Resumo: A partir de janeiro de 2016, entrou em vigor a Lei n°. 13.146/15, que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – Estatuto da Pessoa com Deficiência. Através da legislação supracitada busca-se assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais da pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social. Tendo em vista que a paternidade e a maternidade tratam-se de formas para inserir-se na sociedade, este artigo objetiva fazer uma análise acerca dos fundamentos jurídicos que asseguram o exercício do planejamento familiar às pessoas com deficiência. Dessa forma, as reflexões partem de uma breve digressão histórica das pessoas com deficiência. Em seguida, analisam-se as alterações legislativas decorrentes do Estatuto da Pessoa com Deficiência, sobretudo em relação à capacidade civil, à esterilização compulsória e à reprodução e planejamento familiar. Por fim, examinam-se as principais bases legais do planejamento familiar da pessoa com deficiência. Nesse sentido, entende-se que, em que pese o seu reconhecimento expresso, é primordial, para o exercício do planejamento familiar, que as pessoas com deficiência possam satisfazer os deveres parentais e exercer a paternidade responsável.
Palavras-chave: Pessoa com deficiência. Planejamento familiar. Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Sumário: Introdução. 1. Breves notas acerca da evolução histórica das pessoas com deficiência. 2. Alterações legislativas decorrentes do Estatuto da Pessoa com Deficiência; 2.1 Capacidade civil; 2.2 Esterilização compulsória; 2.3 Direito à reprodução e ao planejamento familiar. 3. Fundamentos jurídicos do planejamento familiar das pessoas com deficiência. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
De acordo com o Censo efetuado e publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, em 2010 (dois mil e dez), 23,9% (vinte e três inteiros e nove décimos por cento) dos brasileiros entrevistados – aproximadamente 45,6 (quarenta e cinco milhões e seiscentos mil) – declararam possuir alguma deficiência (IBGE, censo 2010).
Anomalias físicas ou mentais, deformações congênitas, amputações traumáticas, doenças graves e de consequências incapacitantes, sejam elas de natureza transitória sejam permanentes, são tão antigas quanto a própria humanidade (SANTOS, 2007). Por isso, diante da ascensão dos direitos das pessoas com deficiência, principalmente quanto à reprodução e à preservação de sua fertilidade, entende-se relevante discutir o seu planejamento familiar, na medida em que o Estatuto da Pessoa com Deficiência estabelece que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa para ter acesso a informações adequadas sobre a reprodução e planejamento familiar.
As pessoas com deficiência, conceituadas pela legislação como aquelas que possuem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas, de regra, são consideradas “assexuadas”. A sexualidade desses indivíduos reveste-se de estereótipos diretamente vinculados à Idade Média, quando pessoas com deficiência eram consideradas como um anjo, um sujeito sem sexo, dotado de uma ingenuidade que não permitia o desenvolvimento de qualquer espécie de desejo.
Nesse sentido, este artigo tem como objetivo geral analisar os fundamentos jurídicos que asseguram o planejamento familiar às pessoas com deficiência. O estudo discute como problema: quais as bases legais que garantem o exercício do planejamento familiar às pessoas com deficiência, no sentido de que, a partir do princípio constitucional da igualdade, esses indivíduos possuem assegurados os seus direitos e deveres em condição de igualdade com as demais pessoas?
Como hipótese para tal questionamento, entende-se que a Constituição Federal e o Estatuto da Pessoa com Deficiência asseguram o direito ao planejamento familiar, buscando efetivar a integração social das pessoas com deficiência. Contudo, tendo em vista o princípio da igualdade, ressalta-se que, para o seu efetivo exercício, faz-se necessário que essa pessoa possa satisfazer os deveres parentais e exercer a paternidade responsável, da mesma forma que pessoas sem deficiência.
