Resumo: Este artigo trata da questão da implementação do direito à saúde pelo poder público. Para tanto, apresentam-se conceitos essenciais, como: os direitos humanos e sua evolução, a saúde, a dignidade da pessoa humana, o mínimo existencial, a separação dos poderes, a responsabilidade administrativa da implementação da saúde, o posterior controle judicial e alguns pontos polêmicos, como a imposição de exigências pelo Poder Público, para que as pessoas exerçam determinados direitos sociais. Tais conceitos são utilizados com a finalidade de dar eficácia e aplicabilidade à norma constitucional que garante o direito de todos à saúde. Em vista da efetividade da Constituição Federal, há a análise da Força Normativa da Constituição Federal e a vinculação do ordenamento jurídico interno ao texto constitucional, que fundamentam a intervenção judicial nos atos administrativos. O trabalho também abordou teorias que atualmente são objeto de muita discussão na doutrina e na jurisprudência, como o ativismo judicial, a dimensão econômica dos direitos sociais, a teoria da reserva do possível e a teoria da proibição do retrocesso social, todas aplicáveis à implementação dos direitos sociais.
Palavras-chave: Direito à saúde. Dignidade da pessoa humana. Reserva do possível. Força normativa da constituição. Ativismo judicial.
Abstract: This article deals with the question of implementation of the right to health care by the Public Power. Thus, essential concepts are introduced such as: human rights and their evolution, health care, dignity of the human person, existential minimum, the separation of powers, the administrative responsibility for implementing health care, the posterior judicial control and some controversial issues such as the imposition of requirements by the Public Power for people to exercise certain social rights. Such concepts are used in order to grant efficiency and applicability to the constitutional norm that grants the right to health care to all. With views to the effectiveness of the Federal Constitution, there is the analysis of the Normative Force of the Federal Constitution and the binding of the domestic legal system to the constitutional text, underlying judicial intervention in administrative acts. The work also addressed theories that are currently the subject of much discussion in doctrine and jurisprudence as judicial activism, the economic dimension of social rights, the theory of reserve for contingencies and the theory of the prohibition of social regression, all applicable to the implementation of the social rights.
Keywords: Right to health. Dignity of the human person. Reserve for contingencies. Normative Force of the Federal Constitution. Judicial activism.
Sumário: Introdução. 1. Do direito à saúde. 1.1. Evolução e classificação. 1.2. Dignidade da pessoa humana e mínimo existencial. 2. Responsabilidade pela implementação do direito à saúde. 2.1. A administração pública. 2.2. A administração pública e as políticas públicas. 2.3. Exigência do domicílio. 3. Regulamentação. 3.1. O artigo 28 do Decreto Federal e a jurisprudência. 3.2. O registro do medicamento. 3.3. hipossuficiência. 4. O judiciário implementando à saúde. 4.1. Atos vinculados e discricionariedade mitigada. 4.2. Neoconstitucionalismo. 4.3. Força normativa da Constituição. 4.4. Jurisdição constitucional. 4.5. Atuação subsidiária do judiciário. 4.6. Requerimento administrativo. 4.7. Bloqueio de verbas públicas. 5. Dimensão econômica dos Direitos Fundamentais. 6. Vedação ao retrocesso social. Conclusão. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem a finalidade de discorrer sobre a problemática do direito subjetivo à saúde em contraponto à implementação da saúde pública pelo Estado, conforme as suas possibilidades.
No decorrer da dissertação, de maneira sucinta, apresenta-se o histórico, as teses e as classificações dos direitos humanos, assim como a análise dos direitos fundamentais, em especial o direito à saúde.
Há no texto a demonstração da deficiência do poder público na implementação da saúde pública, por isso a existência da regulamentação do direito à saúde, notadamente pela Lei n. 8080/1990 e pelo Decreto Federal n. 7508/2011, visando à racionalização dos serviços públicos. Nesse sentido, há teses de juristas que afirmam haver a necessidade da regulamentação do direito à saúde, entretanto a maioria deles ressalta a impossibilidade de se regulamentar de forma absoluta e defendem a possibilidade da adequação do sistema aos casos concretos.
Tendo em vista a regulamentação da implementação do direito à saúde, há a discussão sobre a possibilidade da adoção de condições para o exercício do direito subjetivo ao fornecimento de tratamentos e medicamentos, tendo em vista o poder-dever da administração pública, possíveis requisitos previstos pelo ordenamento jurídico e pela jurisprudência, como consequência da interpretação do sistema constitucional.
Em vista dessas considerações, discute-se o controle das políticas públicas pelo poder judiciário, perguntam-se quais os limites da atuação judicial, tendo em vista a separação dos poderes. A resposta gera polêmica e demandou amplo debate no Supremo Tribunal Federal na audiência pública sobre a “judicialização da saúde”, em cujo texto, por sua vez, procura-se reproduzir as principais teses apresentadas nesta audiência.
Por fim, verifica-se o desenvolvimento de teses pertinentes, que atualmente estão em evidência, como a teoria da Reserva do Possível, a teoria da Força Normativa da Constituição, a teoria da Vedação ao Retrocesso Social, o histórico dessas proposições e a maneira de aplicação de cada uma delas no Brasil. Enfim, busca discorrer sobre os pontos importantes que dizem respeito ao direito à saúde de todos e sobre o dever do poder público de implementar esse direito.
1 – DO DIREITO À SAÚDE
1.1 – EVOLUÇÃO E CLASSIFICAÇÃO
Em meados de 1948, momento pós 2ª Guerra Mundial (marcada por inúmeros genocídios e torturas que abalaram todo o mundo), torna-se evidente uma ordem jurídica mundial, em que a sociedade clama pelo respeito aos direitos inerentes ao ser humano. Há instituição de entidades não governamentais voltadas à defesa dos direitos humanos, notadamente a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Mundial da Saúde (OMS).
No mesmo ano, a Assembleia Geral da ONU, em forma de resolução, emite a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que hoje, de forma implícita, vincula a ordem jurídica mundial. A Declaração positivou importantes direitos, que foram classificados da seguinte forma: a) direitos civis e políticos (de primeira dimensão[1]), começaram a ser reconhecidos em 1215 com o advento da Magna Carta na Inglaterra e se consolidaram com alguns precedentes, como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na França, em 1789; asseguram aos homens o direito de liberdade e impõe ao Estado o dever de se abster diante de direitos básicos do homem, como o de ir e vir, o de reunir-se pacificamente, o de ter sua integridade física respeitada, o de não ser torturado, em suma, prestações obrigacionais negativas do Estado; b) direitos econômicos, sociais e culturais (de segunda dimensão), ganharam notoriedade no início do século XX; entre outros precedentes, ressaltam-se a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar, na Alemanha em 1919, que incluíram de forma inovadora os direitos sociais no texto constitucional, garantias que consistem no dever de agir do poder público com a finalidade de implementar a saúde, o bem-estar, a alimentação, a educação, a moradia, a assistência social., etc., enfim, conceder o necessário para construir uma ordem social justa e buscar a igualdade substancial ou material; c) direitos de fraternidade (de terceira dimensão) impõe a toda sociedade e ao poder público o dever de buscar um bem comum, como o meio ambiente ecologicamente equilibrado, a proteção de maneira coletiva dos consumidores, dos idosos, das crianças, dos adolescentes, etc., ou seja, em poucas palavras, os direitos difusos e das massas tuteláveis também por ações coletivas.
No texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, chama a atenção para este trabalho o artigo XXV, que tem a seguinte redação:
“Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle.” (sublinhamos)
Este dispositivo fixa critérios para apurar a saúde, indica os elementos que a influenciam de forma direta e a inclui expressamente entre os direitos humanos de segunda dimensão.
Em um momento posterior, a doutrina reconhece, ainda que de forma tímida e não pacificada, outras duas dimensões: o direito à informação, à democracia, transformação e preservação do patrimônio genético (de quarta dimensão) e o direito à paz (de quinta dimensão).
Há um consenso da comunidade internacional (Estados, organizações não governamentais e doutrinadores) em reconhecer todos esses direitos como inerentes ao homem, em especial as três primeiras dimensões, uniformidade de opiniões reconhecida pelo nome “Direitos Humanos”. Por sua vez, grande parte das Nações, como o Brasil, prevê os “Direitos Humanos” em suas constituições, nas quais passam a receber a nomenclatura de Direitos Fundamentais.
