Resumo: O presente estudo de caso objetiva, a partir do levantamento de dados que cercam e informam detalhes sobre a situação concreta analisada, avaliar se o foro por prerrogativa de função ocasiona uma regular manifestação da jurisdição, nos moldes constitucionais ou se resta configurado, nos fatos, a materialização dos argumentos de que funciona a prerrogativa como meio de perpetuação da corrupção. No tocante ao método o estudo se localiza na vertente jurídica-sociológica, sendo uma investigação do tipo diagnóstico, com levantamento dos dados documentais, normativos e jornalísticos analisados por meio da triangulação metodológica que implica no cruzamento dos dados normativos que regulamentam o foro por prerrogativa de função, os dados específicos do caso concreto e a perspectiva dos teóricos, doutrinadores e juristas. Concluiu-se que o instituto somente pode ser considerado compatível com o Estado Democrático de Direito se alterada sua dinâmica com vistas à correção de suas imprecisões, de outro modo é meio eficaz de promoção da criminalidade, corrupção e impunidade.
Palavras-chave: Foro por prerrogativa de função; Foro privilegiado; Câmara de Deputados, Supremo Tribunal Federal; Conselho de Ética.
Sumário: 1. Introdução; 2. O foro privilegiado: conceito e disciplina normativa; 2.1 Posicionamentos favoráveis e contrários ao Instituto; 3. Estudo de caso: julgamento do Deputado Eduardo Cunha; 3.1 Aspectos históricos e jurídicos das acusações contra Eduardo Cunha e os julgamentos no Conselho de Ética da Câmara e STF; 3.1.1 Andamento do Julgamento no Conselho de Ética; 3.1.1.1 Histórico dos julgamentos no Conselho de Ética e o julgamento do Deputado Eduardo Cunha; 3.1.2 Denúncias apresentadas ao STF contra o deputado Eduardo Cunha; 3.1.2.1 Julgamento no Supremo Tribunal Federal; 4. Análise dos dados; 5. Considerações finais; Referencial
1 INTRODUÇÃO
Uma sociedade se funda e continua harmônica, quando o acordo coletivo é respeitado e preservado. Respeitado quando as regras de sua construção são observadas e resguardadas. Uma vez desrespeitadas, os responsáveis pelas agressões são devidamente identificados e punidos, sendo lembrada a sociedade da importância da manutenção dessas regras, mínimas e máximas de convívio social.
Espera-se, portanto que todos respeitem as leis, morais e jurídicas, que ordenam a vida em sociedade e espera-se muito mais, daqueles que são escolhidos como representantes de muitos, na condução dos governos e gestão da coisa pública. Para sua atuação, pensou-se a instituição de cargos e funções, que lhes precedendo, configuraram-se como importantes instituições, necessárias ao estado e consequentemente à toda sociedade. Passou-se a entender que proteger as instituições – e os cargos que delas derivam ou que com elas se confundem – é parte integral dessa preservação do Estado e da sociedade.
Nesse diapasão surgem duas questões de grande importância. O cometimento de crimes, de todas as naturezas, por aqueles que deveriam proteger e salvaguardar as leis e a punição que se espera para essas pessoas, em especial a punição que não há a impunidade tão corriqueira e constrangedora na sociedade brasileira.
O atual estudo de caso objetiva, a partir do levantamento de dados que cercam e informam detalhes sobre uma situação concreta especifica, qual seja – o caso Eduardo Cunha –, avaliar se o foro por prerrogativa de função ocasiona uma regular manifestação da jurisdição, nos moldes constitucionais ou se resta configurado, nos fatos, a materialização dos argumentos de que funciona a prerrogativa como meio de perpetuação da corrupção. No caso, o deputado em questão chegou a presidir a Câmara de Deputados no Congresso Nacional e foi denunciado no Supremo Tribunal Federal, seu foro por prerrogativa, como envolvido em inúmeros escândalos de corrupção.
A pesquisa se apresenta relevante não apenas por enfrentar fatos específicos de nossa histórica política recente, que guardam estreita relação com a apreciação jurídica da aplicação das regras do foro por prerrogativa de função, como vem também apresentar sua importância quando se aproxima aos esforços de diversos juristas e acadêmicos para analisar a pertinência do instituto no ordenamento pátrio a partir de sua (in)compatibilidade e (in)eficácia jurídicas, ocasionando uma perspectiva de mudança no sistema jurídico.
O estudo de caso se localiza na vertente jurídica-sociológica por entender que pesquisas dessa natureza somente podem ser empreendidas por meio de recursos que extrapolam os limites dogmáticos do Direito, sendo portanto a investigação do diagnóstico, por asseverar possibilidades para os sintomas elencados. No que diz respeito, as técnicas e procedimentos metodológicos para levantamento dos dados, o presente trabalho utilizou levantamento documental, normativo e dados jornalísticos sobre o caso concreto em estudo. A análise e controle dos dados e conclusões auferidos se darão por meio de triangulação metodológica que implica no cruzamento dos dados normativos que regulamentam o foro por prerrogativa de função, os dados específicos do caso concreto e a perspectiva dos teóricos, doutrinadores e juristas consultada (GUSTIN; DIAS, 2015, p.21-94).
A abordagem se inicia com uma explanação conceitual seguindo-se com a exposição dos dados relativos aos julgamentos, no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados e no Supremo Tribunal Federal, encerrando-se com a triangulação dos dados levantados.
2 O FORO PRIVILEGIADO: CONCEITO E DISCIPLINA NORMATIVA
A origem etimológica da palavra “privilégio” é bastante sugestiva, no latim, o adjetivo privus designava a esfera privada em oposição ao publicus, enquanto legis era o termo originário para lex: lei. Privilégio seria assim, uma lei privada; um verdadeiro estado de exceção particular, que torna o “privilegiado” alguém privado da aplicação regular da lei ou, mais precisamente, dos rigores dela (SOUZA, 2014, p.20).
