Análise do direito ao trabalho externo ao condenado ao regime inicialmente semiaberto na Ação Penal 470

Resumo: Quando da interpretação e aplicação da norma, o operador do Direito deve sempre guiar-se de acordo com os ditames da dignidade da pessoa humana, sob pena de incorrer em graves desvios teleológicos da norma. Tal premissa é ainda mais relevante na esfera do Direito Penal pela forma aguda de intervenção que representa na esfera de direitos da pessoa condenada. Nesse contexto, analisam-se, no presente artigo, as consequências da decisão do Ministro do STF Joaquim Barbosa, quando da decisão da Ação Penal 470, ao exigir do condenado José Dirceu o cumprimento do requisito objetivo contido no artigo 37 da Lei de Execução Penal,a fim de conceder o beneficio do trabalho externo tendo-se em vista o inicio do cumprimento da pena no regime semiaberto. Para tanto, levou-se em conta o disposto na Constituição da República, na legislação infraconstitucional, além da mensuração da importância do trabalho externo no processo de ressocialização do condenado.

Palavras-chave: Exigência de cumprimento de um exto da pena. Regime semiaberto. Trabalho externo.

Abstract: In interpreting and applying the rule of law the operator must always guide itself according to the dictates of human dignity, under penalty of serious teleological deviations of the norm. This assumption is even more relevant in the sphere of criminal law by the acute form of intervention that is in the sphere of rights of the convicted person. In this context, we analyze the consequences of the judgment of the STF’s Minister Joaquim Barbosa that attribute the the 470 Criminal Action to the the convict José Dirceu, requiring him to comply with the objective requirement contained in Article 37 of the Penal Execution Law in order to grant the benefit of external work keeping in view the beginning of the sentence in semi-open regime. For this, we took into account the provisions of the Constitution, the infra-constitutional legislation, besides the measurement of the importance of the external work on the rehabilitation of convicted people.

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Key words: Compliance requirement of a sixth of their sentence. External work. Semi-open regime.

Sumário: Introdução. 1. Breves noções acerca da pena. 2. A importância socializadora e ressocializadora do trabalho. 3. O trabalho segundo as disposições infraconstitucionais. 4. Análise da concessão do trabalho externo ao ex – ministro da Casa Civil José Dirceu à luz da Constituição brasileira e da legislação infraconstitucional. Considerações finais. Referências.

Introdução

A ideia de pena composta puramente por castigos acompanhou o pensamento do Direito penal por longa data. Com o nascimento de uma era mais humana, na qual o homem passou a integrar o epicentro de um novo sistema contratualista de governo, buscou-se a adequação da sanção com a necessidade de recuperar a sociabilidade daquele que infringisse a lei.

Nesse sentido, foi preciso que o Estado estabelecesse uma política de valorização da dignidade da pessoa humana do condenado, usando de instrumentos hábeis a promover tal finalidade de reinserção.

O trabalho se mostrou, desde o início, o principal meio de recuperação do apenado, pelo que era possível adequar a realização de um trabalho pelo condenado à necessidade de controle e punição do Estado.

Em especial, a modalidade do trabalho externo criada pela política criminal, apresentou uma potencial capacidade de promover a ressocialização, visto que recriava a ideia de liberdade com limites no condenado ao conceder responsabilidades em função da concessão do benefício conquistado.

Muito embora o mandamento de humanização da pena esteja presente hoje nas discussões acerca de sua finalidade e positivado como princípio constitucional, a operacionalização do Direito nos tribunais não tem seguido tal norma com o devido rigor exigido pelo legislador constituinte.

O processamento e julgamento da ação penal 470 no STF – que pertine ao chamado Mensalão – reacendeu a discussão acerca da necessidade de humanização da pena e aos respectivos comportamentos necessários à sua realização quando da negativa do pedido de trabalho externo ao ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, pelo Ministro Joaquim Barbosa.

