Resumo: O presente artigo fará uma abordagem delimitada quanto à constitucionalidade da Instrução Normativa 39/2016, editada pelo Tribunal Superior do Trabalho, a qual dispõe sobre as normas do CPC de 2015 aplicáveis ou não ao processo do trabalho, atendo-se a verificar o conteúdo deste ato administrativo e sua compatibilidade com as demais normas de nosso ordenamento jurídico. O objetivo principal da pesquisa será demonstrar, com base em uma análise doutrinária acurada e nas atuais discussões a respeito do problema, a inconstitucionalidade desta instrução, seja por desrespeito a diversas regras constitucionais e legais, seja por ofensa direta a vários princípios instituídos pela Carta Magna. Ficará demonstrado ao final que não é papel de uma instrução normativa o de criar direitos e impor obrigações, também não pode uma instrução ser elevada ao status de súmulas, precedentes ou orientações jurisprudenciais, por não possuir o mesmo processo democrático de criação de tais normas. Por todo exposto, restará comprovado que não há como sustentar que a mera insuficiência dos dispositivos celetistas, a suposta ausência de normas justas e atuais, a morosidade do Legislativo na elaboração de normas e a necessidade de uniformização dos entendimentos jurisprudenciais, outorguem poderes completamente desvinculados da lei a um Tribunal, em atuação administrativa, para legislar sobre normas de caráter processual, em completo desrespeito à nossa Constituição.
Palavras-chave: Instrução Normativa. Tribunal Superior do Trabalho. Competência. Inconstitucionalidade.
Sumário: 1. Introdução; 2. Noções gerais e relevância das instruções normativas do TST. Análise da IN 39/2016: uma antecipação para resolução do problema da aplicação do novo CPC ao processo do trabalho; 2.1 As instruções normativas: conceito, função e aplicação jurídica; 2.2 Da análise das últimas Instruções Normativas do Tribunal Superior do Trabalho; 2.3 Do estudo específico da IN 39/2016; 2.4 Legalidade/Constitucionalidade da IN 39/2016 – acertos; 2.4.1 Utilização conforme a competência do instrumento normativo; 2.5 Da (In)constitucionalidade e/ou (I)legalidade da IN 39/2016 – erros; 2.5.1 Usurpação de competências do Poder Judiciário frente ao Poder Legislativo: Um problema de ordem constitucional; 2.5.2 Instrução normativa como fonte autônoma e geral – Impossibilidade; 2.5.3 Insuficiência de maturação na análise da problemática. Uma ofensa ao princípio do devido processo legal; 2.5.4 Supressão de instâncias. Efetiva diminuição dos poderes dos juízos e tribunais inferiores; 2.5.5 Da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5516; 3. Considerações finais; Referências.
1. INTRODUÇÃO
A cada novo momento histórico na sociedade, novos são também os direitos pretendidos, e novos são os problemas apresentados que precisam de solução concreta, mediante efetiva tutela jurisdicional.
Ocorre que, como se sabe, a evolução dos nossos complexos normativos nem sempre conseguem acompanhar estas modificações sociais, ficando quase sempre um passo atrás destes avanços.
É em decorrência desta morosidade legislativa que, cada vez mais, o Poder Judiciário vem atuando no sentido de suprir as lacunas constatadas em nosso ordenamento jurídico, no que se convencionou chamar de “ativismo judicial”.
Com o processo trabalhista essa situação é ainda mais evidente, na medida em que diante do seu diminuto número de textos normativos, o mesmo se utiliza da aplicação subsidiária de outros diplomas jurídicos, consoante autorizado pela própria Consolidação das Leis do Trabalho.
Por isso, quando um ramo jurídico, como vem acontecendo com o processo civil, se moderniza ao ponto de se mostrar, aparentemente, mais eficaz que o processo laboral na prestação eficiente da tutela jurisdicional, muito se discute a respeito da abrangência de sua transposição para a esfera trabalhista.
Visando suprimir esses embates acerca das lacunas legais, os Tribunais têm se utilizado de mecanismos diversos para evitar o vedado “non liquet”.
Destarte, o artigo em comento tem por objetivo analisar, de forma crítica, a utilização desmedida de instruções normativas pelos nossos Tribunais trabalhistas, mais especificamente, a Instrução Normativa nº. 39/2016, que está trazendo imensos reflexos na jurisprudência de nossos Tribunais, servindo, inclusive como supedâneo de cancelamentos e revisões de súmulas e orientações jurisprudenciais.
O tema a ser apresentado terá como foco a verificação da força legal das instruções normativas editadas pelo Tribunal Superior do Trabalho, em especial da Instrução Normativa nº. 39/2016, que tem por objeto o estabelecimento de parâmetros quanto à aplicabilidade ou não das normas do novo Código de Processo Civil de 2015 ao Processo do Trabalho.
O problema trazido no presente estudo será identificar os acertos e, principalmente, os erros, equívocos e falhas deste ato administrativo, para, finalmente, identificar a inconstitucionalidade deste diploma, demonstrando a necessidade do estabelecimento de limitações a respeito da abrangência e do conteúdo das instruções normativas editadas pelo Tribunal Superior do Trabalho.
2. NOÇÕES GERAIS E RELEVÂNCIA DAS INSTRUÇÕES NORMATIVAS DO TST. ANÁLISE DA IN 39/2016: UMA ANTECIPAÇÃO PARA RESOLUÇÃO DO PROBLEMA DA APLICAÇÃO DO NOVO CPC AO PROCESSO DO TRABALHO
2.1. As instruções normativas: conceito, função e aplicação jurídica.
A definição do que sejam as instruções normativas não é facilmente encontrada nos livros de estudo de direito e processo do trabalho. Seu conceito, quando disposto, é trabalhado nos compêndios doutrinários trabalhistas apenas de forma superficial.
Por isto, buscaremos a definição do instituto em outros ramos jurídicos, em especial no direito administrativo, tributário e constitucional, para estudar de forma mais detalhada o assunto em análise.
Inicialmente, cumpre esclarecer que a natureza jurídica do instituto consagrado no Direito Administrativo é enquadrada como espécie de ato administrativo classificado quanto à forma de sua exteriorização. Deste modo, é necessário verificar, a princípio, o conceito de ato administrativo em geral para, só então, chegar à definição de instrução normativa como ato administrativo específico.
De acordo com o conceito trazido por Di Pietro[1], é possível entender o ato administrativo como “[…] a declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, com observância da lei, sob regime jurídico de direito público e sujeita a controle pelo Poder Judiciário”.
Mazza[2] aduz que as instruções normativas são atos expedidos “pelo superior hierárquico e destinadas aos seus subordinados, são ordens escritas e gerais para disciplina e execução de determinado serviço público”.
Considerando as instruções normativas como espécie do gênero maior de atos administrativos, o consagrado administrativista Gasparini[3] as definem como “a fórmula mediante a qual os superiores expedem normas gerais, de caráter interno, que prescrevem o modo de atuação dos subordinados em relação a certo serviço […] Assemelha-se ao aviso, à circular e à ordem de serviço”.
No âmbito tributário, os Tribunais definem as Instruções Normativas como sendo uma espécie de “regulamento” com o objetivo exclusivo de clarificar as normas do ordenamento. Vejamos o seguinte julgado do TRF da 3ª Região[4]:
“CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. PIS IMPORTAÇÃO. COFINS-IMPORTAÇÃO. LEI 10.865/2004. CRÉDITO. CORREÇÃO MONETÁRIA. CABÍVEL. TAXA SELIC. […] A Instrução Normativa nº 457/2004 da DRF veda a utilização dos créditos na hipótese de aquisição de bens usados. Em nosso sistema jurídico, a natureza das instruções normativas é o de regulamento, tendo elas a função de aclarar os preceitos legais para a melhor aplicação da norma. Desta forma, revela-se incompatível com o princípio da estrita legalidade a instrução normativa que além de aclarar o dispositivo legal, cria novas hipóteses de exação ou restringe direitos do contribuinte que a lei lhe conferiu. Desta forma, entendo que a IN SRF Nº 457/2004 extrapolou os limites a elas impostos. […]. Apelação provida e remessa oficial não provida”. (TRF-3 – AMS: 5702 SP 0005702-48.2008.4.03.6103, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL NERY JUNIOR, Data de Julgamento: 27/11/2014, TERCEIRA TURMA). (grifos nossos)
Em artigo intitulado “A lei e a instrução normativa: A força da Instrução Normativa”, Oliveira[5] dispõe que:
“A Instrução Normativa pode ser definida como um ato puramente administrativo, uma norma complementar administrativa, tão somente. Esta tende a completar o que está em uma Portaria de um superior hierárquico, num Decreto Presidencial ou em uma Portaria Interministerial. Desta forma, a Instrução Normativa jamais poderá inovar o ordenamento jurídico. Assim, a Instrução Normativa nunca poderá passar colidir com Leis ou decretos, pois estes devem guardar consonância com as Leis”. (grifos nossos)
Como se vê, mesmo nestes diplomas jurídicos, ainda persiste certa indefinição e inconsistência sobre o que seja, efetivamente, instrução normativa para o ordenamento jurídico brasileiro.