A pesquisa, quanto à abordagem, será qualitativa, que tem como característica o aprofundamento no contexto estudado e a perspectiva interpretativa desses possíveis dados para a realidade, conforme esclarecem Mezzaroba e Monteiro (2008). Para obter a finalidade desejada pelo estudo, será empregado o método dedutivo, cuja operacionalização se dará por meio de procedimentos técnicos baseados na doutrina e na legislação, relacionados, inicialmente, à evolução histórica das pessoas com deficiência, passando pelas alterações legislativas decorrentes do Estatuto da Pessoa com Deficiência, para chegar ao ponto específico dos fundamentos jurídicos que asseguram o planejamento familiar às pessoas com deficiência.
1. BREVES NOTAS ACERCA DA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
Objetivando compreender o processo de ascensão dos direitos das pessoas de deficiência, faz-se necessário um levantamento histórico acerca do que se pode chamar de “movimento inclusivo”, iniciado nos primórdios da civilização.
Apesar das sociedades primitivas possuírem uma convivência coletiva lastreada no princípio da solidariedade, pois conscientes de suas responsabilidades com os enfermos, os idosos, as crianças e os deficientes, no período anterior ao século XVI, o tratamento dos portadores de deficiência poderia ser compreendido de duas formas:
“[…] de um lado temos, como conduta prevalente, o tratamento discriminatório reservado ao portador de deficiência. No outro extremo, e de incidência rara, a pessoa portadora de deficiência chega a ser considerada como uma bênção divina para o grupo social ao qual pertence” (MELO, 2004, p. 27).
Entretanto, a imagem dos deficientes que prevaleceu no decorrer da história da humanidade era da deformação do corpo e da mente, ou seja, da imperfeição humana.
Na Idade Média, de acordo com Maranhão (2005), as pessoas com deficiência começaram a receber maior atenção, sendo criados hospitais e abrigos por senhores feudais e governantes, com a ajuda da igreja. Nesse mesmo período histórico, segundo o autor, com o surgimento do Cristianismo, as pessoas com alguma deficiência passaram a ser percebidas como humanas e aceitas como seres criados por Deus.
Em que pese as sociedades medievais tenham dado um importante passo no tocante ao tratamento daqueles que eram excluídos da sociedade, esse tratamento possuía cunho eminentemente assistencialista, representando, para Jannuzzi (2004), um custo para o sistema que, por sua vez, tinha o interesse no discurso da autonomia e da produtividade.
“A partir do Renascimento – entre o século XIV e XVI –, estudos científicos começam a buscar explicações mais concretas, com base na ciência e no conhecimento, dando novo rumo à situação das pessoas com deficiência” (KÖRBES, 2011, p. 17). Em suma, foi o aparecimento do denominado espírito científico, que substituiu o pensamento puramente filosófico, que incitou o surgimento dos primeiros direitos àqueles que viviam às margens da sociedade.
É importante mencionar, também, que no século XX, o extermínio nos campos de concentração de milhares de pessoas com deficiência, embasado na superioridade ariana apregoada por Adolf Hitler, veio a retroceder o que até então havia se conquistado no que se refere ao reconhecimento das pessoas com deficiência. Entretanto, no período pós-guerra, houve grande transformação, pois se propagou a ideia de habilitação e reabilitação dos mutilados de guerra, como heróis sobreviventes (SILVA, 1986).
A Revolução Francesa (1789-1799) e a Revolução Industrial (1760-1840), por sua vez, também foram dois grandes acontecimentos mundiais de suma importância, pois, através delas, a sociedade voltou sua atenção às dificuldades encontradas pela pessoa com deficiência. Foi com a inserção da máquina como instrumento de trabalho que se percebeu eclodir novas deficiências, isto é, as deficiências que antigamente tinham como causas “as guerras, desordens congênitas, acidentes domésticos (domésticos e trabalhos não industriais) e doenças de várias naturezas” (Alves, 1992, p. 28) passaram a ser ocasionadas pelos acidentes oriundos do ofício.
