima, sendo até por isso considerada por alguns autores como medida pré-cautelar[39]. Portanto, sua natureza é precária, pois em até 24 horas após a efetivação da prisão, deverá o auto ser encaminhado ao juiz competente, para que decida em igual período, conforme vem entendendo a maioria da doutrina[40]. Assim, não haverá nem mesmo necessidade de o parlamento se submeter ao desgaste de deliberar sobre a manutenção ou não da prisão em flagrante por crime inafiançável, como previsto na segunda parte do § 2º do art. 53 da CF, já que ela, como se viu, tornou-se impossível.
Aliás, para reforçar o entendimento de que a imunidade prisional acaba consagrando impunidade, cabe lembrar um caso emblemático em que foi aplicada a segunda parte do § 2º do art. 53 da CF. Trata-se do caso do ex-deputado estadual do Rio de Janeiro, Álvaro Lins, que em 2008 foi preso em flagrante delito pela polícia federal, por variados delitos, dentre eles tipos criminais de corrupção pública e lavagem de dinheiro. Como foi amplamente divulgado na época, um dia depois da prisão, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, se valendo do permissivo constitucional, revogou a prisão, por votação de ampla maioria dos deputados (40 a 15)[41].
O caso acima serve para demonstrar o uso desvirtuado da imunidade prisional, no qual, de forma incrível, a impunidade foi acolhida pelo Estado que se diz Democrático e de Direito, transformando a prerrogativa em privilégio inadmissível.
Inclusive, a possibilidade prevista na segunda parte do § 2º do art. 53 da CF pode gerar perplexidade ainda maior, como se pode observar em mais um episódio de corrupção envolvendo parlamentares. Trata-se do caso debatido no HC 89.417-8 – Rondônia (decorrente do caso batizado como “Operação Dominó”), julgado pela Primeira Turma do STF em 22/08/2006, tendo como relatora a ministra Cármen Lúcia.
No citado caso foi preso em flagrante delito o presidente da Assembleia Legislativa de Rondônia, após prisão decretada pela ministra do STJ, Eliana Calmon em vista da Representação nº. 349-RO. Destaque-se que o motivo de o caso ter sido apreciado pelo STJ decorreu de possível envolvimento de desembargadores e conselheiros do Tribunal de Constas do Estado de Rondônia, atraindo a competência para a referida corte. Também é importante considerar que a prisão em flagrante foi, de forma inusitada, decretada, tendo a ministra considerado que havia uma situação de flagrância.
Diante da prisão, foi impetrado habeas corpus perante o STF, oportunidade em que o impetrante, dentre outros argumentos, alegou que não foi observado o § 2º do art. 53 da CF, inclusive no que se refere a sua segunda parte. Porém, a Primeira Turma do STF acabou, por maioria[42], denegando a ordem, diante de uma situação inusitada, pois dos vinte e cinco deputados estaduais, vinte e três estavam indiciados em diversos inquéritos, o que foi considerado pela ministra relatora do HC 89.417-8, Cármen Lúcia, razão para afastar a citada regra constitucional, pois não poderia ser considerada para o caso de forma isolada.
É interessante transcrever parte do voto da ministra relatora:
“Tal é o que me parece ocorrer no caso ora apreciado. O que se põe, constitucionalmente, na norma do art. 53, §§ 2º e 3º, c/c o art. 27, § 1º, da Constituição da República há de atender aos princípios constitucionais, fundamentalmente, a) ao da República, que garante a igualdade de todos e a moralidade das instituições estatais; b) ao da democracia, que garante que as liberdades públicas, individuais e políticas (aí incluída a do cidadão que escolhe o seu representante) não podem jamais deixar de ser respeitadas, especialmente pelos que criam o direito e o aplicam, sob pena de se esfacelarem as instituições e a confiança da sociedade no direito e a descrença na justiça que por ele se pretende realizar”.
“Daí à barbárie é um pulo. Perigoso pulo, porque se o direito é ineficiente, a desconfiança da sociedade costuma lembrar a justiça pelas próprias mãos, que é a não justiça, mas a força a garantir apenas os mais fortes. Se as instituições já não são públicas, se os agentes já não representam o povo, pouco sobra que o direito possa fazer”.