Talvez por isso seu emprego venha sendo utilizado de maneira estranha e duvidosa, ora sendo aplicado de maneira correta, com base nas funções que, indiscutivelmente, lhe pertençam, ora aplicado em substituição ou em oposição às normas do sistema jurídico, fugindo de sua finalidade primordial, de maneira a subverter a ordem legal do sistema constitucional, especialmente a relativa aos procedimentos do processo legislativo.
Apesar da celeuma existente em torno da conceituação deste instituto, temos firmado na doutrina e jurisprudência algumas funções básicas das Instruções Normativas. São elas: esclarecer ou clarificar as normas legais postas; dispor sobre os procedimentos administrativos para aplicação de determinada norma pelo Tribunal que a instituir; estabelecer os métodos de utilização de algum instituto jurídico no âmbito interno dos Tribunais, recomendando (e não impondo) a melhor forma de aplicação para os órgãos inferiores; servir de complemento às leis postas, como forma de dar a melhor interpretação possível para os dispositivos que contenham cláusulas abertas etc.
Por sua vez, regra geral, estes instrumentos não servem para: invadir a esfera de competência constitucional ou legal; revogar dispositivo de lei; ofender ou ir de encontro a preceitos princiológicos; modificar redação de norma ou aplicá-la com restrições não previstas em lei; dar interpretação contrária à lei ou a Constituição; estabelecer parâmetros normativos vinculativos para os Tribunais e juízes inferiores, reduzindo sua independência funcional; criar direitos e obrigações para os jurisdicionados; aplicar sanções etc.
Isto porque, apesar das instruções normativas possuírem grande relevância, elas ainda não são aceitas como fontes formais do direito, na medida em que não preenchem os requisitos para alcançar este fim. Seu âmbito de aplicação é bem mais restrito do que as normas (regras e princípios); não possuem a mesma força normativa dos decretos executivos (regulamentos e decretos autônomos); não conseguem, em regra, vincular os demais Poderes do Estado; nem mesmo têm eficácia erga omnes, ou seja, aplicação para todos os destinatários sociais, só se aplicando no ambiente interno do Tribunal prolator da resolução.
Considerando a insuficiência das instruções normativas para serem reconhecidas como fontes do direito laboral, Delgado[6], ao tratar sobre portarias, avisos, instruções e circulares, dispõe que “Os diplomas dessa natureza, em princípio, não constituem fontes formais do Direito, dado que obrigam apenas os funcionários a que se dirigem e nos limites da obediência hierárquica. Faltam-lhes qualidades da lei em sentido material: generalidade, abstração, impessoalidade”.
Deste modo, verifica-se que não é papel das Instruções Normativas o de servir como integradora de lacuna normativa ou mesmo para suprimir omissões valorativas, seu papel é muito mais elucidativo e interpretativo do que propriamente normativo.
2.2. Da análise das últimas Instruções Normativas do Tribunal Superior do Trabalho
O Tribunal Superior do Trabalho, seguindo outros órgãos do Poder Judiciário e de todos os demais poderes estatais, utiliza-se de resoluções e instruções normativas, bem como outros mecanismos administrativos, como portarias, avisos e circulares, para organizar suas estruturas e demais procedimentos internos do Tribunal, conforme prevê seu regimento, autorizado pelo art. 96, I, “a” da Constituição Federal.
No que se referem, especificamente, as Instruções Normativas do TST já foram 40 (quarenta) as publicadas desde 1982 até hoje. Em quase sua maioria podemos observar que foram utilizadas para definir parâmetros acerca de procedimentos a serem adotados no âmbito interno do Tribunal. Assim foi com a IN 09/1996 que estabeleceu os procedimentos a serem adotados na Justiça do Trabalho, relativamente ao arbitramento das custas processuais, com a IN 10/1997, que estabeleceu os procedimentos quanto às contribuições previdenciárias dos representantes classistas, e, dentre outras, com a IN 20/2002, que dispõe sobre os procedimentos para recolhimento de custas e emolumentos devidos à União no âmbito da Justiça do Trabalho.
Ocorre que, de uns tempos para cá, esta utilização vem se alargando, passando a Corte Trabalhista Suprema a empregar as Instruções Normativas para suprir os vácuos normativos de sua legislação, em patente desrespeito a diversos princípios e regras constitucionais, como os princípios da reserva legal e da separação de poderes, bem como a regra de competência legislativa privativa da União (art. 22, I, CF).
Por este motivo, vários dispositivos de diversas instruções normativas elaboradas pelo Tribunal Superior do Trabalho, no decorrer dos últimos anos, foram considerados como ilegais ou inconstitucionais.
Em 1997, a IN 11/1997 do TST, atualmente revogada pela IN 32/2007, foi declarada parcialmente inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, nos termos da ADI 1662-7/SP. Na petição inicial desta ação de controle concentrado, o Governo do Estado de São Paulo arguiu a inconstitucionalidade de tal ato administrativo por violar os artigos 19, 22 e 100 e parágrafos da Constituição Federal, bem como os princípios da isonomia, da federação e da divisão de poderes.
Já em 2005, a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, em um contexto diferenciado, mas similar ao que aconteceu com a IN 39/2016, conforme veremos a seguir, ao analisar a aplicação da Instrução Normativa nº 28 do TST, considerou-a ilegal e solicitou a correção de seu texto por contrariar a legislação vigente. Em trecho do ofício do Presidente da Comissão de Tecnologia da Informação do Conselho Federal da OAB encaminhado ao então Presidente do Conselho Federal da OAB[7] alertando-o acerca de tal problema evidenciado naquele instrumento normativo, o autor afirmou que:
“Neste sentido, a Instrução Normativa nº 28, do Tribunal Superior do Trabalho publicada em 7 de junho do corrente (cópia anexa), merece elogios por dar início a uma quebra de paradigmas, propiciando aos advogados o protocolo eletrônico de peças sem a necessidade da juntada da versão em papel “a posteriori”. […] Entretanto, certamente causada pela ânsia de aprimorar o funcionamento da máquina judiciária, a referida instrução comete uma ilegalidade, que, reparada, trará de volta todo o brilho e oportunidade que seus redatores desejaram. […] Sendo assim, é imperiosa a correção, no texto da referida Instrução. […] Se este reparo não ocorrer estaremos diante de um cenário futuro desafiador diante deste precedente […]”. (grifos nossos)
Esta situação se repetiu com a Resolução Administrativa nº 1470 de 24 de agosto de 2011 do Tribunal Superior do Trabalho, objeto da ADI 5474. E, mais recentemente, no dia 05 de maio de 2016, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5516), objetivando suspender a eficácia da IN 39/2016.
2.3. Do estudo específico da IN 39/2016.
A evolução do diploma processual civil trouxe consigo diversos debates sobre o diálogo das fontes e a heterointegração dos diplomas cível e trabalhista, diante de uma possível compatibilidade entre estes dois subsistemas jurídicos.
E se as mínimas alterações no revogado Código de Processo Civil de 1973 já desencadeavam dúvidas em torno de sua aplicação ou não ao processo do trabalho, imagine a promulgação de um código completamente novo e modernizado como o CPC de 2015.
Neste período de discussões e estudos acerca da viabilidade da aplicação dos preceitos inovadores contidos no novo CPC ao processo laboral, o Tribunal Superior do Trabalho resolveu publicar a Instrução Normativa nº. 39/2016.
A Instrução Normativa nº. 39/2016 foi publicada através da Resolução 203 de 15 de março de 2016, do Pleno do Tribunal Superior do Trabalho, dias antes da entrada em vigor do novo CPC, que se deu em 18 de março do mesmo ano.
O instrumento em comento versa a respeito dos reflexos do novo Código de Processo Civil de 2015 ao Processo do Trabalho, evidenciando os pontos compatíveis e incompatíveis destes dois diplomas, de maneira não exaustiva, conforme exposto em suas considerações iniciais.