No Brasil, segundo Júnior (2010), o período de 1854 a 1956 foi marcado por iniciativas oficiais e particulares isoladas no sentido de fornecer atendimento escolar especial para os indivíduos com deficiência. Nesse sentido, criou-se o Imperial Instituto dos Meninos Cegos (atualmente, Instituto Benjamin Constant), pelo Imperador Dom Pedro II (1840-1889), por meio do Decreto Imperial n° 1.428, de 12 de Setembro de 1854.
Ademais, em 26 de setembro de 1857, o Imperador, apoiando as iniciativas do professor francês Hernest Huet, fundou o Imperial Instituto de Surdos Mudos (atualmente, Instituto Nacional de Educação e Surdos – INES). Esse Instituto passou a atender indivíduos surdos de todo o país, grande parte abandonados pelas famílias (JÚNIOR, 2010).
Conforme se verifica, o Estado brasileiro foi pioneiro, na América Latina, no atendimento às pessoas com deficiência. No entanto, durante o século XIX, apenas os cegos e surdos eram contemplados com ações para educação e, além disso, a oferta de atendimento concentrava-se na capital do Império. Nesse período, apenas a cegueira e a surdez foram as deficiências reconhecidas pelo Estado como possíveis de uma abordagem que visava superar as dificuldades que traziam. A deficiência intelectual, por sua vez, era considerada como uma forma de loucura e era tratada em hospícios.
Diante do déficit de ações concretas por parte do Estado em relação às demais deficiências, a sociedade civil criou organizações voltadas para assistência nas áreas de educação e saúde. Assim, surgiu, em 1954, a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE).
No que tange às Constituições, aquelas elaboradas ao longo do século XX passaram a incorporar em seus textos novos direitos, inspirados no ideário socialista emergente, tais como o direito ao trabalho, à saúde e à educação. Embora fossem proclamados esses direitos, os interesses das pessoas com deficiência continuavam sendo ignorados.
A partir de então, o maior progresso ocorreu com a atual Constituição Federal de 1988 que, conforme Rebelo (2008), buscou assegurar a igualdade de oportunidades, tendo por base o princípio da equidade de tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais, na medida de sua desigualdade, de forma a se assegurar a igualdade real. Foi a partir desse diploma constitucional que a pessoa com deficiência se viu protegida legalmente.
Em setembro de 2001, na Conferência Mundial contra o Racismo e a Discriminação Racial, a Xenofobia e as formas conexas de intolerância, realizada em Durban, na África do Sul, Gilberto Rincón Gallardo, presidente da delegação do México, propôs que a Conferência recomendasse à Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas) considerar a elaboração de uma Convenção Internacional para proteger os direitos das pessoas com deficiência. Após a resistência de vários países – principalmente os desenvolvidos – e o apoio de diversas instituições internacionais, a proposta do México foi aceita pela Assembleia Geral das Nações Unidas em dezembro de 2001 (JÚNIOR, 2010).
Assim, em 2008, o Brasil ratificou, por meio do Decreto Legislativo n° 186, de 9 de julho de 2008, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – homologada pela Assembleia das Nações Unidas em 13 de dezembro de 2006, em homenagem ao 58° aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos –, bem como seu Protocolo Facultativo. Promulgado pelo Decreto n° 6.949, de 25 de agosto de 2009 – data de início de sua vigência no plano interno –, o documento obteve equivalência de emenda constitucional (artigo 5°, §3º da Constituição Federal), e preza pela atuação conjunta entre o Estado e a sociedade civil.
Ademais, em 2015, o Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei n°. 13.146/15 –, embasado na Convenção e seu Protocolo Facultativo, inaugurando um sistema normativo inclusivo, que homenageia o princípio da dignidade da pessoa humana em diversos níveis, representa uma verdadeira conquista social.