Na Constituição Federal de 1988, há a previsão extensiva de direitos fundamentais, recepcionados principalmente entre os artigos 5º e 17. Observa-se que neste trabalho e destaca o artigo 6º, com a seguinte redação:
“São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta constituição.”(sublinhamos)
Nossa constituição insere, portanto, a saúde como direito fundamental e, no âmbito internacional, é classificada como direito social ou de segunda dimensão.
Não há um conceito consolidado afirmando o que compreende a saúde, mas dispositivos que tentam buscar uma definição para isso. Como a OMS, na seara internacional, é definida, ainda que de forma vaga, no preâmbulo do documento de sua criação, pelo seguinte texto “é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade.”
Também há dispositivos no direito nacional que definem os elementos que influenciam o direito à saúde, como no artigo 3º da Lei n. 8080/1990, com redação alterada no ano de 2013, o qual apresenta a definição das condições essenciais da saúde em certo contexto, conforme se verifica na seguinte redação:
“Art. 3o Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País, tendo a saúde como determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais.”(sublinhamos)
Todas essas concepções são abertas e subjetivas e, por isso, leva-nos a acreditar que seria um estado pleno, muito difícil de ser alcançado ou mantido, haja vista a ausência de definição. Juristas valem-se rotineiramente de duas expressões: “dignidade da pessoa humana” e “mínimo existencial” para fundamentar as pretensões concernentes ao direito à saúde.
1.2 – DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E MÍNIMO EXISTENCIAL
A dignidade da pessoa humana é um princípio fundamental elencado no artigo 1º da Constituição, conforme redação a seguir:
“Artigo 1º – A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:(…)
III – dignidade da pessoa humana.”
É considerado o fundamento mais importante do nosso ordenamento jurídico, cujo conteúdo é preenchido pelos direitos fundamentais. Trata-se de um conceito também vago, mas que é perfilado aos poucos diante de casos paradigmáticos, com a análise de critérios materiais como o contexto social, possíveis doenças, deficiências e tratamentos. Compreende, ainda, um axioma atribuído ao ser humano, o qual pode ser utilizado ora como princípio (na ponderação de valores), ora como regra (na aplicação de determinações preestabelecidas pelo ordenamento).
Consiste na ideia de garantir condições razoáveis de sobrevivência e essenciais para viver naquele contexto social, com boa saúde física e mental, integrado socialmente a partir da observância da evolução cultural daquela sociedade e da complexidade de fatores que integram a sua personalidade e não apenas o mínimo fisiológico. Diante destas considerações, observa-se um conceito aberto de dignidade da pessoa humana, em que é impossível defini-lo de forma universal, tratando-se, portanto, de mais um conceito jurídico sem uma definição taxativa, o que não retira a sua importância nem impede a compreensão e a definição diante do caso concreto.
O Professor Ingo Wolfgang Sarlet, com a mestria que lhe é peculiar, apresenta a seguinte definição, balizando os principais critérios sobre o tema:
“Assim sendo, tem-se por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.”[2]
O Ilustre professor conclui o tema, com citações do Eminente Constitucionalista José Joaquim Gomes Canotilho, afirmando que não há um contexto fixo ou espaço para uma visão unilateral do citado conceito, tendo em vista a incompatibilidade da compreensão reducionista frente ao multiculturalismo, mundividencial, religioso e filosófico. (Sarlet, 2007, p. 385)
As expressões “mínimo existencial” e “mínimo sociocultural” têm grande semelhança com o conteúdo de dignidade da pessoa humana e, muitas vezes, chegam a se confundir; são títulos, conforme já exposto, que podem ser traduzidos como o mínimo indispensável para uma existência digna ou condições indispensáveis para que se tenha uma vida saudável. Traduzem a ideia de buscar a máxima efetividade dos direitos fundamentais.
O Egrégio Supremo Tribunal Federal, em decisão monocrática do Eminente Ministro Celso de Mello, citando a Professora Ana Paula de Barcellos, manifestou-se sobre o tema no julgamento da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº. 45, a qual tinha como objeto a judicialização da saúde, e reproduziu o seguinte texto:
“(…)A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. (…)”[3] (Sublinhamos)
Os autores Ingo W. Sarlet e Mariana F. Fiqueiredo, no mesmo sentido, apresentam a seguinte definição:
“(…) mínimo existencial, que não pode ser confundido com o que se tem chamado de mínimo vital ou um mínimo de sobrevivência, de vez que este último diz com a garantia da vida humana, sem necessariamente abranger as condições para uma sobrevivência física em condições dignas, portanto, de uma vida com certa qualidade.(…)”[4]
Enfim, tendo em vista a semelhança dos significados das expressões transcritas neste capítulo, tem-se como conceito principal a dignidade da pessoa humana, expressamente prevista na Constituição como um valor do indivíduo, variável de acordo com o contexto social (circunstâncias pessoais, realidade social, recursos econômicos do Estado, desenvolvimento da medicina, doutrina religiosa e cultura da sociedade). Caracteriza-se também como um atributo íntimo em que cada situação de fato, ou pelo menos idealizada, pode fundamentar uma pretensão de direito em face do Poder Público.
No Estado Social de Direito, são conceitos essenciais e pressupõe a implementação dos direitos fundamentais pela administração pública, que tem como função primordial garantir o bem-estar dos homens.
2 – RESPONSABILIDADE PELA IMPLEMENTAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE
2.1 – A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Para atender à finalidade primária do Estado, há necessidade de racionalizar as funções. A ideia da separação do Poder foi uma grande evolução no direito público, inicialmente prevista por Aristóteles, que vislumbrou três funções distintas: a) gerenciar as atividades do poder público, ou seja, aplicar a lei; b) definir as regras gerais, ou seja, editar a lei; c) resolver os conflitos sobre a aplicação de normas no caso concreto, isto é, julgar os litígios.
Em momento posterior, Montesquieu publicou o livro “O espírito das leis”, propondo a independência e a autonomia das funções, a fim de aperfeiçoar a definição anterior.
A República Federativa do Brasil, por sua vez, adotou na CF a separação dos Poderes como forma de estrutura administrativa do poder público, conforme artigo 2º, in verbis: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
De forma geral e concisa, o Legislativo tem como função típica editar as normas gerais e fiscalizar a aplicação destas leis; o Executivo, aplicar as normas; o Judiciário, dirimir os conflitos sobre a aplicação da norma. Porém, todos têm atividades atípicas, como o Executivo que legisla por meio de Medidas Provisórias, Portarias e Decretos; o Legislativo, que julga o Presidente em caso de suposta ocorrência de crime de responsabilidade; o judiciário, que legisla por meio de portarias.
A doutrina evoluiu também ao vislumbrar a ideia compreendida na expressão “check and balances” ou “freios e contrapesos”, em que os órgãos se fiscalizam reciprocamente, como o Legislativo fiscaliza o Executivo na aplicação da lei; o Judiciário fiscaliza a validade dos atos administrativos emitidos pelo Legislativo e pelo Executivo e este, por sua vez, veta os projetos de lei que entender como violação ao interesse público ou como inconstitucionais.
2.2 – A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E AS POLÍTICAS PÚBLICAS
O Poder Executivo tem a função primordial de aplicar as normas constitucionais ou infraconstitucionais, entre elas o poder-dever de implementar as políticas públicas. Esta atividade do Estado é uma forma de efetivar os direitos sociais.
Todos têm o direito público e subjetivo à saúde, conforme o disposto no artigo 196 da CF, dispositivo que também fixa os critérios da universalidade e da generalidade, conforme se verifica na seguinte redação:
“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” (sublinhamos).
Portanto, a incumbência de proporcionar o tratamento adequado aos que necessitarem é imposta pela Constituição. No decorrer deste trabalho, ver-se-ão algumas discussões sobre certos requisitos que podem condicionar a prestação obrigacional do Poder Público; entretanto, neste momento, o interesse maior é reconhecer o dever genérico do Estado, dispositivo que é interpretado de forma pacífica pelos tribunais, os quais rotineiramente decidem pelo direito do administrado em desfavor do Estado, conforme se verifica na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a seguir colacionada:
“O direito a saúde é prerrogativa constitucional indisponível, garantido mediante a implementação de políticas públicas, impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a tal serviço.” (AI 734.487‑AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 3‑8‑2010, Segunda Turma, DJE de 20‑8‑2010.) Vide: RE 436.996‑AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 22‑11‑2005, Segunda Turma, DJ de 3‑2‑2006; RE 271.286‑AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 12‑9‑2000, Segunda Turma, DJ de 24‑11‑2000.)