“Deve ser acentuado, entretanto, que a) o princípio da imunidade parlamentar permanece integro e de aplicação obrigatória no sistema constitucional para garantir a autonomia das instituições e a garantia dos cidadãos que proveem os seus cargos pela eleição dos seus representantes. Cuida-se de princípio essencial para assegurar a normalidade do Estado de Direito; b) a sua não incidência, na espécie, pelo menos na forma pretendida pelo Impetrante, deve-se a condição especial e excepcional, em que a sua aplicação gera a afronta a todos os princípios e regras constitucionais que se interligam para garantir a integridade e a unidade do sistema constitucional, quer porque acolher a regra, em sua singeleza, significa tornar um brasileiro insujeito a qualquer processamento judicial, faça o que fizer, quer porque dar aplicação direta e isolada à norma antes mencionada ao caso significa negar aplicação aos princípios fundantes do ordenamento; c) o caso apresentado nos autos é situação anormal, excepcional e não cogitada, ao que parece, em qualquer circunstância pelo constituinte”.
“Não se imagina que um órgão legislativo, atuando numa situação de absoluta normalidade institucional do País e num período de democracia praticada, possa ter 23 dos 24 de seus membros sujeitos a inquéritos e processos, levados adiante pelos órgãos policiais e pelo Ministério Público; d) à excepcionalidade do quadro há de corresponder a excepcionalidade da forma de interpretar e aplicar os princípios e regras do sistema constitucional, não permitindo que para prestigiar uma regra – mais ainda, de exceção e de proibição e aplicada a pessoas para que atuem em benefício da sociedade – se transmute pelo seu isolamento de todas as outras do sistema e, assim, produza efeitos opostos aos quais se dá e para o que foi criada e compreendida no ordenamento”.
Portanto, é patente que a imunidade prisional pode gerar impunidade, pois ainda que a prisão provisória se faça necessária para conservação do processo, ou para assegurar a aplicação da lei penal, não haverá como ser decretada a prevalecer a restrição constitucional, transformando o que deveria ser uma garantia para o parlamento em um verdadeiro privilégio, um escudo para práticas ilícitas, o que é incompatível com a Democracia, com a República e com o Estado Democrático de Direito.
Infelizmente, o referido problema não foi ainda percebido pela doutrina, ou, ainda que percebido, não foi digno de atenção. Realmente, é quase nula a referência ao tema da imunidade prisional na doutrina processual penal, limitando-se os doutrinadores, em linhas gerais, a invocar o art. 53 da Constituição Federal, para arrematar a possibilidade apenas da prisão em flagrante de crimes inafiançáveis[43] em relação aos parlamentares (excluindo aqui apenas os vereadores). Alguns sequer chegam a mencionar a exceção, voltando seus olhos mais para os “criminosos do andar de baixo”, como se os delitos praticados pelos poderosos fosse uma fantasia, o que contraria os dados existentes.
Referida postura acrítica por parte da doutrina é preocupante e incompreensível, notadamente diante de alguns delitos que atingem interesses da coletividade, como os crimes de corrupção pública, que contribuem para comprometimento dos objetivos do Estado Democrático de Direito cristalizados no art. 3º da Constituição Federal, daí porque sustentamos a necessidade de eliminação da imunidade prisional do nosso sistema, pois além de ser terreno fértil para impunidade, outros fundamentos podem ser invocados para sua completa inadmissibilidade, conforme veremos no próximo ponto.
4. A insustentabilidade da imunidade parlamentar no Estado Democrático de Direito
Como se sabe, a atual Constituição Federal qualifica o Estado brasileiro como “Democrático” e de “Direito” (art. 1º, caput), tendo como fundamentos: a soberania (art. 1º, I, da CF), a cidadania (art. 1º, II, da CF), a dignidade da pessoa humana (art. 1º, I, da CF art. 1º, III, da CF), os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV, da CF) e o pluralismo político (art. 1º, V, da CF), constituindo seu objetivo a construção de “uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, I, da CF), orientando suas relações pela “prevalência dos direitos humanos” (art. 4º, II, da CF), a “defesa da paz” (art. 4º, VI, da CF) e a “solução pacífica dos conflitos” (art. 4º, VII, da CF).
