Resumo: Este estudo consiste em analisar a incidência da roda dos enjeitados e da prática do aborto no período colonial do Brasil com base no conto machadiano Pai contra Mãe. Busca a compreensão da sociedade brasileira dos sécs.XIX ao XX no tocante aos reais motivos da incidência do aborto e da entrega de crianças à roda dos enjeitados. O estudo contará com apontamentos jurídicos fazendo uma correlação com as leis penais vigentes àquela época.
Palavras – chave: Machado de Assis, aborto, roda dos enjeitados, escravidão.
Abstract: This study is to analyze the incidence of the foundling wheel and the practice of abortion in Brazil's colonial period based on Machado's tale Father against Mother Searching understanding of Brazilian society of the twentieth sécs.XIX regarding the real reasons for the incidence of abortion and delivery of children to the foundling wheel. The study will include legal notes making a correlation with existing criminal laws at that time.
Keywords: Machado de Assis, abortion, wheel of exposed, slavery.
Sumário: Introdução. I – Do Conto “Pai Contra Mãe”. II – Da realidade das escravas. III – Da Roda dos Enjeitados. IV – Do Aborto. Considerações finais. Referências bibliográficas
INTRODUÇÃO
O presente estudo propõe basicamente analisar o conto “Pai Contra Mãe”, dentro do contexto da escravidão que assolava o Brasil em meados do séc. XIX e início do séc.XX, dando ênfase à questão do aborto e do abandono de crianças na roda dos enjeitados.
O conto machadiano servir-nos-á de suporte para algumas reflexões acerca do fenômeno jurídico. Pretende-se, a partir de uma análise jurídico-literária, alcançar a nota distintiva do Direito, implícita em “Pai contra mãe”.
Para o desenvolvimento deste raciocínio, empregou-se de um método dedutivo, correlacionando a existência da roda dos enjeitados e da prática do aborto ao caso específico do conto Pai Contra Mãe.
I – DO CONTO “PAI CONTRA MÃE”
O conto “Pai Contra Mãe” escrito por Machado de Assis[1] e publicado em 1906 no livro Relíquias da Casa Velha, insere-se na fase “madura” do autor, com traços marcantes do Realismo literário.
É uma narrativa em terceira pessoa e já no primeiro capítulo, Machado chama atenção do seu leitor que a história a ser tratada no conto ambienta-se no Rio de Janeiro do século XIX antes da abolição da escravatura, tendo como cenário, becos estreitos, sujeira, miséria, falta de oportunidade de emprego se contrapondo com a riqueza e ostentação dos donos de escravos, tudo isto servindo de pano de fundo para a narrativa, não se configurando, porém, como a questão principal.
O conto apresenta a história de Cândido Neves, homem branco, caçador de escravos fugitivos, profissão que lhe rende o sustento. Ele se casa com a jovem Clara, menina órfã e criada por sua tia, chamada Mônica, a qual cosia com ela. O sonho do casal é ter filhos, porém é advertido pela tia de Clara que os mesmos não teriam condições de sustentar uma criança. Posteriormente Clara engravida e, portanto, surge o conflito do conto, uma vez que Cândido Neves passa por extrema dificuldade financeira, e sem saber o que fazer para sustentar seu filho, decide desesperadamente em deixá-lo na Roda dos Enjeitados. No percurso crucial que faz com o filho até a roda, ele encontra-se com a escrava fugitiva de nome Arminda, a qual lhe renderia cem contos de réis pela captura. Então ele entrega o filho a um farmacêutico e sai em perseguição à escrava, qual desesperadamente luta por sua liberdade. Ela, uma vez que está grávida, implora por tudo de mais sagrado ao Cândido Neves para que não a entregasse ao seu Senhor, alertando ao mesmo que se tivesse filho, pensasse nele para não capturá-la. E após ser conduzida sob muita luta e violência por parte de Cândido Neves, a escrava é entregada ao seu senhor, ocorrendo desta forma o aborto da criança. Desse modo, Cândido Neves recebe os devidos contos de réis pela captura da escrava e volta desesperado ao encontro de seu filho. De volta a casa com a criança e os cem mil-réis, o pai feliz relata a história da caça e do aborto de Arminda. Tia Mônica perdoa a vinda do bebê já que com ele vinham os cem mil réis. O conto termina com a frase de Cândido que tenta justificar sua tirania: “Nem todas as crianças vingam”.