Neste artigo, utilizar-se-á como parâmetro a decisão de Barbosa a fim de perscrutar a legitimidade de exigir-se o cumprimento do requisito objetivo contido no artigo 37 da Lei de Execução àqueles que, assim como José Dirceu, iniciam a execução de suas penas no regime semiaberto.

Para tanto, valeu-se da interpretação da proteção constitucional do direito ao trabalho, das regras contidas no Código Penal, da Lei de Execução Penal e de regra de hermenêutica normativa.

Urge lembrar que a importância deste trabalho vai além daquela encontrada em outras análises pertinentes ao tema tratado, pelo que as decisões do Superior Tribunal Federal representam paradigmas decisórios para os demais tribunais da justiça brasileira.

1. Breves noções acerca da pena

Com vistas a tornar possível a convivência harmônica em sociedade, o homem primitivamente selvagem concedeu ao Estado alguns poderes. Entre eles encontra-se o poder de punir ou ius puniendi.

Nesse diapasão, é por completo plausível afirmar que a maior exteriorização do poder de punir estatal encontra-se na pena.

Partindo da origem latina, pena significa punição, castigo, ao passo que, no Grego, o termo encontra-se atrelado à ideia de purificação ou limpeza através do castigo.

A princípio, essa nomenclatura havia sido escolhida para se referir às sanções que correspondiam às transgressões dos costumes e/ou da lei. Posteriormente, o conceito de pena, construído pelo homem social, encontrou matéria de definição em um ambiente de suplícios nos quais os acusados eram torturados, enforcados, esquartejados ou queimados a fim de reafirmar e manter o poder do Príncipe sobre o povo.

Por essa forma, pode-se perceber que a repressão penal acabou por perseguir um escopo jurídico e ao mesmo tempo político.

Sobre o tema, Foucault (2002, p. 43) dispõe que

“O suplício não restabelecia a justiça, reativava o poder. No século XVII, e ainda no começo do XVIII, ele não era, com todo o seu teatro de terror, o resíduo ainda não extinto de uma outra época. Suas crueldades, sua ostentação, a violência corporal, o jogo desmesurado de forças, o cerimonial cuidadoso, enfim todo o seu aparato se engrenava no funcionamento político da penalidade.”

A partir do século XVIII, com o surgimento do movimento iluminista, a atrocidade das penas começou a ser questionada principalmente por meio dos ideais humanitários de Rousseau, Montesquieu e Voltaire.

Além disso, Marquês de Beccaria, ao fundir as ideias dos enciclopedistas, elaborou uma das críticas mais contundentes e prodígias à crueldade das penas em sua obra intitulada "Dos delitos e das penas".

     A pena no magistério de Beccaria (1764, p. 107):

“(…) para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser, essencialmente, pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas respectivas circunstâncias, proporcional ao delito, e determinada por uma lei.”

Essa nova perspectiva acerca da resposta punitiva do Estado fez com que a finalidade das penas passasse a ser o ponto central da discussão.

Em linhas gerais, a disputa a respeito do tema gravitava, e ainda gravita, ao redor de três teorias: a teoria absoluta (ou retributiva), a teoria relativa (ou preventiva, ou ainda utilitária) e a teoria mista, sendo a teoria relativa dividida em preventiva geral e especial.

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Geraldo Ribeiro Sá (1996, p. 84), didaticamente, conceitua tais teorias:

“Absoluta – que entendia a pena como exigência de justiça

Relativa – que assinalava a ela um fim prático, de prevenção geral e especial

Mista – que, resultando da fusão de ambas, mostrava a pena como utilidade e ao mesmo tempo como exigência de justiça”

Representante da teoria absoluta, Kant, citado por Noberto Bobbio (2004), estabelecia que “a função da pena não é prevenir os delitos, mas, simplesmente, fazer justiça, ou seja, fazer com que haja uma perfeita correspondência entre o crime e o castigo”.

Seguro do caráter de prevenção e utilidade das penas, Beccaria (1764) dispunha que “a finalidade [da pena] não é senão impedir o réu de causar novos danos aos seus concidadãos e demover os demais de fazerem o mesmo”.