O Ministro João Oreste Dalazen[8], Coordenador da Comissão de Ministros do TST, já na Breve Exposição de Motivos da mencionada Instrução Normativa deixou claro os objetivos perseguidos pelo Tribunal na elaboração desta norma, nos seguintes termos:
“A preocupação com os profundos impactos do novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105 de 17.03.2015) no processo do trabalho, mais que aconselhar, impõe um posicionamento do Tribunal Superior do Trabalho sobre a matéria, mediante Instrução Normativa. […] O escopo primacial foi o exame de algumas das mais relevantes questões inovatórias e, em especial, das questões jurídico-processuais mais controvertidas que o NCPC suscita, com os olhos fitos no campo trabalhista. […] Enfim, no que tange às normas aplicáveis, a Comissão buscou, de forma bastante criteriosa e seletiva, transpor para o processo do trabalho as inovações relevantes que valorizam a jurisprudência consolidada dos tribunais, privilegiam a qualidade da tutela jurisdicional e não descuram da segurança jurídica”. (grifos nossos)
Ante o exposto e da análise de suas Considerações Iniciais, percebe-se que tal Instrução teve como objetivo principal tentar acalmar os ânimos dos operadores do direito, buscado soluções prévias para os questionamentos trazidos com a promulgação e vigência deste novo diploma jurídico.
Todavia, a princípio, não foi este o sentimento externado por estes atores sociais. A sensação, ao que me parece, foi de levantar maiores indagações e suspeitas acerca da constitucionalidade/legalidade do instrumento em questão. Afigura que a antecipação prematura na elaboração de uma norma com tantas disposições superficiais acerca de um assunto de tão grande fragilidade e tantos posicionamentos controversos trouxe problemas ainda maiores para os destinatários destas normas. Será mesmo que a norma em questão transmitiu segurança jurídica aos jurisdicionados como ela mesma prevê? Será que a celeridade processual pode atuar em detrimento do devido processo legal, sem nenhuma ponderação? Será que era tão imperativa a necessidade do Tribunal Superior do Trabalho se manifestar acerca deste assunto que desnecessária a observância dos procedimentos legais previstos para tal desiderato?
É por essas e outras indagações que Garcia[9], assim como tantos outros doutrinadores e estudiosos no assunto começaram a questionar a legitimidade deste ato administrativo.
“Questiona-se, entretanto, a legitimidade democrática da referida norma administrativa, ao fixar, de modo unilateral, preceitos genéricos a respeito de questões ainda não submetidas à sedimentação da jurisprudência, bem como ao adotar posições que certamente não são unânimes na interpretação doutrinária e científica a respeito da matéria.” (grifos nossos)
Destarte, o objetivo central deste artigo será verificar a constitucionalidade e/ou legalidade de algum dos dispositivos ordenados na Instrução Normativa nº. 39/2016, verificando os pontos positivos e negativos deste instrumento normativo e investigando sua real importância para a sociedade jurídica.
2.5. Legalidade/Constitucionalidade da IN 39/2016 – acertos
Em uma primeira análise do diploma, merece destaque a iniciativa do Tribunal Superior do Trabalho ao editar e publicar uma Instrução Normativa buscando dirimir, em primeira mão, possíveis controvérsias sobre a aplicação do novo CPC ao processo do trabalho.
Parecia que tudo estava prestes a se encaixar perfeitamente, na medida em que o Tribunal, de forma célere e objetivando a segurança jurídica dos jurisdicionados, conforme atesta nas Considerações Iniciais da Resolução que aprovou o instrumento citado, visava uniformizar o entendimento ainda não discutido em sua gênese pela jurisprudência e supostamente pacificar os conflitos sociais que porventura viessem a existir. Uma louvável iniciativa se não fosse tão comprometedora como veremos mais a frente.
2.5.1. Utilização conforme a competência do instrumento normativo
É certo que em alguns itens da Instrução Normativa podemos observar que esta cuidou somente de constatar o que já vem sendo aplicado pela jurisprudência e defendido pela doutrina dominante. Em outros pontos vê-se que a mesma apenas buscou esclarecer alguns entendimentos que estavam, aparentemente, obscuros. Nestes aspectos, andou bem a IN 39/3016, uma vez que se limitou a atuar em conformidade com as suas funções informativa, complementar e esclarecedora.
Por exemplo, o art. 1º da IN 39, ao afirmar que o novo CPC se aplica supletiva e subsidiariamente ao processo do trabalho, nos termos dos artigos 769 e 889 da CLT e art. 15 do CPC, esclarece a compatibilidade entre estes dispositivos e dirime a dúvida existente quanto à revogação dos artigos celetistas pelo novo código. Ao fazer esta constatação, estaria o ato em questão apenas esclarecendo uma discussão que há em torno da aplicação/interpretação de duas normas jurídicas em vigor, o que como vimos, faz parte de uma de suas funções – função esclarecedora.
O §1º do art. 1º da IN 39/2016 também estabeleceu norma que está encaixada dentro das funções deste ato administrativo, na medida em que tão só replica um posicionamento já adotado na CLT e na sedimentada jurisprudência trabalhista, ao tratar do princípio da irrecorribilidade das decisões interlocutórias na Justiça do Trabalho – função informativa. O mesmo ocorre com o §2º que indica o prazo de 08 (oito) dias para interpor recursos trabalhistas.
O caput do art. 4º, por sua vez, aponta que é aplicável ao processo do trabalho os artigos 9º e 10 do NCPC que tratam do princípio do contraditório, o que nem precisaria estar descrito em instrução normativa, pois se está diante de uma norma constitucional (art. 5º, LV, CF). Mais uma vez, é a função informativa e esclarecedora da IN 39 atuando em consonância com as balizas deste ato administrativo.
No entanto, o instrumento normativo já começa a apresentar falhas ao distribuir, unilateralmente, normas não aplicáveis (artigos 2º; 5º; 11), aplicáveis (artigos 3º, 10) e aplicáveis com ressalvas (artigos 4º; 6º; 15) ao processo trabalhista, em patente desrespeito a diversas regras e princípios do nosso ordenamento jurídico.
2.6. Da (In)constitucionalidade e/ou (I)legalidade da IN 39/2016 – erros
Se é certo que podemos constatar algumas virtudes na Instrução Normativa nº. 39/2016, quando a mesma se atém apenas a esclarecer o conteúdo da nova norma processual civil em vigor e clarificar alguns pontos controvertidos, é tão mais patente a possibilidade de se verificar um número ainda maior de equívocos na elaboração e no conteúdo de tal diploma. São vários os erros que podemos constatar de pronto neste instrumento. Alguns destes serão enumerados e detalhados a seguir.
2.6.1. Usurpação de competências do Poder Judiciário frente ao Poder Legislativo: Um problema de ordem constitucional.
Como é cediço, cada Poder estatal (Executivo; Legislativo e Judiciário) possui funções específicas e típicas para desenvolver suas atividades de modo independente e autônomo dos demais. Em suma, é função típica do Executivo a de administrar o Estado, do Legislativo a de produção normativa e fiscalização orçamentária e do Judiciário a de aplicação do direito ao caso concreto posto à sua solução.
Apesar de possuir estas funções ordinárias, cada um dos poderes recebeu da Constituição Federal missões anômalas, como forma de manter balanceada e harmônica esta subdivisão, são as chamadas funções atípicas.
Em decorrência dessas atribuições extraordinárias é que cada um dos Poderes desempenham funções típicas dos demais. Porém, esta atribuição deve ser expressamente distribuída pela Constituição, não podendo ser criada ao alvedrio de cada Poder ou órgão institucional. Somente o diploma normativo maior, ápice do escalonamento jurídico, é capaz de fazer esta distribuição de competências atípicas.
O estabelecimento de funções atípicas faz parte do que se convencionou chamar de “mecanismos de freios e contrapesos”, garantindo a harmonia no convívio dos órgãos de todos os poderes estatais e limitando a incidência de um sobre o outro, com vistas a manter o controle entre os poderes e evitar a usurpação das funções entre eles.
Ao tratar sobre o assunto, Silva[10] relata:
“[…] De outro lado, cabe assinalar que nem a divisão de funções entre os órgãos do poder nem sua independência são absolutas. Há interferências, que visam ao estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos, à busca do equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar o arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos governados […] Tudo isso demonstra que os trabalhos do Legislativo e do Executivo, especialmente, mas também do Judiciário, só se desenvolverão a bom termo, se esses órgãos se subordinarem ao princípio da harmonia, que não significa nem o domínio de um pelo outro nem a usurpação de atribuições, mas a verificação de que, entre eles, há de haver consciente colaboração e controle recíproco (que, aliás, integra o mecanismo) para evitar distorções e desmandos. A desarmonia, porém, se dá sempre que se acrescem atribuições, faculdades e prerrogativas de um em detrimento de outro”. (grifos nossos)
Pois bem. No que tange ao processo de criação de fontes normativas primárias, como as leis, de abrangência geral e abstrata, a Constituição deixou claro a competência privativa do Poder Legislativo, só delegando tal função, em situações excepcionais, ao Poder Executivo, nos casos de Medidas Provisórias, Leis Delegadas e de Decretos regulamentares ou autônomos. Porém, para o Poder Judiciário esta delegação foi ainda mais restritiva, não podendo o mesmo criar normas jurídicas de caráter abstrato. As normas criadas pelo Poder Judiciário, ao emitir uma decisão definitiva tem incidência concreta, direta e individualizada para as partes envolvidas no dissídio. Ademais, o poder de elaborar seu próprio regimento interno e, portanto, legislar, é uma garantia mais administrativa de controle dos Tribunais do que propriamente normativa, na medida em que suas disposições não irão vincular nenhum dos demais poderes em questão, nem ultrapassarão os muros daquele órgão estatal, não atingindo de forma direta os particulares.
