Resumo: O artigo aborda a problemática das omissões inconstitucionais e os mecanismos jurídicos para conferir efetividade às normas constitucionais. Inicialmente, traz a análise da omissão inconstitucional, enfatizando-se o seu conceito. Em seguida, ventila a temática da eficácia das normas constitucionais com a finalidade de se perquirir em qual espécie de norma constitucional incide o fenômeno da omissão inconstitucional. Após, enfoca o princípio da máxima efetividade da Constituição, realizando-se um diagnóstico da operação interpretativa para tanto. Por fim, traça os mecanismos jurídicos para o combate à omissão inconstitucional, a saber: a ação direta de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção. A pretensão do estudo é demonstrar que o ordenamento jurídico possui instrumentos jurídicos para o controle das omissões inconstitucionais que inviabilizam a efetivação das normas constitucionais. A pesquisa tem cunho bibliográfico, pautada na absorção de informações do ponto de vista da legislação, doutrina e jurisprudência.
Palavras-chave: Teoria da Constituição. Controle de Constitucionalidade. Omissão Inconstitucional. Efetivação das normas constitucionais.
Abstract: The article addresses the problem of unconstitutional omissions and legal mechanisms to give effect to the constitutional requirements. Initially, brings the analysis of unconstitutional omission, emphasizing the concept. Then fans the issue of effectiveness of constitutional norms in order to to assert in what kind of constitutional rule focuses the unconstitutional omission phenomenon. After, focuses on the principle of maximum effectiveness of the Constitution, performing a diagnosis of interpretive operation for both. Finally, traces the legal mechanisms to combat unconstitutional omission, namely the direct action of unconstitutionality by omission and writs of injunction. The intention of the study is to demonstrate that the legal system has legal instruments for the control of unconstitutional omissions that prevent the realization of constitutional norms. Research has bibliographic nature, based on the absorption of information from the point of view of the law, doctrine and jurisprudence.
Keywords: Theory of the Constitution. Judicial Review. Unconstitutional omission. Effectiveness of constitutional norms.
Sumário: 1. Introdução. 2. Omissão inconstitucional: conceito. 3. Eficácia da norma constitucional: em qual espécie de norma se dá a análise da omissão inconstitucional? 4. O princípio da Máxima Efetividade: o respeito aos comandos constitucionais. 5. Mecanismos jurídicos para a proteção contra a omissão inconstitucional. 5.1. Ação direta de inconstitucionalidade por omissão. 5.2. Mandado de injunção. 6. Conclusão.
1 Introdução
A Constituição pátria, em seus diversos dispositivos, preceitua normas com a finalidade de efetivar direitos fundamentais, buscando meios para a realização fática dos mesmos. Em contrapartida, a legislação infraconstitucional tem a pretensão de regulamentar dispositivos insertos em sede constitucional, bem como tratar de matérias não abarcadas na Constituição.
O controle de constitucionalidade das leis é um mecanismo utilizado pelo ordenamento jurídico com a finalidade primordial de garantir a supremacia da Constituição Federal. Com efeito, havendo a observância de que o ato normativo desrespeita a Carta Constitucional, existirá a incidência da sistemática do controle para retirar do cenário jurídico tal norma.
Entretanto, a afronta à Constituição não se dá apenas quando ocorre uma ação do poder público. É que, com a omissão do ente público, isto é, um não agir, também se verifica o desrespeito à Lei Fundamental, podendo se falar em omissão inconstitucional, abrindo-se caminho para o controle respectivo.
Quando se realiza a análise da inércia do poder público também está buscando a proteção do sistema constitucional, na medida em que, se a Constituição Federal determina o agir do ente público, essa inobservância acarreta um desrespeito ao quanto estatuído no âmbito da norma fundamental.
É nesse sentido que caminhará o presente estudo, procurando traçar diretrizes acerca da problemática da omissão inconstitucional do poder público.
Primeiramente, far-se-á a análise acerca do conceito da omissão inconstitucional, com a finalidade de esclarecer ao leitor os exatos termos do significado do não agir do poder público.
Posteriormente, para se apurar qual a espécie de norma constitucional que dá ensejo ao diagnóstico da omissão inconstitucional, realizar-se-á o estudo da eficácia da norma constitucional, sendo foco as classificações propostas por José Afonso da Silva e por Maria Helena Diniz, sem escusa das classificações precedentes.
Os princípios constitucionais também serão objeto de verificação. Contudo, em razão da abrangência do tema, bem como a finalidade do estudo, o diagnóstico ficará adstrito ao princípio da máxima efetividade da Constituição, de modo que o mesmo tem por intenção conferir efetividade ao texto constitucional por meio do sistema interpretativo.
Por fim, a análise recairá sobre os mecanismos jurídicos para a proteção contra a omissão inconstitucional, enfatizando-se a ação direta de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção. Nessa linha, o parâmetro será não somente a Constituição Federal, mas também a legislação infraconstitucional atinente à matéria.
A pretensão do estudo é demonstrar que o ordenamento jurídico constitucional possui mecanismos para combater a omissão inconstitucional do poder público. Metodologicamente, a análise é feita com base em livros e artigos, classificando-se como uma pesquisa bibliográfica.
2 Omissão inconstitucional: conceito
O poder público, por vezes, ao agir, insere no cenário jurídico determinados atos normativos que, posteriormente, ao se realizar a compatibilidade vertical com a Constituição Federal, se verifica a sua inconstitucionalidade. Como ferramenta para a aferição da compatibilidade retro mencionada, existe a sistemática do controle de constitucionalidade.
Só que não é apenas o agir do poder público que pode desrespeitar a norma fundamental. Melhor dizendo: há determinados dispositivos constitucionais que trazem consigo conteúdo impositivo para o ente público, determinando a atuação estatal. Mas, ao invés de observar o comando constitucional, o poder público permanece inerte, não age. Essa omissão se configura como uma omissão inconstitucional, passível de controle por parte do Poder Judiciário.