Machado, neste conto, retrata a escravidão de uma maneira brutal e chocante, descrevendo minuciosamente os aparelhos que configuravam a crueldade a qual os escravos eram vítimas, intercalando a miséria social de um branco livre e sem muita expectativa de emprego, com a de uma negra escrava e grávida que sofrendo os horrores da escravidão resolve desesperadamente fugir para que o filho que esperava em seu ventre não viesse a ter a sua sorte.
O foco do conto, nesse sentido, está na condição de extrema pobreza, que obriga
um pai (Candinho) a lutar com uma mãe (Arminda), ambos lutando pela sobrevivência
de seus filhos, o que leva Candinho a abrir mão de sua humanidade e entregar Arminda às mãos de seu senhor, sendo corresponsável pela morte do filho desta, contribuindo para que as formações ideológicas de que escravo não é ser humano se consumam, ao afirmar que nem todas as crianças vingam. Somente algumas crianças daquela época tinham o direito de vingar, e quando escravas deveriam vingar para dar lucros aos seus senhores, é uma troca de vidas: uma criança livre por uma escrava. As formações ideológicas perpassam o discurso de Candinho à medida que apresentam à ideologia branca dos senhores de escravo, que tratavam os negros como coisas, simplesmente inferiores, e que se vingasse deveria ser para o lucro de seu patrão.
Segundo Bosi (2004), da prosa machadiana vislumbram-se não os fortes e os felizes destinados compor hinos de glória; mas a mesquinhez dos homens, a sorte precária de cada indivíduo, os homens aceitam uma e outra como herança inalienável, e fazem dela alimento de sua reflexão cotidiana.
II – DA REALIDADE DAS ESCRAVAS
No conto Pai contra Mãe, a escrava Arminda em tentativa desesperadora de fugir das maldades de seu dono que lhe castigava constantemente com açoites, é surpreendida por Cândido Neves, em um momento crucial da entrega do seu filho à Roda dos Enjeitados. Tal encontro resultou para ele em uma oportunidade financeira que lhe possibilitaria a criar o filho, e em contrapartida, a perpetuação da desgraça da escrava Arminda que abortou a criança em meio à luta pela sua liberdade e sorte de seu rebento.
Para Goulart (1971), as maldades sofridas pelas escravas, era na sua grande maioria advinda das sinhás que enraivecidas com as negras e enciumadas com as mulatas que tinham porte físico mais esbelto e beleza física superior a delas, eram deixadas de lado pelos seus esposos que a essas preteriam, razão pela qual de suas piores perversidades, vejamos;
“Extirpando olhos, decepando seios, espatifando dentes, cortando narizes, talhando orelhas, lanhando bundas e lombos, deformando faces, aleijando corpos, amputando membros, eliminavam em suas rivais tudo que porventura despertasse o erotismo, a luxúria, a lubricidade de seus cúpidos e sensuais esposos; e quando não por ciúme, cometiam as sinhás os mesmos crimes por motivos outros, de ordem administrativa doméstica, senão por fúteis razões.” (GOULART,1971, pg.49)
O escravo, como objeto de propriedade, não tinha direito a sua prole. Ela pertencia ao senhor. A escrava era vista como reprodutora, sobretudo de mulatos, já que o ventre materno determinava a condição do filho.
Segundo Debret (1940), sendo ainda criança o escravo, o peso da corrente é de apenas 5 a 6 libras, fixando-se uma das extremidades no pé e a outra no cepo de madeira que ele carregava à cabeça durante o serviço.
Para livrar os filhos, os irmãos, e a si próprios da escravidão, os escravos não raro recorriam à fuga, ao suicídio e ao assassinato e para obter a alforria de suas crianças, os escravos convidavam, muitas vezes, uma pessoa de influência para padrinho, a fim de que, pela compra, lhe fosse assegurada a liberdade. Tal incumbência, longe de diminuir, é encarada em virtude das ideias religiosas do povo e da influência do clero, como muito meritória. “O pequeno escravo está quase que assegurado da aquisição da liberdade pelo padrinho, o que é tanto mais fácil quanto o preço do negrinho é insignificante, raramente ultrapassa 60 a 80 piastras”. (Rugendas 1976, PP 149-150).
Escreve Walsh (1830) “que este horror à escravidão era tão grande que elas não só suicidavam como também matavam seus filhos para escapar à ela. As negras eram conhecidas como sendo ótimas mães, mas este mesmo amor frequentemente as levava a cometerem infanticídio. Várias delas, sobretudo as negras Minas, tinham a maior aversão a terem filhos e provocavam aborto, precavendo-se assim o desgosto de darem a vida a um escravo”.
