Resumo: O presente estudo objetiva analisar os efeitos da perda da qualidade de segurado frente ao requerimento de recebimento do benefício previdenciário pensão por morte. A exigência da qualidade de segurado na ocasião do evento morte, é erroneamente considerado um requisito essencial para a concessão do benefício em questão, independentemente do número de contribuições anteriores, o que demonstra a relevância jurídica, econômica e social deste estudo baseado na tentativa de elucidar as polêmicas e distorções desta exigência frente aos direitos sociais e o Sistema Previdenciário. Dentre as questões relevantes destacamos o Sistema contributivo / retributivo da previdência, bem como o fato de a filiação previdenciária se dar a partir do exercício de atividade remunerada, para todos os segurados obrigatórios. Com relação aos aspectos teórico-metodológicos foram realizados coleta e estudo de artigos e demais doutrinas pertinentes ao assunto, não deixando de lado a legislação e jurisprudências relacionadas ao tema em análise. Os resultados alcançados com a tese nos reportam à conclusão de que o benefício previdenciário concedido pela morte do segurado aos seus dependentes legais, independe da qualidade de segurado do contribuinte, sendo que tal exigência constitui-se em uma afronta direta ao texto constitucional bem como aos próprios princípios da Seguridade Social[1].
Palavras-chave: Benefício da Previdência. Contribuições Previdenciárias. Qualidade de Segurado. Pensão por Morte.
Sumário: Introdução; 1. Pressupostos da pensão por morte; 2. Qualidade de Segurado; 3. Análise frente aos princípios constitucionais; 4. Análise frente aos princípios previdenciários; 5. Obrigação do empregador. Conclusão. Bibliografia Consultada.
INTRODUÇÃO
A Previdência Social se estrutura em forma de sistema contributivo e de filiação obrigatória, como expressamente determina o artigo 201 do texto constitucional, ou seja, é um sistema em que o segurado contribui diretamente, na expectativa de auferir um benefício no futuro.
O objetivo da Previdência Social, estruturada como seguro social, sob forma de benefícios e serviços, é conceder ao trabalhador contribuinte que preencher os requisitos legais, uma renda para este e sua família, visando a cobertura dos riscos doença, invalidez, morte, idade avançada, proteção à maternidade e à família.
Em tempos de constantes alterações legislativas dos direitos sociais, que vem causando inúmeras discussões quanto ao futuro da sociedade Brasileira no que se refere à possibilidade de percepção de benefícios em caso de necessidade, bem como na incógnita gerada no que se refere à segurança dos dependentes nos casos de falecimento do segurado, especialmente nos casos dos que exercem a profissão de forma autônoma ou prestam serviços a terceiros que deveriam manter em dia as contribuições, ou mesmo quando já foram feitas contribuições suficientes para garantir o benefício em período anterior, sendo de suma importância esclarecer os ditames legais aplicados aos casos em questão.
A dificuldade de entendimento não só da população mas, para todos que não acompanham com atenção as constantes mudanças legais, pode ser fatal tanto para os segurados e seus dependentes quanto para os empregadores, sendo que s primeiros correm o risco de ficar desamparados em caso de falecimento do arrimo da família, enquanto segundos, ao descumprirem os ditames legais acabam respondendo a inúmeros processos que podem gerar indenizações capazes de desestruturar completamente o financeiro das empresas, em especial das micro e pequenas empresas, podendo , inclusive, causar um rombo financeiro irrecuperável, tendo por consequência a falência.
Assim, com a análise das condições para percepção do benefício pensão por morte, objetiva-se demonstrar que a interpretação correta da legislação atual e preservação dos direitos do contribuinte e observância dos princípios constitucionais e da seguridade social são essenciais e, é de fundamental importância a conscientização e entendimento da legislação aplicada a fim de evitar prejuízos tanto ao empregador, ao empregado, ao segurado, aos dependentes e, até mesmo ao próprio sistema judiciário.
1. PRESSUPOSTOS DA PENSÃO POR MORTE
Os pressupostos para a pensão por morte são os seguintes: a) óbito do segurado; b) condição de dependência dos pretendentes. Tais requisitos para a pensão por morte estão descritos no art. 74 da Lei 8.213/91: “Art. 74. A pensão por morte será devida ao conjunto dos dependentes do segurado que falecer, aposentado ou não, a contar da data:”
Observe que não há exigência da qualidade de segurado como requisito para obtenção de tal benefício, sendo que se o legislador não determinou, não cabe a exigência por presunção.
O que se busca defender no presente trabalho é que para fazer jus ao benefício não é necessário estar na qualidade de segurado, bastando apenas ter exercido atividade remunerada ou, em caso mais específico, ter efetuado número suficiente de contribuições em período anterior, vez que a legislação brasileira veda o confisco.