E o assunto da tutela das omissões inconstitucionais se deu de forma nítida com o advento do Estado Social, que trouxe previsões no sentido de impor ao Estado deveres para promover o bem estar da população. É o fenômeno da Constituição Dirigente, confiando ao ente público programas atinentes à realização das finalidades sociais estatuídas constitucionalmente.
Miguel Calmon Dantas (2009, p. 324-325), sobre a Constituição Dirigente, leciona que, com o advento do constitucionalismo dirigente, o legislador deixou de “ter a ampla disponibilidade sobre a constituição e sobre os direitos fundamentais e passando a ter sua atuação limitada e positivamente dirigida pelas tarefas e pelos fins, encerrados nos programas constitucionais, que o faz transitar da discricionariedade para a liberdade de conformação, habilitando uma inequívoca constitucionalização da política, cujo controle pela jurisdição constitucional, malgrado seja rejeitado em grande medida por Canotilho, vai representar a condição de possibilidade de afirmação do dirigismo, em especial diante de um apurado processo de desencantamento para com o processo político-eleitoral e parlamentar”.
Luís Roberto Barroso (2012) recorda que a inconstitucionalidade por omissão é recente, só recebeu previsão nos textos constitucionais, e mesmo timidamente, a partir da década de 1970, com sua incorporação à Constituição da Iugoslávia (1974) e à de Portugal (1976).
Esse agir do Poder Judiciário diante da inércia do poder público, também denominado (por alguns) de ativismo judicial, busca fazer com que o poder público cumpra as determinações constitucionais. Daniel Sarmento (2009, p. 37) ressalta que “de poder quase “nulo”, mera “boca que pronuncia as palavras da lei”, como lhe chamara Montesquieu, o Poder Judiciário se viu alçado a uma posição muito mais importante no desenho institucional do Estado contemporâneo”.
Sobre esse fenômeno, salienta J.J. Calmon de Passos (2013, p. 167) que, “em termos políticos, a consequência mais importante foi o deslocamento do protagonismo do Legislativo para o Judiciário”.
Lembra Paulo Gustavo Gonet Branco (2011, p. 394) que, na atual composição do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Celso de Mello defende a intervenção judicial efetiva nos casos de inércia do poder público, haja vista ser necessidade institucional fazer prevalecer a primazia da Constituição da República.
Realizando o diálogo entre o agir do Poder Judiciário e a inércia do poder público, evidencia-se que o que se busca é a efetividade das normas constitucionais, isto é, que se respeitem os comandos constitucionais.
Só que, tratando-se de omissão do ente público, o parâmetro não é feito com base na Constituição como um todo, nem num bloco de constitucionalidade, mas sim tem de se estar diante de norma certa e determinada. Essa é a assertiva de Dirley da Cunha Júnior (2014, p. 235): “de observar-se que a inconstitucionalidade por omissão não se afere em face do sistema constitucional em bloco, mas sim em face de uma certa e determinada norma constitucional, cuja não exequibilidade frustra o cumprimento da constituição. Ademais disso, não basta o simples dever geral de legislar ou atuar, sendo necessária a existência de uma imposição constitucional ou ordem de legislar, seja ela, porém, abstrata ou concreta, mas forçosamente, reitere-se, definida em norma certa e determinada”.
Manoel Jorge e Silva Neto (2013, p. 557) pondera que a inconstitucionalidade “será omissiva quando consubstanciada em um não fazer do Estado. Omite-se quanto à adoção de medida para tornar efetiva norma constitucional (§ 3º do art. 103, CF).
Gilmar Ferreira Mendes et al (2010) aborda a omissão inconstitucional em duas vertentes: a omissão de índole legislativa, e a omissão de índole administrativa. Para ele, a omissão será legislativa quando a inércia se referir à ausência de lei; será administrativa quando houver inércia das autoridades administrativas. Demais disso, salienta que a omissão pode ser total ou parcial: será total ou absoluta quando o legislador não adota a providência legislativa reclamada; e parcial quando, em que pese a existência de um ato normativo, este atende parcialmente a vontade da Constituição.
Osvaldo Palu (2011, p. 286) arremata que “a omissão legislativa somente pode significar que o legislador não faz algo que positivamente lhe era imposto pela Constituição. Não se trata, apenas, de um não fazer, mas de não fazer aquilo a que, de forma concreta e explícita, estava ele constitucionalmente obrigado. A omissão tem conexão com uma exigência de ação advinda da Constituição; caso contrário não haverá omissão”.
Sintetizando, Dirley da Cunha Júnior (2014, p. 235-236) aduz que “São pressupostos da inconstitucionalidade por omissão: a) que a violação da Constituição decorra do não cumprimento de ‘certa e determinada’ norma constitucional; b) que se trate de norma constitucional não exequível por si mesma (normas de eficácia limitada); e c) que, na circunstância concreta da prática legislativa, faltem as medidas necessárias para tornar exequível aquela norma constitucional”.
3 Eficácia da norma constitucional: em qual espécie de norma se dá a análise da omissão inconstitucional?
O assunto eficácia das normas constitucionais traz diversos posicionamentos doutrinários acerca de sua incidência da teoria constitucional. Desde já, advirta-se que a pretensão aqui não é tratar de forma exaustiva o tema, mas apenas realizar o embasamento necessário para se identificar o âmbito de atuação do fenômeno da omissão inconstitucional.
Conceitualmente falando, eficácia difere de aplicabilidade, validade, vigência, vigor e existência. Manoel Jorge e Silva Neto (2013) realiza essa distinção concebendo que eficácia é a aptidão de produzir efeitos jurídicos, ou seja, norma eficaz é aquela apta a produzir efeitos na ordem jurídica. Em relação à aplicabilidade, esta significa a qualidade do que é aplicável; norma aplicável é aquela que tem capacidade de produzir efeitos jurídicos, sendo norma aplicável o mesmo que norma juridicamente eficaz (eficácia é potencialidade; aplicabilidade é realizabilidade, praticidade). Norma jurídica válida, para o autor, é aquela que foi produzida conforme as regras estabelecidas (devido processo legislativo, atendimento às normas organizativas, não ofensa às normas constitucionais). Norma vigente, enfim, é aquela que se encontra viável ao fenômeno da subsunção.