Feitas estas breves considerações históricas acerca da pessoa com deficiência, passa-se à abordagem da ascensão de seus direitos diante das alterações legislativas decorrentes da Lei n°. 13.146/15.
2. ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS DECORRENTES DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
Em janeiro de 2016, entrou em vigor a Lei n°. 13.146/2015 – Estatuto da Pessoa com Deficiência –, embasada na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo. Através da mesma, percebe-se uma “verdadeira desconstrução ideológica (STOLZE, 2016, texto digital), que clama por adaptações hermenêuticas. Portanto, para compreender a repercussão da entrada em vigor da referida legislação, que ampliou os direitos das pessoas com deficiência, serão identificadas as principais alterações legislativas oriundas do Estatuto da Pessoa com Deficiência, que se relacionam diretamente ao planejamento familiar desses indivíduos.
2.1 CAPACIDADE CIVIL
Capacidade, de acordo com Fiuza (2016, p. 163), é a “aptidão inerente a cada pessoa para que possa ser sujeito ativo ou passivo de direitos e obrigações”. Para ser pessoa, basta que o ser humano exista, mas, para ser capaz, faz-se necessário satisfazer os requisitos para agir por si próprio (Diniz, 2003).
Segundo Coelho (2010), a capacidade é tida como regra geral. Portanto, para ser considerado incapaz, é necessária expressa previsão legal. Assim, inexistindo lei que suprima ou limite a capacidade, ela será plena, não se podendo exigir que a pessoa se faça acompanhar de um assistente ou se substitua por um representante.
Dessa forma, a diferença entre capazes e incapazes consiste na mediação dos atos e negócios jurídicos. Apenas os capazes poderão praticá-los imediatamente, enquanto que os incapazes os praticam por meio de seu representante ou com o auxílio de um assistente.
De acordo com o Código Civil, consideram-se capazes os maiores de 18 anos e os emancipados – àqueles menores de 18 anos aos quais a Lei, os pais ou o juiz concedam capacidade. Esses possuem capacidade de direito e de fato, habilitando-os a exercer todos os atos da vida civil.
Os absolutamente incapazes, por sua vez, estão previstos no artigo 3° do Código Civil, que trata dos menores de 16 anos, também chamados menores impúberes. Conforme ensinamento de Fiuza (2016), antes das recentes alterações sofridas pelo Código Civil, com a promulgação da Lei n°. 13.146, em 2015, eram também consideradas como absolutamente incapazes as pessoas que, por enfermidade ou deficiência mental, não tivessem o discernimento necessário para a prática de atos da vida civil, bem como aqueles que, mesmo por causa transitória, não pudessem exprimir sua vontade.
No que se refere aos relativamente incapazes, esses estão previstos no artigo 4° do Código Civil, que assim dispõe:
“Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer:
I – os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;
II – os ébrios habituais e os viciados em tóxico;
III – aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade;
IV – os pródigos”.
Atualmente, a Lei n°. 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) substitui a ausência ou redução de discernimento pela impossibilidade de expressão da vontade como fato gerador de incapacidade, pois a deficiência consiste em um impedimento físico, mental ou sensorial duradouro e, não induz, em princípio, a incapacidade, mas sim a uma vulnerabilidade. No período anterior as alterações de 2015, os critérios para a fixação da incapacidade absoluta consistiam na idade, na ausência de discernimento e na impossibilidade total de expressão da vontade.
Dessa forma, as pessoas com deficiência, que antes eram consideradas absolutamente incapazes, tornam-se relativamente incapazes e passam a ser suscetíveis à interdição. Já àquelas pessoas com deficiência que eram consideradas relativamente incapazes por discernimento reduzido, atualmente, são tratadas como capazes para os atos da vida civil e direcionadas ao modelo da tomada de decisão apoiada.
A deficiência, portanto, não afeta a capacidade civil da pessoa para, inclusive, conservar sua fertilidade. Assim, no próximo item, será abordada a esterilização compulsória proveniente de ideias eugênicas que, atualmente, encontra-se expressamente vedada.