Esta obrigação é das quatro esferas administrativas do Poder Executivo: Federal, Estadual, Distrital e Municipal, as quais devem atuar de forma conjunta e em cooperação na formulação das políticas públicas, com a finalidade de garantir maior efetividade dos direitos fundamentais.
Os tribunais, em seu cotidiano, enfrentam defesas protelatórias dos entes administrativos, que pleiteiam a exclusão do polo passivo, mas a jurisprudência é pacífica em relação à aplicação do princípio da solidariedade, que consiste na obrigação solidária dos entes da Federação quanto à implementação da saúde pública, conforme se verifica nos seguintes julgados da Suprema Corte Constitucional:
“O recebimento de medicamentos pelo Estado é direito fundamental, podendo o requerente pleiteá‑los de qualquer um dos entes federativos, desde que demonstrada sua necessidade e a impossibilidade de custeá‑los com recursos próprios. Isso por que, uma vez satisfeitos tais requisitos, o ente federativo deve se pautar no espírito de solidariedade para conferir efetividade ao direito garantido pela Constituição, e não criar entraves jurídicos para postergar a devida prestação jurisdicional.” (RE 607.381‑AgR, Rel. Min. Luiz Fux, julgamento em 31‑5‑2011, Primeira Turma, DJE de 17‑6‑2011.) No mesmo sentido: AI 553.712‑AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 19‑5‑2009, Primeira Turma, DJE de 5‑6‑2009; AI 604.949‑AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 24‑10‑2006, Segunda Turma, DJ de 24‑11‑2006.(sublinhamos)
“Incumbe ao Estado (gênero) proporcionar meios visando a alcançar a saúde, especialmente quando envolvida criança e adolescente. O SUS torna a responsabilidade linear alcançando a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.” (RE 195.192, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 22‑2‑2000, Segunda Turma, DJ de 31‑3‑2000.)(sublinhamos)
A jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo também é pacífica quanto ao reconhecimento da obrigação solidária dos entes da Federação de implementarem a saúde. Como ilustração, um julgado com a principal fundamentação:
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MEDICAMENTO. CADEIRA DE RODAS E ÓRTESE PARA OS PÉS. Paciente com retardo do desenvolvimento neuromotor e outras anormalidades nervosas. Necessidade comprovada. (…)Natureza da obrigação de caráter solidário e concorrente. Qualquer dos Entes da Federação pode ser acionado para alcançar o cumprimento da norma constitucional, que garante acesso do cidadão às ações com vistas a resguardar o direito à saúde. Dever de assistência integral à saúde (CF, art. 196) – Judiciário que não está agindo de forma arbitrária e que tampouco ignora o princípio da separação dos Poderes (CF, art. 2º) – Impossibilidade de a autoridade exonerar se de fornecer o tratamento – Sentença mantida. RECURSOS DESPROVIDOS.” (Apelação nº 0182810-02.2007.8.26.0000, rel. Des. Rubens Rihl, j. 27/04/2011).(sublinhamos)
Enfim, são obrigações positivas do Estado exigíveis do Poder Executivo, que estão previstas na Constituição Federal e devem ser prestadas àqueles que delas necessitarem.
2.3 – EXIGÊNCIA DO DOMICÍLIO
Porém, há de se salientar que a jurisprudência restringe a obrigatoriedade do fornecimento de medicamentos e tratamentos às pessoas com domicílio na circunscrição do Município ou do Estado. Por exemplo, o município de Paulínia não pode ser compelido a comprar medicamento para um cidadão com residência e domicílio na cidade de São Paulo, bem como o Estado do Mato Grosso não pode ser compelido a pagar o tratamento para uma pessoa com residência e domicílio no Estado de São Paulo.
Situação a qual se verifica no julgado do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo a seguir colacionado: “APELAÇÃO CÍVEL – PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO E OBRIGAÇÃO DE FAZER – Fornecimento de medicamentos a pessoa residente em outro estado da federação – Impossibilidade – Não há como imputar ao Município a obrigação de prestar assistência à saúde a paciente que não seja seu munícipe, em detrimento do atendimento a quem efetivamente o seja – Sentença confirmada – Recurso não provido” (Brasil. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Civil n. 994.09.234439-4 (992.301.5/2-00). Relator Desembargador Osvaldo de Oliveira. São Paulo, 10 de Nov. de 2010. DJE 26/11/2010)
Portanto, a exigência do domicílio no ente federativo, como condição para a pessoa exigir prestações positivas do ente, obedece aos valores constitucionais que dizem respeito ao direito à saúde.
3 – REGULAMENTAÇÃO
Ressalta-se a necessidade da sistematização do direito à saúde, com a finalidade de organizar a prestação de serviços públicos, privilegiando a racionalização, a eficiência e a eficácia.
Com esta ideia, foi instituída a Lei n. 8.080/1990 e o Decreto Federal n. 7508/2011, ambos diplomas legais com a finalidade de regulamentação e fixação de critérios gerais para o fornecimento de serviços e ações em relação ao direito à saúde.
Em resumo, essas normas reforçam os princípios da solidariedade e da cooperação dos entes públicos, a obrigação do Estado em prestar a assistência integral, a necessidade de programas e de tratamentos preventivos, e de manutenção e evolução nos tratamentos, a possibilidade da iniciativa privada participar de forma complementar na saúde pública, a obrigação da sociedade e da família na participação da prevenção, acompanhamento das patologias e dos tratamentos.
3.1 – O ARTIGO 28 DO DECRETO FEDERAL E A JURISPRUDÊNCIA
Há, no artigo 28 do citado Decreto Federal, a previsão de condições a serem cumpridas pelos usuários dos serviços de saúde e exigidas pelo poder público para implementação de certas políticas públicas. Como o fornecimento de medicamentos em que se exige do usuário a assistência pela rede pública de saúde, o receituário médico tem de ser prescrito por médico no exercício de suas funções no SUS, e o medicamento estar na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME). No parágrafo 1º desse mesmo Decreto, nota-se a possibilidade de admitir a ampliação dos serviços farmacêuticos, se houver questão de saúde pública excepcional que justifique medidas adicionais das esferas administrativas. A redação integral do citado dispositivo assim especifica:
“Art. 28. O acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica pressupõe, cumulativamente:
I – estar o usuário assistido por ações e serviços de saúde do SUS;
II – ter o medicamento sido prescrito por profissional de saúde, no exercício regular de suas funções no SUS;
III – estar a prescrição em conformidade com a RENAME e os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas ou com a relação específica complementar estadual, distrital ou municipal de medicamentos; e
IV – ter a dispensação ocorrido em unidades indicadas pela direção do SUS.
§ 1o Os entes federativos poderão ampliar o acesso do usuário à assistência farmacêutica, desde que questões de saúde pública o justifiquem.
§ 2o O Ministério da Saúde poderá estabelecer regras diferenciadas de acesso a medicamentos de caráter especializado.”
São requisitos genéricos e se justificam em certas situações, com vistas a empreender seletividade aos serviços públicos do SUS. Como consequência, garante a racionalização, a eficiência e a efetividade e inibe pretensões descabidas em face do poder público, as quais podem ocorrer, por exemplo, com o fornecimento de medicamento nocivo, de elevado custo, quando existir substituto de mesma qualidade ou para tratamento estético. Portanto, a negativa do Estado nesses casos, em regra, é legítima.
Porém, não se pode determinar de maneira absoluta o único modo de agir, pois deve-se ressaltar a existência da regra geral. É necessário, entretanto, observar a ocorrência de exceções, porque a constatação de elementos concretos em cada situação vai determinar se a pretensão (judicial ou administrativa) é abusiva ou legítima. Como exemplo, há de se considerar a possibilidade de o paciente ter reação alérgica a algum princípio ativo do medicamento constante na RENAME, o qual é indispensável para a sua vida, e o substituto não constar da correspondente lista. Neste sentido há precedente no Superior Tribunal de Justiça, conforme se verifica na seguinte Ementa: “ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. RECURSO ORDINÁRIO. Direito à saúde. Espondilite anquilosante. Humira. Medicamento previsto na lista do SUS para tratamento de artrite reumática. Intolerância do impetrante aos medicamentos indicados pelo SUS para o tratamento de sua enfermidade. Direito líquido e certo. Presença. Segurança Concedida.”.”(Brasil. Supremo Tribunal Ferderal. julgado em 23 de novembro de 2010. Recurso em Mandado de Segurança n. 30723 – MG 2009/0204663-5. Relator: Ministro Castro Meira. Brasília, 23 de Nov. de 2010.) (sublinhamos)
Na audiência pública[5] realizada em 27/04/2009 sobre a judicialização da saúde, realizada no STF, houve manifestação, no mesmo sentido, declinada pelo Professor Ingo W. Sarlet (Juiz de Direito no Rio Grande do Sul) e pelo representante do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Flávio Pansiere, ambos defendendo a concessão de serviços e medicamentos de forma criteriosa com a análise de elementos concretos. Afirmam que os requisitos legais podem ser flexíveis diante de determinadas circunstâncias, como Pansiere aponta justificável a concessão de medicamentos não constantes na lista do SUS, em determinados casos, caso o paciente seja alérgico; também defendeu o fornecimento de medicamentos, mesmo diante da prescrição por médico da rede particular, nas seguintes situações: a rede pública não disponibilizar especialistas; a evolução da rede pública frente à privada for obsoleta; a omissão ou negligência do Estado. O Professor Sarlet apresenta sua argumentação no mesmo sentido, apontando como justificável a prescrição do medicamento por profissional não constante nos quadros da rede pública, quando o paciente paga a consulta particular, porém não tem condições de arcar com o medicamento ou no caso de ter de esperar por muito tempo para ser atendido na rede pública.