Como se vê, a atividade legiferante do Poder Judiciário é bastante limitada. Isto não impede que o mesmo, no uso de suas atribuições administrativas, elabore atos administrativos como portarias, ordens de serviço e instruções, objetivando a melhoria da organização interna dos procedimentos de seus órgãos. Atente-se que aqui não se está mais falando no uso de atribuições atípicas legislativas (criação de normas gerais), mas sim na utilização de funções tipicamente administrativas do Poder Judiciário.
Ao elaborar um ato administrativo, como uma instrução normativa, o Poder Judiciário deve seguir os parâmetros legais, em estrita obediência ao princípio da legalidade formal (reserva legal), típico princípio que norteia as atividades da Administração Pública e que impõe aos administradores a atuação conforme preceitua a legislação. Não pode o administrador se furtar da observância deste vetor principiológico. Assim, uma Instrução Normativa não pode ir além ou ser contrária à lei.
Esta atuação em desconformidade com o princípio da reserva legal é inconstitucional e criticada por diversos autores, como faz Ferraz Jr.[11] ao tratar da atuação do Estado-gestor na elaboração de decretos regulamentares do Executivo. Note que o doutrinador estende tal vício na feitura de outros instrumentos normativos elaborados em desatenção aos procedimentos legais e constitucionais, como as portarias e instruções, nos seguintes termos:
“Os decretos que regulamentam leis […] devem servir ao fiel cumprimento da lei, não podendo, em tese, contrariar-lhe os conteúdos prescritivos nem acrescentar-lhes outros. Essa restrição está ligada aos valores de segurança e da certeza. Apesar disso, é conhecido o problema do moderno Estado-gestor que, em face da complexa celeridade das transformações econômicas, acaba por contrariar aquela restrição, produzindo, no rol das normas regulamentadoras, prescrições que ou são incompatíveis ou extrapolam as limitações legais. Isto, ademais, não ocorre apenas com os decretos, mas também com outros atos normativos do Executivo, como as portarias (atos administrativos ministeriais que estabelecem normas, em princípio, de eficácia individual e apenas para os órgãos da administração), instruções (atos administrativos internos que vinculam no âmbito de órgãos) etc. Na verdade, o advento e o crescimento do Estado-gestor tornou muito mais complexa a legislação como fonte do direito. Se no início ela pôde-se restringir à produção de leis, hoje abarca um rol enorme de atos, como resoluções, regimentos, instruções normativas, circulares, ordens de serviço etc. que, em tese (liberal), deveriam estar subordinadas às leis enquanto expressão da vontade do povo, mas que, na prática, implodem a chamada estrutura hierárquica das fontes”. (grifos nossos).
Portanto, se até mesmo um decreto deve, regra geral, obediência às leis, o que dizer de uma instrução normativa que nem ao menos é considerada fonte formal de direito?
Nota-se, que neste aspecto – elaboração da IN 39/2016 – o Tribunal Superior do Trabalho excedeu em sua competência, atuando de maneira a legislar sobre um assunto que foge das suas funções ordinárias e extraordinárias, conforme constata Cyntia Possídio[12], Diretora-Geral da Escola Superior de Advocacia da OAB/BA:
“Ocorre que o E. Tribunal acabou por exceder em sua competência, na medida em que, em lugar de dispor sobre procedimentos por meio do referido ato administrativo, editou diversas normas de conteúdo normativo-processual, numa clara postura legiferante desautorizada, que, em verdade, inverte a lógica judicial, para matar no nascedouro as discussões jurídicas que decerto emergirão da aplicação supletiva e subsidiária do Novo CPC ao Processo do Trabalho. […] Nessa medida, é questionável a legalidade da Instrução Normativa nº. 39/2016 do E. Tribunal Superior do Trabalho, cabendo-nos, assim, a reflexão sobre sua efetiva aplicação ao Processo do Trabalho”. (grifos nossos)
Não existe em nosso ordenamento nenhuma norma que autorize a delegação para que qualquer órgão do Poder Judiciário possa deliberar sobre a regulamentação de lei federal processual por meio de ato administrativo, como são as instruções normativas. Ao contrário, o art. 22, I da Constituição Federal prevê que é da competência privativa da União legislar sobre normas de processo, neste incluído o processo do trabalho. Nem mesmo o regimento interno do TST indica como função de seu Pleno a edição de normas sobre leis federais, consoante art. 4º da Lei 7.701/1988, que elenca as competências daquele Tribunal. E é claro que não haveria, pois isto não seria aceito. A violação constitucional se mostraria patente.
Cumpre ressaltar que a separação das funções estatais em poderes é considerada norma fundante do nosso Estado Democrático de Direito, princípio sensível do sistema constitucional, inabalável e inafastável, conforme preceitua o art. 60, §4º, III de nossa Constituição Cidadã. Não se pode menosprezar este tão importante preceito constitucional. É preciso que se mantenha íntegro o sistema dos Poderes da República, como forma de respeito a nossa Constituição. Qualquer instrumento normativo que vise a suprimir ou mitigar esta regra deve ser invalidado pela pecha da inconstitucionalidade.
2.6.2. Instrução normativa como fonte autônoma e geral – Impossibilidade.
As instruções normativas são espécies de atos administrativos e veiculam comandos de agentes hierarquicamente superiores para os seus subordinados acerca do tratamento específico a ser dado a certo procedimento interno de seus órgãos.
Por sua vez, não são consideradas fontes formais de direito, justamente pela ausência dos atributos da abstração, da autonomia e da generalidade.
Destarte, tais instrumentos não podem ser utilizados em substituição as normas jurídicas. Foge as funções de uma IN servir como se lei fosse. Primeiro porque não é, como já vimos, competência do Poder Judiciário, especificamente do TST, elaborar normas de conteúdo normativo-processual. Segundo porque o processo legislativo de formação de uma lei é muito mais democrático, participativo e complexo do que o de um ato normativo, como as instruções. E, finalmente, porque a abrangência de uma IN é demasiadamente menor do que a de uma lei.
Ademais, uma Instrução Normativa não é nem ao menos considerada um decreto regulamentar. Primeiramente, porque a Constituição distribuiu a competência para elaborar este instrumento normativo ao Poder Executivo e não ao Judiciário. Segundo, porque a instrução normativa não é fonte legal, mas sim ato administrativo. Não é, assim, apta a fazer julgamentos interpretativos acerca de uma norma, contrários ou diversos da própria lei. Dar a uma Instrução Normativa a mesma finalidade de uma lei ou até mesmo de um decreto executivo é ultrapassar os limites constitucionais travados pelos nossos constituintes.
Note que as Instruções Normativas também não podem ser aceitas como espécies dos antigos prejulgados que vigoraram no período anterior à Constituição Federal de 1946. Isso porque a previsão originária dos prejulgados contida no art. 702, “f” e no §1º do art. 902 da Consolidação das Leis do Trabalho há muito foi revogada.
Como se sabe, os prejulgados, ao lado das súmulas, formavam parte do corpo normativo insculpido pelo Tribunal Superior do Trabalho antes da Constituição Federal de 1946 e tinham por principal característica o poder de vinculação obrigatória das instâncias inferiores da Justiça do Trabalhista.
O instrumento em questão tinha por objeto a criação e/ou a interpretação de normas, apresentadas de forma unilateral e antecipada pelo Pleno do Tribunal Superior do Trabalho, através do julgamento de seus recursos e guardava a autoridade de coercibilidade para as demais esferas trabalhistas.
Conforme ensinamento de Vilhena[13] ao tratar sobre os prejulgados e as súmulas do TST, os prejulgados se consubstanciavam no pronunciamento prévio do Pleno do TST sobre a interpretação de uma norma que aparentasse ser passível de várias interpretações, o que poderia gerar a posteriori contradições nos julgamentos dos Tribunais Trabalhistas.
Ocorre que, com o advento da Constituição Federal de 1946, a constitucionalidade destes instrumentos passou a ser bastante criticada. Como bem pontua Fonseca[14]:
“Discutiu-se muito sobre a constitucionalidade ou não da norma contida no artigo 902 da CLT, que instituiu o prejulgado trabalhista. Segundo a corrente que acabou prevalecendo, o pronunciamento prévio do TST, em caráter genérico e com força vinculativa, era incompatível com o regime constitucional da separação dos poderes, que veda as delegações legislativas, entendimento esboçado desde o início da era republicana.”