Feita a relevante diferenciação supra, mister consignar que “todas as normas constitucionais possuem força normativa, o que implica reconhecer-lhes, necessariamente, alguma sorte de eficácia, sempre (TAVARES, 2006, p. 88)”.
Michel Temer (2014, p. 25), nesse sentido, enfatiza que “todas as normas constitucionais são dotadas de eficácia. Algumas, eficácia jurídica e eficácia social; outras, apenas eficácia jurídica. Eficácia social se verifica na hipótese de a norma vigente, isto é, com potencialidade para regular determinadas relações, ser efetivamente aplicada a casos concretos. Eficácia jurídica, por sua vez, significa que a norma está apta a produzir efeitos na ocorrência de relações concretas; mas já produz efeitos jurídicos na medida em que a sua simples edição resulta na revogação de todas as normas anteriores que com ela conflitam”. (grifei)
E a análise da eficácia das normas constitucionais é exatamente para delinear o grau de eficácia de tais normas.
No âmbito doutrinário, os teóricos dividem a análise da eficácia das normas constitucionais em dois cenários: com base no direito alienígena e no direito nacional.
Sob a ótica do direito estrangeiro, as lições de Thomas Cooley foram pioneiras. Com efeito, dividiu ele as normas constitucionais em self-executing e not self-executing. Explicando: pela teoria americana, “algumas normas constitucionais seriam dotadas de autoexecutoriedade e outras não teriam tal virtude, mesmo sendo normas presentes na Constituição (FERNANDES, 2011, p. 90)”.
A teoria italiana, capitaneada por Vezio Crisafulli, trouxe importante contribuição para a teoria da eficácia das normas constitucionais, vez que concebeu pela relevância das normas programáticas. Para Crisafulli, as normas constitucionais são classificadas em normas de eficácia plena (autoexecutáveis), de eficácia limitada de legislação (dependem da atuação do legislador), e normas de eficácia limitada programática (realização dos objetivos fundamentais), evidenciando que todas as normas possuem eficácia (SILVA NETO, 2013).
No Brasil, destaca-se, de início, a doutrina de Rui Barbosa. Manoel Jorge e Silva Neto (2013, p. 486) enfatiza que “no sistema da ciência do direito constitucional brasileiro, coube a Rui Barbosa a tarefa de disseminar, entre nós, as ideias de Cooley, passando a classificar as normas constitucionais em autoexecutáveis e não autoexecutáveis. As primeiras correspondiam às self-executing provisions de Cooley, ao passo que as últimas às not self-executing provisions”.
Miguel Calmon Dantas (2009), ao explicar a teoria de Rui Barbosa, assevera que as normas constitucionais autoexecutáveis não dependeriam de qualquer providência, sendo irrelevante a natureza, enquanto as normas não autoexecutáveis são dependentes de atuação legislativa.
Em que pese o reconhecimento da relevante contribuição de Rui Barbosa, na doutrina pátria, o tema ganhou notoriedade com a monografia de José Afonso da Silva sobre o assunto. Para ele, as normas constitucionais são classificadas em norma constitucional de eficácia plena, contida e limitada.
Segundo José Afonso da Silva (2012), as normas constitucionais de eficácia plena são aquelas de aplicabilidade imediata, integral, direta, não dependendo de legislação seguinte para a produção de efeitos. As normas constitucionais de eficácia contida consistem naquelas que, apesar de ter aplicabilidade imediata, pode ter o seu alcance reduzido pela atuação do legislador nos casos e na forma que a lei estabelecer. Por fim, as normas constitucionais de eficácia limitada são aquelas que dependem da atuação futura do legislador, integrando-lhes a eficácia através de lei infraconstitucional, sendo divididas em normas de princípio institutivo (dependem de lei para dar corpo às instituições, pessoas e órgãos) e de princípio programático (fixam um programa constitucional a ser observado pelo legislador).
Por amor ao debate, oportunas as críticas de Virgílio Afonso da Silva (2011). Conforme o autor, a classificação de José Afonso da Silva, no que tange às normas de eficácia contida, sofrem 03 (três) tipos de críticas: a primeira se refere à terminologia; a segunda ao problema classificatório; e a terceira ao problema existência.
Em relação ao problema terminológico, não seria correto se falar em eficácia “contida”, visto que melhor seria falar em eficácia contível, restringível ou redutível, “o que exprimiria melhor o fato de que a eficácia da norma em questão não é necessariamente contida ou restringida, havendo apenas uma possibilidade dessa ocorrência” (2011, p. 220). No que concerne à segunda crítica (a questão classificatória), em verdade, tomando como base a ideia de José Afonso da Silva, não deveria existir uma classificação tríplice, mas sim dúplice, isto é, as normas de eficácia plena e de eficácia contida produziriam efeitos imediatos, não existindo a necessidade de se criar essa classificação (eficácia contida). É que, para Virgílio Afonso da Silva (2011, p. 222), “o gênero seria – nos termos empregados por José Afonso da Silva – o das normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata, e as espécies seriam – na sugestão de Manoel Gonçalves Ferreira Filho – as normas de eficácia plena propriamente dita e as normas de eficácia plena, mas restringíveis”.
Enfim, sobre a terceira crítica (o problema existencial), concebe Virgílio Afonso da Silva (2011, p. 223) que o problema existencial é precisamente sobre a existência das normas restringíveis, vez que “todas as normas constitucionais podem ser restringidas pela legislação ordinária”, independentemente da classificação.