O Foro por Prerrogativa de Função, como também conhecido como Foro Privilegiado no constitucionalismo brasileiro, sempre foi objeto de forte crítica quando se trata do processo e julgamento de determinadas autoridades públicas na esfera penal. Mostrando-se um tema polêmico tendo em vista a perspectiva isonômica de tratativa, de todos, perante a lei, questionando a legitimidade constitucional do instituto (SOUZA, 2014, p.21).
Souza (2014, p.21) pontua que, já na primeira Constituição brasileira, promulgada em 1824, vigorava o princípio monárquico que dispunha em seu artigo 179, XVII: “a exceção das Causas, que por sua natureza pertencem a Juízos particulares, na conformidade das leis, não haverá Foro privilegiado, nem comissões especiais nas causas cíveis ou crimes”. Ou seja, disciplina com muita clareza a inexistência de Foro Privilegiado, para aquelas questões.
Seguindo essa perspectiva, a Constituição republicana de 1891 expressou no capítulo dedicado aos direitos e garantia individuais de forma taxativa, no artigo 73, inciso 23: “À exceção das causas, que, por sua natureza, pertencem a juízos especiais, não haverá foro privilegiado”. Quanto a Constituição de 1934 em seu artigo 113, n° 25 textualiza: “Não haverá foro privilegiado nem tribunais de exceção; admitem-se, porém, juízos especiais em função de natureza das causas”.
Ressalte-se que, a carta de 1934, além de continuar com a proibição do Foro Privilegiado, reforça com a vedação de tribunais de exceção.
Já O Diploma Maior outorgado pelo regime autoritário de 1937 foi omisso no tocante ao inexistência ou permissão do Foro Privilegiado. Sendo sua vedação restabelecida pela Constituição de 1946 que, em seu artigo 141, inciso 26 determinou que “não haverá foro privilegiado nem juízes e tribunais de exceção”.
A constituição de 1967 manteve a proibição contida no artigo 153, inciso 15 nos seguintes termos: “A lei assegurará aos acusados ampla defesa com os recursos a ela inerentes. Não haverá foro privilegiado nem tribunais de exceção”.
Nessa esteira de vedações ao foro, destoa a Carta ora vigente. A Constituição de 1988, embora considerada a mais democrática de todas as Constituições brasileiras, a Carta Cidadã, não previu expressamente a vedação de Foro Privilegiado, dispondo em seu artigo 5°, XXXVII que “não haverá juízo ou tribunal de exceção”, e ainda em seu artigo 5°, LII: “ninguém será processado nem sentenciado se não pela autoridade competente”.
O Foro Especial por Prerrogativa de Função é um instrumento previsto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ora vigente, para assegurar algumas autoridades públicas brasileiras o direito de terem seus crimes comuns e de responsabilidade julgados exclusivamente em Cortes Especiais[1] e de Justiça do Poder Judiciário, enquanto que os outros cidadãos estão sujeitos a julgamento pelo Poder Judiciário comum, ou seja, perante Magistrados de primeira instância (CF, arts. 52, I, II, 102, I, b, c, 108, I, a, 29, X, 96, III).
2.1 Posicionamentos favoráveis e contrários ao Instituto
As opiniões se dividem entre Doutrinadores, Magistrados, parlamentares, mídia e população em geral. Sendo importante diferenciar os argumentos apresentados, favorável e contrariamente à manutenção do instituto.
Tourinho Filho entende como positiva a existência do Foro por prerrogativa e discorre sobre a importância de diferenciação entre este e o eventual foro privilegiado, destacando ser necessário que não exista confusão conceitual entre ambos. Para o autor, o foro não privilegia a pessoa em si e sim a função. Conforme se percebe:
“Poderá parecer, à primeira vista, que este tratamento especial conflitaria com o princípio de que todos são iguais perante a lei, e, ao mesmo tempo, entraria em choque com aquele outro que proíbe o foro privilegiado (…). O que a constituição veda e proíbe, como consequência do princípio de que todos são iguais perante a lei, é o foro privilegiado e não o foro especial em atenção à relevância, à majestade, à importância do cargo ou função que este ou aquela pessoa desempenhe. O privilégio decorre de benefício à pessoa, ao passo que a prerrogativa envolve a função” (TOURINHO FILHO, 2000, p.109). (grifos nossos)
Destaca-se, da fala do doutrinador, que não se pode confundir o privilégio com a prerrogativa. Esta destina-se a função, sendo possível sua proteção, já aquela, seria destinada a pessoa que ocupa o cargo, sendo vedada pela determinação isonômica constitucional.
Nesta senda, pode-se afirmar que existe uma finalidade do Foro por Prerrogativa de Função, que importa em utilidade pública, como aponta Mirabete:
“A existência do foro por prerrogativa de função está fundada na utilidade pública, no princípio da ordem, na subordinação e na maior independência dos Tribunais Superiores. Segundo este autor, a necessidade do Foro por Prerrogativa de Função tem como base a utilidade pública, a manutenção da ordem e a independência dos Tribunais Superiores”. (MIRABETE, 2004, p.131).
A manutenção da ordem, evocada pelo autor, diz respeito á proteção dos cargos pelos usos indevidos de seus ocupantes, devendo estes serem julgados por cortes especificas, não fazendo surgir ai uma tratativa desigual e tão somente uma destinação especifica de julgamento para cortes especificas.
Com a Carta de 1988 os cargos públicos de maior relevância passaram a deter o foro por prerrogativa, com intuito de preservar a instituição, marcada pela presença da pessoa que o ocupa, de julgamentos em primeira instância, o que poderia expor a instituição á uma degradação que a fragilizaria (SOUZA, 2014, p.28). Tendo em vista essa perspectiva, decidiu-se que o julgamento de certas autoridades públicas seria pela eleição de órgãos colegiados, sendo estes autoridades de auto gabarito, longe de eventual pressão política julgará determinados cargos ou funções públicas.
A ideia de proteção ao cargo é corroborada na Súmula 451 do Supremo Tribunal Federal ao estabelecer que “a competência por prerrogativa de função não se estende ao crime cometido após a cessação definitiva do exercício funcional”. Indiretamente, a Súmula valida o estabelecimento de foros especiais, na medida em que só serão válidos quando o agente pratica o ilícito penal durante o exercício do cargo ou mandato. Este entendimento esta pacificado, a saber, quando a autoridade deixa de exercer o cargo ou função em que era possuidor do “foro Especial”, não será mais julgado por crime no órgão superior.