São argumentos relevantes sobre o tema, que justificam a importância de notar as inúmeras situações ora citadas, além de outras previsíveis, em que se devem respeitar as exceções às condições gerais trazidas pela norma, que são apuradas na análise do caso concreto.
Neste mesmo sentido, manifestou-se o Ministro do STF, à época, Carlos Alberto Menezes de Direito, na citada audiência pública[6], defendendo a impossibilidade de se regulamentar de forma absoluta sobre a judicialização da saúde. Consoante essa seara, justifica-se afirmando que muitas vezes há a negativa da administração, e o magistrado de primeiro grau deve decidir entre a vida e a morte diante de elementos concretos e de forma urgente. Segundo ele, são circunstâncias de difícil análise, como nos casos de falta de vagas no Centro de Terapia Intensiva (CTI).
A jurisprudência manifesta-se de forma tímida sobre o tema, uma vez que se verifica a raridade quanto à análise da pertinência do pedido por perito do juízo. Em outros julgados, há decisões que afirmam que a juntada de receituário médico particular não tem a força probatória para tornar o direito líquido e certo, conforme se interpreta da jurisprudência a seguir: "Para obtenção de medicamento pelo SUS, não basta ao paciente comprovar ser portador de doença que o justifique, exigindo-se prescrição formulada por médico do Sistema." (STA 334-AgR, Rel. Min. Presidente Cezar Peluso, julgamento em 24-6-2010, Plenário, DJE de 13-8-2010.) (sublinhamos)
“(…)2. O Supremo Tribunal Federal, após realização de audiência pública sobre a matéria, no julgamento da SL N. 47/PE, ponderou que o reconhecimento do direito a determinados medicamentos deve ser analisado caso a caso, conforme as peculiaridades fático-probatórias, ressaltando que, "em geral, deverá ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS em detrimento de opção diversa escolhida pelo paciente, sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente". 3. Laudo médico particular não é indicativo de direito líquido e certo. Se não submetido ao crivo do contraditório, é apenas mais um elemento de prova, que pode ser ratificado, ou infirmado, por outras provas a serem produzidas no processo instrutório, dilação probatória incabível no mandado de segurança.(…)”(Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Mandado de Segurança n. 20.746 – MG 2009/0207569-0. Relator: Desembargador Ministro Castro Meira. Brasília, 27 de Nov. de 2012) (sublinhamos)
Em suma, nestes julgados, observa-se a rigidez dos Tribunais Superiores, embora existam julgados de Tribunais de Justiça Estaduais com maior flexibilidade. como ilustração para essa polêmica, o julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que determina o fornecimento de medicamento, ainda que não constante na RENAME, conforme transcrição a seguir: “(…)O fato de a medicação prescrita não ser padronizada passa a ser questão secundária, porque sua utilização foi prescrita por médico devidamente habilitado para o exercício da profissão, Dr. Milton Santiago Júnior, CRM 50.692. Portanto, a prescrição médica é a comprovação da necessidade do autor (fls. 11/12), não cabendo ao Judiciário questionar a adequação do tratamento prescrito por profissional que confirma a sua necessidade.(…)” (Apelação / Reexame Necessário nº 0025061-83.2012.8.26.0019. Relator Desembargador Reinaldo Miluzzi. julgado em 09 de dez. de 2012.)
Diante dos argumentos apresentados, a questão é bastante polêmica, pois não há critérios consolidados. Como já demonstrado exaustivamente, não há como afirmar se este ou aquele julgado foi equívoco, pois a solução depende do contexto social, das condições socioeconômicas da sociedade, da gravidade da doença.
3.2 – O REGISTRO DO MEDICAMENTO
Há necessidade da análise sobre a exigência do artigo 29 do Decreto Federal n. 7598/2011, que proíbe a inclusão na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais ou na lista complementar elaborada pelos outros entes administrativos de medicamento sem registro na ANVISA, conforme se verifica nos termos do dispositivo: “Art. 29. A RENAME e a relação específica complementar estadual, distrital ou municipal de medicamentos somente poderão conter produtos com registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA.”
O registro do medicamento na ANVISA é um processo burocrático e moroso ao qual as empresas farmacêuticas devem submeter às fórmulas que criam. Portanto, para registrar determinado medicamento, a empresa deve ter uma estrutura jurídica e científica, o que inviabiliza o registro de medicamentos por pequenas empresas farmacêuticas.
Ainda, é importante constar que este registro atesta que o medicamento não é nocivo, mas não comprova sua eficácia.
Conforme informações obtida no site da ANVISA, a respeito da negativa do registro de medicamento: “(…) Insuficiência de evidência não é evidência de insuficiência. O fato de um medicamento não ser registrado em determinado momento porque a Anvisa julgou que as evidências apresentadas não eram suficientes, não quer dizer que este medicamento não funcione para tal fim. Quer dizer apenas que no momento em que se tomou tal decisão não havia acúmulo suficiente de informações para justificar o registro. Quando (e se) suficientes informações estiverem disponíveis, preferencialmente sendo elas provenientes de estudos fase III com desfechos de reconhecida importância, o registro poderá (e deverá) ser concedido. (…)[7]
Portanto, o registro do medicamento, em regra, é exigência plausível, pois exclui os anódinos nocivos à saúde, porém deve-se ressaltar a crítica de que há situações excepcionais em que alguns remédios, conforme conhecimento médico e farmacêutico, podem ser receitados, uma vez que não são nocivos e não possuem registro por algum motivo burocrático.
3.3 – HIPOSSUFICIÊNCIA
O direito à saúde tem como fundamento o acesso universal e igualitário. O princípio da igualdade é um direito fundamental, colacionado no artigo 5º da CF. Em sua evolução, especificadamente após o liberalismo clássico, passou a ser interpretado como a busca pela igualdade substancial, que se resume na afirmação feita por Rui Barbosa: “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades”.
Assim, não cabe ao Estado financiar de forma indiscriminada a saúde de todas as pessoas, intervindo de forma desnecessária, quando o indivíduo por si só possui condições de financiar seus remédios e tratamentos. Isto significa que a atuação do Estado é subsidiária e deve proporcionar o bem-estar daqueles que não têm condições financeiras de arcar com os custos do tratamento.
O poder público deve criar meios para avaliar a situação econômica do requerente e verificar se tem condição de adquirir o medicamento. Para a intervenção do Estado a hipossuficiência do paciente há de estar presente, significando que ele não tem meios de adquirir o medicamento sem prejuízo de seu sustento. Convém ressaltar, contudo, que não há a necessidade de atestar a miserabilidade desse indivíduo.
Essa análise, normalmente, deve ser feita por assistente social, que por meio de critérios objetivos, como o valor do medicamento, a renda per capta familiar, a característica da moradia (própria ou alugada), o valor do aluguel, a existência de deficientes na família, a quantidade de crianças no âmbito familiar, são alguns dos muitos elementos a serem usados para definir a necessidade do ponto de vista socioeconômico e, por consequência, a participação da Administração pública quanto à responsabilidade de arcar com o custo do medicamento.
