Resumo: Através do método bibliográfico, o presente artigo objetiva analisar a questão da estabilização dos precedentes e a tutela da evidência no CPC-2015. Será averiguado como o novo código positiva a essencialidade dos precedentes para concessão da tutela de evidência liminarmente, e como decisões diferentes em situações fático-jurídicas semelhantes revelariam uma ordem jurídica incoerente, injusta e irracional.
Palavras-chaves: Precedentes – Novo Código de Processo Civil – Tutela da Evidência.
Abstract: Through literature method, this article aims to analyze the stabilization of the judicial precedents question and the guardianship to evidence on the CPC-2015. It will be analyzed as the new code registers precedents' importance in the process of granting a preliminary decision, and shows how different decisions on factually and legally similar situations would make the legal system inconsistent, unfair and unreasonable.
Keywords: Precedent – New Civil Procedure Code – Guardianship to Evidence.
Sumário: Introdução. 1. Breve análise histórica dos precedentes. 1.1 Precedentes judiciais, súmulas vinculantes e os assentos portugueses. 1.2 Precedentes no direito moderno. 2.Os recedentes na common law e a preocupação do CPC-2015 com a revogação ou alteração da ratio decidendi. 2. 1 A importância dos precedentes do direito comparado e no CPC-2015. 2. 2 A estabilização (na doutrina e no cpc-2015). 2.3 Revogação dos precedentes (overruling). 3. A tutela da evidência no CPC-2015. 3.1 O conceito de tutela e de provimento jurisdicional. 3.2 Das tutelas de urgência e da evidência. 3.3 A tutela da evidência no CPC/2015 e a recente jurisprudência sobre o tema. Conclusão. Referências.
Introdução
O Código de Processo Civil de 2015, objetivando contribuir com a essencial celeridade processual, sem olvidar a necessária segurança jurídica, subdividiu a tutela jurisdicional provisória em tutelas de urgência (cautelar e antecipada) e tutela da evidência. Paripassu, outorgou posição de destaque aos precedentes judiciais, comprovando a forte influência exercida pelo direito anglo-saxão, da tradição da common law, sobre o novo ordenamento processual, o que fica claro com a determinação aos tribunais no sentido de que “… devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente” (art. 926), bem como pela regulamentação explícita das técnicas do overruling e do distinguishing (art. 489).
Acerca do uso dos precedentes, no entanto, a doutrina não tem sido uníssona, havendo quem defenda seus benefícios – como a segurança jurídica, a previsibilidade e a uniformização das decisões -, e quem aponte os riscos de sua aplicabilidade – análise superficial do caso concreto, equiparação de demandas diferentes.
Assim, através de uma pesquisa bibliográfica, o presente trabalho, perfaz uma breve incursão na história dos precedentes, bem como sobre sua evolução ao longo do tempo, para, em seguida, verificar como foi instituído o sistema do stare decisis, e, ademais, especificar como os precedentes são utilizados, quais são as técnicas processuais capazes de mantê-los atualizados e como superá-los. Nesse contexto, este artigo associa a análise dos precedentes judiciais como fonte do direito à hipótese versada no art. 311, inciso II, do CPC-2015, o qual previu o uso dos precedentes obrigatórios como fonte jurídica apta a garantir a concessão liminar da tutela da evidência pretendida.
1. Breve análise histórica dos precedentes
1.1. Precedentes judiciais, súmulas vinculantes e os assentos portugueses
A força dos precedentes reside na tradição, não estando estabelecida em qualquer regra escrita, vez que a regra do stare decisis da common law é fruto de evolução histórica dos costumes jurídicos, oriunda de um modelo de procedimento informal e não escrito (ABBOUD, 2008, p. 86). Observa Castanheira Neves (1983, p.314), que o precedente se constitui como critério normativo a ser seguido em novos casos, quando houver identidade da questão de direito, afinal se ocorrer identidade fática e jurídica não se tratará de resolução por meio de precedentes, e sim de coisa julgada.
O precedente constitui numa fonte jurídica que serve como fundamentação de decisões futuras para casos análogos, cuja solução não está pré-determinada em sua totalidade, enquanto a súmula vinculante, assim como eram os assentos lusitanos, estabelece uma disposição de natureza legislativa para os casos concretos sob sua abrangência, fixando uma solução específica a ser forçosamente observada (ABBOUD, 2008, p. 87). Destarte, os precedentes podem ser ponderados em cada caso concreto, já as súmulas com efeito vinculativo prescrevem um enunciado literal que deve ser aplicado assim como se aplicam as leis.