Maria Helena Diniz, tendo como base primordialmente a classificação proposta por José Afonso da Silva, concebe o tema da seguinte forma: realiza a divisão em normas constitucionais com eficácia absoluta ou supereficazes, normas constitucionais com eficácia plena, normas constitucionais com eficácia relativa restringível, e normas constitucionais com eficácia relativa complementável ou dependentes de complementação (SILVA NETO, 2013).
As normas constitucionais supereficazes são aquelas equivalentes às cláusulas pétreas previstas no art. 60, § 4º, da Constituição Federal. As normas com eficácia plena de Maria Helena Diniz possuem o mesmo conteúdo da definição de José Afonso da Silva. As normas constitucionais de eficácia relativa restringível, mesmo podendo ter o seu alcance reduzido pela atuação legislativa, tem aplicabilidade direta e imediata. As normas constitucionais com eficácia relativa complementável de princípio institutivo e de princípio programático seguem a mesma concepção de José Afonso da Silva (SILVA NETO, 2013).
Percebe-se que a temática eficácia das normas constitucionais contribui sobremaneira para análise mais detida da inconstitucionalidade por omissão. Isso porque, desde as primeiras lições de Cooley (e sua importação para o direito brasileiro) até a classificação de Maria Helena Diniz, houve evolução reconhecendo a produção imediata de efeitos de todas as normas constitucionais.
Só que, o debate em torno da eficácia das normas constitucionais, para fins do presente estudo, está adstrito ao fato de se indagar em qual espécie de norma constitucional habita a omissão inconstitucional. De início, pode-se afirmar que a inconstitucionalidade por omissão “se refere à inércia na elaboração de atos normativos necessários à realização de comandos constitucionais” (BARROSO, 2012, p. 93).
É certo que a Constituição Federal estatui, em determinados dispositivos, comandos para o agir do poder público no sentido de editar leis para integrá-los. Viu-se, quando da análise da eficácia das normas constitucionais, que há normas que carecem de atuação legislativa. Cite-se, por exemplo, o art. 18, § 2º, da Constituição Federal: “Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição. § 2º – Os Territórios Federais integram a União, e sua criação, transformação em Estado ou reintegração ao Estado de origem serão reguladas em lei complementar”.
Dirley da Cunha Júnior (2014, p. 223) responde à indagação feita no próprio tópico, lecionando que, “por óbvio, se a norma constitucional não depende de qualquer medida para efetivar-se, podendo ser aplicada imediatamente, ela não é parâmetro para o controle de constitucionalidade por meio da ação em tela. Assim, em conformidade com a classificação apresentada por José Afonso da Silva, só as normas constitucionais de eficácia limitada podem servir de parâmetro para a ação de inconstitucionalidade por omissão”. (grifos do original).
Logo, vê-se que se trata de norma de eficácia limitada (na classificação de José Afonso da Silva), ou norma de eficácia relativa restringível, na proposta de Maria Helena Diniz.
Outro razão não seria: se a norma constitucional de eficácia plena (José Afonso da Silva) e a supereficaz (Maria Helena Diniz) são aquelas que não dependem de atuação do legislador para integrar o comando constitucional, não existiria motivo para a análise da omissão inconstitucional tendo como parâmetro as mesmas.
As cláusulas pétreas, quando analisadas, levam esse nome em função exatamente de sua importância e de sua eficácia plena. Portanto, quando a Constituição Federal fala que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir – a forma federativa de Estado” (art. 60, § 4º, I, CF), evidencia-se que não há necessidade de atuação legislativa. Ao contrário do que ocorre com o art. 18, §4º, da Constituição Federal, que depende da integração por parte do legislador para poder produzir por completo os seus efeitos.
Destarte, pode-se afirmar que o âmbito da discussão do fenômeno da omissão inconstitucional reside nas normas constitucionais de eficácia limitada, de modo que, permanecendo inerte o legislador diante de um comando constitucional, os mecanismos jurídicos para tal finalidade deverão atuar.
4 O princípio da Máxima Efetividade: o respeito aos comandos constitucionais.
Princípio, na análise de Manoel Jorge e Silva Neto (1999, p. 34), “é causa primeira, inicial, fundamento mesmo do conhecimento humano”.
No momento em que o maior clamor ouvido diz respeito à concretização da norma constitucional, o princípio da máxima efetividade não é apenas mais um postulado dentro do plexo principiológico da ciência do direito constitucional. É, para nós, o princípio mais importante na interpretação da constituição, se se quiser visualizar, no mundo físico, os efeitos próprios e esperados pelo constituinte originário quando lançou as bases e o programa da comunidade política (SILVA NETO, 1999).
Contudo, não se fará um estudo sobre princípios em geral, visto que o assunto transcende ao presente trabalho em função de sua extensão.
Inegavelmente, no particular, a obra de Manoel Jorge e Silva Neto sobre a temática se revela fundamental para auxiliar o leitor no entendimento do princípio da máxima efetividade.
O princípio da máxima efetividade, em apertada síntese, consiste na atribuição, quando da interpretação da norma constitucional, de maior eficácia possível à realizabilidade dos direitos fundamentais. Até porque, já ensinava Gadamer (SCHMIDT, 2013, p. 152), a interpretação é “descobrir o que o texto tem a dizer para nós”; aqui, é descobrir o que a Constituição Federal tem a dizer.
É nesse sentido de conferir máxima efetividade à interpretação constitucional, que Manoel Jorge e Silva Neto traz à tona em sua obra um olhar relacionado com grandes nomes do Direito Constitucional, como Peter Harbele e Konrad Hesse.
Manoel Jorge e Silva Neto (1999, p. 34), ao relacionar o princípio da máxima efetividade com a técnica hermenêutico-concretizadora de Konrad Hesse, assevera que: “Eis a relação direta e inafastável do princípio da máxima efetividade e a técnica hermenêutico-concretizadora: o postulado, em virtude da real conexidade que porta com os desígnios do "pai" fundador do Estado, em ordem a tornar a constituição uma realidade viva e transformadora do mundo físico, comanda o uso da técnica de concretização idealizada por Hesse”.