Danilo Cruz Madeira afirma que: “A pensão por morte é prestação dos dependentes necessitados de meios de subsistência, substituidora dos seus salários, de pagamento continuado, reeditável e acumulável com aposentadoria. Sua razão de ser é ficar sem condições de existência quem dependia do segurado. Não deriva de contribuições aportadas, mas dessa situação de fato, admitida presuntivamente pela lei. (2009, p. 700)”.
De fato, analisando-se os demais ditames legais que serão demonstrados no deambular do presente, resta a certeza de que a exigência da qualidade de segurado para a concessão de referido benefício retira deste o cunho assistencial, sendo esta a base primeira de sua instituição, igualando-o aos demais benefícios do INSS.
A pensão por morte, como sua própria designação exalta, tem um caráter notoriamente assistencialista, sendo justamente por este fator primordial que há excepcionalidade quanto ao período de carência, diferenciando-o dos demais benefícios cuja carência é um requisito.
3. QUALIDADE DE SEGURADO
Os "períodos de graça", assim entendido determinado lapso temporal, no qual o segurado mantém a condição de segurado, com cobertura plena, mesmo após a interrupção da atividade remunerada e mesmo sem contribuição, podendo usufruir de seus benefícios em caso de necessidade comprovada, estão descritos no artigo 15 da Lei 8.213/91: “Art. 15. Mantém a qualidade de segurado, independentemente de contribuições: I – sem limite de prazo, quem está em gozo de benefício; II – até 12 (doze) meses após a cessação das contribuições, o segurado que deixar de exercer atividade remunerada abrangida pela Previdência Social ou estiver suspenso ou licenciado sem remuneração; III – até 12 (doze) meses após cessar a segregação, o segurado acometido de doença de segregação compulsória; IV – até 12 (doze) meses após o livramento, o segurado retido ou recluso; V – até 3 (três) meses após o licenciamento, o segurado incorporado às Forças Armadas para prestar serviço militar; VI – até 6 (seis) meses após a cessação das contribuições, o segurado facultativo.§ 1º O prazo do inciso II será prorrogado para até 24 (vinte e quatro) meses se o segurado já tiver pago mais de 120 (cento e vinte) contribuições mensais sem interrupção que acarrete a perda da qualidade de segurado.§ 2º Os prazos do inciso II ou do § 1º serão acrescidos de 12 (doze) meses para o segurado desempregado, esde que comprovada essa situação pelo registro no órgão próprio do Ministério do Trabalho e da Previdência Social.§ 3º Durante os prazos deste artigo, o segurado conserva todos os seus direitos perante a Previdência Social.§ 4º A perda da qualidade de segurado ocorrerá no dia seguinte ao do término do prazo fixado no Plano de Custeio da Seguridade Social para recolhimento da contribuição referente ao mês imediatamente posterior ao do final dos prazos fixados neste artigo e seus parágrafos.” (grifo nosso).
Dessa forma conclui-se que quem, por exemplo, contribui há mais de dez anos com a Previdência Social, somente perderá a qualidade de segurado depois de 24 meses sem contribuição.
Temos até aqui uma prorrogação da qualidade de segurado que permite uma extensão temporal ao requerimento do benefício em questão, o que não pode prevalecer sob pena de pisotear princípios Constitucionais e até da própria Previdência que serão analisados adiante.
Importante ressaltar neste momento que a Pensão por morte é um benefício que independe de carência, nos termos do artigo 26, I, da Lei 8.213/91, ou seja, não exige número mínimo de contribuições. Em assim sendo, não tem pertinência que para a obtenção do benefício em questão seja exigida a qualidade de segurado, isto porque, se inexiste carência não se tem igualmente, como falar na perda da qualidade de segurado.
Conforme já dito, a qualidade de segurado se mantém enquanto, e algum tempo após, o segurado mantenha-se em dia com suas contribuições. Ora, se não há exigência de contribuições, como pode haver exigência de qualidade de segurado? É absolutamente contraditório. Não há como se vislumbrar uma perda da qualidade de segurado haja vista que inexiste carência.
4. ANÁLISE FRENTE AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
O artigo 102, da Lei nº. 8213/91, assim dispõe: “Art. 102. A perda da qualidade de segurado importa em caducidade dos direitos inerentes a essa qualidade. § 1º A perda da qualidade de segurado não prejudica o direito à aposentadoria para cuja concessão tenham sido preenchidos todos os requisitos, segundo a legislação em vigor à época em que estes requisitos foram atendidos. § 2º Não será concedida pensão por morte aos dependentes do segurado que falecer após a perda desta qualidade, nos termos do art. 15 desta Lei, salvo se preenchidos os requisitos para obtenção da aposentadoria na forma do parágrafo anterior”. (grifo nosso).