Nesse sentido, a jurisprudência manifesta-se reconhecendo a condição da hipossuficiência como obrigatória para o fornecimento de tratamentos: "Doente portadora do vírus HIV, carente de recursos indispensáveis à aquisição dos medicamentos de que necessita para seu tratamento. Obrigação imposta pelo acórdão ao Estado. Alegada ofensa aos arts. 5º, I, e <196> da CF. Decisão que teve por fundamento central dispositivo de lei (art. 1º da Lei 9.908/1993) por meio da qual o próprio Estado do Rio Grande do Sul, regulamentando a norma do art. <196 da CF, vinculou-se a um programa de distribuição de medicamentos a pessoas carentes, não havendo, por isso, que se falar em ofensa aos dispositivos constitucionais apontados." (Supremo Tribunal Federa. Recurso Extraordinário n. 242.859. Primeira Turma. Relator: Ministro Ilmar Galvão, Brasília, 29 de jun. de 1999. DJ de 17-9-1999.)
Sobre a hipossuficiência também houve manifestação na já citada audiência pública[8], durante a qual o Professor Ingo W. Sarlet salientou a necessidade de se atestar a pobreza, e Flávio Pansiere destacou a necessidade de se produzir a igualdade formal e material, argumentos com a finalidade de direcionar as políticas públicas, em vista da seletividade do serviço público.
4 – O JUDICIÁRIO IMPLEMENTANDO A SAÚDE
4.1 – ATOS VINCULADOS E DISCRICIONARIEDADE MITIGADA
De início, cabe ressaltar que o Poder Executivo pratica os atos de governo, os quais se dividem em discricionários e vinculados. A discricionariedade administrativa é composta também pela oportunidade e conveniência, e significa a existência de uma margem de liberdade nas decisões dos governantes.
Os atos vinculados são aqueles determinados pelo ordenamento jurídico, sem margem de liberdade. O administrador deve cumprir a norma constitucional ou infraconstitucional da maneira que lhe é imposta, casos em que a omissão ou a contrariedade à regra passa a constituir uma situação ilegal ou inconstitucional.
Vale salientar que os atos administrativos, tanto os discricionários quanto os vinculados, devem se basear primordialmente na Constituição Federal, uma vez que não é um mero texto simbólico, pois tem força normativa, privilegia o Estado Democrático e Social de Direito e direciona a atuação dos Governantes, do Legislador e do Judiciário.
É importante notar, portanto, que não há discricionariedade plena, mas mitigada, pois sempre se devem observar os princípios e as regras constitucionais, bem como motivar devidamente a decisão tomada.
4.2 – NEOCONSTITUCIONALISMO
A intervenção judicial decorre de uma nova ordem constitucional que teve como ponto marcante no Brasil a redemocratização e a promulgação da Constituição em 1988. No direito comparado, em especial na Alemanha, o seu ponto marcante é o período pós Segunda Guerra Mundial. Em que essa nova ordem é denominada pela doutrina de constitucionalismo pós-positivista, neoconstitucionalismo ou constitucionalismo pós-moderno, tendo como principais características a valorização dos princípios em detrimento da aplicação absoluta das regras, a ponderação de valores ao invés de ocorrer sempre a subsunção da norma ao caso concreto, a Constituição com força de ordem imperativa e o ativismo judicial.
4.3 – FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO
Entre as características apontadas, destaca-se o papel do poder judiciário de controlar as funções administrativas entre cujas finalidades se sobressai a atenção à garantia da eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais, resultantes de uma construção histórica, jurídica e social e, portanto, com grande força normativa. Nesse sentido, o constitucionalista alemão Konrad Hesse desenvolveu a ideia de que a Constituição tem força vinculante nas atividades desenvolvidas pelo Estado e pela sociedade, na doutrina brasileira reconhecida pela expressão “Força Normativa da Constituição”. O Eminente Professor Luís Roberto Barroso apresenta o seguinte argumento: “as normas constitucionais são dotadas de imperatividade, que é atributo de todas as normas jurídicas, e sua inobservância há de deflagrar os mecanismos próprios de coação, de cumprimento forçado.”[9]
Portanto, se torna evidente a vinculação das demais normas e dos atos administrativos do ordenamento jurídico ao direito constitucional.
4.4 – JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
Com vistas a dar maior efetividade à CF, haja vista a citada imperatividade, houve notável expansão da jurisdição constitucional em seu texto original que, posteriormente, foi reforçado pela Emenda Constitucional n. 45/2005, compreendendo o controle de constitucionalidade de forma difusa e concentrada.
O controle difuso, que tem previsão constitucional desde 1891, é realizado por juízes e tribunais na análise do caso concreto, ou seja, no exercício de pretensões, individuais ou coletivas, que tenham como fundamento do pedido dispositivos constitucionais de forma incidental. Nesse contexto, o órgão julgador analisará a compatibilidade entre as normas infraconstitucionais e a Constituição como o fundamento do pedido e o objeto será o bem da vida.
A Constituição, em seu artigo 97, faz a ressalva da cláusula de reserva de plenário, o que significa que se o tribunal entender pela inconstitucionalidade da norma ou por sua não aplicação, esta decisão deve ser do plenário ou do órgão especial, salvo se já houver manifestação sobre a norma impugnada por esses órgãos.
Em regra, a decisão terá efeito inter partes, porém se a decisão for prolatada pelo STF, este deverá remeter ao Senado Federal, que poderá suspender a execução da lei ou ato normativo declarado inconstitucional, conforme previsão no artigo 52, em seu inciso X, nos seguintes termos:
“Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:(…)
X – suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal;”
O controle concentrado de constitucionalidade é o julgamento realizado pelo STF ou pelos Tribunais de Justiça (nesse caso, levam-se em conta as Constituições Estaduais) das ações que tenham por objeto a análise da constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei ou ato normativo em tese. A decisão, neste caso, terá efeito erga omnes e efeito vinculante em relação aos demais órgãos.
A CF elenca as espécies de ações a serem impetradas no controle abstrato; são elas: Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADI por omissão), Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) e Ação de inconstitucionalidade interventiva (ADI interventiva).
A controvérsia constitucional pode advir de ato omissivo ou comissivo, como quando o legislador não instituir uma lei necessária para a fruição de determinados direitos, ou, em contraponto, quando criar uma norma prevendo requisitos absurdos com a finalidade de obstar a fruição de determinados direitos. São hipóteses que podem ser objeto tanto de ações individuais propostas pelos pretensos titulares do direito (controle difuso e concreto), como por ações abstratas que visam compelir o legislativo a atuar de forma constitucional ou retirar a eficácia de leis inconstitucionais (controle concentrado).
Há de se ressaltar também a possibilidade da prática, pelo administrador público, de atos inconstitucionais, em se tratando de lesão ou ameaça a direito em decorrência do não cumprimento dos mandamentos constitucionais por ação ou omissão. Como exemplos, não fomentar a educação, não conceder remédios e tratamentos indispensáveis para a manutenção da saúde da população, enfim, desrespeitar o regime adotado pelo constituinte, notadamente a dignidade da pessoa humana. São situações passíveis de controle judicial de constitucionalidade pela via difusa, e esta jurisdição consiste nos mandados de otimização (ações de caráter individual, ações coletivas, ações civis públicas), com a finalidade de tornar efetivos os direitos fundamentais.
4.5 – ATUAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO JUDICIÁRIO
A partir dessas premissas, fazem-se necessárias as seguintes considerações: a CF determina a implementação da saúde pela administração pública e esta, por sua vez, tem o dever de dar o tratamento adequado aos que necessitarem, mas durante todo o trabalho pode-se observar que o Poder Judiciário atua de forma intensa e proativa na implementação de políticas públicas, apesar da função ser inerente ao Poder Executivo.
Esta atuação judicial ocorre notadamente no controle difuso de constitucionalidade, e funciona como um instrumento cada vez mais utilizado, visando garantir os direitos fundamentais que são negados pelo poder público (Poder Executivo e Legislativo) à população. A doutrina denomina esse fenômeno de ativismo judicial.
O ativismo judicial ocorre de forma subsidiária na análise da legalidade e da constitucionalidade dos atos administrativos, quando houver deficiência (pela omissão ou negligência) da administração na concessão dos direitos fundamentais.
A carência dos serviços públicos e, por consequência, a violação de direitos fundamentais, pode ocorrer de diversas formas, como no caso do munícipe que é atendido no posto de saúde de determinada cidade, faz acompanhamento de enfermidade grave (LUPOS, diabetes, HIV, câncer e etc.), aguarda meses para ser atendido em consultas médicas e, quando é atendido, o remédio indispensável para o tratamento da doença não foi comprado pela Administração Pública. São fatos graves que estão presentes no cotidiano do país.