Já com o alemão Franz Von Liszt houve o surgimento da noção de ressocialização e reeducação do delinquente como finalidade da pena.

Em decorrência de seu pensamento, Von Lizst inaugurou a chamada teoria preventiva especial. Essa teoria, nos dizeres de Bitencourt (2012), “não busca a intimidação do grupo social nem a retribuição do fato praticado, visando apenas àquele indivíduo que já delinquiu para fazer com que não volte a transgredir as normas jurídico-penais”.

Bitencourt (2012, p. 319) estabelece ainda que,

“Sob o ponto de vista político criminal, por exemplo, é possível sustentar a finalidade de prevenção especial, não como um fim em si mesmo, mas, sim, voltada para a ressocialização do delinquente durante o período de cumprimento da pena.”

Ainda com relação à teoria preventiva especial, cumpre-se salientar a contribuição dada pela Escola da Nova Defesa Social, liderada por nomes como Fillipo Grammatica, Adolfo Prins e Marc Ancel, ao injetar na teoria de Von Lizst uma vertente humanista ressocializadora.

Nesse sentido, discorre Mirabete (2004, p. 25):

“Com Fillipo Grammatica, Adolfo Prins e Marc Ancel, toma vulto a Escola do Neodefensismo Social ou a Nova Defesa Social, com que se buscou instituir um movimento de política criminal humanista fundado na ideia de que a sociedade apenas é defendida à medida que se proporciona a adaptação do condenado ao meio social (teoria ressocializadora).”

Por fim, é mister tecer algumas considerações a respeito da teoria mista.

Nas lições de Bitencourt (2012, p. 320-321):

“As teorias mistas ou unificadoras tentam agrupar em um conceito único os fins da pena. Esta corrente tenta recolher os aspectos mais destacados das teorias absolutas e relativas. Merkel foi, no começo do século XX, o iniciador desta teoria eclética na Alemanha, e, desde então, é a opinião mais ou menos dominante.”

A importância da teoria mista é tal que através da leitura da parte final do artigo 59, caput, do Código Penal é possível afirmar ter sido ela a teoria adotada pelo Brasil. Para Rogério Greco (2011) isso significa dizer que “a parte final do caput do art. 59 do Código Penal conjuga a necessidade de reprovação com a prevenção do crime”.

2. A importância socializadora e ressocializadora do trabalho

O trabalho constitui um meio de realização individual e social para o homem. Através dele, obtém sustento para si e para sua família, além de agregar riquezas e crescimento à comunidade em que vive.

A ideia de trabalho como importante ferramenta no processo de formação do homem social apresentou-se, de maneira mais evidente, a partir da Primeira Revolução Industrial.

A nova concepção de trabalho fez do homem o protagonista de uma revolução que extravasou os limites da inovação produtiva e das relações trabalhistas.

Era o surgimento de uma visão humanitária do trabalho, uma vez que a produção laboral passou a ser peça fundamental de constituição do homem vivo e digno, transformando o labor em um valor ínsito ao ser social e humano.

O homem, segundo Aristóteles (2009), é um animal político, composto em sua essência por uma pessoa moral e outra pessoa social.

Assim, sob a ótica contratualista, o Estado deveria ser um garantidor das pretensões do homem considerado em sua individualidade, mas também, enquanto ser social, incompatível com o isolamento.

O reconhecimento da pessoa humana como fundamento dos governos democráticos fez surgir, após a Segunda Guerra Mundial, uma gama de direitos sociais que até então eram sufocados pelos governos autocráticos, fixando para o homem um “patamar mínimo civilizatório” sem o qual não se aceitava mais viver.