Constata-se assim que o foro por prerrogativa de função não é dirigido à pessoa que a exerce e sim em decorrência de relevância do cargo ou mandato da estrutura do Estado. Esse entendimento é partilhado por Tourinho Filho (200, pag.72), que defende ser justo, dada a necessária dignidade impressa no cargo ou função pública que, a pessoa que o exerce tenha o privilégio de ser processada e julgada, não como qualquer do povo, pelos órgãos comuns, mas, por órgãos superiores, desde que evidenciado que não se trata de tratamento dispensado à pessoa, mas sim ao cargo, à função que a pessoa ocupada.
Nessa mesma linha de pensamento, Hidejalma Muccio elabora a seguinte análise:
“O foro pela prerrogativa de função preserva não só o acusado, como também o prestígio da própria justiça, colocando a salvo de pressões indevidas ou interferências que comprometam a imparcialidade do julgamento. A supressão do foro por prerrogativa de função tornaria o julgamento proferido pelos Órgãos Jurisdicionais que julgam demais pessoas, não só foro fértil de decisões a favor do acusado (seja pelas pressões internas e externas, seja pelo estreitos laços de amizade e de trabalho, seja em razão de interesses pessoais e escusos de julgador), mas também propiciador de julgamento vingativos e parciais” (MUCCIO, 2001, p.165) (grifos nossos)
O foro por prerrogativa de função teria assim, conforme essa perspectiva doutrinária, o condão de preservar a integralidade das instituições e conservação da independência do agente público, não se confundindo com privilégio destinada a pessoa.
Esta, contudo, não é posição unanime na doutrina ou mesmo entre os juristas. Muitos entendem ser negativa a existência do instituto.
Zeno Veloso, importante jurista nacional[2], critica veementemente o foro por Prerrogativa de Função. Para ele trata-se claramente de privilégio a disposição das autoridades, o que caracteriza uma verdadeira afronta à isonomia, em que somente as pessoas de baixo nível cultural, social e econômico seriam realmente julgadas e obrigadas a cumprir as determinações judiciais; já os mais abastados, doutores e políticos, raramente seriam punidos. Considera assim o foro privilegiado como “perverso, caviloso, aristocrático”, devendo por isso, para o jurista, ser banido do ordenamento “em nome da igualdade, em nome da democracia” (VELOZO, 2007, não paginado),
Para parte da doutrina, a existência de órgãos distintos, competentes para tratar as mesmas questões, diferenciando tão somente em razão do cargo que determinada pessoa ocupa, sendo que o ilícito cometido é pela pessoa e não pelo cargo, não teria o condão de justificar o foro por prerrogativa:
“Há conflito aparente de normas de idêntica hierarquia, pois ambas provenientes da constituição: uma regra geral, que atribui a competência dos crimes dolosos contra a vida ao Tribunal do Júri; outra, específica, que concede Foro Privilegiado por Prerrogativa de Função a algumas autoridades” (QUEIROZ, 2006, p.78) (grifos nossos)
O exemplo desse aparente conflito, conforme coloca Queiroz (2006) é percebido na disciplina do Tribunal do Júri, prevista na Constituição Federal, em face da possibilidade e julgamento em seara distinta, quando configurado o foro por prerrogativa. .
O princípio fundamental de nossa ordem jurídica é o ideal da igualdade, esculpido no preâmbulo da Constituição da República Federal do Brasil consta a seguinte descrição:
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos na assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus” (BRASIL, 1988, não paginado)
Assim, asseveram aquelas vozes na doutrina, representadas aqui por Velozo (2013) e Queiroz (2006), que em decorrência dessa igualdade em que deveriam todos receber igual tratativa legal, há que se ponderar o quão longe pode ir o foro de prerrogativa de função ao estabelecer distinções, ao dar especial relevo ao cargo ocupado pelo agente do delito e jamais estar pensando em estabelecer igualdade entre os cidadãos.
O jurista Hidejalma Muccio (2001, p.42) embora reconheça a importância teleológica pensada para o instituto, entende que o foro por prerrogativa de função, a ideia original de defesa e preservação funcional de autoridade, transformou-se, ao longo dos anos, em um privilégio para a proliferação da impunidade e funcionando, consequentemente como fomento à corrupção. Noutros termos, de um direito constitucionalmente compatível, passou-se a um verdadeiro privilégio.
A Constituição prevê duas espécies de foro especial, as quais foram muito bem distinguidas: a competência ratione materiae e a ratione persona.
No tocante a ratione materiae, como o próprio nome informa, a matéria é o dado determinante para fixação da competência, consubstanciada nas justiças especializadas, como a militar, a federal, a eleitoral, na mesma linha de pensamento Eugênio Pacelli de Oliveira traz o seguinte entendimento:
“Em relação a competência ratione personae são previstos os foros privativos do Supremo Tribunal Federal (art.102,CF), do Supremo Tribunal de Justiça (art.105 da CF), dos Tribunais Regionais Federais (art.108,CF) e dos Tribunais de justiça (art.96, III,CF), para o processo e julgamento de determinadas autoridades em razão da prática de crimes comuns e/ou de responsabilidade” (OLIVEIRA, 2011, pag. 29).
A competência ratione persona implica numa alteração do órgão julgador, originariamente destinado a julgar aquela lide, quando o envolvido na lide desempenhar certas funções ou estiver no exercício de determinados cargos, devendo ser procedida uma alteração no órgão julgador.
Verifica-se na doutrina o posicionamento no sentido de que a competência especial ratione persona, fixada na Constituição, é exaustiva e taxativa, ou seja: aplicável apenas aos casos previstos expressamente por norma constitucional, sendo inconstitucional a tentativa de aplicação em quaisquer outras circunstancias (SILVA, 2005, p. 219).