Esta negligência administrativa pode ser sanada pelo ativismo judicial. Como no caso concreto a seguir colacionado, em que diante da negativa do fornecimento de medicamentos pela administração municipal para tratamento de LUPOS crônico[10], houve a impetração de Mandado de Segurança. Na decisão, o órgão prolator discorre sobre a essencialidade dos direitos sociais, a eficácia dos direitos fundamentais, o dever do Estado (gênero), a condição socioeconômica da requerente, a necessidade do medicamento, segundo a prescrição médica, e quanto a impossibilidade de se alegar a insuficiência de recursos por parte do Estado. Enfim, analisa os principais pontos que ensejam a intervenção judicial e as condições para se deferir a pretensão do bem da vida. A seguir, os principais trechos da sentença prolatada pela Juíza Marta Brandão Pistelli:
“Mandado de Segurança – Fornecimento de Medicamentos – (…)em face do PREFEITO MUNICIPAL DE PAULÍNIA, alegando em síntese, que é portadora de Lupus crônico, necessitando fazer uso contínuo dos medicamentos descritos a fl. 3 da inicial. Alegou que não possui condições financeiras de arcar com os custos dos remédios (…) Nesse sentido importante a lição de Ingo Wolfgang Sarlet: O Constituinte de 1988, além de ter consagrado expressamente uma gama variada de direitos fundamentais sociais, considerou todos os direitos fundamentais como normas de aplicabilidade imediata. Além disso, já se verificou que boa parte dos direitos fundamentais sociais (as assim denominadas liberdades sociais) se enquadra, por sua estrutura normativa e por sua função, no grupo dos direitos de defesa, razão pela qual não existem maiores problemas em considerá-los normas auto-aplicáveis, mesmo de acordo com os padrões da concepção clássica referida. Cuida-se, sem dúvida, de normas imediatamente aplicáveis e plenamente eficazes, (…) Nesse contexto, sustentou-se acertadamente, que a norma contida no artigo 5º, §1º da CF impõe aos órgãos estatais a tarefa de maximizar a eficácia dos direitos fundamentais. Além disso, há que se dar razão aos que ressaltam o caráter dirigente e vinculante desta norma, no sentido de que esta, além do objetivo de assegurar a força vinculante dos direitos e garantias de cunho fundamental, ou seja, objetiva tornar tais direitos prerrogativas diretamente aplicáveis pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, (…) investe os poderes públicos na atribuição constitucional de promover as condições para que os direitos e garantias fundamentais sejam reais e efetivos. Os direitos e garantias individuais, como o direito à vida, estão erigidos à categoria de princípios constitucionais não por mera liberalidade do órgão constituinte, mas, sobretudo, pela importância que deveriam ser tidas principalmente pelo Estado, a quem essas normas são também dirigidas. Ora, o fundamento do Estado Democrático de Direito é a garantia da dignidade humana que deve ser perseguida pelo Estado por meio de políticas públicas sérias e condizentes com as necessidades dos administrados, estes, aliás, destinatários final e principal das ordens constitucionais e do bem comum perseguido pelo administrador público. Acresça-se ao contexto dos autos que a necessidade do medicamento é evidente, como restou demonstrado pelos documentos de fls. 14/16, o que avigora a necessidade do cabimento do pleito inicial. O direito à vida se sobrepõe, sem sombra de dúvida, a qualquer restrição orçamentária ou de fiscalização, ou de administração de distribuição e repartição de rendas, e deveria o Estado atentar para o bem maior do ser humano, a vida. Daí porque não há que se falar, inclusive, na inexistência de padronização dos medicamentos necessitados. Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE o pedido formulado na inicial e concedo a segurança pleiteada, tornando definitiva a liminar deferida a fl. 17. (…), LUIZ CARLOS GERALDO ROSA (OAB 101683/SP)” (2ª Vara Distrital do Foro de Paulínia da Comarca de Campinas/SP. Processo 3002082-76.2013.8.26.0428. Decisão monocrática da Juíza Marta Brandão Pistelli. DJE em 17 de dez. 2013)
Em síntese, quanto ao caso apresentado, a administração pública agiu de forma inconstitucional ao negar o tratamento ao doente e, como consequência, houve a violação do direito à saúde e a necessidade de repará-lo, razão por que o indivíduo impetrou o Mandado de Segurança em face da Administração Municipal e, por fim, o Judiciário, com o fim de dar efetividade à norma constitucional, deferiu a ordem. Nesse julgado, verifica-se a análise dos requisitos expostos ao longo deste trabalho para a concessão do medicamento e ilustra o ativismo judicial.
4.6 – REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO
Portanto, o judiciário deve atuar de forma residual; entretanto, a dúvida existe quanto à possibilidade da exigência de prévio requerimento administrativo como condição de procedibilidade das ações judiciais, pois para alguns haveria falta de justa causa para a atuação judicial se a administração pública não se recusou a fornecer o medicamento.
Porém, houve manifestação, na já citada Audiência Pública[11], do Ilustre Professor Ingo W. Sarlet, segundo a qual expressa a possibilidade da pretensão judicial sem esgotamento da via administrativa porque, se a pessoa está doente e precisa do tratamento, não é razoável exigir um requerimento que, pela circunstância fática, pode demorar ou tem grande chance de ser negado.
A jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo também manifesta-se pela dispensa do prévio requerimento administrativo, pois afirma que a justa causa é o direito da pessoa ao medicamento e ainda deve-se observar o direito fundamental da inafastabilidade da jurisdição, conforme o seguinte julgado:
“Igualmente sem amparo a preliminar de não conhecimento da apelação por falta de interesse de agir, tendo em vista ser pacífico na jurisprudência, à luz do princípio da inafastabilidade da jurisdição previsto no artigo 5º XXXV da Constituição Federal, o entendimento de que é despiciendo o prévio requerimento administrativo antes do pedido em juízo de fornecimento de medicamento.
In casu, o interesse de agir decorre, simplesmente, da necessidade de tratamento e da hipossuficiência financeira para suportá-lo, ambos demonstrados pelos documentos juntados aos autos.
Ademais, diante da resistência demonstrada pela apelante, que interpôs recurso contra a sentença que concedeu os medicamentos à autora, tudo indica que o pedido administrativo não seria mesmo acatado, não restando alternativa a apelada senão a de recorrer ao Judiciário para ter acesso ao bem da vida pretendido.” (Brasil. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação n. 0003491-31.2009.8.26.0024. Relator Desembargador Paulo Barcellos Gatti. São Paulo, 16 de dezembro de 2013.) (sublinhamos)
Tendo em vista a argumentação seguida da jurisprudência, conclui-se que é desarrazoada a exigência de prévio requerimento administrativo como requisito para a análise judicial.
4.7 – BLOQUEIO DE VERBAS PÚBLICAS
A decisão judicial para ter efeitos práticos em muitas ocasiões deve ser cumprida de forma imediata, pois às vezes há perigo iminente de dano, de forma que a demora do tratamento possa gerar a sua ineficácia ou a morte do paciente como na hipótese de remédios quimioterápicos, internação em centro de terapia intensiva, etc. São casos, portanto, em que se faz necessário o cumprimento quase que instantâneo da decisão judicial, sob pena desta decisão ser inócua ou sem efeito.
Por consequência, há necessidade de criar mecanismos para garantir a eficácia das decisões judiciais e, para isso, uma forma eficaz consagrada na jurisprudência é o bloqueio de verbas públicas, que consiste em o Poder Judiciário reservar recursos financeiros da administração para viabilizar o pagamento de tratamentos médicos ou a compra de medicamentos, deferida em decisões judiciais em face do ente político que terá suas verbas bloqueadas.
O Superior Tribunal de Justiça, na análise de alguns julgados sobre o tema, decidiu como legítima a atitude do Judiciário de sequestrar as verbas públicas com a finalidade de viabilizar as decisões judiciais. Recentemente, após o Tribunal firmar este posicionamento em sede de recursos repetitivos, emitiu o informativo n. 532/2013, o qual tem a seguinte redação:
“Informativo nº 0532 Período: 19 de dezembro de 2013.
Primeira Seção
DIREITO ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. BLOQUEIO DE VERBAS PÚBLICAS PARA GARANTIR O FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS PELO ESTADO. RECURSO REPETITIVO (ART. 543-C DO CPC E RES. 8/2008-STJ).