Oriana Piske (2008), ao citar Norberto Bobbio (2000), assim dispõe:

“Para Norberto Bobbio os direitos fundamentais são três: direito à instrução, direito ao trabalho e direito à saúde. Os direitos sociais obrigam o Estado, como representante da inteira coletividade, a intervir positivamente na criação de institutos aptos a tornar, de fato, possível o acesso à instrução, o exercício de um trabalho, o cuidado com a própria saúde. Enquanto os direitos individuais se inspiram no valor primário da liberdade, os direitos sociais se inspiram no valor primário da igualdade. São direitos que tendem a corrigir desigualdades que nascem das condições econômicas e sociais.”

Para que fosse possível falar em plenitude da dignidade da pessoa humana, era preciso atender a necessidade individual e coletiva do homem. Nessa perspectiva, o trabalho enquanto direito social, permitia a afirmação do espírito social do homem na coletividade.

De acordo com Maurício Godinho Delgado (2004, p. 43-44),

“[…] a ideia de dignidade não se reduz, hoje, a uma dimensão estritamente particular, atada a valores imanentes à personalidade e que não se projetam socialmente. Ao contrário, o que se concebe inerente à dignidade da pessoa humana é também, ao lado dessa dimensão estritamente privada de valores, a afirmação social do ser humano. A dignidade da pessoa fica, pois, lesada caso ela se encontre em uma situação de completa privação de instrumentos de mínima afirmação social. Enquanto ser necessariamente integrante de uma comunidade, o indivíduo tem assegurado por este princípio não apenas a intangibilidade de valores individuais básicos, como também um mínimo de possibilidade de afirmação no plano social circundante. Na medida desta afirmação social é que desponta o trabalho, notadamente o trabalho regulado, em sua modalidade mais bem elaborada, o emprego.”

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Na legislação pátria, tamanha é a relevância do assunto que a Constituição de 1988 trouxe em seu Capítulo II, entre os direitos sociais, o trabalho como garantia da realização da dignidade da pessoa humana.

Dirigindo-se para aquilo que é o objetivo deste artigo, através da subsunção da análise construída acima ao processo de execução penal, e da intelecção do artigo 38 do Código penal brasileiro que diz que “o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade”, pode-se concluir que o Estado tem o dever de criar condições para que, mesmo ao longo do cumprimento da pena privativa de liberdade, o condenado venha a gozar dos direitos sociais, em especial do direito ao trabalho.

O artigo 28 da Lei de Execução Penal, ao seguir as diretrizes constitucionais, tratou do trabalho como um dever social e como condição de dignidade humana.

Durante a execução da pena, pode-se notar a existência do trabalho sob duas formas, o trabalho interno e o trabalho externo.

Essa cisão demonstra a preocupação estatal em se obter do trabalho o máximo de proveito possível para o condenado durante a execução da pena.

O fato que torna possível tal afirmação é o de que o trabalho interno objetiva a ressocialização do condenado, baseando-se na autodisciplina e no senso de responsabilidade daquele que cumpre sua pena, e o trabalho externo objetiva, de maneira inicial, aflorar as aptidões laborais do apenado e afastá-lo do ócio pernicioso do cárcere.

Enquanto direito social garantido também à população carcerária, o trabalho permite o resgate do espírito social do condenado e de sua dignidade, reduzindo os reflexos negativos do ócio durante o cumprimento da pena, constituindo, outrossim, ferramenta fundamental para a efetiva realização da proposta de recuperação do senso de responsabilidade e de ressocialização daquele que cumpre sua pena.

Segundo Mirabete (2004, p. 25),

“Assim, tem-se entendido que a ideia central de ressocialização há de unir-se, necessariamente, o postulado da progressiva humanização e liberação da execução penitenciária, de tal maneira que, asseguradas medidas como as permissões de saída, o trabalho externo e os regimes abertos, tenha ela maior eficácia.”

 É, pois, o trabalho, preponderante artifício para a consecução da finalidade reeducadora e recuperadora do condenado.

3. O trabalho segundo as disposições infraconstitucionais

A lei disciplinadora do momento executório da pena no Brasil é, atualmente, a Lei 7.210/84 – Lei de Execução Penal.

O objetivo da execução é exposto pela própria Lei em seu artigo 1º quando estabelece que “a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”.