Ainda nessa esteira de duras criticas ao instituto Barroso (2016, não paginado), defende a tese de que o foro por prerrogativa de função é na verdade uma “causa frequente de impunidade” uma vez que “permite a manipulação da jurisdição”. Em razão dessa perspectiva, defende o Ministro do STF a eliminação da figura normativa do ordenamento por ser “um mal para o Supremo Tribunal Federal e para o país”.
O jurista aponta ainda como desdobramento do Foro por prerrogativa o “inigualitarismo” que seria a possibilidade concreta, por meio da disciplina normativa, de materialização da desigualdade jurisdicional uma vez que, “A Justiça, entre nós, é mansa com os ricos e dura com os pobres” fomentando tratativas diferentes para quem possui maior patrimônio e conhecimento jurídico.
Barroso (2016) apresenta dados concretos que cristalizam a ideia, por ele defendida, de manipulação da jurisdição em favor dos criminosos que ocupam cargos públicos e em desfavor da sociedade e da Constituição. Segundo o Ministro:
“(i) tramitam no STF, atualmente, 369 inquéritos e 102 ações penais contra parlamentares; (ii) o prazo médio para recebimento de uma denúncia pelo STF é de 617 dias (um juiz de 1º grau recebe, como regra, em menos de uma semana, porque o procedimento é muito mais simples); e (iii) desde que o STF começou a julgar efetivamente ações penais (a partir da EC 35/2001, que deixou de condicionar ações contra parlamentares à autorização da casa legislativa), já ocorreram 59 casos de prescrição, entre inquéritos e ações penais.” (grifos nossos)
Barroso (2016) destaca a maior complexidade dos julgamentos no STF em comparação aos julgamentos de primeiro grau, o que ocasiona o grande risco de prescrição dos processos, sendo que, concretamente, das 102 ações penais impetradas contra parlamentares no STf, 59, mais da metade, prescreveram em razão das diversas possibilidades processuais a disposição dos litigantes.
Adianta-se o Ministro expondo três ordens de razões que devem nortear a extinção do foro por prerrogativa, quais sejam as razões filosóficas, estruturais e de justiça. In verbis:
“Razões filosóficas: trata-se de uma reminiscência aristocrática, não republicana, que dá privilégio a alguns, sem um fundamento razoável; Razões estruturais: Cortes constitucionais, como o STF, não foram concebidas para funcionarem como juízos criminais de 1º grau, nem têm estrutura para isso. O julgamento da AP 470 ocupou o tribunal por um ano e meio, em 69 sessões; Razões de justiça: o foro por prerrogativa é causa frequente de impunidade, porque é demorado e permite a manipulação da jurisdição do Tribunal” (BARROSO, 2016)
Para o célebre jurista a sociedade precisa assumir uma postura de enfrentamento à corrupção e à impunidade, sendo nesse contexto, o foro por prerrogativa um empecilho a tal desafio e instrumento de manutenção de desigualdades,
Tendo em vista, a divergência aqui exposta, entre doutrinadores e juristas, quanto a compatibilidade e eficácia do instituto em comento, buscar-se-á desenvolver uma analise sobre a procedência dos argumentos, favoráveis e contrários, a partir do levantamento de dados que cercam e informam detalhes sobre o caso, para que seja possível avaliar se o foro por prerrogativa de função, de que goza o Deputado Eduardo Cunha – qual seja propriamente o objeto desse estudo –, ocasiona uma regular manifestação da jurisdição ou se resta configurada a demonstração dos argumentos de que funciona a prerrogativa como meio de perpetuação da corrupção e impunidade.
3. ESTUDO DE CASO: JULGAMENTO DO DEPUTADO EDUARDO CUNHA
Eduardo Cosentino da Cunha, ou apenas Deputado Federal Eduardo Cunha, segundo dados disponíveis no site oficial da Câmara dos Deputados, foi líder da Bancada do PMDB entre 2013 a 2015. Sua trajetória teve início em 1989 quando filiou-se ao Partido da Reconstrução Nacional (PRN), foi presidente da Telecomunicações do Estado do Rio de Janeiro, na gestão Collor. Posteriormente, filiado ao Partido Progressista Brasileiro, comandou a Companhia Estadual de Habitação durante a gestão do governador Anthony Garotinho. Candidatou-se pela primeira vez a um cargo eletivo em 1998, ficando como suplente de deputado estadual e assumido uma vaga na Assembleia Legislativa do Estado em 2001. Veio a se eleger Deputado Federal pela primeira vez em 2002, ainda no PPB, sendo reeleito, sucessivamente, em 2006, 2010 e 2014 pela legenda PMDB (CALAZANS, 2016, não paginado).
Em 2015 elegeu-se Presidente da Câmara dos Deputados, com 267 votos da casa, exercendo a presidência no intervalo de 2015 e 2016. O peemedebista não precisou passar pelo segundo turno e derrotou Arlindo Chinaglia (PT-SP), Júlio Delgado (PSB-MG) e Chico Alencar do PSOL-RJ (DINIZ, 2015, não paginado).
No decorrer do mandato de Eduardo Cunha na presidência da Câmara no período de 2015 e 2016, diversas foram as acusações referentes ao Deputado, dando conta desde crimes comuns, que ensejariam a incidência do foro por prerrogativa, até irregularidades praticados como desvios de finalidade em razão do cargo que ocupa como presidente da Câmara dos Deputados, o que resultaria no julgamento por seus pares, no conselho de ética da Câmara, que embora não diga respeito a julgamento por prerrogativa de função, guarda com este intima ligação, como se demonstrará mais a diante.
3.1 Aspectos históricos e jurídicos das acusações contra Eduardo Cunha e os julgamentos no Conselho de Ética da Câmara e STF
Entre o período de 2015 e 2016, enquanto ocupou o cargo de Presidente da Câmara dos Deputados, Cunha foi figura sempre presente nos meios de comunicação; rádio, internet, telejornais, etc. Sempre atraindo olhares do povo e dos juristas e provocando o questionamento sobre o teor e legalidade de suas condutas.