É possível ao magistrado determinar, de ofício ou a requerimento das partes, o bloqueio ou sequestro de verbas públicas como medida coercitiva para o fornecimento de medicamentos pelo Estado na hipótese em que a demora no cumprimento da obrigação acarrete risco à saúde e à vida do demandante. De acordo com o caput do art. 461 do CPC, na “ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento”. O teor do § 5º do mesmo art. 461, por sua vez, estabelece que, para “a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial”. Nesse contexto, deve-se observar que não é taxativa a enumeração, no aludido § 5º do art. 461, das medidas necessárias à efetivação da tutela específica ou à obtenção do resultado prático equivalente, tendo em vista a impossibilidade de previsão legal de todas as hipóteses fáticas relacionadas à norma. Dessa forma, é lícito o magistrado adotar, com o intuito de promover a efetivação da tutela, medida judicial que não esteja explicitamente prevista no § 5º do art. 461, mormente na hipótese em que a desídia do ente estatal frente a comando judicial possa implicar grave lesão à saúde ou risco à vida da parte demandante, uma vez que, nessas hipóteses, o direito fundamental à saúde (arts. 6º e 196 da CF) prevalece sobre os interesses financeiros da Fazenda Nacional.” (Precedentes citados: EREsp 770.969-RS, Primeira Seção, DJ 21/8/2006; REsp. 840.912-RS Primeira Turma, DJ 23/4/2007; e REsp. 1.058.836/RS, Segunda Turma, DJe 1º/9/2008. REsp 1.069.810-RS, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 23/10/2013.)[12]
Sabe-se que é essencial o efeito prático da decisão judicial e que, portanto, o ente administrativo pode ter em seu desfavor medidas coercitivas, as quais são consequências do controle difuso de constitucionalidade com a finalidade de garantir a eficácia dos direitos fundamentais.
5 – DIMENSÃO ECONÔMICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Inicialmente, são necessárias as seguintes considerações: os direitos humanos de primeira dimensão, conforme exposto, são inerentes à liberdade dos indivíduos e se caracterizam, em suma, pela livre conduta, desde que haja compatibilidade do comportamento com as normas postas. Configuram-se, geralmente, como prestações obrigacionais negativas do Estado, entre outros, os seguintes exemplos: o Judiciário e os agentes policiais não podem prender ou manter alguém preso sem a observância das regras legais; o poder público não pode exigir tributo não previsto por lei.
Por exceção, o Estado deve atuar de forma coercitiva para garantir a liberdade das pessoas. Apesar de a frase parecer ser incoerente, não é!, pois os particulares também devem observar certas restrições para assegurar a liberdade de outros indivíduos, preceito que a doutrina denomina de eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Para ilustrar a situação, os seguintes exemplos: o dever do hospital psiquiátrico particular de não manter uma pessoa internada sem a observância das respectivas normas; a proibição de manter alguém internado com a finalidade de coagir os familiares a quitarem as dívidas para com o hospital.
Conclui-se que, para o poder público, a repercussão econômica dos direitos de primeira dimensão é irrisória e não gera polêmica, o que implica a obrigatoriedade do Estado de garantir a manutenção da liberdade do indivíduo.
Os direitos econômicos, sociais e culturais demandam, geralmente, uma prestação obrigacional positiva pelo do Estado, dever jurídico do Poder Público que se manifesta de várias formas, como implementar, entre outras tantas hipóteses: a) o ensino, notadamente pela rede pública regular; b) a educação socioambiental, por meio de projetos de visitação com palestras; c) a saúde, que em regra ocorre por meio do Sistema Único de Saúde; d) a moradia, rotineiramente verificada em alguns planos de habitação; e) amparo aos necessitados, notado pela assistência social com a política de conceder pensões aos desamparados. Estes são alguns exemplos de medidas proporcionadas pelo poder público que visam tornar efetivos os direitos fundamentais.
Observa-se que a maioria das medidas depende de investimento econômico do Estado; entretanto, tendo em vista a limitação dos recursos financeiros e a grande dimensão dos direitos sociais, nem todos os direitos fundamentais são fornecidos a todas as pessoas, mas busca-se a sua máxima efetividade.
Em relação à matéria central do trabalho, o direito à saúde, a sua implementação depende de alto investimento financeiro, haja vista os elementos necessários, como médicos, enfermeiros, farmacêuticos, medicamentos, custos com internações, ambulâncias, estruturas físicas, o grande número de demandas, etc. Diante dessas premissas, surge a polêmica sobre a alegação da falta de disponibilidade de recursos financeiros do Estado para custear todas essas demandas, em contraponto, como defendido neste trabalho, com o fato de serem direitos essenciais que o Estado tem a obrigação primária de garanti-los.
Em vista deste problema, há necessidade de tecer alguns comentários sobre a teoria da “Reserva do Possível”, com origem no direito comparado, em especial na doutrina alemã, por volta de 1970. Essa teoria foi difundida com o julgamento no Tribunal Constitucional Alemão, no caso em que se discutia sobre a possibilidade das pessoas livremente escolherem suas profissões, conforme previsão constitucional, e alguns estudantes quererem se inscrever no curso de medicina, mesmo não havendo vagas nas Universidades. A Corte Constitucional entendeu que a pretensão extrapolava as expectativas normais e indeferiu a pretensão dos estudantes. Posteriormente, o Tribunal Constitucional Alemão também aplicou esta teoria a casos que envolviam o direito à saúde, reconhecendo o direito a tratamentos de saúde conforme a disponibilidade financeira da Administração.
Neste mesmo sentido, o Professor Ingo W. Sarlet apresenta a definição, adotada na Alemanha e com jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão no mesmo sentido, sobre a teoria da reserva do possível, seguida da análise das condições necessárias para a sua aplicação, da seguinte forma:
“De acordo com a noção de reserva do possível, a efetividade dos direitos sociais a prestações materiais estaria sob a reserva das capacidades financeiras do Estado, uma vez que seriam direitos fundamentais dependentes de prestações financiadas pelos cofres públicos.(…)
Com efeito, mesmo em dispondo o Estado dos recursos e tendo o poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável.(…)
A partir do exposto, há como sustentar que a assim designada reserva do possível apresenta pelo menos uma dimensão tríplice, que abrange a) a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais; b) a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima conexão com a distribuição das receitas e competências tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas, entre outras, e que, além disso, reclama equacionamento, notadamente no caso do Brasil, no contexto do nosso sistema constitucional federativo; c) já na perspectiva (também) do eventual titular de um direito a prestações sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à sua exigibilidade e, nesta quadra, também da sua razoabilidade”[13] (sublinhamos)
Portanto, a teoria consiste na obrigatoriedade do Estado de financiar as pretensões razoáveis com fundamento na saúde com todos os recursos possíveis e não a mera faculdade conforme as previsões orçamentárias. A tese prevê algumas condições plausíveis para o não fornecimento de tratamento, como a disponibilidade fática dos recursos e a proporcionalidade da prestação.
Em relação à disponibilidade fática dos recursos, na última década, a administração pública brasileira, por meio de suas procuradorias, tem afirmado que a “reserva do possível" consiste em o Estado garantir os direitos sociais conforme sua disponibilidade financeira, pois demonstrada a impossibilidade de o poder público dispor de recursos, não poderia ser compelido a financiar determinado tratamento, sob pena de subversão da ordem econômica do Estado. Esta alegação, na maioria das vezes, é feita de forma genérica, porém a administração deve demonstrar de forma efetiva a impossibilidade de financiar o tratamento, sob pena de abuso de direito e criar uma barreira para a efetivação dos direitos sociais.
A indisponibilidade de recursos pode ser alegada em casos extremos, como na hipótese de uma pessoa hipossuficiente, com domicílio comprovado, que peticiona pela intervenção do judiciário em face de um município com poucos recursos, para compeli-lo a custear um tratamento milionário, visando à cura da cegueira. Em sua defesa, a administração demonstra que os salários dos servidores estão de acordo com a Lei de Responsabilidade Fiscal, que não há verbas públicas destinadas para a publicidade, que os demais elementos relacionados às finanças públicas estão em ordem e que, por fim, se comprova que o pagamento do tratamento causará sérios danos à cidade, como o fechamento de parte do hospital. Neste caso hipotético, seria uma atitude arbitrária exigir daquele ente administrativo o pagamento do citado tratamento.
Em suma, na análise da falta de disponibilidade fática de recursos, conclui-se que somente em casos extremos o Estado não poderá ser obrigado a pagar tratamentos com fundamento na reserva do possível.
Quanto ao limite da razoabilidade da prestação do serviço, deve-se levar em conta o critério da proporcionalidade, consagrado pelo doutrinador Alemão Robert Alexy, segundo o qual se analisa a necessidade da atuação estatal, a adequação entre os meios e fins e a proporcionalidade em sentido estrito ou a ponderação de valores.