Os assentos portugueses e as instruções normativas dos Tribunais Socialistas da extinta União Soviética são os instrumentos que mais se assemelham às súmulas vinculantes brasileiras. Ao contrário dos precedentes, as súmulas vinculantes não surgiram para diminuir o poder do rei e posteriormente proporcionar segurança jurídica, mas, segundo Georges Abboud (2008, p. 87), são típicas de Estados autoritários, cuja principal meta é garantir o controle do Judiciário. Os precedentes, por sua vez, não engessam o ordenamento jurídico, isso porque a sua interpretação deve levar em conta toda valoração e fundamentação utilizadas em sua formação. Dessa forma, sempre que um precedente servir como base de uma nova decisão seu conteúdo será passível de um ajuste jurisprudencial.
As súmulas vinculantes, semelhantemente aos assentos portugueses, desvinculam-se dos julgados que as formaram e passam a gozar de verdadeira autonomia, isto é, têm vigência independentemente de uma ligação concreta com os casos que as originaram. De acordo com Castanheira Neves (1983, p. 315), as súmulas vinculantes não são passíveis de mutações históricas, pois para elas vale o que está escrito no respectivo enunciado. Ainda no tocante às semelhanças entre os assentos e as súmulas vinculantes, Castanheira Neves (1983, p. 315) acrescenta que:
“Uma prescrição jurídica (imperativo ou critério normativo-jurídico obrigatório) que se constitui no modo de uma norma geral e abstrata, proposta à pré-determinação normativa de uma aplicação futura, susceptível de garantia a segurança e a igualdade jurídicas, e que não só impõe com a força ou eficácia de uma vinculação normativa universal como se reconhece legalmente como caráter de fonte do direito”.
De fato, é inegável a semelhança entre os assentos e as súmulas vinculantes. Ademais, depreende-se do excerto acima que estas últimas reconhecidamente possuem uma natureza de ato legislativo.
1.2. Precedentes no Direito Moderno
Nos primórdios do século XVIII, iniciou-se entre os juristas, sobretudo na França, um movimento de reforma judiciária com o escopo de pôr termo ao denominado "despotismo dos tribunais". Caberia então exclusivamente aos legisladores a tarefa de interpretar as leis eivadas de obscuridade, para combater o arbítrio dos juízes, que caracterizou o período do Iluminismo, vez que dada a pluralidade de jurisdições regionais, fomentavam-se diversas interpretações divergentes. Com o decorrer do tempo, foram instituídos tribunais investidos da função de unificar o direito. Esses novos tribunais, os quais eram dotados de competência recursal, posteriormente passaram a submeter-se aos seus próprios precedentes, em prol da uniformização tanto na interpretação quanto na aplicação do direito. Dessa forma, as sentenças porventura contrárias à orientação adotada nos tribunais superiores, em sua maioria, seriam reformadas, buscando assim estabelecer a segurança jurídica traçada de acordo com o stylus iudicandi – 2 julgamentos no mesmo sentido (TUCCI, 2004, pp.45-46).
No século XIX, a doutrina procedeu à distinção entre fonte material e fonte formal do direito, ao argumentar que os costumes e a atividade científica dos juristas, inclusive dos juízes, também constitui fonte do direito. A produção do direito seria confiada à elaboração dos juristas, os quais, a seu turno, representam o povo na função de criar o direito. No tocante aos precedentes judiciais, Savigny argumentava que a jurisprudência dos tribunais deveria ocupar o primeiro lugar no processo de integração do ordenamento jurídico. Somente após os precedentes é que deveriam ser aplicadas as leis imperiais, o direito canônico e o direito romano (SAVIGNY, apud TUCCI, 2004, p. 46).
No entanto, como bem observou Mauro Cappelletti (1999, p. 113), a criação do direito pelos juízes, através dos precedentes judiciais, requer ponderações acerca do cuidado para se evitar uma superposição do poder judiciário em detrimento dos demais poderes do Estado, sobretudo do legislativo.