Cumpre-se, nesse ponto, ressaltar o fato de que a Lei impõe ao juízo das execuções o dever de proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado.

Conforme demonstrado linhas acima, o trabalho dignifica o homem e, portanto, encontra-se no rol das condições de integração social que o juízo das execuções deve proporcionar ao condenado.

Mirabete (2004, p.89) dispõe que o trabalho “é um dos mais importantes fatores no processo de reajustamento social do condenado, merecendo do legislador cuidados especiais”.

Além de um direito, em outros momentos de seu texto, a Lei de Execução estabelece o trabalho como um dever do condenado. A fim de maior elucidação, revela-se necessária a transcrição dos dispositivos legais concernentes ao tema, verbis:

“Art. 28 – O trabalho do condenado, como dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa e produtiva.

Art. 31 – O condenado à pena privativa de liberdade está obrigado ao trabalho na medida de suas aptidões e capacidade.

Art. 41 – Constituem direitos do preso:

II – atribuição de trabalho e sua remuneração;”

Ao prosseguir na análise da Lei de Execução, o exegeta pode depreender a existência de duas formas de trabalho, o interno e o externo. Este é o trabalho realizado fora do estabelecimento prisional, sendo que aquele é o trabalho realizado dentro do estabelecimento prisional. 

Porém, o correto entendimento acerca da aplicabilidade das formas de trabalho encontra-se intimamente atrelado ao estudo dos regimes prisionais existentes, quais sejam: regime fechado, regime semiaberto e regime aberto.

A conceituação dos regimes penais pode ser depreendida do artigo 33, § 1º do Código Penal brasileiro, verbis:

“§1º, art. 33 – Considera-se:

a) regime fechado a execução da pena em estabelecimento de segurança máxima ou média;

b) regime semiaberto a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similiar;

c) regime aberto a execução da pena em casa de albergado ou estabelecimento adequado.”

O trabalho interno é a regra no regime fechado e de acordo com o artigo 34, § 2º do Código Penal brasileiro “o trabalho será comum dentro do estabelecimento, na conformidade das aptidões ou ocupações anteriores do condenado, desde que compatíveis com a execução da pena”. Somente excepcionalmente será permitido ao condenado do regime fechado o trabalho externo. Nesse sentido dispõem a Lei de Execução em seu artigo 36 e o Código Penal brasileiro em seu artigo 34, § 3º, verbis:

“L. 7.210/84, art. 36 – O trabalho externo será admitido para os presos em regime fechado somente em serviço ou obras públicas realizadas por órgãos da administração direta ou indireta, ou entidades privadas, desde que tomadas as cautelas contra a fuga e em favor da disciplina.

Decreto-lei n. 2.848/40, § 3º, art. 34 – O trabalho externo é admissível, no regime fechado, em serviços ou obras públicas.”

Ainda com relação à permissão do trabalho externo no regime fechado, a Lei de Execução prossegue estabelecendo em seu artigo 37 a obrigatoriedade de cumprimento, pelo condenado, de dois requisitos, um de ordem subjetiva e outro de ordem objetiva, quais sejam: “aptidão, disciplina e responsabilidade, além do cumprimento mínimo de um sexto da pena”.

Em se tratando de regime semiaberto, o Código Penal brasileiro estabelece em seu artigo 35, § 1º que “o condenado fica sujeito a trabalho em comum durante o período diurno, em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar”. Já no § 2º do mesmo artigo, estabelece que “o trabalho externo é admissível, bem como a frequência a cursos supletivos profissionalizantes, de instrução de segundo grau ou superior”. 

No que tange ao trabalho no regime aberto não será feita nenhuma abordagem tendo-se em vista não ser objeto de discussão do presente trabalho.

3. Análise da concessão do trabalho externo ao ex – ministro da Casa Civil José Dirceu à luz da Constituição brasileira e da legislação infraconstitucional

Conforme esclarecido no tópico anterior, há atualmente no Brasil três regimes prisionais, o fechado, o semiaberto e o aberto. E as regras correspondentes a cada um dos regimes são determinadas pelo Código Penal brasileiro e pela Lei 7.210/84 – Lei de Execução Penal.