Nesse sentido, vê-se que o princípio da força normativa da Constituição, trabalhado por Konrad Hesse, preconiza que a Constituição é norma, tem força normativa, sendo, em verdade, um dever ser. Percebe-se, destarte, a nítida relação com o princípio da máxima efetividade trabalhado por Manoel Jorge e Silva Neto: se a Constituição é norma, tem força normativa, tem de ser conferida a ela a máxima efetividade quando do processo interpretativo.
Ao realizar o diálogo entre a concepção de Peter Harbele (teoria concretista de constituição aberta) e máxima efetividade, concebe Manoel Jorge e Silva Neto (1999, p. 30): “A ampla outorga de legitimidade e conseqüente alargamento do círculo de intérpretes da constituição, não mais reduzido à figura do juiz, tão-somente, produz o efeito mais importante, qual seja: a concretização da norma constitucional, por isso que a técnica é denominada de concretista de constituição aberta”.
Alargar o debate constitucional é relevante para a análise constitucional. E conferir máxima efetividade à Constituição Federal, seja concebendo-a como norma, seja no processo de interpretação, é realizar os compromissos constitucionais, é concretizar os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana.
É nessa ótica de abertura que Jorge Luiz Souto Maior (2013, p. 88) defende a participação dos movimentos populares e das manifestações sociais no debate constitucional. Para ele, “a superação das injustiças sociais como preceito jurídico, portanto, é uma obrigação imposta a todos, sendo certo que uma das maiores injustiças que se pode cometer é a de impedir que as vítimas da injustiça social e da intolerância tenham voz, mantendo-as órfãs de uma ação política inconstitucional efetivamente voltada ao atendimento de suas necessidades”.
E no âmbito do controle de constitucionalidade, Manoel Jorge e Silva Neto (1999) realça a possibilidade de o Juiz, de oficio, declarar a inconstitucionalidade de uma norma em sede de controle difuso quando esta está em dissonância com a Constituição, de modo que, assim agindo, estar-se-á concretizando o principio da máxima efetividade.
Desta forma, o princípio da máxima efetividade abordado por Manoel Jorge e Silva Neto é de suma importância para a realização dos preceitos constitucionais. E nesse âmbito se inclui a análise acerca das omissões inconstitucionais do poder público.
Demais disso, anote-se que a interpretação tem de ser feita de forma sistemática, com base no sistema como um todo. E tal análise se dá precipuamente quando ocorrer interpretação da legislação infraconstitucional, que tem de ser feita com vistas ao sistema constitucional.
É o que Gadamer chama de círculo hermenêutico, explicado por Lawrence K. Schmidt (2013, p. 150): “a compreensão acontece dentro do círculo hermenêutico. Ao interpretar um texto, o intérprete se move de um significado projetado do todo para as partes, e então volta para o todo. A harmonia de todos os detalhes com o todo é o critério da compreensão correta”.
Ora, quando o ente público é omisso, não agindo quando a Constituição Federal determina que ele aja, fere de morte os postulados que buscam conferir maior efetividade à Constituição.
Portanto, a interpretação a ser realizada quando se está diante de uma inércia estatal tem de ser aquela que respeite a vontade da Constituição, que observe os ditames previstos na Carta. Não foi por outra razão que o próprio Manoel Jorge e Silva Neto, em sua obra aqui citada, abordou mecanismos jurídicos para a proteção contra a omissão inconstitucional: a ação direta de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção, cujas análises serão feitas no tópico seguinte.
5 Mecanismos jurídicos para a proteção contra a omissão inconstitucional
O combate à omissão inconstitucional pode ser feito por dois caminhos: o primeiro se dá pela via objetiva, concentrada, onde o instrumento jurídico é a ação direta de inconstitucionalidade por omissão; o segundo ocorre pela via subjetiva, de forma difusa, sendo o mecanismo jurídico o mandado de injunção.
Nessa ótica, serão enfatizados no presente tópico a ação direta de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção. Anote-se que não haverá uma análise pormenorizada de tais instrumentos, haja vista os mesmos possuírem assunto para elaboração de livro próprio.
5.1 Ação direta de inconstitucionalidade por omissão
É tanto inconstitucional o agir do poder público em descompasso com o que rege a Constituição Federal como a sua inércia, a sua omissão. Observando tal aspecto foi que o direito brasileiro importou a ação direta de inconstitucionalidade do direito português, cuja previsão se encontra mais precisamente na Constituição Portuguesa, em seu artigo 283 (SILVA NETO, 2013).
Pode a mesma ser conceituada como mecanismo de controle de constitucionalidade que visa combater uma omissão inconstitucional, seja ela de natureza legislativa ou administrativa, com a pretensão de tornar viável norma constitucional de eficácia limitada.
Apresentado o conceito, pode-se perceber que são pressupostos da ação direta de inconstitucionalidade por omissão a ausência de norma regulamentadora; que essa norma seja de eficácia limitada; decurso razoável de prazo[1]. Com a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, a pretensão do proponente é que exista a regulamentação de uma norma constitucional certa e determinada, que não teve complementação em função da inércia do legislador em sede infraconstitucional. Defende-se de forma objetiva a Constituição, e não direitos subjetivos. Ou seja: “é um efetivo controle concentrado-principal das omissões do poder público, destinado a suprir, de forma geral e abstrata, a inércia inconstitucional dos órgãos de direção política” (CUNHA JÚNIOR, 2014, p. 228).
Manoel Jorge e Silva Neto (2013, p. 590) diz: “somente os comandos da Lei Suprema reconduzíveis a imposições constitucionais legiferantes em sentido estrito, uma vez descumpridos, podem ser considerados omissão inconstitucional”.
No que tange à regulamentação da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, a lei 12.063/99 trouxe profunda modificação quanto à sua sistemática, inserindo diversos dispositivos na lei 9.868/99. Com efeito, passou a disciplinar de maneira detalhada a ação (legitimados, processamento, medida cautelar, decisão).