Desta feita, eis que no século XX, em regimes autoritários como no nazismo e no fascismo, os juízes eram vexados pela onipotência do legislador, cabendo a este último toda a prerrogativa interpretativa, enquanto os magistrados se limitavam a aplicar as leis como o parlamento ditava. Esse sistema se contrapõe ao regime do Estado de Direito, no qual a Constituição estabelece a independência dos poderes, onde o judiciário é autônomo e está no mesmo plano do legislativo (CAPPELLETTI, 1999, p. 114). Nesse período, os juízes deveriam abster-se de julgar em sentido contrário ao que foi sentenciado por seus pares, vez que se abstrair de um modo comum de pensar constituiria um ato de força (TUCCI, 2004, pp. 45-46). Destarte, aí residia a importância do respeito aos precedentes nos regimes autoritários: estes retiravam o estímulo à reflexão, induzindo a aplicação mecânica dos julgados anteriores.
A seguir, será abordado o sistema de precedentes na tradição da common law, na qual se desenvolveu a técnica do stare decisis, ou seja, o sistema pelo qual os juízes devem respeitar as decisões já estabelecidas. Destacar-se-á a importância dos precedentes, os benefícios por eles trazidos e as técnicas utilizadas – como o overruling e o distinguishing.
2. Os precedentes na common law e a preocupação do CPC-2015 com a revogação ou alteração da ratio decidendi
O Direito ocidental divide-se em dois sistemas principais: o da common law, anglo-saxão, e o da civil law, de origem romano-germânica. O sistema da civil law fundamenta-se no direito codificado, no qual há a prevalência da lei escrita sobre as outras formas de direito, inclusive sobre os costumes, destoando do direito casuístico da common law, em que os costumes foram mantidos, apesar de terem sofrido um lento processo evolutivo (TUCCI, 2004, p. 46 e segs.). Na tradição da common law discutiu-se muito sobre o significado da função jurisdicional, pois se desejava esclarecer se a decisão judicial criava um direito ou apenas o declarava. Inicialmente, na Inglaterra, sustentou-se que seria uma função meramente declaratória, inclusive quando a decisão era baseada em um precedente judicial anterior. Segundo essa corrente o juiz estaria limitado a declarar o direito constante nos precedentes, não teria poderes suficientes para criar um novo direito, mas apenas para declarar um já existente e (re)conhecido (MARINONI, 2013, p. 25).
O constitucionalismo norte-americano, por sua vez, é marcado, segundo Owen Fiss (2004, p. 154), pela independência dos seus juízes, a qual se manifesta na neutralidade judicial, na separação dos poderes e na autonomia funcional. Essa autonomia, cumpre esclarecer, refere-se à relação existente entre juízes individualmente considerados e outros membros do Judiciário, e requer que os juízes não sejam pressionados corporativa ou institucionalmente ao decidir questões de fato e de direito. Segundo essa regra, as decisões judiciais são concernentes à consciência e à responsabilidade individual dos juízes.
Esse posicionamento de Fiss muito se alinha ao preconizado pela teoria positivista, segundo a qual os juízes da common law possuíam a autoridade para criar o direito (judge made law), dessa forma o direito não apenas era declarado por eles, como defendiam os adeptos à teoria declaratória, mas sim resultava da vontade dos próprios magistrados. Essa discussão em torno da natureza declaratória ou constitutiva da decisão judicial revela-se de suma importância pois reflete a maneira pela qual os precedentes devem ser encarados. Afinal, "se o precedente representa apenas uma evidência do direito, nenhum juiz poderia ser absolutamente obrigado a segui-lo, uma vez que o juiz sempre teria o poder de decidir em sentido contrário ao precedente independentemente do seu overruling" (MARINONI, 2013, p. 25).
Nessa esteira, para haver respeito obrigatório aos precedentes (stare decisis), seria necessário que houvesse a criação judicial de um direito anteriormente. Essa necessidade de criação de um direito anterior é a razão pela qual a autonomia funcional e decisional dos juízes não é plena, tal qual a “neutralidade” judicial” (FISS, 2004, p.154). Em verdade, nenhum juiz é “neutro”, embora todo juiz deva ser imparcial, mas os conceitos de neutralidade e imparcialidade são inconfundíveis. A propósito, Benjamin Cardozo (1978, p. 118) pontua com precisão a questão quando assenta que “Um dos interesses sociais mais fundamentais é o de que o direito deve ser uniforme e imparcial. Não deve haver, na sua ação, coisa alguma que tenha visos de prevenção ou favor, ou mesmo de capricho ou inconsistência arbitrários”.