As primeiras acusações referentes ao Deputado Eduardo Cunha aconteceram em 15 de dezembro de 2015. O conteúdo delas dizia respeito ao conteúdo fraudulento de depoimento que Cunha teria prestado a CPI da Petrobras em 2014, quando afirmou não possuir contas no exterior, sendo essa afirmativa contestada pelo Ministério Público Federal, como se noticiou à época:
“Na primeira representação contra Cunha, a Rede Sustentabilidade e o PSOL acusaram o presidente da Câmara de ter quebrado o decoro ao dizer na CPI que não possuía contas não declaradas em seu imposto de renda – o Ministério Público da Suíça encaminhou ao Ministério Público Federal provas de que Cunha é o titular de recursos mantidos no exterior e que seriam propina do esquema criminoso revelado pela Operação Lava Jato” (FRAZÃO, 2015, não paginado).
A acusação enquadrava o deputado na infração prevista no art. 244 do O Regimento Interno da Câmara dos Deputados[3], que trata do Decoro Parlamentar. In verbis:
“Art. 244. O Deputado que praticar ato contrário ao decoro parlamentar ou que afete a dignidade do mandato estará sujeito às penalidades e ao processo disciplinar previstos no Código de Ética e Decoro Parlamentar, que definirá também as condutas puníveis” (BRASIL, 1989, p.186).
Àquela data (dezembro de 2015) aprovou-se a abertura de processo disciplinar contra o presidente da Casa, Eduardo Cunha, pela acusação de quebra de decoro parlamentar. Começando a correr o prazo para julgamento a partir da data em que deputado fora notificado.
Importa destacar que a conduta que dispara o processo disciplinar não diz respeito a julgamento de foro por prerrogativa de função, embora possa, dado o teor do julgamento ensejar a condenação do deputado na perda do mandato, conforme dicção do art. 10, IV do Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara de Deputados.
Após a denúncia feita pelo PSOL e a Rede Sustentabilidade, que ensejou a abertura do processo no Conselho de Ética, outras denúncias, feitas pela Procuradoria-Geral da República são apresentadas, essas diante do STF, em razão do possível recebimento de propina pelo parlamentar. Este último sendo efetivamente um julgamento que configura a prerrogativa de função.
Restará demonstrada, no curso da explanação, a relação que existem entre esses dois julgamentos: o do decoro no Conselho e o que tramita no Supremo Tribunal Federal.
3.1.1 Andamento do Julgamento no Conselho de Ética
Através da denúncia apresentada pelos partidos PSOL e Rede Sustentabilidade, tangenciando à quebra de decoro parlamentar do Deputado Eduardo Cunha, em razão de suposta declaração inverídica na CPI da Petrobrás, o Conselho de Ética entendeu, em 02 de março de 2016, por 11 votos a 10, pela admissibilidade das investigações sobre Cunha (FERNANDES, 2016, não paginado):
Seguindo o trâmite do processo no Conselho, deputado apresentou sua defesa em 21 de março de 2016, último dia do prazo, alegando que:
“Com efeito, ao contrário do imputado graciosamente ao deputado Eduardo Consentino da Cunha, ele nunca mentiu ou prestou declarações falsas à Câmara dos Deputados, vez que não possui qualquer conta corrente em seu nome no exterior. Restou esclarecido à Câmara dos Deputados, que o deputado é beneficiário, no exterior, de um trust que não caracteriza ou se confunde com conta corrente própria.” (CALGARO, 2016, não paginado)
Após a apresentação de defesa, divulgou-se amplamente em toda mídia brasileira (GONÇALVES, 2015; DINIZ, 2015; CALGARO, 2016; PASSARINHO, 2016; FERNANDES, 2016; AMORIM, 2016), a atuação do deputado, valendo-se de sua posição parlamentar e cargo, para obstruir o julgamento no conselho, serão listadas a seguir alguns fatos, narrados pela mídia nacional, como sendo dirigidos à obstrução do processo.
O primeiro relator instituído para o processo de julgamento das condutas do Parlamentar foi o deputado Fausto Pinato, em novembro de 2015, à época exercia seu cargo pelo Partido Republicano Brasileiro (PRB). Quando de sua escolha pela Câmara, anunciou o então relator que estaria inclinado pela cassação do mandato de Cunha, em razão do contorno dos dados apresentados. Em dezembro de 2015, foi afastado da relatoria, sendo substituído pelo deputado Marcos Rogério, do Democratas. Pinato, todavia, continuou no conselho com direito a voto, trocando em março, de legenda política, saindo do PRB para o Partido Progressista (PP).
Em abril de 2016, Pinato renuncia a vaga que passou a assumir no PP, alterando assim a composição do Conselho de Ética e consequentemente o direcionamento dos votos. Noticias veiculadas à época deram conta de que parlamentares diziam abertamente se tratar de nova manobra do deputado Eduardo Cunha para interferir em seu julgamento (DRAGON, ÁLVARES, 2016; IGLESIAS, PRESCIANI, 2016). Também foi noticiado que a presidência da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que é órgão colegiado responsável pela análise dos recursos apresentados ao Conselho de Ética, seria ocupada por alguém escolhido pelo presidente da Câmara, de modo a manipular a apreciação dos recursos a seu favor (GABELHA, CARDOSO, 2016; PASSARINHO, 2016).
Após a instauração do processo, Eduardo Cunha apresenta projeto de resolução, n. 133/16, destinado a alterar o regimento interno da Câmara, modificando a proporcionalidade na composição das comissões de julgamento. Parlamentares alegaram ser a medida manobra direcionada a dificultar a aprovação do pedido de cassação.
Todas Essas supostas manobras foram utilizadas dentro de um espectro de legalidade. Sendo expedientes previstos nas legislações da casa, que regulam os trâmites internos. Nesse diapasão, tanto parlamentares como a mídia nacional (MARQUES, 2015; PRAZERES, 2016; AMORIN, 2016), que noticiou todo o processo, consideraram os procedimentos como recursos que embora dentro da legalidade, por serem manobrados pelo Presidente da casa, teriam unicamente a função de criar um beneficio próprio.