Diante de tais conceitos legislativos temos que, com base no artigo 26, I, da Lei 8.213/91, chega-se à conclusão de que o art. 15, da mesma Lei, não pode ser aplicado à pensão por morte e, inclusive, torna sem efeito o parágrafo segundo do artigo 102.
Não se pode deixar de considerar que na aplicação da lei, deve-se atender aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum, sendo claro no caso em estudo que estamos diante de uma derrogação da Lei, vez que uma parte desta torna-se sem efeito pela incompatibilidade das disposições.
A interpretação sistemática e teleológica do disposto no §2º do art. 102 da Lei nº 8.213/91, após o advento da Emenda 20/98 que deu caráter contributivo à previdência social, conduz a entendimento que afasta expressamente o quesito da qualidade de segurado para a concessão do benefício de aposentadoria por idade, principalmente após a edição da Lei nº 10.666, não mais se justificando a interpretação até então dada ao em questão, desprezando-se a carência já cumprida por quem veio a falecer após perder a qualidade de segurado.
Segundo lição da ilustre Maria Helena Diniz, a ciência jurídica exerce funções relevantes, não só para o estudo do direito, mas também para a aplicação jurídica, viabilizando-o como elemento de controle do comportamento humano ao permitir a flexibilidade interpretativa das normas, autorizada pelo art. 5º da Lei de Introdução, e ao propiciar, por suas criações teóricas, a adequação das normas no momento de sua aplicação. (2007, p.145).
Quanto ao fim social, ela continua: “pode se dizer que não há norma jurídica que não deva sua origem a um fim, um propósito ou um motivo prático, que consistem em produzir, na realidade social, determinados efeitos que são desejados por serem valiosos, justos, convenientes, adequados à subsistência de uma sociedade, oportunos, etc.” (2007, p.171).
Desta forma, percebe-se que toda interpretação legislativa deve sempre ter por base a concretização de um valor positivo, visando sempre o bem comum, respeitando assim o indivíduo e a coletividade.
A Constituição Federal, que é nossa Lei maior, sendo fato que nenhuma disposição legal poderá afrontá-la, trazendo em seu bojo inúmeras disposições que devem ser rigorosamente observadas, vez que sua finalidade maior é garantir o bem comum.
Já em seu artigo 1º dispõe como fundamentos da República Federativa do Brasil, a Dignidade da Pessoa Humana (III) e os Valores Sociais do trabalho (IV). Lembrando que a pensão por morte tem um caráter notoriamente assistencialista, presumindo-se seu caráter alimentar, como poderá uma pessoa ter uma vida digna se não tiver alimento para sua subsistência e, ainda, nos casos que há contribuições anteriores, não se pode simplesmente ignorar o fato de ter o indivíduo contribuído com a inserção de capital no sistema previdenciário, se considerarmos que para trabalhadores empregados a contribuição é obrigatória.
Importante lembrar que a Previdência Social possui caráter contributivo retributivo, ou seja, embora para a pensão por morte não exista exigência de carência, ou seja, contribuições, os valores eventualmente contribuídos devem ser retribuídos em forma de benefício, obedecidas as demais exigências legais, que no caso é apenas a qualidade de dependente e a morte do segurado.
Ignorar os valores embutidos no sistema como contribuição caracteriza confisco, o que também é vedado pelo artigo 150, IV da Carta Magna. Não se pode tratar o trabalhador como uma peça sujeita a preço de mercado descartável quando não se presta mais à sua finalidade.
Em seu artigo 37, caput, a Constituição Federal determina que a Administração Pública deverá obedecer, dentre outros princípios, ao da legalidade e, com isso, não tem como deixar de aplicar as normas jurídicas que tratem da matéria alusiva, que, no caso em apreço, refere-se ao artigos 26, inciso I, e 102, § 1º, da Lei nº 8.213/91, onde não se tem qualquer exigência de continuidade da condição de segurado para que os dependentes dele façam jus à pensão por morte, até mesmo pelo fato de que não exige qualquer pagamento, conforme já analisado.
5. ANÁLISE FRENTE AOS PRINCÍPIOS PREVIDENCIÁRIOS
Os princípios da Seguridade Social, vêm esculpidos no artigo 194 da Constituição Federal, dentre os quais merece destaque o previsto em seu inciso II, qual seja, a Uniformidade e Equivalência dos benefícios.