Foi assim que em 1977 o Supremo Tribunal Federal começou a redefinir a abrangência e o conteúdo destes instrumentos, evidenciando não a inconstitucionalidade direta dos mesmos, mas a ausência de sua força vinculativa apta a condicionar a atividade dos demais órgãos da Justiça Laboral, conforme restou claro na Representação 946/DF[15], suja ementa segue:
“PREJULGADO DO TRIBUNAL DO TRABALHO. NÃO CONSTITUÍDO ATO NORMATIVO, – DADO QUE O ART. 902, PAR. 1. DA CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO, QUE LHE ATRIBUIA TAL CARÁTER, FOI REVOGADO PELA CONSTITUIÇÃO DE 1946, – NÃO PODE SER OBJETO DE REPRESENTAÇÃO NÃO CONHECIDA”. (STF – Representação 946/DF; Relator: Xavier de Albuquerque; Data de Julgamento: 12/05/1977; Tribunal Pleno; Data de Publicação: DJ 01/07/1977).
Face a isto, em 1982, a Lei 7.033 alterou a alínea “f” do art. 702 e revogou os parágrafos do art. 902 da CLT, suprimindo o instituto dos prejulgados do nosso ordenamento e os substituindo, definitivamente, pelas súmulas da jurisprudência dominante e uniforme.
Pois bem. Ao que parece é que, de forma errônea, a Instrução Normativa 39/2016 quis, muito provavelmente, ressuscitar os chamados “prejulgados”, que foram declarados tacitamente revogados pela Constituição Federal de 1946 e considerados sem força vinculante obrigatória pelo Supremo Tribunal Federal há mais de duas décadas e, ainda, retirado da CLT desde 1982, atitude esta que não deve ser aceita.
Portanto, não seria possível que uma Instrução Normativa, que nem é lei, nem é o Código de Processo Civil, nem é a Consolidação das Leis do Trabalho, pudesse indicar, sem um debate mais acurado, quais os dispositivos do NCPC serão ou não aplicados ao processo laboral. E o que é ainda pior, é aceitar que um ato normativo possa mudar, sem nenhum embasamento, o alcance de dispositivos legais ou mitigar os seus efeitos, como foi feito em diversas ocasiões na Instrução Normativa 39/2016.
A título de exemplificação, abordaremos alguns posicionamentos/itens/artigos da IN 39/2016 que, visivelmente, fogem completamente das atribuições administrativas de uma Instrução Normativa.
O primeiro deles é a questão relacionada ao princípio do contraditório e a decisão surpresa. A IN 39/2016, já em suas considerações iniciais peca ao se mostrar apta a mitigação do princípio do contraditório, numa real suposição de que se o Código de Processo Civil de 2015 pôde fazer, ela também estaria autorizada. Veja o seguinte trecho de suas Considerações: “considerando que o Código de Processo Civil de 2015 não adota de forma absoluta a observância do princípio do contraditório prévio como vedação à decisão surpresa, como transparece, das hipóteses de […]”. Esta tendência de relativização do contraditório se confirma no art. 4º e parágrafos da IN. Apesar de informar no caput do artigo citado que “Aplicam-se ao Processo do Trabalho as normas do CPC que regulam o princípio do contraditório, em especial os artigos 9º e 10, no que vedam a decisão surpresa”, no seu §2º[16] prevê restrição não contida nem na CLT nem no próprio CPC, in verbis:
“§ 2º Não se considera “decisão surpresa” a que, à luz do ordenamento jurídico nacional e dos princípios que informam o Direito Processual do Trabalho, as partes tinham obrigação de prever, concernente às condições da ação, aos pressupostos de admissibilidade de recurso e aos pressupostos processuais, salvo disposição legal expressa em contrário”.
Aliás, como bem observa Garcia[17] ,
“Em verdade, o art. 10 do CPC de 2015, na parte final, é expresso ao incluir a matéria sobre a qual o juiz deva decidir de ofício na exigência de dar prévia oportunidade de manifestação das partes antes de decidir. Vale dizer, as questões de ordem pública, como é justamente o caso das condições da ação e dos pressupostos processuais, a rigor, também exigiram o contraditório prévio”.
Portanto, qual a pretensão desta Instrução Normativa? Criar normas? Se sim, tais normas vinculariam os demais órgãos do Poder Judiciário? Se esta norma não é prevista nem na CLT e nem no CPC, que norma é esta? Norma nova? Isto não pode ser aceito!
Nem mesmo o Enunciado nº. 107[18] do Fórum Permanente de Processualistas Civis, aprovado no Rio de Janeiro em abril de 2014, elaborado pelo Grupo “Impacto do CPC no Processo do Trabalho”, do qual faz parte mais de trezentos processualistas de todo país, fez a ressalva prevista na Instrução em questão. Vejamos o teor do enunciado:
“ENUNCIADO 107: art. 9º; art. 15 – No processo do trabalho, não se proferirá decisão contra uma das partes, sem que esta seja previamente ouvida e oportunizada a produção de prova, bem como não se pode decidir com base em causa de pedir ou fundamento de fato ou de direito a respeito do qual não se tenha oportunizado manifestação das partes e a produção de prova, ainda que se trate de matéria apreciável de ofício”.
Esquece-se que mais do que um princípio processual, o princípio do contraditório é, antes de qualquer coisa, um princípio constitucional com previsão expressa no art. 5º, LV da CF/88, direito humano e garantia fundamental de todo cidadão. Deve, portanto, ser cada vez mais aplicado e efetivado e não restringido, muito menos, por atos administrativos.
Por fim, para embasar tal atitude, a Instrução Normativa[19] em questão fundamenta sua decisão na ideia de que “[…] o conteúdo da aludida garantia do contraditório há que se compatibilizar com os princípios da celeridade, da oralidade e da concentração de atos processuais no Processo do Trabalho, visto que este, por suas especificidades e pela natureza alimentar das pretensões nele deduzidas, foi concebido e estruturado para a outorga rápida e impostergável da tutela jurisdicional (CLT, art. 769)”.
Sem dúvida, tais princípios elencados pela IN são vetores do processo trabalhista, mas precisam ser ponderados e aplicados com a também observância do devido processo legal, da garantia de um processo justo, que respeite o contraditório e a ampla defesa, e a segurança jurídica. A celeridade não pode servir como óbice ao cumprimento dos procedimentos úteis ao devido processo, como adverte Didier Jr.[20]:
“[…] O processo não tem de ser rápido/célere: o processo deve demorar o tempo necessário e adequado à solução do caso submetido ao órgão jurisdicional. […] A partir do momento em que se reconhece a existência de um direito fundamental ao devido processo, está-se reconhecendo, implicitamente, o direito de que a solução do caso deve cumprir, necessariamente, uma série de atos obrigatórios, que compõem o conteúdo mínimo desse direito. A exigência do contraditório, o direito à produção de provas e aos recursos certamente atravancam a celeridade, mas são garantias que não podem ser desconsideradas ou minimizadas. É preciso fazer o alerta, para evitar discursos autoritários, que pregam a celeridade como valor. Os processos da Inquisição poderiam ser rápidos. Não parece, porém, que se sinta saudade deles”.
Portanto, deve-se entender que a Instrução Normativa 39/2016 neste ponto específico é inconstitucional e ilegal, seja por mitigar o princípio constitucional do contraditório, seja por impor restrições não previstas em lei.
Um segundo ponto que merece ser destacado é o que diz respeito ao julgamento antecipado parcial do mérito e a irrecorribilidade das decisões interlocutórias. Nesse ponto, veremos que, além de ilegal, a própria IN 39 se mostra contraditória em seus argumentos.
Isto porque o art. 5º da IN 39 traz a seguinte redação: “Aplicam-se ao Processo do Trabalho as normas do art. 356, §§ 1º a 4º, do CPC que regem o julgamento antecipado parcial do mérito, cabendo recurso ordinário de imediato da sentença”. (grifos nossos).
A instrução normativa deixou de fora o §5º do mencionado artigo que contém a previsão de que a decisão proferida em julgamento antecipado parcial de mérito será impugnável por meio de agravo de instrumento, provavelmente porque este não é um recurso previsto na seara trabalhista.
Ao invés disso, a Instrução Normativa, consoante previsão da parte final do seu art. 5º adrede mencionada, indica que da decisão de julgamento antecipado parcial do mérito caberá recurso ordinário imediato.