3.1.1.1 Histórico dos julgamentos no Conselho de Ética e o julgamento do Deputado Eduardo Cunha
Em 2011, o regramento para instauração de procedimentos disciplinares do Conselho de Ética da Câmara dos deputados é alterado, sendo a partir daquela data, exigida a confecção de um parecer preliminar. Desde então o número de processos instaurados foi de 20[4], conforme dados expostos a seguir:
Foram iniciados 20 processos desde 2011, quando mudou-se o regramento. Sendo que dentre esses o de menor duração, o julgamento do deputado Natan Donadon, instaurado em 11 de setembro, teve duração de apenas 14 dias. O deputado foi condenado pelo STF por crimes de peculato e formação de quadrilha. Nesse brevíssimo intervalo o parlamentar foi cassado pelo plenário, a saber, a pena mais gravosa do Conselho de Ética (Art. 10, IV). O julgamento de maior duração se estendeu por 77 dias (Rodrigo Bethlem, arquivado no parecer preliminar), já o caso cunha, mesmo sem ter sido concluído ou arquivado, ultrapassou 160 dias . Destaque também que esse é o único caso em que o Presidente da Câmara, em exercício, é alvo de julgamento e coordenou as atividades da casa, inclusive as ações da Comissão de Ética, nomeando integrantes, fazendo requerimentos e decidindo sobre questões internas obre seu próprio julgamento.
Ainda sobre a análise dos julgamentos realizados após 2011 pelo Conselho de Ética da Câmara, passa-se aos dados referentes as questões que deram causa à abertura de processo disciplinar, senão vejamos:
Dentre as causas que foram consideradas como suficientes para abertura de processo disciplinar, destacaram-se o “desvio de recurso público”, ocorrendo, no total de processos, 4 vezes (20%). Seguindo-se da “agressão física à parlamentar”, 3 vezes (15%) e “venda de emendas parlamentares” e “envolvimento com acusados da na Operação Lava jato” que, cada uma delas, justificaram a abertura por 2 vezes (10%). Todas as demais causas ocorreram uma única vez.
Dos 20 processos disciplinares iniciados desde 2011, 75% (15) foram arquivados, 10% (02) resultaram em cassação (Deputados André Vargas e Natan Donadon) e ainda 15% (03) esperam pelo julgamento, sendo que destes últimos, em um deles foi recomendada a cassação pelo conselho (Deputado Luiz Argôlo, acusado de envolvimento com o doleiro Alberto Yousseff no âmbito da Operação Lava Jato) ainda não procedida pelo plenário e um outro caso (Deputado Roberto Freire) em que se reiniciou a tramitação em razão de solicitação de documentação pelo então Presidente da Câmara, Eduardo Cunha.
A recomendação de cassação pelo Conselho, não implica em uma cassação certa, haja vista ser necessária a apreciação pelo plenário. Desde o início desses procedimentos, de 2001 a 2016, quando o Conselho passa a existir, ocorreram 20 recomendações, sendo que destas apenas 6 resultaram em cassações.
Das 20 recomendações que apreciou o Conselho de Ética, 6 resultaram em cassações, entre elas estão presente o ex-deputado André Luíz, que em 2004 foi acusado de extorquir Carlinhos Cachoeira. Na votação pela cassação 301 posicionaram-se a favor e 104 contra a cassação, ocorreram ainda 36 abstenções. No ano de 2005 o ex-deputado Pedro Corrêa, obteve 261 votos favoráveis de sua cassação e 166 contrários, ocorreram 24 abstenções. Corrêa era acusado por envolvimento no mensalão.
No mesmo ano de 2005, o ex-deputado José Dirceu foi cassado por 293 votos contra 192, tendo ocorrido 9 abstenções. Dirceu foi acusado de envolvimento no mensalão. Ainda em 2005 o Conselho de Ética cassou o ex-deputado, Roberto Jefferson com 313 votos favoráveis contra 156 e, 18 abstenções.
A partir de 2013 as votações no Conselho de Ética passaram a acontecer de forma aberta, por meio de aprovação de emenda constitucional que extinguiu para essas questões o voto secreto, o que impactou no numero de cassações.
Mais recentemente, em 2014, através de voto aberto o Conselho de Ética cassou o Deputado André Vargas, acusado de envolvimento com o doleiro Alberto Youssef. Seu julgamento durou 20 dias, tendo 359 favoráveis à sua cassação em face de 1 voto contrário e 6 abstenções. No mesmo ano o Conselho de Ética pediu a cassação de mandato de Natan Donadon, acusado de peculato e formação de quadrilha, o processo teve duração de 14 dias, com 467 votos a favor, nenhum contrário e uma abstenção.
Percebe-se que os julgamentos pelos pares no Conselho de Ética e em seguida no plenário é escasso e perfeitamente manipulável, sendo mais severo apenas quando presente ou julgamento já transitado de Tribunal Superior ou o clamor social, ampliado pelo voto aberto. Mais manipulável ainda passa a ser quando o próprio presidente da casa, que possui amplos poderes na coordenação dos trabalhos de composição das comissões é um dos investigados.
3.1.2 Denúncias apresentadas ao STF contra o deputado Eduardo Cunha
O então presidente da Câmara, Deputado Eduardo Cunha, julgado no Conselho de Ética por quebra de decoro parlamentar, também passa a ser alvo de acusações apresentadas pela Procuradoria-Geral da República ao Supremo Tribunal Federal, que pela disposição constitucional presente no art. 102, I, b, é o órgão responsável para julgamento de acusações contra parlamentares que integram o Congresso Nacional.
Dois inquéritos foram deflagrados contra o então deputado. O primeiro deles o Inquérito 3983, tratando dos crimes ligados às praticas de corrupção e o segundo, inquérito 4146, para tratar de corrupção passiva e outros ilícitos, correlatos.
Acatados os pedidos, o deputado, em seu foro por prerrogativa de função, passa a ser julgado, mais especificamente, pelos crimes de organização criminosa com atuação nacional e internacional, previstos nos arts. 2º, caput, e § 1º da Lei nº 12.850/2015, crime de ocultação de bens e valores, conforme dicção do art. 1º, Lei 9.613/98, crime de corrupção passiva e ativa, respectivamente disciplinados nos arts. 317 e 333 do Código Penal e pelo crime de evasão de divisas, por meio de operações de cambio não autorizadas, conforme art. 22, parágrafo único, da Lei n. 7.492/86, que trata dos crimes contra o sistema financeiro nacional.