Portanto, o objeto de análise será a Constituição Federal de 1988 e a lei 9.868/99, com suas posteriores alterações.
São legitimados para propor a ação direta de inconstitucionalidade por omissão os mesmos legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade (art. 12-A da lei 9.868/99). Na forma do artigo 103, podem propor a ação: I – o Presidente da República; II – a Mesa do Senado Federal; III – a Mesa da Câmara dos Deputados; IV a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI – o Procurador-Geral da República; VII – o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII – partido político com representação no Congresso Nacional; IX – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. Os legitimados passivos são aqueles que estariam obrigados (órgãos ou autoridades omissas) pela elaboração do ato.
Concernente aos legitimados, “impende reconhecer que, não obstante legitimados para a promoção da ação de inconstitucionalidade por omissão, os órgãos legislativos (Mesa do Senado Federal, Mesa da Câmara dos Deputados, Mesa de Assembleia Legislativa ou Mesa da Câmara Legislativa do Distrito Federal) dificilmente figurarão entre os proponentes desta ação, haja vista que, em geral, tal ação é proposta em decorrência da omissão destes próprios órgãos em expedir as medidas regulamentadores da norma constitucional carente de regulamentação” (CUNHA JÚNIOR, 2014, p. 232).
A competência para o processamento e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade por omissão é do Supremo Tribunal Federal, nada obstante os Estados terem a faculdade de instituir na sua Constituição a ação em comento.
Como a finalidade da ação é a defesa objetiva da Constituição, uma vez proposta, não caberá desistência, vez que não é o interesse do autor que está em jogo, mas sim da própria coletividade (2010).
Observando a excepcional urgência e relevância da matéria, o Tribunal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá conceder medida cautelar, após a audiência dos órgãos ou autoridades responsáveis pela omissão inconstitucional, que deverão pronunciar-se no prazo de 5 (cinco) dias. Essa previsão foi inserida pela lei 12.063/99 (art. 12-F). A medida cautelar poderá consistir na suspensão da aplicação da lei ou do ato normativo questionado, no caso de omissão parcial, bem como na suspensão de processos judiciais ou de procedimentos administrativos, ou ainda em outra providência a ser fixada pelo Tribunal (art. 12-F, § 1º).
A Constituição Federal previu os efeitos da ação, não deixando margem para maiores delongas. E o fez de maneira didática, separando os efeitos em relação à mora legislativa, e os efeitos atinentes à mora administrativa. Essa é a dicção do art. 103, §2º: Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias.
Entretanto, os efeitos na ação direta de inconstitucionalidade por omissão são contestados veementemente por parcela da doutrina. É que, conforme INGO SARLET et al (2012, p. 1116), ao tecer críticas aos efeitos da ação, aduz que “é evidente que esta decisão não é adequada do ponto de vista da efetividade do processo e da tutela da ordem constitucional, já que outorga a quem tem o dever de legislar a possibilidade de se omitir”. A Constituição Federal, ao preconizar que compete ao Tribunal apenas dar ciência ao Poder Legislativo para cientificar de sua mora, é tímida no que tange à efetivação das normas constitucionais.
Com efeito, “o que revela sublinhar é que, seja de natureza legislativa ou não, seja total ou parcial, a omissão do poder público não pode interditar os desígnios constitucionais e o desenvolvimento de importantes avanços sociais e políticos consagrados na Constituição brasileira, que é, como vimos, uma Constituição marcadamente dirigente, compromissária com os ideais de uma justiça social e com a dignidade da pessoa humana” (CUNHA JÚNIOR, 2014, p. 225).
Contudo, o Supremo Tribunal Federal rejeita o posicionamento de conferir efeitos concretos à ação direta de inconstitucionalidade por omissão, mesmo já apresentando uma evolução no seu entendimento. No julgamento da ADO nº 3.682/MT, assentou a Corte que[2]:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO. INATIVIDADE DO LEGISLADOR QUANTO AO DEVER DE ELABORAR A LEI COMPLEMENTAR A QUE SE REFERE O § 4º DO ART. 18 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, NA REDAÇÃO DADA PELA EMENDA CONSTITUCIONAL NO 15/1996. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE.
1. A Emenda Constitucional nº 15, que alterou a redação do § 4º do art. 18 da Constituição, foi publicada no dia 13 de setembro de 1996. Passados mais de 10 (dez) anos, não foi editada a lei complementar federal definidora do período dentro do qual poderão tramitar os procedimentos tendentes à criação, incorporação, desmembramento e fusão de municípios. Existência de notório lapso temporal a demonstrar a inatividade do legislador em relação ao cumprimento de inequívoco dever constitucional de legislar, decorrente do comando do art. 18, § 4o, da Constituição.
2. Apesar de existirem no Congresso Nacional diversos projetos de lei apresentados visando à regulamentação do art. 18, § 4º, da Constituição, é possível constatar a omissão inconstitucional quanto à efetiva deliberação e aprovação da lei complementar em referência. As peculiaridades da atividade parlamentar que afetam, inexoravelmente, o processo legislativo, não justificam uma conduta manifestamente negligente ou desidiosa das Casas Legislativas, conduta esta que pode pôr em risco a própria ordem constitucional. A inertia deliberandi das Casas Legislativas pode ser objeto da ação direta de inconstitucionalidade por omissão.
3. A omissão legislativa em relação à regulamentação do art. 18, § 4º, da Constituição, acabou dando ensejo à conformação e à consolidação de estados de inconstitucionalidade que não podem ser ignorados pelo legislador na elaboração da lei complementar federal.
4. Ação julgada procedente para declarar o estado de mora em que se encontra o Congresso Nacional, a fim de que, em prazo razoável de 18 (dezoito) meses, adote ele todas as providências legislativas necessárias ao cumprimento do dever constitucional imposto pelo art. 18, § 4º, da Constituição, devendo ser contempladas as situações imperfeitas decorrentes do estado de inconstitucionalidade gerado pela omissão. Não se trata de impor um prazo para a atuação legislativa do Congresso Nacional, mas apenas da fixação de um parâmetro temporal razoável, tendo em vista o prazo de 24 meses determinado pelo Tribunal nas ADI nºs 2.240, 3.316, 3.489 e 3.689 para que as leis estaduais que criam municípios ou alteram seus limites territoriais continuem vigendo, até que a lei complementar federal seja promulgada contemplando as realidades desses municípios.