Duas situações requerem realce. A primeira é a de que a decisão de julgamento antecipado parcial de mérito é um típico exemplo de decisão interlocutória, posto que apenas resolve um incidente processual, não extinguindo a fase de conhecimento nem de execução. Não é por outro motivo que no âmbito cível é combatida por meio de agravo de instrumento. A segunda é a de que sendo decisão interlocutória ao ser transposta esta regra para o processo laboral deve-se obedecer ao princípio da irrecorribilidade imediata das decisões interlocutórias, previsto no art. 893, §1º da CLT, bem como na Súmula 214 do próprio TST, não podendo, ao menos em princípio, ensejar recurso de imediato fora das hipóteses ali previstas.
Deste modo, como aceitar que por meio de uma Instrução Normativa, que não é lei, não é decreto executivo e também não é súmula ou orientação jurisprudencial, seja inserida uma nova restrição legal ao duplo grau de jurisdição? Ainda que esta garantia fundamental não seja entendida como absoluta, ela não pode ser afastada ou suprimida por instrumentos que não tenham competência para tal.
Esta ideia do ato administrativo contradiz, inclusive, o vaticinado em seu §1º do art. 1º que diz: “observar-se-á, em todo caso, o princípio da irrecorribilidade em separado das decisões interlocutórias, de conformidade com o art. 893, § 1º da CLT e Súmula nº 214 do TST”.
Sendo assim, resta claro que a IN 39/2016 extrapolou sua esfera de competência, em confronto com o princípio da irrecorribilidade imediata das decisões interlocutórias e a regra constante do art. 893, §1º da CLT.
Destarte, da análise de apenas dois exemplos, podemos destacar que não é papel de uma Instrução Normativa o de atuar como fonte autônoma, abstrata e geral, restringindo ou ampliando o texto legal, motivo pelo qual ao fazer isso a IN 39/2016 ofende diretamente o princípio da reserva legal.
2.6.3. Insuficiência de maturação na análise da problemática. Uma ofensa ao princípio do devido processo legal
Outra situação que induz a inconstitucionalidade e a ilegalidade do diploma administrativo (IN 39/2016) é a de que não há a devida maturação na análise da problemática discutida.
Até a jurisprudência se concretizar em uma súmula ou orientação jurisprudencial é realizado um processo de amadurecimento das ideias e do posicionamento dos Tribunais sobre determinado assunto, processo este muito mais extenso e completo do que para a elaboração de um ato administrativo qualquer.
Não é de um dia para o outro que uma situação individualizada analisada pelo Judiciário é elevada ao status de súmula, precedente ou orientação jurisprudencial. É preciso que haja controvérsia reiterada sobre a interpretação do direito discutido no processo e aplicado aos casos concretos.
O próprio Regimento Interno do TST (Resolução 1.295/2008) especifica isto. O art. 296 deste diploma diz que os atos de competência do TST são divididos em: Resoluções e Resoluções Administrativas e que dentro do conceito daquelas estariam às deliberações acerca das instruções normativas, súmulas e precedentes.
O procedimento para elaboração de uma Resolução que edite uma Instrução Normativa é bem mais simples do que o processo para uniformização de jurisprudência, conforme explicado abaixo.
Para elaborar uma Instrução Normativa basta que o Tribunal Superior do Trabalho reunido em plenário discuta os dispositivos que serão objetos do ato administrativo. Qualquer artigo, em tese, poderá ser debatido em sede de instrução normativa para esclarecimento. Veja que aqui não é necessário nem que haja ao menos uma decisão concreta sobre o assunto supostamente controvertido.
Por sua vez, o art. 156 do RITST disciplina todo o procedimento para uniformização de jurisprudência, procedimento este bem mais complexo. Já no §1º do retro citado artigo fica claro que não é qualquer discussão que será objeto de incidente, mas somente aquelas que a Seção Especializada do Tribunal entender que “se inclina contrariamente a reiteradas decisões dos órgãos fracionários sobre interpretação de regra jurídica sobre matéria de mérito”. (grifos nossos). Os demais parágrafos do artigo determinam todo o resto do procedimento para a uniformização.
Especificamente sobre Súmulas, o art. 159 e seguintes do RITST indicam todos os parâmetros necessários para a sua formulação. Inicialmente, o art. 160 aduz que “será consubstanciada em Súmula a jurisprudência predominante do Tribunal Superior do Trabalho”. O art. 162 fala da necessidade de criação de um projeto para análise da sua formalização. Os demais artigos, em especial, o art. 165 elenca os diversos pressupostos para edição de uma súmula pelo TST, como quórum e quantidade de acórdãos que revelem a unanimidade do posicionamento sobre a tese vencedora.
Da mesma forma, aplica-se um procedimento multíplice para edição de Precedentes Normativos e Orientações Jurisprudenciais como demonstram os artigos 167 e seguintes do RITST.
Assim, é natural constatar que existe um conjunto de atos coordenados para a apuração da controvérsia muito maior e eficiente na edição e revisão de súmulas e orientações jurisprudenciais do que na elaboração de uma instrução normativa, tornando o processo muito mais democrático e justo e muito menos arbitrário, unilateral e autoritário.
Com ênfase na necessidade de uma maior maturação das divergências apresentadas acerca da aplicação de determinados dispositivos do NCPC ao processo do trabalho, Aluísio Barros[21], Presidente da Comissão de Direito do Trabalho da OAB/SINOP/MT, em artigo intitulado “Da Ilegalidade e Inconstitucionalidade da IN 39 do TST”, afirma que:
“Em razões de tais circunstâncias (entendimentos divergentes sob o mesmo assunto), se esperava que nos primeiros anos haver-se-iam grandes embates processuais até que a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho se posicionasse definitivamente sobre as questões que fossem lhe apresentadas. […] Essa Instrução Normativa foi editada com o objetivo de regulamentar e esclarecer quais dispositivos do Novo Código de Processo Civil seriam aplicados no Processo do Trabalho. […] No entanto questiona-se desde de já se a instrução normativa seria o meio adequado para esse posicionamento, porquanto se esperava que a jurisprudência fizesse esse papel”. (grifos nossos)
Sabe-se ainda que mesmo com a ampla aceitação da jurisprudência consolidada como meio integrativo do sistema jurídico, esta não é pacificamente aceita como fonte de direito processual. Só as Súmulas Vinculantes, editadas pelo Supremo Tribunal Federal garantiram este status jurídico de fonte.
Em virtude disso, resta pacificado o entendimento de que a jurisprudência mesmo fixada em súmulas e orientações jurisprudenciais, inspiram os operadores e indicam uma posição a seguir, mas não vinculam os juízes de instâncias inferiores.
A instrução normativa muito menos. Além de não possuir a mesma força das súmulas e orientações jurisprudenciais, é imposta de forma unilateral por órgão que, apesar de ser hierarquicamente o mais elevado no âmbito trabalhista, não é nem mesmo órgão de cúpula do Poder Judiciário. Portanto, não se mostra aceitável que o Tribunal Superior do Trabalho, de maneira apressada, antecipada, sem um trâmite processual democrático, sem debate das partes, sem defesa, sem teses, possa se sobrepor a tudo isto e impor como vinculante, cláusulas visivelmente inconstitucionais como as da IN 39/2016.
2.6.4. Supressão de instâncias. Efetiva diminuição dos poderes dos juízos e tribunais inferiores
Além de tudo isto que já fora exposto, e não menos importante, o que vai acabar acontecendo se for aberto este precedente para que as Instruções Normativas assumam um papel normativo, interpretativo e vinculativo será o esvaziamento dos poderes dos juízes e tribunais de primeira e segunda instâncias, os quais terão que se curvar ao disposto em tais instrumentos, em patente ofensa a independência funcional e a liberdade decisória de nossos magistrados.
Apesar de seguirmos uma tendência moderna, a aproximação do nosso processo ao sistema anglo-saxônico do commom law, principalmente, com a entrada em vigor do novo CPC e as modificações no que diz respeito à autoridade dos precedentes judiciais, é inegável que o nosso sistema atual ainda finca suas raízes no sistema romanístico da civil law, o qual segundo Ferraz Jr.[22] apresenta a seguintes características:
“O sistema romanístico, assim, em oposição ao anglo-saxônico, caracteriza-se, em primeiro lugar, pela não-vinculação dos juízes inferiores aos tribunais superiores em termos de decisões; segundo, cada juiz não se vincula às decisões dos demais juízes de mesma hierarquia, podendo decidir casos semelhantes de modo diferente; terceiro, o juiz e o tribunal não se vinculam sequer às próprias decisões, podendo mudar de orientação mesmo diante de casos semelhantes; em suma, vige o princípio (regra estrutural do sistema) da independência da magistratura judicial: o juiz deve julgar segundo a lei e conforme sua consciência”. (grifos nossos)
Portanto, ainda que supostamente já tivéssemos aderido por completo o sistema de common law, com os tribunais inferiores obrigados a aceitar qualquer decisão dos superiores, quando todas as decisões relevantes apresentarem argumento forte para vincular as decisões judiciais de primeira instância, dentre tantas outras características deste sistema, não seria por meio de instruções normativas, meros atos administrativos, de caráter interno, sem quase nenhum poder de vinculação, que seriam impostos tais posicionamentos. Seria preciso mais, seria essencial a formação de precedentes normativos. O que demonstra ser inconcebível aceitar que uma Instrução Normativa seja capaz de suprimir ou mitigar a atuação plena dos magistrados sociais.