III – DA RODA DOS ENJEITADOS
A roda dos enjeitados parece ter sido utilizada pelas escravas como meio de livrar os filhos da escravidão, como também pelo proprietário que não queria se responsabilizar pelos encargos da criação da prole de seus escravos.
Assim, a relação espacial disfórica da personagem com a roda dos enjeitados, espaço que representa a última e mais indesejada hipótese de garantia de vida do filho é o aspecto social que passa, então, a formar a estrutura social do conto machadiano, cujo ponto culminante é o momento em que escrava é presa e sofre o aborto.
Criada na França no ano de 1188 pelo papa Inocêncio III, a roda dos enjeitados funcionava como forma de diminuir o índice de recém-nascidos que eram encontrados mortos às margens do rio Tibre. Instalados nas portas de igrejas e conventos, cilindros de madeira giratórios serviam para que mães deixassem seus filhos em mãos seguras, sem serem identificadas.
Ao colocar os bebês no cilindro, elas tocavam uma campainha que avisava freiras e padres de que ali estava uma criança abandonada. Naquele país, o mecanismo teve usuários ilustres, como o filósofo francês Jean – Jacques Rousseau (1712-1778), que entregou à igreja os cinco filhos que teve com a serviçal Thérèse le Vasseur.
Segundo Gallindo (2006) as primeiras iniciativas de atendimento à criança abandonada no Brasil se deram segundo a tradição portuguesa, instalando-se a roda dos expostos nas Santas Casas de Misericórdia, quando o Estado chamou para si a responsabilidade pelo cuidado com crianças abandonadas, decorrente da política do Direito do Menor. Em princípio quatro: Salvador (1726); Rio de Janeiro (1738); Recife (1789); e ainda em São Paulo (1825), já no início do Império. Outras rodas menores foram surgindo em outras cidades após este período.
A “roda dos enjeitados” ou “roda dos expostos” recebia crianças de qualquer cor e preservava o anonimato dos pais. A partir do alvará de 31 de janeiro de 1775, as crianças escravas, colocadas na roda, eram consideradas livres. Este alvará, no entanto, foi letra morta e as crianças escravas eram devolvidas a seus donos, quando solicitadas, mediante o pagamento das despesas feitas com a criação da roda como órfãs e assim os filhos dos escravos seriam criados como cidadãos, gozando dos privilégios dos homens livres. Contudo na prática, isto nem sempre acontecia.
Segundo Trindade (1999), na segunda metade do século XIX, as mães[2] que enfrentavam dificuldades para manter seus filhos, viam a Roda dos Expostos como única saída para que os mesmos não morressem de fome, enquanto as mães escravas, por sua vez, encontravam na Roda uma possibilidade de livrar seus filhos da escravidão. A roda dos expostos tinha cunho assistencialista, e foi uma das poucas instituições existentes na história que se preocupou com o bem estar de menores de idade[3].
A última Roda dos Expostos a ser desativada, em 1948, foi na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, que acolheu durante o tempo de seu funcionamento cerca de 5.700 (cinco mil e setecentas) crianças. Porém, de cada dez abandonadas três morriam, pois eram entregues já doentes ou desnutridas, observa Almeida (2008).
Atualmente, a Constituição da República do Brasil de 1988 adotou a Doutrina da Proteção Integral, garantindo a crianças e adolescentes direitos individuais, entre eles o direito à vida e a convivência familiar, o que, por si só, afastaria qualquer situação de abandono. Porém, mesmo assim, as notícias sobre o tema são constantes.
IV – DO ABORTO
A primeira Constituição do Império do Brasil, de 1824, a Carta Magna de 1891 e as Constituições dos Estados Unidos do Brasil, de 1934 e de 1937, não dispunham taxativamente sobre o asseguramento da inviolabilidade a vida.
No período colonial, o Brasil sofria forte influência de Portugal, uma nação essencialmente católica. Sendo assim, o aborto e outras práticas condenadas pela Igreja naquele país também eram tratadas assim no Brasil. O aborto, porém, só foi citado explicitamente na legislação em 1830, no Código Penal do Império. A interrupção voluntária da gravidez na constituição de 1824 era considerada um crime grave contra a vida humana.[4] À época, havia certo cuidado com a punição de mulheres, e quando essa praticava o aborto auto-induzido estava livre de pena. Durante o Brasil República, vigorou o Código Penal da República (1890), em que o aborto novamente foi tratado como crime grave. Ainda com ressalvas para o aborto auto-induzido, a prática da interrupção da gravidez era punida quando feita por terceiros e a pena agravada quando o procedimento resultava na morte da paciente.
