Resumo: Este breve estudo cuida da intensa discussão acerca da possibilidade de apreciação da tipicidade material e, portanto, aplicação do princípio da insignificância pelo delegado de polícia. Enquanto a doutrina clássica se posiciona pela impossibilidade, sustentando que deve a autoridade policial se concentrar unicamente na tipicidade formal, inclusive pugnando pela responsabilidade administrativa de delegados que assim não agir, uma doutrina mais moderna – que visa amoldar a atividade de Polícia Judiciária ao Estado Democrático de Direito posto – entende ser imprescindível a apreciação, pelo delegado de polícia, de todos os elementos do crime, a fim de se evitar constrangimentos ilegais a partir de prisões e indiciamentos arbitrários.
Palavras-chave: Delegado. Polícia. Insignificância. Tipicidade. Material.
Resumen:Este breve estudio se ocupa de una intensa discusión sobre la posibilidad de evaluar el material de tipicidad y por lo tanto la aplicación del principio de insignificancia por el jefe de la policía. Mientras que la doctrina clásica significa la imposibilidad, argumentando que si la autoridad policial centrarse exclusivamente en la tipicidad formal, incluyendo la lucha por la responsabilidad administrativa de los delegados por lo que no actuar, una doctrina más moderna – que tiene como objetivo dar forma a la acción de la Policía Judicial del Estado Democrático el lugar correcto – considera esencial la evaluación por el jefe de la policía, de todos los elementos del delito, a fin de evitar restricciones ilegales de arrestos y acusaciones arbitrarias.
Palabras-chabe:Delegado. Policia. Insignificancia. Tipicidad. Materiales.
Sumário: Introdução. 1. O atual panorama da matéria. Conclusão. Referências.
Introdução:
Entendimento há muito consolidado no âmbito doutrinário, próprio de uma corrente mais clássica, dá conta de que, no exercício de suas funções, a autoridade policial deve analisar unicamente a tipicidade formal, isto é: a subsunção do fato à norma. Se o fato for irrelevante juridicamente – por insignificante – ou o agente houver agido sob o amparo de uma excludente de ilicitude, pouco importa ao delegado. A correta ação deve ser a ratificação da prisão em flagrante ou o devido indiciamento.
De plano se constata ser um entendimento arcaico, por demais violador de direitos individuais.
Diante desse cenário, a doutrina processual penal moderna clama por uma releitura das funções da Polícia Judiciária à luz do Estado Democrático de Direito posto. Pugna-se pelo exercício de uma função imparcial, garantidora dos direitos individuais, sobretudo da liberdade, e observadora da Constituição Federal.
Delegados de polícia, no entanto, encontram-se em uma sinuca de bico: ao aplicarem o princípio da insignificância são repreendidos administrativamente – na maioria das vezes por requisição do Ministério Público -, ao passo que se não aplicarem referido princípio podem ser considerados autoridades coatoras em habeas corpus interposto a fim de trancar o inquérito policial, porquanto apuratórios de fatos atípicos.
1. O atual panorama da matéria:
A obrigatoriedade de levar à prisão e indiciar agentes que sequer serão denunciados torna a persecução penal contraditória e, inequivocamente, afasta a Polícia Judiciária dos ditames de um Estado Democrático de Direito. Isso decorre da comezinha lição de que ao delegado de polícia cumpre tão somente analisar a tipicidade formal do crime, ou seja, a subsunção da conduta ao tipo penal incriminador – não devendo adentrar na tipicidade material e nos demais elementos do crime.
Tem-se um postulado da doutrina atual seguido de uma contrária premissa da doutrina clássica: requer-se uma atividade policial ancorada nos preceitos constitucionais, mas, ao mesmo tempo, assevera-se que a função do delegado, por ocasião da prisão em flagrante ou do ato fundamentado de indiciamento, resume-se a analise da tipicidade formal da conduta. Logo, tratando-se de “crime” insignificante, prende-se! Estando o sujeito ativo do fato típico amparado pela justificante da legítima defesa, indicia-se! Mas lembre-se: clama-se por uma Polícia própria de um Estado Democrático de Direito.
Não podemos olvidar que a estrutura do processo penal é o termômetro do quanto autoritária ou democrática é a Constituição de um país (GOLDSCHMIDT, 1961. p. 72) e para amoldar a atividade de Polícia Judiciária ao atual plano constitucional muitos são os passos a se caminhar, como superar a crise do inquérito policial (LOPES JR. 2012, p. 65), recrudescer o direito de defesa e tornar a investigação imparcial e eficiente. Mas não menor é a necessidade de valorizar, no cenário jurídico, a carreira do delegado de polícia.
Pois embora muitas vezes esquecidos pelos manuais e pelos operadores do Direito – inclusive no seio policial -, os malefícios produzidos por eventual ratificação de prisão em flagrante e pelo indiciamento são devastadores ao indivíduo, a ponto de que posterior apreciação judicial não tenha o condão de apagar as mazelas inseridas por tais atos.
Com efeito, a segregação submete o indivíduo ao submundo carcerário e, por corolário, às mais medíocres experiências da vida. Por seu turno, o indiciamento aponta à sociedade a pessoa considerada pela autoridade policial como autora do delito, ensejando o irredutível etiquetamento social decorrente da publicidade. Ademais, valioso recordar que o mero indiciamento de servidor público por crime de lavagem de capitais o afasta de suas funções, com a privação da respectiva remuneração (sem embargo da plena vigência, tal dispositivo – a nosso ver – é de constitucionalidade duvidosa).