Alegou-se também na denuncia apresentada ao Supremo, a reiteração de prática criminosa por meio da utilização do cargo de deputado e função de presidente, sendo pedido com fundamento nos arts. 282, I e II e 319, VI, do CPP, o afastamento cautelar do parlamentar da função e do cargo.
No curso dos inquéritos policiais que tramitaram no Supremo Tribunal Federal, foi requerido pelo Procurador-geral da República, em sede da Ação Cautelar 4070, protocolada em dezembro de 2015, que o Deputado fosse afastado urgentemente do cargo de deputado e da função, tendo vista o risco que apresentava para o regular andamento processual. A medida foi deferida apenas em maio de 2016[5] e pautava-se em diversos atos classificados pelo Procurador-geral como espúrios. Que passam a ser elencados a seguir.
Os fatos denunciados pelo PGR nos inquéritos 3.983 e 4.146 dão conta dos seguintes atos: 1) Utilização de deputados para apresentação de requerimentos e procedimentos em Comissões da Câmara para pressionar empreiteiras e empresas ao pagamento de propina; 2) Direcionamento de requerimentos ao Congresso Nacional, com o mesmo intuito, ocasionar um clima de ameaça institucional sistemática, em face de empresas que supostamente deveriam realizar o pagamento de propina; 3) recebimento de vantagens indevidas em razão do uso sistemático das atribuições como parlamentar; 4) Utilização de CPIs com intuito de constranger, ameaçar e chantagear advogados e empresas; 5) Contratação de empresa internacional especializada em investigação financeira para obstruir e inviabilizar as investigações da Operação Lava jato; 6) Apresentação de requerimentos na CPI da Petrobras para proceder a quebras de seus sigilos bancário, fiscal, telefônico e telemático, de seus desafetos, sem qualquer elemento concreto que justiçasse a medida, com nítido intuito de ocasionar ameaça e constrangimento; 7) Utilização de outros deputados, com ele mancomunados, para proposição de Projetos de Leis que pudessem obstruir o andamento de investigações criminais; 8) Utilização da função de presidente para dar prosseguimento ao interesses espúrios anteriores; 9) perseguição e retaliações à inimigos políticos; 10) recebimento de vantagens indevidas para apresentação e aprovação de dispositivos normativos que veneficiassem empresas, empreiteiras e bancos ; 11) manobras para impedir seu próprio julgamento pelo Conselho de Ética da Câmara; 12) ameaças e oferecimento de vantagens à deputados com intuito de implementação de seus interesses (AC 4070 DF, p.2-5).
3.1.2.1 Julgamento no Supremo Tribunal Federal
Teori Zavascki, Ministro Relator da Operação Lava Jato no Supremo Tribunal Federal, responsável pelo julgamento da Ação Cautelar que pediu o afastamento de Eduardo Cunha, informou no despacho que o suspendeu do cargo que “a legitimidade do deferimento das medidas cautelares de persecução criminal contra deputados encontra abrigo farto, mas não isolado, no princípio da inafastabilidade da jurisdição” (AC 4070 DF, p.21), lastreando o seu entendimento em decisão anterior do Tribunal, HC 89.417, proferida pela Ministra Carmen Lúcia, que a seu turno, considerou:
“Como se cogitar, então, numa situação de absoluta anomalia institucional, jurídica e ética, que os membros daquela Casa poderiam decidir livremente sobre a prisão de um de seus membros, máxime quando ele é tido como o chefe indiscutível da organização [criminosa que] coordena as ações do grupo e cobra dos demais integrantes o cumprimento das tarefas que lhes são repassadas (…) há que se sacrificar a interpretação literal e isolada de uma regra para se assegurar a aplicação e o respeito de todo o sistema constitucional (…) Imunidade é prerrogativa que advém da natureza do cargo exercido. Quando o cargo não é exercido segundo os fins constitucionalmente definidos, aplicar-se cegamente a regra que a consagra não é observância da prerrogativa, é criação de privilégio” (HC 89.417 apud AC 4070 DF, p.22-23)
Para deferimento dos pedidos na AC 4070, Zavascki pautou-se não apenas no conteúdo normativo disponibilizado no HC 89.417, que a época também julgou condutas ilícitas de parlamentares, como também dispositivos do próprio regimento interno da Câmara (art. 17, I, o, q, s e t; II, b e d, III, e alíneas, V, b, VI, a, g) além de todo o arcabouço jurídico presente na própria peça acusatória, concluindo que:
“Os elementos fáticos e jurídicos aqui considerados denunciam que a permanência do requerido, o Deputado Federal Eduardo Cunha, no livre exercício de seu mandato parlamentar e à frente da função de Presidente da Câmara dos Deputados, além de representar risco para as investigações penais sediadas neste Supremo Tribunal Federal, é um pejorativo que conspira contra a própria dignidade da instituição por ele liderada. Nada, absolutamente nada, se pode extrair da Constituição que possa, minimamente, justificar a sua permanência no exercício dessas elevadas funções públicas. Pelo contrário, o que se extrai de um contexto constitucional sistêmico, é que o exercício do cargo, nas circunstâncias indicadas, compromete a vontade da Constituição, sobretudo a que está manifestada nos princípios de probidade e moralidade que devem governar o comportamento dos agentes políticos” (AC 4070 DF, p.71) (grifos nossos).
Determinou assim, a suspensão do exercício do mandato de deputado federal e consequentemente da função de Presidente da Câmara dos Deputados, para regular persecução criminal.
4. ANÁLISE DOS DADOS
Muitas foram as acusações apresentadas contra Eduardo Cunha, tanto nas instancias politicas quanto jurídicas de julgamento.