Uma preocupação nuclear do sistema da common law consiste, precisamente, em evitar julgamentos contraditórios. Os primeiros juízes da common law usavam regras originárias do direito germânico, as quais serviram como base para o sistema jurídico anglo-americano. As decisões judiciais contendo o comando a ser seguido em determinados casos iam sendo catalogadas nos statute books, os quais, por sua vez, acabavam por ficar revestidos dos costumes da Corte. Dessa forma, evidente que, com o passar dos séculos, buscou-se dar maior precisão ao estudo e ao manuseio das decisões anteriores, as quais passaram a ser encaradas como precedentes. A propósito, Edward Coke, que é considerado o fundador da teoria moderna do precedente judicial, buscava preservar os princípios jurídicos edificados pelos juízes no passado, e seus respectivos julgamentos. Coke inclusive chegou a classificar os precedentes, além de ter tentado conciliar e distinguir decisões divergentes, e atribuía maior relevância aos julgados mais recentes (TUCCI, 2004, pp. 170-171).
Pois bem, foi dessa preocupação em evitar decisões conflitantes que surgiu a teoria do stare decisis, estabelecendo-se a força obrigatória dos precedentes firmados pelas Cortes Superiores para todas as demais Cortes e juízes inferiores. Assim, tem-se que o efeito vinculante das decisões já proferidas estava condicionado à posição hierárquica do tribunal que as proferia. Interessa frisar que, no sistema inglês, o efeito vinculativo do precedente tanto possui eficácia interna, vinculando a própria corte, quanto eficácia externa, vinculando os órgãos jurisdicionais inferiores. Os precedentes lastreiam-se sempre numa razão de decidir (Ratio decidendi) a qual representa a essência da tese jurídica, sendo suficiente para decidir o caso concreto, é ela que vincula os julgamentos futuros. É composta por 3 elementos: indicação dos fatos relevantes, raciocínio lógico-jurídico da decisão e juízo decisório. Os juízes, posteriormente, examinam a ratio decidendi como precedente e dela extraem a norma legal a ser aplicada no caso concreto (TUCCI, 2004, p. 171).
Em decorrência desse relevante aspecto dos precedentes na tradição da common law é que as razões das decisões devem sempre prever a repercussão futura, haja vista a observância compulsória aos precedentes. Sobre o tema da ratio decidendi andou bem o CPC-2015 quando dispôs no art. 927 que a sua alteração ou rediscussão deve (embora o código use a expressão “poderá”) ser precedida de audiências públicas marcadas pela publicidade e das quais participem de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir a respeito.
2.1. A importância dos precedentes do direito comparado e no CPC-2015
Os precedentes judiciais receberam grande destaque no Código de Processo Civil de 2015 em decorrência da contribuição que podem fornecer ao ordenamento jurídico brasileiro, colaborando para a isonomia, segurança, estabilidade jurídica, celeridade e para a previsibilidade das decisões. Em nítida aproximação do sistema brasileiro ao da common law, o art. 926 prescreveu verdadeiro dever funcional aos tribunais, ao estatuir que:
“Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
§ 1º Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.
§ 2º Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação”.
O art. 927 do CPC-2015 corrobora essa assertiva à medida que utiliza o modo verbal imperativo para estabelecer que os juízes e tribunais “observarão” os seguintes precedentes:
“I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II – os enunciados de súmula vinculante;
III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.”
O código deixa claro que a orientação vinculativa a tribunais e juízes em matéria infraconstitucional não deve ser a adotada pelo Supremo Tribunal Federal, mas pelo Superior Tribunal de Justiça, já que a eficácia vinculante irradiada pelo pretório excelso exclui a competência especificada no inciso IV, a qual se imbrica com a norma constitucional prevista no art. 105, III, da Constituição Federal. Por sua vez, o incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) constitui-se numa das principais promessas de êxito do novo código. Inspirado no Musterverfahren (procedimento-modelo) alemão, representa uma poderosa ferramenta para a resolução e contenção das ações repetitivas firmadas fundadas em direitos individuais homogêneos ou coletivos, através da expansão dos efeitos da coisa julgada produzida no precedente firmado tribunal, evitando-se, assim, decisões conflitantes e, ao mesmo tempo, produzindo-se decisão única para todas as causas atingidas em tempo real.