2.2 ESTERILIZAÇÃO COMPULSÓRIA E EUGENIA
A esterilização humana, realizada de forma artificial, consiste no ato de empregar técnicas especiais (cirúrgicas ou não), seja no homem, seja na mulher, com o intuito de impedir a fecundação (KIRMSER apud DINIZ, 2014). No que tange à eugenia, cujo termo significa “bem-nascido”, trata-se de um movimento, iniciado em 1883, que busca aprimorar geneticamente a raça humana.
Naquela oportunidade, sir Francis Galton, primo de Charles Darwin, estava convencido de que a hereditariedade dominava o talento e o caráter. Dessa forma, defendia-se que era necessário evitar a reprodução dos geneticamente desqualificados, defeituosos (SANDEL, 2015). Assim, deu-se a origem da esterilização eugênica, com a finalidade de “impedir a transmissão de moléstias hereditárias, evitando a prole inválida ou inútil” (DINIZ, 2014, p. 187).
Em que pese possuísse o objetivo de buscar o aprimoramento da raça humana, a eugenia sempre teve, também, o seu lado mais duro. Durante a Segunda Guerra Mundial, Adolf Hitler, quando conquistou o poder, em 1933, utilizando-se das ideias eugênicas, promulgou uma ampla lei de esterilização. Não obstante, nesse mesmo período, as ideias eugênicas disseminavam-se ao redor do mundo.
Em 1907, o Estado de Indiana adotou a primeira lei de esterilização compulsória para pacientes mentais, prisioneiros e miseráveis. Após, vinte e nove Estados americanos também acabaram adotando leis de esterilização compulsória e mais de 60 mil americanos geneticamente defeituosos foram esterilizados. Todavia, a eugenia de Hitler, passou a assassinato em massa e genocídio. Anos mais tarde, levando-se em conta as atrocidades cometidas pelos nazistas, houve o recuo do movimento eugenista e, a partir de então, caíram os números de esterilizações involuntárias (SANDEL, 2015).
No Brasil, em 1996, promulgou-se a Lei n°. 9.263, que tornou lícita a esterilização, mas apenas em situações específicas previstas em lei. No que se refere à esterilização de pessoas com deficiência, o referido diploma legal dispôs, em seu artigo 10, § 6° que: “a esterilização em pessoas absolutamente incapazes somente poderá ocorrer mediante autorização judicial, regulamentada na forma da Lei” – lei essa que nunca existiu no ordenamento jurídico pátrio.
Ocorre que, para que a prática da esterilização não configure crime de lesão corporal, impõe-se a presença do consentimento informado do paciente. Entretanto, o consentimento, para ser juridicamente válido, deve ser proferido por pessoa não absolutamente incapaz e, naquela época, a pessoa com deficiência era tratada, juridicamente, como absoluta ou relativamente incapaz. Dessa forma, familiares ou representantes legais ingressavam com ações no Poder Judiciário visando à autorização judicial para esterilização daqueles (ALBUQUERQUE, 2013).
Apesar de não existir, no ordenamento jurídico brasileiro, hipótese de esterilização compulsória, ou seja, nenhuma pessoa pode ser obrigada a ser submetida à esterilização, na prática, isso ocorria, pois os pedidos de esterilização formulados por familiares ou responsáveis legais não observavam e, muitas vezes, eram contrários a vontade da pessoa com deficiência, configurando, assim, violação do princípio da dignidade humana.
Entretanto, através do Estatuto da Pessoa com Deficiência, percebe-se que essa realidade foi alterada, tendo em vista a vedação expressa, em seu artigo 6°, da esterilização compulsória. Outrossim, o referido diploma legal assegura às pessoas com deficiência o direito à reprodução e ao planejamento familiar, que serão estudados a seguir.