O artigo 33, parágrafo segundo, do Código Penal brasileiro, estabelece que

“§ 2º, art. 33 – As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as seguintes hipóteses de transferência a regime mais rigoroso:

a) o condenado a pena superior a 8 (oito) anos deverá começar a cumpri-la em regime fechado;

b) o condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a 8 (oito), poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semiaberto;

c) o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto.”

Condenado a sete anos e onze meses pelo crime de corrupção ativa, José Dirceu de Oliveira e Silva, por determinação do Código Penal brasileiro, iniciou o cumprimento de sua pena no regime semiaberto.

José Dirceu foi ministro da Casa Civil durante o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e um dos condenados na ação penal 470.

A ação penal 470, que tramitou perante o Supremo Tribunal Federal, foi decorrente de um dos maiores esquemas de corrupção já ocorridos no Brasil. A esse esquema foi dado o nome de Mensalão.

O Mensalão, em breves linhas, envolveu parlamentares, empresas públicas e privadas em um articulado e organizado sistema de desvio de dinheiro público destinado à compra de votos de membros do Congresso Nacional.

Devido a sua importância, o caso atraiu olhares do Brasil inteiro durante toda a sua tramitação.

Entre os fatos que chamaram a atenção da comunidade jurídica no decorrer do processo encontra-se a negativa, realizada pelo ministro-relator Joaquim Barbosa, da possibilidade de realização de trabalho externo ao condenado José Dirceu.

Em meio aos argumentos utilizados por Barbosa, a fim de fundamentar sua decisão, tem-se o de que a Lei de Execução Penal exige em seu artigo 37, para que seja possível a autorização do trabalho externo pelo condenado, o cumprimento de requisitos que, no momento da decisão, não eram preenchidos pelo condenado José Dirceu. Os requisitos estabelecidos pelo artigo 37 da Lei são: aptidão, disciplina e responsabilidade, além do cumprimento de um sexto da pena.

Essa decisão gerou estranheza aos operadores do Direito tendo-se em vista que uma análise sistemática da Lei de Execução permite chegar-se a conclusão de que os requisitos estabelecidos pelo artigo 37 são referentes unicamente ao regime fechado. Isso pelo fato de que o artigo antecedente, o artigo 36, trata do trabalho externo no regime fechado sem mencionar nada em relação aos outros regimes prisionais.

Além disso, já se encontrava pacificado há anos na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça o entendimento de que o artigo 37 da Lei de Execução, no que se refere ao cumprimento de um sexto da pena, não se aplicaria aos condenados que cumprem suas penas inicialmente no regime semiaberto.

Porém, as discussões a respeito do tema não terminaram por aí. José Dirceu, inconformado, interpôs um agravo regimental à decisão de Barbosa.

O agravo foi julgado no dia 25 de junho de 2014, e por nove votos a um o STF concedeu a José Dirceu a possibilidade de realização do trabalho externo.

Os argumentos a favor da concessão do trabalho externo a Dirceu foram basicamente os mesmos expostos acima.

O mais importante a ser ressaltado dos votos dos ministros da Suprema Corte é a maneira enfática com que buscaram reforçar a importância ressocializadora do trabalho para o condenado.

O ministro Luís Roberto Barroso afirmou durante a sessão de julgamento do agravo que “no regime semiaberto, o trabalho é um capítulo importante da ressocialização. A decisão tomada nesse processo servirá de baliza para todo o país, daí a importância de não se passar a ideia de que o trabalho externo seria frivolidade”.

A par da análise realizada supra, ainda é possível ir mais além ao realizar-se a comparação entre o artigo 37 da Lei de Execução e o sistema de cumprimento da pena privativa de liberdade que é, atualmente no Brasil, o progressivo.