Por mais que os argumentos de um precedente pareçam estar presos ao passado, é importante perceber que eles também estão voltados para o futuro, pois neles se basearão os julgadores. Por isso que o doutrinador americano Frederick Schauer (1987, p. 597), professor de Direito da Universidade do Michigan, afirma que um sistema baseado no uso dos precedentes envolve a especial responsabilidade de comprometer o futuro antes de chegarmos nele. Nesse ínterim, os julgadores não devem decidir apenas com base no melhor para o presente, mas pensar em como uma decisão exarada hoje poderá comprometer decisões em casos similares futuros. Se a melhor decisão para o hoje for a melhor decisão para o futuro, então não há problema, caso contrário o afastamento da incidência do precedente pressupõe atenção das Cortes competentes para procederem à sua superação (overruling).
Ainda, nesse diapasão, Schauer (1987, p. 598), em sua obra "Precedent", inteiramente dedicada ao tema, explica que uma das consequências mais óbvias de um sistema de precedentes é que um julgador coagido pelos precedentes pode se sentir obrigado a tomar decisões contrárias às que teria tomado se não houvesse um precedente a ser seguido, caso decidisse de acordo com seu livre convencimento. Outrossim, nas palavras de Owen Fiss, "[…] o reclamo por autoridade liberta o juiz de forma que suas palavras serão vinculantes, tenha ele interpretado ele o texto corretamente ou não […] uma interpretação é vinculante mesmo se equivocada" (FISS, 2004, p. 300-301). Todavia, esse receio de proferir uma decisão injusta ou de dar uma interpretação equivocada – que alguns argumentam ser uma desvantagem do sistema de precedentes -, se mostra desarrazoado, vez que, é precisamente nesse contesto que entram em cena as técnicas do overruling e do distinguishing.
A compensação que um sistema de vinculação aos precedentes estabelece ao risco de se proferir decisão anacrônica a um contexto social que não mais se guia pela regra é a segurança jurídica e o tratamento isonômico aos que se encontram na mesma situação fática. Ademais, o sistema que faz uso de precedentes gera uma menor reconsideração de questões já decididas do que um sistema que não os respeite. Esse argumento de tornar as decisões mais fortes e menos questionáveis respaldou a elaboração do, já citado alhures, "Incidente de resolução das demandas repetitivas", constante nos arts. 976 a 987, CPC/2015. Nos comentários acerca da finalidade desse incidente, Marinoni, Arenhart e Mitidiero explicam: "objetiva evitar que demandas repetitivas (ou seja, que envolvam a mesma discussão de questão exclusivamente de direito) possam gerar risco à isonomia e à segurança jurídica" (MARINONI, ARENHART, MITIDIERO, 2015, p. 976). Reafirma-se, portanto, a importância dos precedentes judiciais para contribuir com a segurança jurídica, com a celeridade e economia processuais, e com a força das decisões. Outro ponto positivo dos precedentes seria a sua posição de vanguarda. Nas palavras de José Rogério Cruz e Tucci (2004, p. 288):
“[…] em muitas situações, é possível verificar a lenta evolução de um determinado instituto, ou mesmo de uma situação fática relevante para o direito, nas soluções que os tribunais pátrios conferem aos casos que lhes são submetidos à apreciação. Em matéria de direito de família, a quebra de paradigmas pela influência imediata dos precedentes é ainda mais acentuada. Inúmeras inovações inseridas em nosso novo Código Civil nada mais representam que mera recepção, pela lei escrita, de orientação jurisprudencial sedimentada".
Verifica-se que, pouco a pouco, a evolução dos precedentes judiciais acerca de importantes questões sociais, como direitos da personalidade e família, tornam imperiosa a regulamentação legislativa. Por mais absurdo que isso possa parecer no contexto do ordenamento jurídico atual, houve uma época em que se negava a existência dos direitos da personalidade, sob o argumento de que não poderia haver direito do homem sobre si mesmo. Esses direitos foram sendo moldados primeiramente pelos tribunais, para apenas posteriormente virem a ser reconhecidos pela legislação. É o que o jurista americano, Benjamin Cardozo (1978, p. 79) define como força normativa dos precedentes, a qual, segundo ele, "pode ser encontrada tanto nos acontecimentos que o tornaram como é, como em algum princípio que nos habilite a dizer o que deveria ser".