(STF – ADI: 3682 MT , Relator: GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 09/05/2007, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-096 DIVULG 05-09-2007 PUBLIC 06-09-2007 DJ 06-09-2007 PP-00037 EMENT VOL-02288-02 PP-00277)
Mesmo com esse avanço no entendimento do Supremo (fixação de prazo), o que prevalece é que a ação direta de inconstitucionalidade por omissão não é meio hábil para a conferência de efeitos concretos.
Ives Gandra da Silva Martins (2015, p. 32) salienta que a atuação concretista dos Tribunais confere insegurança jurídica ao sistema jurídico, em nome da Separação dos Poderes. Assenta o doutrinador que: “a lei pode não agradar, mas a certeza de que é aquela que deve ser seguida oferta segurança a que se refere o texto supremo. Por melhor que seja a solução legislativa do Judiciário, sempre acarretará a incerteza e a insegurança, pois o que vige passa a ser revogado por determinação não do Legislativo, mas do Judiciário. E tal confusão entre as funções dos Poderes amesquinha a democracia e dá um poder fantástico à magistratura, que, apesar de ser, a meu ver, o mais preparado dos Poderes, não é eleito pelo povo. O mais grave, todavia, é que, se o próprio Judiciário se transformar de poder legislativo negativo em positivo, não haverá a quem recorrer, pois quem fará a lei será o seu próprio julgador”.
No direito alienígena, há previsões no sentido de conferir efeitos concretos aos instrumentos de controle da omissão inconstitucional. Invocando a doutrina italiana das sentenças aditivas e manipulativas, Walber de Moura Agra (2014, p. 327-328) pondera que: “A doutrina italiana considera manipulativa a decisão proferida por uma Corte Constitucional que modifica ou adita normas submetidas ao crivo do controle de constitucionalidade, a fim de dotá-las de um juízo de incidência normativa ou conteúdo distinto do original, mas em conformidade material com o exposto no Texto Constitucional”.
Assim sendo, o debate em torno dos mecanismos jurídicos de combate à omissão inconstitucional é sobremaneira fundamental para a formação da consciência constitucional. O avanço do Supremo Tribunal Federal, nos casos de omissão inconstitucional, demonstra a postura da Corte para a realização dos preceitos fundamentais. E postura diferente não se espera do guardião supremo da Constituição Federal.
5.2 Mandado de injunção
O mandado de injunção, criação do direito anglo-saxão e do direito português, consiste numa ação constitucional que tem por pretensão suprir uma omissão legislativa que inviabilize o exercício de uma liberdade, de uma prerrogativa ou de um direito inerente à nacionalidade, à cidadania ou à soberania popular.
Apregoa a Constituição Federal de 1988 que: “Art. 5º, LXXI, CF. Conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”.
Para Manoel Jorge e Silva Neto (1999, p. 84), o mandado de injunção é o instrumento para suprir a lacuna legislativa. “É a via processual adequada à obtenção de provimento judicial colmatador de lacuna. Que espécie de lacuna? Toda aquela a impedir a imediata fruição por parte do impetrante dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, incluindo-se aí eventual falta de norma regulamentadora a inviabilizar o desfrute dos direitos sociais”.
Diferentemente da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, o mandado de injunção pode ser manejado por qualquer pessoa, seja ela física ou jurídica. Atinente à legitimidade passiva, adverte André Ramos Tavares (2006) que não é parte legítima pessoa jurídica de direito privado, visto não ter o poder de expedir normas regulamentares; somente do Estado pode exigir a edição de normas jurídicas.
Quanto à competência, o mandado de injunção pode ser impetrado em diversos Tribunais, a depender dos órgãos do poder público que permaneceu inerte: no Supremo Tribunal Federal, será quando a elaboração da norma for de atribuição do Presidente da República, do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de qualquer das Mesas de uma dessas Casas, do Tribunal de Contas da União, dos Tribunais Superiores ou do próprio Supremo Tribunal Federal (2013).
E será do Superior Tribunal de Justiça quando a atribuição para a elaboração de norma regulamentadora for de órgão, entidade ou autoridade federal, da administração direta ou indireta, excetuados os casos de competência do Supremo e da Justiça Militar, da Justiça Eleitoral, da Justiça do Trabalho e da Justiça Federal (CUNHA JÚNIOR, 2013).
O cerne da discussão sobre o mandado de injunção são os efeitos conferidos à sua decisão. É que, no decorrer do tempo, o Supremo Tribunal Federal adotou vários posicionamentos quanto aos efeitos do mandado de injunção.
Num primeiro momento, o Tribunal inclinou-se pela posição não-concretista, por meio da qual o mandado de injunção serviria apenas para dar ciência ao poder público da sua omissão para que este promovesse a integração normativa. Esse entendimento foi adotado no julgamento do Mandado de Injunção 107-3/DF.
Após, a Corte adotou o efeito concretista individual intermediária, ou seja, entendeu o Tribunal que, diagnosticada a mora do legislador, assinala-se um prazo razoável para a elaboração da norma regulamentadora; findo tal prazo, persistindo a mora, a decisão serviria de título jurídico para o particular obter do poder público indenização por perdas e danos. Esse efeito foi adotado no julgamento do Mandado de Injunção nº 283-5.
Em seguida, o Supremo passou a adotar a posição concretista individual direta, mediante a qual se garante ao impetrante o exercício imediato do direito requerido. Entendimento este foi adotado no julgamento do Mandado de Injunção nº 721.