Assim, as ideias matrizes que inauguram a Constituição da República servem de orientação para formação da ordem jurídica brasileira, sendo inexorável a conclusão que a tutela dos direitos humanos acaba sendo a principal missão do Estado, vez que através dessa diretriz se torna possível assegurar uma sociedade livre, justa e igualitária, que tenha por meta não apenas a previsão desses direitos, mas, também, o de concretizá-los, enfim, torná-los palpáveis, para que assim a Constituição Federal não seja considerada uma mera “folha de papel”.[44]
Porém, não se desconhece que até chegarmos no estágio atual, passamos por uma lenta evolução no desenvolvimento do Estado Moderno[45], que veio a suceder o denominado Estado-polícia, no qual os direitos fundamentais não tinham a força normativa que atualmente ostentam.
É corrente o entendimento de que, objetivando superar as deficiências do Estado Social de Direito, surge o Estado Democrático de Direito, passando a ter a fundamental missão de transformar a realidade social, permitindo, assim, uma implementação da igualdade material, isto é, a socialização do Direito e do Estado e, por consequência, rompendo com o ranço da concepção liberal individualista que ainda se encontrava impregnado no Estado Social, sem que isso importe num rompimento com os direitos fundamentais já conquistados e incorporados. Tem-se, portanto, um novo conceito de Estado, surgido para superar o Estado capitalista, para permitir a promoção de justiça social que o Estado Social foi incapaz de construir em vista do patente personalismo e o monismo político das democracias populares.[46]
Assim, o Estado Democrático de Direito representa um aprofundamento e superação da fórmula que engloba o Estado Liberal e o Estado Social, elevando a outro nível as conquistas das democracias liberal e social, passando, pois, para uma democracia substancial que possibilite e assegure uma participação e equidade social[47], sendo fundamental nesse ponto também uma nova postura do judiciário, notadamente quando se verificar a omissão por parte do Executivo e do Legislativo na concretização dos direitos fundamentais, direitos esses que, para Paulo Bonavides[48], configuram o “oxigênio das Constituições”. Do contrário, haverá sério comprometimento para uma igualdade substancial e, consequentemente, para assegurar a observância do princípio da dignidade da pessoa humana, como visto, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.
Nesse passo, é lapidar a seguinte observação de Lenio Luiz Streck: “[…] por isso, é possível sustentar que, no Estado Democrático de Direito, em face do caráter compromissário dos textos constitucionais e da noção de força normativa da Constituição, ocorre, por vezes, um sensível deslocamento do centro de decisões do Legislativo e do Executivo para o plano da jurisdição constitucional. Isto porque, se com o advento do Estado Social e o papel fortemente intervencionista do Estado o foco de poder/tensão passou para o Poder Executivo, no Estado Democrático de Direito há (ou deveria haver) uma modificação desse perfil. Inércia do Poder Executivo e falta de atuação do Poder Legislativo podem ser supridas pela atuação do Poder Judiciário, justamente mediante a utilização dos mecanismos jurídicos previstos na Constituição que estabeleceu o Estado Democrático de Direito”.[49]
Assim, é inexorável concluir que estamos diante de outra realidade, diversa dos estados absolutistas, nos quais as imunidades surgiram como garantia do parlamento contra as arbitrariedades de um monarca, contra investidas indébitas de antidemocráticas, que não admite oposição, inclusive fazendo prender aqueles que ousavam fazer-lhe oposição, o que justificava plenamente as imunidades parlamentares, inclusive a prisional.
Ocorre que, nos dias atuais, ao lado de uma imprensa cada vez mais livre e vigilante, temos também a consagração de um judiciário independente, de um Ministério Público atuante e independente, uma polícia ocupada por profissionais concursados, submetida ao controle pelo Ministério Público. São instituições fundamentais em um Estado Democrático de Direito para o afastamento do arbítrio por parte de qualquer poder em relação a outro poder e em relação aos particulares.
Com efeito, em uma democracia, a submissão de uma pessoa a um processo criminal e seu eventual encarceramento, inclusive provisório, se submetem ao devido processo legal e aos princípios dele decorrentes, como o da presunção de inocência.
Logo, se ainda há espaço para a denominada imunidade material, conforme já observamos, pois é fundamental para a garantia da palavra no parlamento, inclusive na defesa das minorias, havendo, portanto, estrita relação com o exercício das funções dos parlamentares, não há como sustentar a legitimidade da imunidade prisional na sua atual conjuntura, pois, como dito, a realidade é outra dos tempos remotos que a justificaram[50].