2.3. DIREITO À REPRODUÇÃO E AO PLANEJAMENTO FAMILIAR
A primeira formulação clara da ideia de direitos reprodutivos e sexuais ocorreu na Conferência Mundial sobre População e Desenvolvimento, convocada pela ONU (Organização das Nações Unidas) e realizada em Cairo, no Egito, em 1994. Após, em 1995, na Conferência Internacional de Beijing, a formulação foi confirmada, com o seguinte teor:
“Os direitos reprodutivos incluem certos direitos humanos que já estão reconhecidos nas leis nacionais, nos documentos internacionais sobre os direitos humanos e em outros documentos pertinentes nas Nações Unidas, aprovados por consenso. Esses direitos firmam-se no reconhecimento do direito básico de todos os casais e indivíduos a decidir livre e responsavelmente o número de filhos, o espaçamento dos nascimentos e o intervalo entre eles, e a dispor da informação e dos meios para tanto e o direito a alcançar o nível mais elevado de saúde sexual e reprodutiva (…) A promoção do exercício responsável destes direitos de todos deve ser a base principal das políticas e programas estatais e comunitários na esfera da saúde reprodutiva, incluindo o planejamento familiar “ (MINAHIM apud DINIZ, 2014, p. 177).
Outrossim, através da Declaração de Direitos do Deficiente Mental da Convenção de Guatemala e, posteriormente, da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo governo brasileiro a título de emenda constitucional, tutelou-se, especificamente, o direito à reprodução e ao planejamento familiar das pessoas com deficiência. Em 2015, com a promulgação do Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei n°. 13.146/15 – esses direitos foram novamente ratificados.
Da mesma forma que os demais direitos, o exercício dos direitos reprodutivos também impõe obrigações, na medida em que os casais e os indivíduos devem considerar, sobretudo, as necessidades de seus filhos e seus deveres para com a comunidade. Portanto, os direitos reprodutivos não são absolutos, tendo os direitos da prole e o bem comum como seus limites (DINIZ, 2014).
Ou seja, não há o que se falar em liberdade procriadora exercida de qualquer maneira, mas sim de uma liberdade responsável. Assim, o planejamento familiar responsável trata-se de um direito reprodutivo, um direito humano básico reconhecido pela ONU (Organização das Nações Unidas), na Resolução de 1968, e pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, § 7°, “sendo, com base nos princípios do respeito à dignidade humana e da paternidade responsável, um paradigma da política populacional” (DINIZ, 2014, p. 178).
A seguir, será feita uma sucinta análise das bases legais que asseguram o planejamento familiar das pessoas com deficiência, a fim de identificá-las e relacioná-las com os princípios constitucionais.
3. FUNDAMENTOS JURÍDICOS DO PLANEJAMENTO FAMILIAR DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
Inicialmente, cabe referir que a literatura nos traz, ao longo dos tempos, a sexualidade das pessoas com deficiência de duas formas: assexuada e hiperssexuada. No entanto, pesquisas científicas comprovam que a sexualidade de indivíduos com deficiência assemelha-se aos demais seres humanos, embora existam restrições, dependendo do contexto social no qual encontram-se inseridos.
Verifica-se, dessa forma, que, na realidade, a sociedade teme a reprodução das pessoas com deficiência por acreditar que a prole também será diagnosticada com alterações genéticas, receio esse que não se justifica. Isso porque, em que pese exista a possibilidade de reincidência de alguma anomalia genética, há, também, a probabilidade – que até pode ser maior, dependendo do contexto fático e da deficiência que se está analisando – do nascimento de filhos sem qualquer alteração.
Portanto, o principal desafio de proclamar o direito das pessoas com deficiência ao planejamento familiar consiste em provocar a ideologia da normalidade, pois, através da reprodução social, definem-se os padrões familiares. Apesar dos estigmas sociais existentes em torno da deficiência, todos têm assegurado o direito à concepção e à descendência, podendo exercê-los por meio do ato sexual ou da fertilização assistida, em caso de infertilidade (DINIZ, 2014).