Diante de tal disposição há que se trazer à baila o disposto no artigo 3º da Lei 10.666/03 que determina “A perda da qualidade de segurado não será considerada para a concessão das aposentadorias por tempo de contribuição e especial”.
Assim, mais uma vez confrontando dois dispositivos, conclui-se que não se pode exigir a manutenção da qualidade de segurado para concessão da pensão por morte aos herdeiros do de cujus, vez que não se impõe a mesma exigência para os casos de aposentadoria citados. É uma afronta direta a um princípio da própria Previdência.
Vale relembrar aqui que o artigo 102, § 2º da Lei 8.213/91, já anteriormente debatido, dispõe que se forem preenchidos os requisitos para obtenção da aposentadoria a pensão por morte será concedida, não podendo se limitar a análise para concessão dos benefícios apenas na questão da qualidade de segurado do falecido.
Ou seja, se o de cujus houver contribuído com um grande número de contribuições, mas na data do óbito não tiver completado idade para se aposentar e não possuir qualidade de segurado, seus dependentes ficarão desamparados. Da mesma forma, se o falecido não tiver a qualidade de segurado anteriormente ao óbito, mas tiver contribuído apenas o suficiente para cumprir a carência de uma aposentadoria e ter a idade exigida, poderá praticamente aposentar-se post mortem, resguardando seus dependentes.
Uma pessoa que, exemplificando, que tenha começado a trabalhar e a contribuir com 16 (dezesseis) anos de idade, e tenha trabalhado e contribuído por 20 (vinte) anos, quando estaria com 36 anos de idade perdesse o emprego e ficasse sem contribuir por 4 (quatro) anos, vindo a falecer com 40 (quarenta) anos de idade, deixaria seus dependentes desamparados, mesmo contando com 240 contribuições.
Tal situação leva a crer que devemos esquecer o princípio da Isonomia, nos levando à conclusão de que todos são iguais perante a Lei, desde que se mantenham úteis ao sistema.
6. OBRIGAÇÃO DO EMPREGADOR
Outra questão muito comum quanto ao indeferimento do benefício em questão, se refere aos casos em que o segurado, embora tenha trabalhado durante toda a vida, não possui contribuições feitas, em razão da inadimplência de seu empregador ou tomador de serviços, situação corriqueira no caso das empregadas domésticas.
Novamente pede atenção ao fato de que não é requisito legal para a concessão do benefício a carência.
Para resolver tal questão, cabe trazer à baila o disposto no Enunciado 18 do Conselho de Recursos da Previdência Social (CRPS) de 26/10/2015, que dispõe o seguinte: “Seguridade social. CRPS. Benefício. Não se indefere sob o fundamento de falta de recolhimento de contribuição previdenciária quando esta obrigação for devida pelo empregador”.
A própria Previdência se contradiz quando nega o benefício sob tal argumento, eis que contraria a decisão de seu próprio Conselho.
CONCLUSÃO
Sem a pretensão de esgotar o tema, o presente artigo foi escrito com o escopo de, essencialmente, chamar a atenção para as divergências legislativas e interpretações contrárias aos interesses sociais na concessão do benefício de Pensão por Morte, que tantos prejuízos causam àqueles de menor instrução e menor poder aquisitivo , que não podem se defender ou ter quem os defenda frente a um sistema que, ao contrário da ideologia que o criou, busca de todas as maneiras dificultar a concessão dos direitos aos trabalhadores nos momentos em que mais necessitam.
A natureza muito mais assistencialista da pensão por morte, acrescido do fato de ser ela devida a dependentes do falecido, desautorizam qualquer interpretação que venha de exigir a manutenção da qualidade de segurado.
A visão que se tem é de uma ameaça à democracia, que se dá no instante em que a cidadania do trabalhador e o valor do trabalho, entendido como valor social do emprego constitucionalmente protegido, é aviltado e desrespeitado frequentemente. Um Estado só é democrático na medida em que assegura aos seus cidadãos um arcabouço protetivo eficaz.
Ainda que possa parecer utópico desejar uma sociedade justa e igualitária, onde os ditames constitucionais sejam plenamente respeitados, não podemos deixar de crer que um dia alcançaremos o verdadeiro significado da democracia, ainda que haja a necessidade da prática de uma advocacia de guerrilha, devendo os advogados que atuam na área previdenciária estarem preparados para uma batalha constante a favor dos mais necessitados.
Informações Sobre o Autor
Flavia Aparecida Pacheco
Advogada Especialista em Direito e Processo do Trabalho Pós-graduada pela Faculdade Legale e Pós-graduanda em Direito da Seguridade Social pela Faculdade UCAM Universidade Cândido Mendes