A necessidade de atuação estatal caracteriza-se caso não haja outro meio de se implementar o direito pretendido, por exemplo, quando o indivíduo não tem condições de custear seu próprio tratamento, indispensável para a manutenção da sua saúde.
A adequação entre meios e fins configura-se na análise de todas as alternativas possíveis para a resolução do problema, como a busca por um tratamento alternativo já oferecido pela sistema público de saúde ou que seja menos oneroso aos cofres públicos, mas que apenas uma se mostre adequada para o fim pretendido.
A terceira condição é a mais problemática, em que se analisa a colisão de valores: de um lado, a necessidade de garantir o direito à saúde e, de outro, a necessidade de garantir a ordem econômica do Estado. Esse embate de valores deve ser solucionado tendo em vista a razoabilidade, com a análise de critérios que lhes sejam inerentes, como o medicamento exigido ter registro na ANVISA, como a doença causar adversidades na vida, como a comprovação de eficácia ou ineficácia do tratamento, como a análise do impacto orçamentário do tratamento nas finanças públicas, entre tantos a outros critérios que podem variar e serão graduados de acordo com o caso concreto. Ao final, faz-se a ponderação de valores para a obtenção de uma solução justa, concedendo-se ao individuo a prestação que normalmente se esperaria do Estado.
Diante do exposto, em relação à dimensão econômica dos direitos fundamentais, ressalta-se que a atividade fim do Estado é garantir o bem-estar da população a todo custo. Portanto, os tratamentos e medicamentos deverão, em regra, ser fornecidos pelo Poder Público, sob pena de desvirtuamento da finalidade estatal. E, somente por exceção a reserva do possível, pode ser analisada como impedimento dos direitos fundamentais, mas nunca considerada como uma cláusula geral do direito.
6 – VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL
A proibição da retrocessão dos direitos fundamentais ou a proibição da evolução reacionária é um método que direciona as políticas públicas, auxilia a aplicação e interpretação do direito.
Este fenômeno tem origem na doutrina francesa, nela reconhecida pelo nome de effect cliquet (efeito cliquet). Consiste na proteção dos direitos e liberdades garantidos na Constituição, vincula o legislador à ordem jurídica estabelecida, veda a supressão dos direitos já conquistados (direitos adquiridos da sociedade) e faz parte da jurisdição constitucional. Pode-se verificar este preceito no texto a seguir:
“L'effet cliquet" est une solution jurisprudentielle utilisée par le juge constitutionnel français pour procurer une protection particulière aux droits et libertés garantis par la Constitution. Elle consiste à interdire au législateur de revenir sur les acquis enregistrés par une législation antérieure. Utilisée dès 1984, cette appellation doctrinale suscite, avec l'introduction de la QPC qui instaure contrôle de constitutionnalité a posteriori, un débat renouvelé sur la question de sa survivance. Pour faire le point sur cette problématique, Lexbase Hebdo”[14]/
O fenômeno é também reconhecido por outros tribunais constitucionais, como o da Alemanha, o da Itália e o de Portugal. Por exemplo, ressalte-se o Acórdão 39/1984 prolatado pelo Tribunal Constitucional, que considerou inconstitucional a Lei que revogou parte do sistema nacional de saúde com fundamento na proibição do retrocesso social.
Em relação à aplicação desta teoria no ordenamento jurídico brasileiro, deve-se ter em mente os direitos e as garantias conquistados ao longo da história, os quais compreendem os direitos inerentes à liberdade, igualdade e fraternidade, todos pelo legislador constitucional.
Como forma de assegurar a imutabilidade desses direitos, há a previsão de cláusulas pétreas em nosso ordenamento constitucional, conforme inciso IV, do parágrafo 4º, do artigo 60 da Constituição Federal, em que veda a supressão dos direitos e garantias individuais, in verbi:
“Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: (…)
§ 4º – Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (…)
IV – os direitos e garantias individuais.”
Nota-se, portanto, que a CF reconheceu expressamente o fenômeno, pois veda a edição de emenda constitucional tendente a abolir os direitos e garantias individuais, como forma de proteção da evolução jurídica, histórica e social em face do Estado.
Ressalta-se, porém, a possibilidade de alteração dos direitos e garantias individuais, com a finalidade de ampliar as medidas de proteção e eficácia, ou seja, as garantias constitucionais não podem ser suprimidas sem que se criem mecanismos equivalentes, teoria esta admissível de forma pacífica pela doutrina e pela jurisprudência.
Em suma, devem ser assegurados pelo poder público os direitos essenciais reconhecidos em cada contexto social, como garantir a evolução nos tratamentos médicos, proibir a exclusão de medicamento essencial da RENAME, obrigar a mantença do fornecimento de tratamentos previstos, implementar novos tratamentos considerados essenciais pela medicina, hipóteses em que se verifica a não retrocessão dos direitos sociais.
CONCLUSÃO
Diante do exposto, há de se reconhecer a importância da evolução histórica dos direitos humanos, pois hoje pode-se exigir do poder público a implementação dos direitos sociais com a finalidade de garantir o bem-estar das pessoas.
Quanto aos conceitos de saúde, dignidade da pessoa humana e mínimo existencial, conforme extensa exposição no desenvolvimento, são muito subjetivos e carecem de fundamentação consolidada, pois podem motivar os mais diversos pedidos, que serão analisados no caso concreto pela administração pública. Consideradas essas premissas, um pedido de proteína alimentar ou de remédio quimioterápico pode ser tanto uma pretensão razoável quanto inadmissível, dependendo dos elementos a serem analisados, como o domicílio, a hipossuficiência, a imprescindibilidade, entre outros já expostos.
Deve-se ressaltar que a obrigação de implementar os direitos sociais é do Poder Executivo e, em regra, os serviços de saúde pública são muito deficientes. Observa-se, ainda, a falta de critérios consolidados pela administração pública para executar os serviços de saúde, o que implica pretensões judiciais em seu desfavor. Muitas vezes, o administrado necessita de medicamento ou de tratamento médico e deve ser atendido, mas a administração se mantém inerte, por isso a necessidade de intervenção judicial, medida necessária para garantir a eficácia constitucional, observando a teoria da Força Normativa da Constituição como inerente à ordem jurídica.
O Poder Judiciário faz a análise, tendo em vista o controle da constitucionalidade e da legalidade, que pode ser posterior à negativa da administração ou não, pois em situações excepcionais pode-se dispensar o requerimento administrativo.
Os tribunais, por sua vez, não apresentam critérios consolidados em seus julgados; como no caso das decisões analisadas, também se observa que não houve avaliação do perito do juízo sobre as pretensões, como, a negação da ordem do Mandado de Segurança, pois apenas havia receituários prescritos por médicos particulares, uma vez que é incumbência do Estado garantir a análise da pretensão, não do requerente, que produziu a prova que estava em seu alcance. Portanto, em não havendo fundamentação, idônea o bem-estar deve ser garantido, ainda que em processo sem dilação probatória.
Como no caso da alegação de reserva do possível, a administração deve demonstrar, de forma clara e precisa, a indisponibilidade fática de verbas públicas ou comprovar peremptoriamente que a prestação é muito desarrazoada. Porém, dificilmente haverá organização das contas públicas de forma a ensejar uma justificativa precisa da administração de indisponibilidade fática de recursos financeiros, caso em que também deverá prevalecer o direito ao bem-estar.
Por fim, observa-se a teoria da vedação ao retrocesso social, consagrada na Constituição Federal, que garante à sociedade a manutenção dos direitos já conquistados, presunção que vai além da previsão Constitucional e veda a retrocessão de direitos conquistados também pela legislação infraconstitucional, como suprimir um benefício da assistência social ou retirar um medicamento da RENAME.
Enfim, o direito à saúde parte de premissas ainda não consolidadas e que dificilmente serão concretizadas, haja vista a dinâmica da medicina e a evolução econômica e cultural da sociedade. Os requisitos exigíveis pelo poder público são tão subjetivos que podem resultar em situações injustas. Mas com a competência dos magistrados, a seriedade dos governantes e com o auxílio dos especialistas da área da saúde, como médicos e farmacêuticos, pode-se ter grandes esperanças de um ótimo sistema público de saúde.
Informações Sobre o Autor
Bruno Geraldo Rosa
Especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP graduado em Direito pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo Liceu Coração de Jesus UNISAL. Advogado