Nesse sentido, o artigo 226, § 7° da Constituição Federal de 1988 estabelece que o planejamento familiar é livre decisão do casal, cabendo ao Estado somente propiciar os recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito.
Ademais, o artigo 2° da Lei n°. 7.853/89 estabelece que cabe ao Poder Público e aos seus órgãos assegurar o exercício dos direitos básicos às pessoas com deficiência, incluindo a promoção de ações preventivas, como as referentes ao planejamento familiar.
De acordo com a Constituição Federal, o planejamento familiar fundamenta-se nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável. A dignidade da pessoa humana é tida como fundamento da República Brasileira e, ao admiti-la como fundamento, o Constituinte quis afirmar que “toda a atividade estatal deve estar direcionada ao bem coletivo”, isto é, “o Estado deve servir as pessoas e não as pessoas servirem o Estado. Esta é a premissa fundamental de qualquer Estado Constitucional” (GARCIA; CARDOSO; ARAÚJO, 2003).
Bahia, Kobayashi e Araújo, em relação ao princípio da dignidade da pessoa humana, afirmam que:
“Uma das grandes preocupações em relação à necessidade de efetivação da dignidade da pessoa humana e, consequentemente, da concretização do princípio da igualdade no seio social, diz respeito às minorias, as quais, seja em razão de apresentarem comportamento diferenciado daquele normalmente experimentado por uma determinada comunidade, seja em razão de não ostentarem as mesmas características físicas e psíquicas verificadas na maioria dos indivíduos, sofrem os mais diversos tipos de discriminação e de exclusão, sendo, inclusive, expungidas injustamente do benefício resultante do exercício de direitos que, ao menos em tese, se mostram pertencentes a qualquer cidadão” (BAHIA; KOBAYASHI; ARAÚJO, 2003. p. 45).
Assim, no momento em que efetivado o princípio da dignidade da pessoa humana, perceber-se-á concretizado o princípio da igualdade, base de todas as garantias, privilégios e proteções previstas às pessoas com deficiência. A igualdade, enquanto norma constitucional, deve ser lida como a obrigatoriedade de tratamento isonômico a todos os cidadãos e a possibilidade de tratamentos diferenciados a pessoas ou grupos que, por sua qualidade diferencial ou desequilíbrio fático em relação ao resto da sociedade, necessitam de um tratamento diferenciado, justamente porque igualdade pressupõe o respeito e a preservação das diferenças individuais e grupais ou da diversidade que é inerente à natureza humana.
Seguindo a linha dos princípios constitucionais relacionados ao tema, Albuquerque (2013) refere que, ocasionalmente, há conflito entre o respeito ao princípio da autonomia da pessoa com deficiência e a obrigação do Estado de salvaguardá-las. Isso ocorre porque o estigma da loucura, proveniente da deficiência, acarreta a perda da autonomia dos indivíduos, fazendo com que seus discursos, bem como suas ações sejam percebidos como sintomas de sua deficiência.
Outrossim, durante um longo período, o Estado ou a família que geriam a vida privada da pessoa com deficiência, motivo pelo qual, atualmente, ainda se encontram muitas dificuldades em reconhecer-lhes a autonomia em suas decisões. Contudo, a limitação dessa autonomia apenas se justifica para sua autoproteção, ou seja, implica, necessariamente, a presença de um mal ou dano. Caso contrário, configurar-se-á violação da dignidade humana.
Com o intuito de substancializar a proteção e promoção da autonomia das pessoas com deficiência, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, em seu artigo 3°, alínea “a”, destaca o princípio do “respeito pela dignidade inerente, a autonomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, e a independência das pessoas”. Não obstante, o Estatuto da Pessoa com Deficiência refere, em diversos dos seus artigos, que visa à autonomia e à independência dos indivíduos.