 A afirmação de que o sistema progressivo é o adotado pelo Brasil decorre do artigo 112 da Lei de Execução Penal, verbis:

“A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão.”

De acordo com Mirabete (2004, p. 387), o sistema progressivo

“Impõe a classificação dos condenados, faz cumprir as penas privativas de liberdade em estabelecimentos penais diversificados (penitenciária, colônia e casa do albergado), conforme o regime (fechado, semi-aberto ou aberto), e tem em vista a progressão o mérito do condenado, ou seja, sua adaptação ao regime, quer no início, quer no decorrer da execução.”

Do artigo 112 é possível, ainda, depreender que ao condenado só é permitido executar sua pena em regime menos rigoroso caso cumpra um sexto desta e ostente bom comportamento carcerário.

Já com relação à concessão do trabalho externo, afirmou-se, nos tópicos anteriores, que o artigo 37 da Lei de Execução Penal exige o cumprimento de um sexto da pena, além de aptidão, disciplina e responsabilidade por parte do condenado.

Realizadas tais considerações, é possível proceder a análise da situação daquele que, assim como o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, inicia o cumprimento de sua pena no regime semiaberto.

Decorre do Código Penal brasileiro, artigo 35 § 2º, a admissibilidade do trabalho externo no regime semiaberto.

Nesse sentido, João José (2004, p. 14) afirma que

“Diante da taxatividade da norma contida no art. 35, § 2º, do CP, os doutrinadores têm posição unânime em reconhecer o direito ao trabalho externo pelo condenado em regime semiaberto. Em síntese, os autores pesquisados fazem referência ao disposto na lei positiva, que é expressa para garantir o direito ao trabalho externo ao condenado em regime semiaberto.”

Porém, ainda com João José (2004, p. 14-15), há que se destacar que

“Os comentadores de nosso CP, no entanto, não questionam as condições e circunstâncias em que o condenado no regime semiaberto poderá exercer o direito ao trabalho externo. Questões, por exemplo, não abordadas pela doutrina: a validade de cumprimento da pena em regime semiaberto em estabelecimento penal que não seja Colônia Penal; o direito de o condenado, que iniciar o cumprimento de sua pena nesse regime prisional mais brando, trabalhar fora do presídio, desde o começo do processo executório; o exercício de trabalho externo mesmo se houver oportunidade de trabalho no interior do estabelecimento penal adequado, no caso a Colônia Penal.”

Procedendo, portanto, o cotejo entre o artigo 112 e o artigo 37, ambos da Lei de Execução Penal, revela-se nítida a identidade existente entre eles no que se refere aos requisitos a serem cumpridos pelo condenado, a fim de que sejam concedidos os direitos trazidos por cada um deles.

Isso permite afirmar que, uma vez cumprido um sexto da pena, o condenado poderá progredir para o regime mais brando, que nesse caso será o regime aberto.

Exigir o cumprimento de um sexto da pena para a concessão do trabalho externo significa o mesmo que retirar do apenado a dignificante possibilidade de exercê-lo no regime semiaberto.

Corroborando esse raciocínio, João José (2004, p. 15):

“A razão é simples: ao cumprir um sexto de sua pena e apresentar mérito prisional, quando o condenado exercitar o seu direito subjetivo, já não mais será apenas para o trabalho externo em regime semiaberto, mas para a progressão para o regime aberto, bem mais favorável. Portanto, não tem sentido a exigência desse lapso temporal em relação aos condenados em regime semiaberto.”

Impende-se, ainda, reforçar o fato de que o trabalho externo no regime semiaberto constitui ferramenta de reinserção social do condenado e, ao mesmo tempo, de mitigação gradativa da pena, por conta do regime progressivo adotado para a execução da pena.

No aspecto constitucional da decisão, ao exigir que o juiz aplique cegamente uma regra de exigência do lapso temporal de cumprimento de um sexto da pena, para a concessão do benefício do trabalho externo no regime semiaberto, estar-se-ia a violar o Princípio da Individualização da pena, insculpido no inciso XLVI do artigo 5º da Constituição Federal, e o artigo 59 do Código Penal.