Felizmente, os nossos juízes trabalhistas já estão se mostrando atentos a esta problemática.
No 18º Congresso Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – CONAMAT realizado nos dias 27 a 30 de abril de 2016, na cidade de Salvador/BA, em homenagem aos 40 anos de fundação da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA, e com o tema central: Magistratura, Independência e Direitos Sociais, o juiz do trabalho do Tribunal Regional da 10ª Região, Excelentíssimo Senhor Ricardo Machado Lourenço Filho[23], ao tratar sobre o tema da Independência da Magistratura e do ativismo judicial à luz do novo CPC, expôs tese para apresentação no evento, com a seguinte ementa:
“Ementa: A edição de Instrução Normativa pelo Tribunal Superior do Trabalho, versando a aplicação dos dispositivos do Novo Código de Processo Civil ao Processo do Trabalho, não vincula os Juízes e Tribunais Regionais do Trabalho, produzindo efeito de mera recomendação, pois do contrário haveria violação aos princípios da independência dos magistrados e do livre convencimento”. (grifos nossos)
Do que se extrai da tese apresentada pelo citado magistrado é que, para ele, as instruções normativas não servem para substituir leis ou jurisprudências. O processo de criação de um entendimento consolidado deve ser mais democrático do que a imposição unilateral de uma norma pelo Pleno do Tribunal Superior do Trabalho.
Afirma ainda o retro citado jurista que “É importante registrar que a preocupação com a uniformização de tratamentos judiciais tem sido enfrentada, sobretudo, pelo trabalho das Escolas Judiciais e a promoção de debates entre magistrados sobre a interpretação e a aplicação a ser conferida aos dispositivos do Novo Código”.
Citem-se como exemplo desta afirmação do autor, os Enunciados do Fórum Permanente de Processualistas Civis realizados ao decorrer dos anos e que, atualmente, conta com uma Comissão específica para análise dos reflexos do novo Processo Civil ao Processo do Trabalho, o chamado “Grupo: Impactos do CPC no Processo do Trabalho”. Enunciados estes que são discutidos e debatidos por centenas de processualistas e que possuem caráter informativo e de recomendação para todo o âmbito do Poder Judiciário.
No mesmo sentido, neste evento, o Juiz do Trabalho da 18ª Região, Excelentíssimo Senhor Juliano Braga Santos[24], também se manifestou sobre a necessidade de respeito à independência funcional dos magistrados e a função meramente informativa das instruções normativas. Vejamos a ementa da sua tese apresentada:
“Ementa: Instrução Normativa nº 39 do TST. Ato administrativo de efeitos gerais, subordinado à lei e não equiparável a Súmula ou Orientação Jurisprudencial, com função estritamente informativa. Vinculação do magistrado apenas às normas de heterointegração aplicáveis (NCPC, art. 15; CLT, arts. 769 e 889). A atribuição de qualquer efeito impositivo às disposições da Instrução Normativa nº 39 do TST ofende os princípios da separação de poderes, reserva legal e juiz natural. Por sua natureza de ato administrativo geral, pode ter eficácia meramente informativa para fins jurisdicionais, não se equiparando a lei nem a Súmulas e Orientações Jurisprudenciais para quaisquer finalidades, especialmente admissibilidade de recursos”. (grifos nossos)
Este Douto Jurista, além de diferenciar o procedimento mais complexo de criação de súmulas, precedentes normativos e orientações jurisprudenciais do de criação de instruções normativas, também demonstra sua preocupação com a infração aos princípios da separação de poderes, da reserva legal e, em especial, do juiz natural, nos seguintes termos:
“[…] A Instrução Normativa em exame, caso tenha sua observância imposta às instâncias inferiores, inverteria esse fluxo: o entendimento seria firmado sem o teste da experiência, fazendo do TST, na prática, único e isolado intérprete de uma codificação complexa e de infindáveis desdobramentos potenciais. Tudo sem que tenha sido provocado para dizer o direito e em descompasso com as competências funcionais estabelecidas para as instâncias originárias no texto constitucional e na legislação ordinária, por onde se espera que ascenderiam as causas até eventual chegada às cortes superiores”. (grifos nossos)
Ademais, cairão por terra as possíveis divergências nos entendimentos dos nossos juízes, na medida em que o próprio TST, no nascedouro das discussões, poderá impor seus posicionamentos para os demais jurisdicionados, sem ao menos ter tido nenhum processo discutindo a respeito do direito e, como visto, sem o amadurecimento necessário às decisões desta magnitude.
Exemplo prático e atualíssimo de divergência no seio jurídico laboral é a aplicação ou não do incidente de desconsideração da personalidade jurídica no processo trabalhista. Que a desconsideração da personalidade jurídica é aceita no processo do trabalho isto não se discute, aplica-se tal regra com fundamento nos artigos 50 do Código Civil e 28 do Código de Defesa do Consumidor, com base na teoria menor de Fábio Ulhoa Coelho. No entanto, com a entrada em vigor do NCPC, surge um procedimento específico para realização desta desconsideração, como previsto nos artigos 133 e seguintes do NCPC. Assim que o diploma civilista fora publicado já surgiram às discussões a respeito de sua aplicação ou não ao processo do trabalho. Isto porque, além de exigir a manifestação das partes para dar impulso a tal incidente, impedindo a atuação de ofício dos magistrados, admitida hoje no processo trabalhista com base no art. 878 da CLT, o §3º do art. 134 do NCPC aduz a suspensão do processo até a resolução do incidente. Com isso, parte dos magistrados aceita a aplicação deste novo procedimento, diante da omissão da CLT a respeito do instituto em questão e de uma possível compatibilidade com ajustes ao processo trabalhista. No entanto, outra parte significativa de juristas entende que este dispositivo não poderia ser aceito e aplicado ao processo do trabalho por violação de diversos preceitos laborais, tais como o princípio da celeridade, eficiência, a maior autonomia dada aos juízes sociais pelo art. 765 da CLT etc.
Esperava-se, com isso, que tal embate seria solucionado pela jurisprudência dos nossos Tribunais, após julgamentos reiterados de casos concretos. Mas não foi isso que aconteceu. A Instrução Normativa 39/2016, em seu art. 6º, afirma que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no NCPC é sim aplicável ao processo do trabalho, o que ofende os princípios da independência funcional e da livre motivação dos magistrados.
E não para por aí. Vejamos mais um exemplo de divergência que foi sepultado prematuramente pela IN 39/2016. É o caso da necessidade de fundamentação das decisões com fulcro no §1º do art. 489 do NCPC. Seria este artigo aplicável ao Processo do Trabalho? Para alguns juízes sim, sem nenhuma ressalva, diante da própria imposição de fundamentação das decisões previstas no art. 93, IX e X da CF/88. Para outros não, tendo em vista ser o processo trabalhista mais simples e informal que o processo civil, em respeito aos princípios da oralidade e simplicidade. Contudo, mesmo diante desta discussão, a IN 39/2016 em seu art. 15 passou a dispor que o art. 489, §1º do NCPC seria aplicado ao processo do trabalho, ainda que de forma amenizada.
Foi também no 18º CONAMAT, ao tratar sobre a necessidade de fundamentação das decisões com base no NCPC e sua aplicação ao processo do trabalho, conforme a IN 39/2016, que o Excelentíssimo Juiz Rinaldo Guedes Rapassi[25] da 19ª Região, apresentou tese com a seguinte ementa:
“Ementa: NECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES. IN 39/TST, ART. 3º, IX. A aplicação dos incisos II e III do §1º do art. 489 do CPC deve ser feita de forma sistemática, à luz das regras da CLT e legislação extravagante. Assim, devem-se considerar os princípios da oralidade, simplicidade processual (incluído no novo CPC, art. 322, §2º – Enunciado 49/FNTP) e da informalidade que regem o processo do trabalho, desde a formação da petição inicial e da contestação. Logo, é permitida a fundamentação sucinta (Enunciado 10/Enfam e 35/TRT10), inclusive para a identificação de questões irrelevantes eventualmente suscitada por uma das partes”.
Portanto, mais uma vez, em que pese entendimentos contraditórios de nossos juízes que deveriam ser solucionados após longo processo de amadurecimento de ideias pela nossa jurisprudência, a IN 39 atuou de forma precipitada e engessou a criatividade judicial dos magistrados das instâncias inferiores.