No entendimento de Galante (2008) O direito à vida é um direito fundamental do homem, e assim, pode-se dizer que é um super direito, pois todos os demais direitos dependem dele para se concretizar, assim, sem o direito a vida, não haveria os relativos a liberdade, a intimidade, etc.
Como dito anteriormente, o primeiro código penal brasileiro, em seu capítulo referente aos crimes contra a segurança da pessoa e da vida, contempla o crime de aborto nos dispositivos que se seguem, vejamos:
“Art. 199. Occasionar aborto por qualquer meio empregado interior, ou exteriormente com consentimento da mulher pejada.
Penas – de prisão com trabalho por um a cinco annos.
Se este crime fôr commettido sem consentimento da mulher pejada. Penas – dobradas.
Art. 200. Fornecer com conhecimento de causa drogas, ou quaesquer meios para produzir o aborto, ainda que este se não verifique.
Penas – de prisão com trabalho por dous a seis annos.
Se este crime fôr commettido por medico, boticario, cirurgião, ou praticante de taes artes.
Penas – dobradas.”
Inicialmente, o crime de aborto não era considerado uma prática a que devesse ser repreendida pois o feto fazia parte do corpo da mulher e com esse entendimento tinha-se livre a intervenção na gravidez desde que os meios utilizados não fossem substâncias capazes de prejudicar a saúde da mulher gestante adotando o princípio, partus antequam edatur mullieris pars est vel vicerum. A prática delitiva de aborto era freqüente. Com o reinado do imperador Septiminius Severus (193-211 d.C.) o aborto passou a ser censurado por se tratar da frustração de expectativas do homem à descendência.O auto aborto não era previsto como crime nem se atribuía à mulher qualquer atitude criminosa pelo consentimento para o aborto praticado por terceiros, sendo o bem tutelado a segurança da pessoa e da vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O conto “Pai contra Mãe”, corpus do estudo, evidencia a miséria humana materializada nos personagens de Cândido Neves e da escrava Arminda, tal seja o de um pai e de mãe lutando por duas vidas e ao final a troca de uma vida por outra é justificada. Machado evidencia a diferença entre escravos e pobres livres, tanto que Candinho tem todo o direito de criar o seu filho ao passo que a escrava Arminda não o tem. Assim Cândido tem uma alusão de liberdade e de poder criar seu filho.
Tanto Cândido quanto Arminda fazem parte dessa porção marginalizada da população. O que dá prerrogativas a Cândido Neves é a “superioridade” da ascendência branca e de sua condição social de homem livre, em detrimento de Arminda, mulata e escrava e de sua criança abortada. Assim sendo, o filho dele pode vingar; o dela, não.
A roda dos enjeitados foi a temida solução encontrada por Candinho para que o filho sobrevivesse em meio à sua pobreza. A sua entrega à roda representaria a uma boa criação do filho. Já a escrava Arminda via em sua fuga, como uma maneira de o filho ter uma vida diferente da de escravo.
Assim como na ficção machadiana, de fato, nem todas as crianças vingavam no período imperial brasileiro. Em uma sociedade escravista e hierarquizada, grande parte da população livre foi social e economicamente excluída dos quadros hegemônicos. Deste modo, a sobrevivência, muitas vezes, ficou na dependência da roda dos expostos. Quanto à população escrava, mulheres e homens negros foram subjugados física e moralmente por seus senhores brancos, que, no geral, preferiam tirar-lhes a vida a perder poder sobre eles.
Portanto, diante das argumentações aqui expendidas é necessário compreender o contexto histórico da existência da roda dos enjeitados e sua relação tão intrínseca com o aborto, o qual já dispunha de dispositivos legais do Código Penal do Império de 1830 que previam a sua criminalização.
Informações Sobre o Autor
Renata Rodrigues
Advogada Bel.em Direito pela Universidade do Estado de Minas Gerais.Pós Graduada em Ciências Criminais pela Universidade Cândido Mendes; aluna especial do Mestrado em Desenvolvimento Social da Universidade Estadual de Montes Claros; aluna regular do curso de Doutorado em Direito Penal da Universidad de Buenos Aires