Atam-se mãos e pés do juiz ao cercear a discricionariedade inerente à sua função, uma vez que mesmo diante condições favoráveis à concessão do benefício – bom comportamento, primariedade, inexistência de periculosidade do condenado e outros mais –, tem de negar provimento ao pleito do apenado pela exigência do tempo de cumprimento da pena.

Ademais, o ambiente hostil do cárcere não tem de modo algum fornecido condições para a recuperação do condenado, ocasionando um grave desvio da finalidade da pretensão executória ao violar o Princípio da Humanização da pena insculpido no inciso XLVII da Constituição de 88.

Pelo motivo mencionado acima, justifica-se ainda mais a concessão do trabalho externo ao condenado, porquanto esse benefício afasta aquele que cumpre sua pena do ambiente putrefato do cárcere.

Por fim, é necessário que o intérprete atine para o movimento constitucionalista do Direito penal e direcione sua decisão de modo a tomar os direitos e garantias fundamentais previstas na Constituição como supedâneo basilar na busca pela solução do caso.

Abandona-se o automatismo jurídico em favor de uma análise pós-positivista e neoconstitucionalista das normas, exigindo que o intérprete (juiz) busque, em sua decisão, a obediência das normas constitucionais na aplicação da legislação infraconstitucional e a confluência da finalidade das normas do ordenamento com a realidade dos fatos.

Considerações finais

O Direito Penal desde os tempos mais remotos é tido como meio de vingança social.

A impunidade cada vez mais crescente potencializa a anomia crônica que acomete a sociedade, fazendo com que as paixões suplantem o Império da lei e comprometa o Estado de Direito.

O clamor do povo é no sentido da aplicação de uma pena puramente retributiva, capaz de trazer o maior sofrimento possível ao condenado.

Andando na contramão da bestialidade produzida por esse sentimento, para que a seara do Direito penal ande em conformidade com um Estado sub lege e per lege, é preciso conceber a ideia de que o condenado é ser humano integrante do corpo social como qualquer outro em liberdade.

Nesse ponto, a tendência propulsora da humanização dos mecanismos de atuação do Direito penal, a realização dos direitos do preso e do sobreprincípio da dignidade da pessoa humana no cumprimento da pena revelam-se necessárias para a verdadeira recuperação do apenado e consequente proteção da sociedade.

Conforme demonstrado, não há que se falar em recuperação e garantia de dignidade do preso sem a asseguração do direito ao trabalho, seja na modalidade interna, seja na externa.

Nesse sentido, o erro acerca de exigir-se do condenado ao regime inicialmente semiaberto o cumprimento do requisito objetivo trazido pela Lei de Execução Penal em seu artigo 37 revelou-se, por toda a construção realizada nesse artigo, flagrante.

O caso do ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, na Ação Penal 470, reacendeu as discussões no ambiente jurídico acerca dos direitos do condenado, da precariedade do sistema carcerário, da importância do trabalho para a dignificação e ressocialização do condenado.

Ainda que a sociedade possua a tendência de guiar-se por suas paixões quando da aplicação do Direito penal, ao Estado é exigida a busca pela justiça e pelo bem comum, ressaltando que isso não se trata de anular a resposta punitiva do Estado, mas de justamente torná-la mais vocacionada a recuperar o condenado.

 

Referências
ARISTÓTELES. A política. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2009.
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2010.
BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de janeiro: Elsevier, 2004.
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Informações Sobre os Autores

Conrado Rodrigues Guedes

Acadêmico de Direito pela Universidade de Minas UNIFAMINAS/MG

Ricardo Resende Bersan

Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília – UCB/DF. Especialista em Direito Público pela Faculdade Projeção FAPRO/DF. Especialista em Direito Militar pela Universidade Castelo Branco UCB/RJ. Procurador Jurídico do Município de Muriaé/MG. Professor Adjunto da Faculdade de Minas FAMINAS/MG. Advogado


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