Dessa forma, conforme explanado acima, as pessoas com deficiência possuem direitos em condições de igualdade com as demais pessoas, motivo pelo qual tolher-lhes a autonomia de suas decisões e o direito ao planejamento familiar pelo fato de não se enquadrarem nos padrões de “normalidade”, não é justificável.
Por fim, em 2015, o Estatuto da Pessoa com Deficiência dispôs, em seu artigo 6°, que a deficiência não afeta a plena capacidade civil para exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar.
Dessa forma, verifica-se que o direito ao planejamento familiar, bem como à reprodução das pessoas com deficiência encontra-se previsto tanto na Constituição, expressamente ou por meio dos princípios constitucionais, quanto em legislações infraconstitucionais, motivo pelo qual pode-se afirmar que pessoas com deficiência têm assegurado tais direitos, nas mesmas condições que as demais pessoas.
CONCLUSÃO
Atualmente, diante do ritmo alucinante de vida experimentado pelos indivíduos, ocasionado pelas exigências no âmbito econômico-social que assolam a sociedade, as minorias têm encontrado cada vez menos oportunidade de se inserir e interagir em sociedade. Dentre essas minorias encontram-se as pessoas com deficiência que, há muito, buscam seu reconhecimento como indivíduos que possuem diferenças inerentes à natureza humana.
Por um longo período histórico, as pessoas com deficiência eram excluídas do convívio social, sendo internadas em instituições assistencialistas para tratamento, motivo pelo qual seus direitos não lhe eram reconhecidos. Entretanto, a partir do Renascimento, quando estudos científicos passaram a justificar a origem das moléstias e das deficiências, iniciaram-se as proclamações dos primeiros direitos àqueles que se encontravam às margens da sociedade.
Em que pese os constantes progressos em relação ao reconhecimento das pessoas com deficiência, grande parte da sociedade – aquela que se encontra em ritmo alucinado visando à ascensão – é incapaz de conviver socialmente com pessoas que se encontram em um ritmo que não seja o seu.
Dessa forma, contata-se que, apesar das previsões legais que garantem condições de igualdade às pessoas com deficiência, essas percebem dificuldades em se enquadrar nos padrões estabelecidos pela sociedade. Tais dificuldades refletem-se nos mais variados setores da vida em sociedade, até mesmo em suas vidas privadas.
Como o objetivo geral desse texto estava centrado em analisar os fundamentos jurídicos que garantem o planejamento familiar às pessoas com deficiência, foram descritas breves notas acerca da ascensão histórica das pessoas com deficiência, sobretudo, em relação aos seus direitos adquiridos.
Nesse contexto, cabe ressaltar o Estatuto da Pessoa com Deficiência, que se trata de um marco nas conquistas sociais desses indivíduos, sendo que sua promulgação refletiu nas mais variadas legislações infraconstitucionais.
Diante da análise do problema proposto para este estudo – quais as bases legais que garantem o exercício do planejamento familiar às pessoas com deficiência, no sentido de que, a partir do princípio constitucional da igualdade, esses indivíduos possuem assegurados os seus direitos e deveres em condição de igualdade com as demais pessoas? – conclui-se que a hipótese inicial levantada para tal questionamento pode ser considerada verdadeira, na medida em que a Constituição Federal – seja através dos direitos, seja através dos princípios constitucionais – e o Estatuto da Pessoa com Deficiência asseguram o direito à reprodução e ao planejamento familiar, buscando a integração social das pessoas com deficiência.
Portanto, entende-se que o planejamento familiar possui previsão legal expressa. Contudo, para o seu exercício é primordial que as pessoas com deficiência consigam satisfazer os deveres parentais, exercendo a paternidade responsável, da mesma forma que as demais pessoas.
Informações Sobre o Autor
Fernanda Diehl
Bacharel em Direito pelo Centro Universitário UNIVATES