Toda a sociedade brasileira acompanhou os diversos atos, chamados de manobras, para protelação e obstrução de seu julgamento, evidenciados pelo intervalo temporal que o processo gastou no Conselho de Ética, além do conteúdo propriamente dos atos, expostos tanto na mídia quanto nos inquéritos dirigidos ao STF pelo Procurador-geral da República. Restou evidenciado que os julgamentos políticos na Câmara não apresentam qualquer garantia de hombridade e correspondência às expectativas sociais, sendo assim de pouca valia para a sociedade. O que não se pode dizer ou esperar dos julgamentos jurisdicionais, que por natureza devem ter como produto final a realização do status de justiça que deve instigar na sociedade o sentimento de legitimidade das instituições e do próprio estado.
O escândalo da interferência protelatória do deputado nas investigações chegou a influenciar na instrução processual junto ao Supremo, como apontou Teori:
“Embora digam respeito diretamente à instrução do processo em trâmite na Câmara dos Deputados, repercutem também nas investigações em curso perante o Supremo Tribunal Federal, na medida em que os esforços investigativos operados tanto pelo Conselho de Ética quanto pelo Ministério Público Federal devem se somar para desvendar a verdade em torno dos fatos, que, como já dito, são idênticos. Ao alijar uma destas forças de trabalho, certamente, Eduardo Cunha está contribuindo diretamente para dificultar o esclarecimento dos fatos investigados” (AC 4070 DF, p.6) (grifos nossos)
Pode-se inferir que a atuação do deputado interfere não apenas na obtenção de elementos probatórios, como na própria definição da competência do juízo como assevera Zavascki:
“Além disso, há uma outra consequência igualmente relevante nessa postura adotada por Eduardo Cunha. Ao evitar o prosseguimento do processo de cassação do seu mandato, Eduardo Cunha está escolhendo o foro do seu julgamento criminal, haja vista que se viesse a perder o seu mandato, perderia, em consequência, o foro privilegiado perante o Supremo Tribunal Federal. Há portanto, por vias transversas, a subversão do art. 5°, LIV, da C. F. Essa ordem de fatos atenta contra a ordem pública e contra a liberdade e independência do Poder Judiciário” (AC 4070 DF, p.6-7).
Seriam estes aspectos contrários ao ideal legitimador do foro por prerrogativa oriundos da conduta dos sujeitos sobre os quais recaem as investigações. Todavia, outra ordem de problemas pode ser percebida, quais sejam os elementos jurídicos inerentes ao processo que comprometem a legitimidade do foro especial.
Especificamente sobre o caso Cunha aponta Barroso (2016) um problema relacionado às questões prescricionais, ao comentar que “as datas foram as seguintes: denúncia apresentada em 20.08.2015 e aditada em 14.10.2015. Foi recebida em 3.03.2016. Se contarmos da data do aditamento, passaram-se cerca de seis meses”. Numa flagrante exposição das condições processuais normativas, próprias ao procedimento nos Tribunais que eventualmente podem resultar a prescrição e por conseguinte a impunidade. O que reforça, no caso concreto em apreço, o que o Ministro alerta em abstrato, grandes são as chances de impunidade pelos recursos internos previstos para o processo dessa natureza junto os Tribunais superiores, especialmente quando é lembrado que desde a instituição da regra, mais da metade dos processos foi extinto por prescrição.
Os dados informam que existem claras possibilidades de manipulação da jurisdição em proveito dos criminosos, tanto por meio de uso de expedientes fraudulentos com fins ilícitos, quanto pela manipulação do processo dentro da legalidade, com fins igualmente indevidos.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O STF, no atendimento à AC 4070, determina o afastamento do Deputado Eduardo Cunha e assim dirige-se à promoção da proteção às instituições e a integridade da republica. Restando isto evidente pela leitura do despacho que efetivou a decisão. Neste diapasão, seria possível inferir que o foro privilegiado – no caso em tela, o STF – , cumpre seu papel de efetuar julgamento dos ilícitos, preservando igualdade entre os criminosos, vez que todos terão seus respectivos julgamentos, com pontual rigor. Todavia o foro privilegiado não existe para que haja mais ou menos rigor e sim para proteger o cargo do escárnio popular e da exposição que seu mal uso pode ocasionar, ora, o mal uso não se pôde evitar pela existência do foro privilegiado, nem nesse caso, nem em nenhum outro que se tenha notícia, desde a reabertura democrática.
O rigor no julgamento, com vistas à prevenção, é que pode evitar o escarnio popular, não o órgão. A não ser que dado órgão tivesse mais recursos punitivos que outros órgãos o que não se percebe nem se pode aceitar, uma vez que a jurisdição é una.
Nestes termos, pode-se inferir que o instituto perde duplamente sua efetividade 1) porque não protege o cargo de uma exposição que fragiliza as instituições, sendo com ou sem ele expostos ao ridículo, 2) porque pode ocasionar o impedimento de efetivos julgamentos quando por meio de suas regras processuais próprias, pode possibilitar fenômenos jurídicos como a prescrição, que inevitavelmente resulta em impunidade.
Conclui-se, portanto que a foro privilegiado, embora seja destinado à defesa da integridade dos cargos e consequente proteção das instituições, é instrumento frágil, que não atinge sua finalidade e pode ser utilizado – como percebe-se no caso em estudo – para proteção pessoal do acusado. Vez que nem mesmo o mais alto Tribunal do pais está isento dos efeitos de suas manobras com fins a obstrução no julgamento. Flagra-se um desvirtuamento da finalidade que justifica a existência do instituto, como bem demonstrado pelos Doutrinadores e Juristas elencados. Logo, para sua permanência no ordenamento somente se justificaria ante uma reforma em sua dinâmica, de modo à correção das imprecisões neste trabalho expostas e outras que se possam verificar. De outro modo, não há que se falar em compatibilidade deste recurso com o estado democrático de direito, sendo ele não apenas uma afronta á tratativa isonômica processual, mas um meio de promoção da criminalidade, corrupção e impunidade.
Informações Sobre os Autores
Phablo Freire
Advogado, Professor universitário, Bacharel em Direito. Especializando em Gestão de Cidades pela Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina (FACAPE), Especialista em Direito Constitucional Aplicado pela Damásio Educacional, Mestrando em Psicologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF).
Carlos Miller Costa
Acadêmica Direito pela Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina FACAPE