Deste modo, revelam-se mais alguns motivos para ser decretada a inconstitucionalidade de diversos dispositivos da IN 39/2016: ofensa aos princípios da separação de poderes, da independência funcional dos magistrados, do juiz natural e do livre convencimento motivado.
2.6.5. Da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5516
Com a mesma celeridade que usou o Tribunal Superior do Trabalho na elaboração da IN 39/2016, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA, no dia 05 de maio de 2016, ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5516) no Supremo Tribunal Federal com pedido de liminar visando suspender a eficácia da debatida Instrução.
Segundo informações colhidas da Petição Inicial da ADI 5516[26], para a ANAMATRA a IN 39 violou o artigo 22, I da Constituição Federal, invadindo a competência da União, violou também o artigo 5º, II e o art. 96, I, a do mesmo diploma normativo. Ainda de acordo com esta Associação, a IN em comento violou o princípio da independência dos magistrados previsto nos artigos 95, I, II, III e art. 5º, XXXVII e LIII da Carta Magna.
Nos restará observar qual será o posicionamento de nossa Suprema Corte na análise do normativo em questão, aguardando, ansiosamente, que seja verificado os vícios constantes desta Instrução Normativa, para que seja esta declarada inconstitucional, como forma de evitar que outros instrumentos administrativos sejam utilizados pelo Tribunal Superior do Trabalho e por outros Tribunais em clara ofensa constitucional.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que na teoria parece ser algo prático, célere e eficiente, destrinchar determinadas situações possivelmente conflituosas sem a necessária observância dos mínimos procedimentos legais para tanto, na prática, pode evidenciar clara ofensa constitucional e acarretar problemas prospectivos ainda maiores, diante do impensado precedente que se abre com a oportunidade dos Tribunais Superiores virarem o centro formulador das diretrizes normativas do nosso sistema jurídico, tarefa esta designada, indiscutivelmente, ao Poder Legislativo e, em raras e destacadas exceções, ao Poder Executivo e ao próprio Poder Judiciário. O que é inconcebível!
A utilização de Instruções Normativas com conteúdo nitidamente normativo-processual, como sucede com a IN 39/2016, em desacordo com funções internas, informativas e esclarecedoras, típicas deste ato administrativo, acabam por contrariar o consagrado princípio da separação de poderes, previsto como cláusula pétrea na Carta Maior, bem como a regra de divisão de competências e o princípio da reserva legal, em patente ofensa constitucional.
Restou claro no desenvolvimento da pesquisa que as instruções normativas possuem funções bastante restritas e delimitadas (informar, esclarecer, clarificar, complementar). Não podem ser utilizadas para substituir as normas legais ou principiológicas do nosso ordenamento ou para suprir as omissões/lacunas do nosso sistema. Não são leis, não são decretos regulamentares do Executivo e também não são consideradas súmulas, precedentes normativos ou orientações jurisprudenciais. Enfim, não são, nem ao menos controvertidamente, consideradas fontes de direito processual do trabalho.
Como pudemos observar, cada diploma normativo possui seu próprio procedimento de criação e órgãos e/ou agentes competentes para sua elaboração. Não é normal uma súmula ou uma orientação jurisprudencial ser feita pelo Legislativo e uma lei ser editada pelo Judiciário. Cada Poder estatal possui suas funções ordinárias, não podendo, em regra, utilizar-se das funções típicas de outro poder. Fazendo isto, fora das hipóteses expressamente previstas pela Constituição Federal (funções atípicas), estará o Poder respectivo usurpando as funções dos demais, fato este que deve ser rechaçado por toda sociedade jurídica.
E foi isso que aconteceu neste caso concreto. Além de invadir a esfera de competência do Legislativo em afronta ao princípio da separação de poderes, a Instrução Normativa nº. 39/2016 extrapolou em seu próprio conteúdo, invadindo barreiras que fogem a sua competência. Quis por vezes restringir o âmbito legal, como o fez com o princípio do contraditório e a reinterpretação da decisão surpresa, e por vezes maximizar as hipóteses previstas na lei, como na possibilidade de recorrer de imediato de decisão interlocutória (julgamento antecipado parcial do mérito), mesmo não possuindo aptidão para tanto. Aqui, é que fica mais evidente o confronto da Instrução em comento com o princípio da legalidade ou reserva legal.
Também falhou este ato administrativo por se antecipar demais a supostas controvérsias que poderão existir. Agiu o Tribunal Superior do Trabalho de maneira açodada, às pressas e sem maiores formalidades. Sem sequer analisar um caso concreto, já tratou de detalhar e especificar, ainda que de forma não exaustiva, quais os parâmetros de aplicação do novo Código de Processo Civil de 2015 ao processo do trabalho que devem ser seguidos pelos juízos de instâncias inferiores, atuando de maneira unilateral, com total ausência de amadurecimento de ideias e em descompasso com o complexo processo de uniformização da jurisprudência vigente, se era esta a sua intenção. Com isso, desrespeitou os procedimentos legais para que o processo possa ser efetivamente justo, debatido e democrático, se aproximando muita mais da superficialidade e do arbítrio.
Por fim, analisando todo este panorama apresentado pela Instrução Normativa nº. 39/2016 demonstra-se que se esta for aceita, em seus termos, acarretará uma clara ofensa ao princípio da independência e ao livre convencimento dos magistrados, impedindo que se discutam as controvérsias nas instâncias inferiores, restringindo a criação de teses e engessando a criatividade jurídica, vetores inerentes ao próprio Estado Democrático de Direito.
Evidencia-se, portanto, que a Instrução Normativa nº. 39/2016, ato administrativo que demonstra inúmeras falhas que, em tese, já ostenta inconstitucionalidades e ilegalidades em seu texto, não possui o condão de vincular juízes e tribunais de primeiro e segundo graus, como forma de preservar a autonomia de suas decisões, o princípio da independência funcional, consagrado na nossa Constituição, e o livre convencimento motivado dos magistrados. Não é factível aceitar que um ato administrativo possa ofender a liberdade de convicção técnica-jurídica dos nossos juízes, sujeitando-os a um padrão antidemocrático, unilateral e autoritário de reprodução de normas, que sequer súmulas ou orientações jurisprudenciais são.
Nem mesmo os entendimentos consubstanciados em súmulas e orientações jurisprudenciais que são construídos democraticamente e de forma cooperativa, com observância de todos os trâmites processuais, são aceitos majoritariamente como fontes vinculativas de direito. Ainda que editados com maior reflexão e discussão em sua elaboração, servem, hodiernamente, como fonte de inspiração para os demais magistrados. Portanto, com ainda mais razão, não há como submeter nossos juízes ao império de uma Instrução Normativa, ato administrativo e não legiferante, que ainda por cima aparenta ser inconstitucional.
Por tudo que fora exposto, não podemos admitir que a Instrução Normativa nº. 39/2016 possa continuar refletindo na direção da atuação dos nossos Tribunais Trabalhistas. Seus prejuízos já se mostram evidentes. Em virtude dela, já foram modificadas as redações de diversas súmulas e orientações jurisprudenciais do TST. Até onde se permitirá isso? É preciso unir as diversas classes envolvidas (sociedade; advocacia; magistratura) para impedir que se perpetue a inconstitucionalidade vivenciada na adoção de Instruções Normativas desvirtuadas de suas finalidades essenciais, para manter íntegro o princípio da separação de poderes, o devido processo legal, a garantia do contraditório, o princípio da irrecorribilidade imediata das decisões interlocutórias, a independência funcional dos magistrados, a segurança jurídica e tantas outras normas que estão sendo completamente ignoradas por este ato administrativo.
Felizmente, ao quase término da elaboração do presente artigo, a notícia recente da propositura de ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5516), em 05 de maio de 2016, proposta pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA, visando à suspensão da Instrução Normativa 39, reforça todo o esforço que buscamos passar nesta pesquisa, embasando, com mais fervor, a inconstitucionalidade de tal ato administrativo. Espera-se, com isso, que o Supremo Tribunal Federal suspenda, em caráter liminar, a eficácia deste texto normativo e, por fim, declare-o inconstitucional, evitando, como já fora analisada ao decorrer de toda a pesquisa, a direta afronta constitucional que advirá com a manutenção deste ato administrativo.
Portanto, o que nos resta atestar é que nesse mixer de acertos e erros vê-se que a Instrução Normativa nº. 39/2016 se mostrou muito mais propensa aos erros, falhas e equívocos do que aos acertos, motivo pelo qual merece ser invalidada, a fim de se evitar os milhares de recursos que fatalmente irão existir, tanto por ofensa a normas federais, quanto por violação a normas constitucionais, um verdadeiro desserviço, que atravancará a tão almejada celeridade e simplicidade do processo trabalhista.
Informações Sobre o Autor
Tainá Angeiras Gomes dos Santos
Advogada. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Escola Superior da Magistratura do Trabalho da 19ª Região