E ser possível que tamanhos malefícios decorram de uma mera subsunção fato-norma afronta as mais basilares proposições de um estado liberal e do postulado do estado de inocência. Por tal incoerência se inovou o ordenamento jurídico, advindo alterações no sistema processual penal que valorizaram a atividade da Polícia Judiciária na persecução penal.
Deveras, a Lei 12.403/11, ao revigorar a figura da fiança, enriqueceu a atuação da autoridade policial na persecutio criminis. Por sua vez, a Lei 12.683/12, que alterou a Lei de lavagem de capitais, deu exagerado poder ao ato de indiciamento, tornando-o causa automática do afastamento de servidores públicos, consoante já asseverado. Ainda, a Lei 12.850/13 inseriu o delegado de polícia como legitimado para acordar delação premiada.
Mas a principal das inovações legislativas ficou a cargo da Lei 12.830/13, que, tratando da investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia, firmou a natureza jurídica do cargo e lhe dispensou tratamento protocolar equiparado às demais carreiras jurídicas – como magistrados, defensores públicos e membros do Ministério Público.
Daí perquire-se: a Lei 12.830/13 veio ao ordenamento jurídico tão somente para impor que aos delegados de polícia seja dispensado tratamento protocolar de excelência? E o reconhecimento da natureza jurídica da carreira de delegado, inclusive sendo exigência de alguns certames para o cargo a prévia prática jurídica de três anos, fundamenta-se em quê?
Ora, notadamente o propósito da comentada lei é adequar a atividade das Polícias Judiciárias ao Estado Democrático de Direito posto. Interpretação, essa, que deve ser a adotada pelos órgãos de persecução penal.
Nesse molde, o atual panorama do sistema processual penal indica como dever do delegado de polícia apreciar o crime em seu conceito analítico completo, apropriando a função da Polícia Judiciária ao Estado Democrático de Direito. Por conseguinte, como ultrapassada deve ser vista a posição adotada, por exemplo, pelo Ministério Público do Paraná, que oficiou à Corregedoria da Polícia Civil para fins de apuração da responsabilidade administrativa de delegados que aplicaram o princípio da insignificância (ANÍBAL, 2014).
A propósito, veja-se que o delegado de polícia se encontra em uma verdadeira sinuca de bico. Cumpre a ele optar por aplicar o princípio da insignificância e ser processado administrativamente ou, do contrário, não reconhecer a atipicidade material e ser atacado via habeas corpus. A jurisprudência é pacífica acerca do cabimento do writ para trancar expediente policial que apura fato materialmente atípico[i].
Ora, percebam o tamanho da teratologia, a qual põe o delegado de polícia na posição de mero objeto de direito, o que é inadmissível. É por questões ultrapassadas como a aqui debatida que temos o processo penal que temos: lento, ineficaz, arbitrário etc.
Daí porque somente em se tratando de fato típico, ilícito e culpável – com o preenchimento de todos os elementos desses substratos – é que se deverá, então, perquirir acerca da situação de flagrância para a lavratura, ou não, do auto de prisão em flagrante. Na mesma entoada, só quando presentes todos os substratos do conceito analítico de crime é que deverá a autoridade policial analisar os elementos de informação constante dos autos com o intuito de decidir acerca do indiciamento.
Outrossim, assim agindo não estará o delegado de polícia a usurpar ou prejudicar a função do titular da ação penal, porquanto ainda que não se ratifique a prisão em flagrante, instaurar-se-á o procedimento próprio a fim de colher os elementos necessários à plena elucidação dos fatos e, dessarte, substanciar a formação da opinio delicti de quem quer que seja.
De mais a mais, observou o Min. Celso de Mello, no bojo do HC 84548/SP, que em nossa bifásica persecutio criminis, o delegado de polícia é o primeiro garantidor dos direitos individuais, sendo responsável pela tutela das liberdades públicas e por fazer valer os primados constitucionais. E a lição de que ao delegado de polícia cabe a mera subsunção fato-norma – como se juridicamente cego fosse – contraria a perfeita nota do decano do STF.
Conclusão:
Em um Estado Democrático de Direito, a atuação da Polícia Judiciária deve se escorar na Constituição Federal, e a plena adequação da atividade de Polícia Judiciária ao Estado Democrático de Direito passa, imperiosamente, pela valorização jurídica da carreira de delegado de polícia. Proporcionar-lhe a possibilidade de avaliar os substratos da ilicitude e da culpabilidade ensejará uma fase policial da persecução penal mais condizente com os mandamentos constitucionais, bem como obstará a ocorrência dos gravames individuais decorrentes de prisões e indiciamentos vazios.
Passada a hora de se ter como superada a tese de que ao delegado de polícia compete tão somente a análise da tipicidade formal, devendo se cuidar de todos os substratos do crime, bem como todos os elementos destes.Daí porque “não só os Delegados podem como devem analisar os casos de acordo com o princípio da insignificância. Merecem aplauso e incentivo os Delegados que agem dessa forma, pois estão cientes do papel que lhes cabe na investigação preliminar, atuando como filtros de contenção da irracionalidade potencial do sistema penal” (ROSA, KHALED. 2014).
Informações Sobre o Autor
Marcos Vinicius Krause Bierhalz
Advogado