Nessa senda, é oportuno lembrar as palavras de Cláudio Souto, que no começo dos anos 60 observava: “(…) que não é impossível que as imunidades parlamentares venham a desaparecer, quando e se as realidades sociais dos países se modifiquem de tal modo que o amadurecimento dos povos, e especialmente seu amadurecimento político, torne desnecessário e, pois, inconveniente, o privilégio”.[51]
E é necessário o desaparecimento da imunidade prisional, pois se transformou nos dias atuais em inadmissível privilégio, se convertendo em alguns casos em sinônimo de impunidade de parlamentares que a utilizam como escudo protetivo para práticas ilícitas, e não para a defesa do parlamento.
Ainda que seja possível um processo criminal em face de um parlamentar, esse processo pode ser comprometido na sua eficácia caso não sejam adotadas medidas cautelares para assegurar o seu resultado, como as prisões provisórias em casos extremos e graves.
Considerações finais
Portanto, permitir a manutenção da imunidade parlamentar prisional é vedar que o Estado, em alguns casos, possa atuar com efetividade para apurar fatos criminais, bastando imaginar as situações em que o agente, se valendo de sua imunidade prisional, se comporte de modo a impedir o regular andamento de uma investigação ou instrução criminal, destruindo provas, ameaçando testemunhas etc., situações em que, na inadequação de outra medida menos drástica, a prisão provisória é a única medida possível para assegurar a regular instrução criminal.
Permitir a imunidade parlamentar prisional em tais casos é tornar o Estado débil frente à criminalidade de poder e, paradoxalmente, forte frente à criminalidade de rua, sendo clara a violação nesse prisma ao princípio da isonomia, pois “o discrímen estabelecido conduz a efeitos contrapostos ou de qualquer modo dissonantes dos interesses prestigiados constitucionalmente”[52].
Como conceber que invoque a imunidade quando o cargo não é exercido segundo os fins constitucionais definidos, mas sim para assaltar o erário em detrimento da população? Como permitir que o Estado deixe de atuar com efetividade quando a integridade física das pessoas está sendo ameaçada? Como permitir que prerrogativas para garantia da democracia sejam transformadas em privilégios que maculam a dignidade do próprio parlamento?
A vítima da corrupção pública, já ficou claro, somos todos nós, pois se trata de um crime deletério para a concretização dos direitos fundamentais, em especial os direitos relacionados às prestações sociais. Impedir a atuação eficaz do Estado no enfrentamento de tais delitos configura patente violação ao princípio da vedação de proteção deficiente dos direitos fundamentais; é negar proteção à coletividade, vítima do crime de corrupção, que tem direito à proteção judicial; é converter prerrogativa institucional em privilégio pessoal que, em um modelo de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, é inadmissível e inaceitável.
Não resta dúvida de que um corrupto, por praticar um ilícito de natureza difusa, atingindo interesse de toda coletividade, merece enérgica e eficaz punição. Falando de forma metafórica, “vampiro se mata com uma estaca no peito”. Evidente que é apenas uma metáfora, que não desconsidera a necessidade de a punição ser feita de conformidade com as regras e princípios inerentes ao devido processo legal.
Nessa linha, são oportunas as palavras de Rui Cunha Martins[53], ao observar que: “É falsa a ideia de que o Estado de direito seja salvo por cada vez que o sistema penal pune um poderoso ou um convicto corrupto; por mais que custe à chamada ‘opinião’, o Estado de direito só é salvo de cada vez que um poderoso ou um convicto corrupto são punidos no decurso de um devido processo legal; o contrário disto é populismo puro”.
Não se tem a ilusão de que a corrupção será erradicada de nossas vidas, porém, tal constatação não pode significar omissão dos juristas diante dos problemas, sob pena de se permitir a sua institucionalização.
Como destaca João Maurício Adeodato[54]: “Mesmo que a corrupção não aparente poder ser de todo eliminada, como não o é nos países desenvolvidos, ela não deve aparecer em público sem ser devidamente punida, do ponto de vista da legitimação do sistema estatal. Nos países periféricos, a corrupção pode não apenas deixar de ser punida, como também assumir papel social compensatório e se tornar elemento significativo nos procedimentos decisórios de grupos inteiros. Quer dizer, pode institucionalizar-se”.
Informações Sobre o Autor
Gustavo Senna Miranda
Promotor de Justiça no Estado do ES. Professor de processo penal na Faculdade de Direito de Vitória FDV e na Escola Superior do Ministério Público do ES. Mestre em direito