Por fim, a Corte conferiu o efeito concretista geral direto. É, na prática, uma derivação do efeito concretista individual, só que, aqui, de forma geral (coletivo). Normalmente, nesses casos, o mandado de injunção é impetrado por sindicato ou associação, onde o Tribunal confere efeitos imediatos. Pode-se citar o notório julgamento da greve do serviço público, onde o Supremo estendeu a lei de greve do setor privado para o serviço público.
Adverte Miguel Calmon Dantas (2009, p. 329-330) que o julgamento dos MI´s nº 670, 708 e 712 (que tratavam do direito de greve no serviço público): “consubstancia um momento paradigmático para o constitucionalismo brasileiro, demonstrando a consciência da jurisdição constitucional exercida pelo Supremo Tribunal Federal quanto à necessidade de agasalhar o movimento pela efetividade das normas constitucionais, superando mitos e dogmas que não mais condizem com o texto e o contexto constitucionais pátrios”.
O mandado de injunção se revela como um instrumento fundamental para o combate à omissão inconstitucional, principalmente por ter incidência no controle difuso, onde qualquer pessoa pode utilizar a ação. As liberdades fundamentais inerentes à pessoa humana não podem ficar a mercê da boa vontade do poder público, que não tem interesse para regulamentá-las.
Destarte, fez bem o legislador constituinte inserir no ordenamento jurídico brasileiro mecanismos para a tutela dos direitos fundamentais, seja tutelando nos casos de ação em desconformidade com a Constituição Federal, seja no caso de omissão do poder público.
Em se tratando de controle pela via difusa, onde qualquer pessoa pode ajuizar a ação respectiva, não apenas o Mandado de Injunção é meio hábil para tanto (mesmo se reconhecendo que é instrumento por excelência de controle das omissões pela via difusa). Diante de uma omissão, pode o Ministério Público ajuizar, por exemplo, Ação Civil Pública pleiteando a condenação de um ente público numa condenação de fazer, tendo como causa de pedir a omissão inconstitucional e o pedido a aludida condenação (obrigação de fazer).
Em sede de controle concentrado, o único mecanismo é a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, em que pese o entendimento doutrinário concebendo pela utilização da arguição de descumprimento de preceito fundamental para tanto.
Com efeito, o Poder Judiciário, diante da ausência de norma regulamentadora, não pode ser condescendente com tal conduta, sendo louvável o avanço do entendimento jurisprudencial no sentido de concretizar as liberdades fundamentais. Seja pela via difusa, seja pela via concentrada, o que se mostra relevante é a tutela da Constituição Federal por intermédio dos mecanismos processuais cabíveis.
6 Conclusão
Em sede de conclusão, anote-se que a pretensão do estudo não foi exaurir a matéria, mas apenas traçar pontos importantes para a compreensão do fenômeno da omissão inconstitucional, de modo que seja conferida efetividade às normas constitucionais.
Nesse sentido, observou-se que o fenômeno da omissão inconstitucional é um assunto que preocupa os juristas em geral, tendo em vista que a inércia do legislador agrava a fruição dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana insertos na Carta Constitucional. É que há normas que dependem da atuação legislativa para a produção por completo dos seus efeitos; não é que não produza efeitos – produz sim, mas não em sua completude. Tais normas são as intituladas normas de eficácia limitada.
Demais disso, foi objeto de estudo a temática da eficácia das normas constitucionais, ocasião em que se viu que há várias classificações. Como a omissão inconstitucional reside nas normas de eficácia limitada, o diagnóstico do assunto foi imprescindível. Em que pese a classificação proposta por José Afonso da Silva ter sofrido severas críticas, a sua importância é reconhecível. Contudo, a doutrina inclina pela predominância da classificação de Maria Helena Diniz, com influência de Michel Temer, que trata da norma com eficácia restringível ao invés de contida. O relevante é conceber que todas as normas constitucionais produzem efeitos, independentemente da espécie.
Ao se proceder ao iter interpretativo, inegável é a contribuição do princípio da máxima efetividade da Constituição, realizando-se a interpretação que mais efetividade dê às normas constitucionais. Manoel Jorge e Silva Neto, ao se debruçar sobre a temática, fez um diagnóstico juntamente com dois grandes nomes do direito constitucional: Peter Harbele e Konrad Hesse, ressaltando a importância da abertura da interpretação constitucional, bem como a força normativa da Constituição. A Carta Magna traz normas que devem ser observadas, respeitadas, de modo que a omissão do poder público não pode ficar despercebida pelos hermeneutas constitucionais.
Para realizar uma efetiva tutela das normas constitucionais, expurgando a inércia do poder público, a Constituição Federal de 1988 previu dois mecanismos típicos de tutela contra as omissões: a ação direta de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção. Em que pese terem diferenças, ambas as ações constituem instrumentos fundamentais para a proteção em face das omissões do poder público.
Notou-se que o Supremo Tribunal Federal, de início, foi tímido quando da atribuição dos efeitos para as ações. Com o passar do tempo, a evolução do pensamento da Corte foi para conferir efeitos concretos para o mandado de injunção, intitulando-se como efeito concretista individual ou geral (coletivo). Esse avanço demonstra a preocupação do Supremo para assegurar as liberdades fundamentais, não aceitando a inércia do poder público.
Por fim, pode-se conceber que a Constituição Federal tem força normativa, é uma norma. E traz cláusulas compromissórias, devendo o poder público agir quando a Carta determina. Não se concebe, hodiernamente, um ente estatal inerte, omisso, afrontando os postulados estatuídos na Lei Fundamental. A evolução do entendimento jurisprudencial também é fundamental para a efetiva proteção dos direitos e das liberdades fundamentais, com a finalidade de evitar que a omissão inconstitucional se perpetue, agravando ainda mais a tutela dos cidadãos.
Informações Sobre o Autor
Geraldo Calasans da Silva Júnior
Professor Universitário da FTC/Itabuna e da Faculdade Madre Thaís/Ilhéus. Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia – UFBA; Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Anhanguera-UNIDERP. Advogado