Esse papel dos juízes como criadores de direitos contribui também para outra importante forma de independência dos juízes: a separação dos poderes. Esta exige que o Judiciário seja independente de instituições governamentais controladas pelo voto popular, em especial os Poderes Legislativo e Executivo (FISS, 2004, p. 155). Esse posicionamento se mostra em plena consonância com o que deveria ser aplicado nos países que adotam a tripartição dos poderes. O Judiciário não pode ficar à mercê que o Legislativo regulamente os direitos com exclusividade (sobretudo porque também o Executivo legisla, em especial através de Decretos e Medidas Provisórias). Para Owen Fiss (2004, pp. 156-157), tampouco deveria caber ao Executivo a nomeação de juízes para ocuparem os tribunais, vez que tais interdependências no mínimo tornam questionável a imparcialidade do julgador, bem como de seus julgados. Nesse sentido, o autor critica a forma de nomeação dos juízes federais norteamericanos, apontando que:
“Uma das principais limitações impostas à independência política do Judiciário é o processo de nomeação. Em alguns países, o Poder Judiciário é dotado de autoridade para selecionar seus próprios membros, como uma forma de intensificar sua independência política. Nos Estados Unidos, o Presidente é investido do poder de nomear juízes federais e esse sistema necessariamente introduz um elemento de controle político sobre a composição do Poder Judiciário. […] Mesmo após a realização do juramento do juiz, o controle do Presidente sobre as promoções pode servir como uma fonte de influência contínua. Aqueles que almejam uma posição superior na hierarquia judicial ou, talvez, um outro posto no governo podem evitar decisões passíveis de desagradar o Presidente ou impor obstáculos a sua confirmação no cargo. Ademais, é provável que os juízes se considerem em débito com o Presidente que o nomeou. Esse sentimento de gratidão pode produzir uma orientação judicial tendenciosa, favorável à Administração.”
Porém, é preciso ponderar que não é o fato da nomeação em si que macula a independência dos juízes nomeados pelo chefe do Executivo. A literatura jurídica é farta de exemplos de juízes norteamericanos da Suprema Corte que decidiram contra os interesses do governo, como nos casos “Amistad” e “Separados, mas iguais”. No Brasil, os juízes federais deixaram de ser nomeados pelo Presidente da República há muito tempo e os integrantes dos tribunais que emanem do chamado quinto constitucional, uma vez nomeados, gozam da mesma independência dos juízes de carreira, no sentido de que não se sujeitam a qualquer ato subsequente que dependa da vontade do chefe do Executivo. Afinal, como discorreu Benjamin Cardozo (1978, p. 80), os juízes não são investidos para impor sua vontade pessoal, mas para impor a aplicação das regras existentes sobretudo os precedentes, mesmo que seja em favor de quaisquer outras regras que eles possam ter como convenientes ou sábias.
Mas além de contribuírem para a criação dos direitos, os precedentes ainda se mostram importantes no tocante à superação da legislação vigente, como ocorre no caso do abolitio criminis, na seara do direito penal. "Alguns institutos previstos na legislação passaram a ser desprezados pelos tribunais, até perderem toda a imperatividade ínsita às normas legais" (TUCCI, 2004, p. 293). Exemplifica essa tese a superação cultural do crime de adultério. Nesse contexto, resta inquestionável que a influência dos precedentes judiciais transcende o campo do direito processual, haja vista sua inafastável influência sobre a transformação do direito material. Afinal, como acentua Cabral de Moncada (1995, pp. 79-80) a lei reina, mas quem governa é a jurisprudência.
Mas, sem dúvida, a característica mais importante dos precedentes é a possibilidade de trazer mais segurança para o ordenamento jurídico, através do processo de estabilização das decisões (stare decisis), o qual será a seguir explanado.
2. 2 A estabilização (na doutrina e no CPC-2015)
Já antecipamos que o art. 296 do CPC-2015 prescreve que “Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”. Pois bem, vários são os argumentos no sentido da incorporação da regra dos precedentes aos ordenamentos jurídicos, cada um com uma justificativa específica, mas, em certo ponto todos eles convergem: a busca pela estabilidade. "Argumentos baseados nos valores da confiança, da previsibilidade e na eficiência da decisão partilham de um foco na estabilização das decisões, pelo bem da estabilidade jurídica" (SCHAUER, 1987, p. 601). Ademais, é inegável que a estabilização das decisões acarreta uma maior segurança jurídica e, em decorrência da previsibilidade das decisões, traz certo ‘conforto isonômico’ para as partes litigantes, em razão da expectativa de resultado certo, previsível. A consolidação dos precedentes, por garantirem a certeza e a previsibilidade do direito, evitam, ainda, posteriores oscilações e discussões no tocante à interpretação da lei (TUCCI, 2004, p. 294).
Para Fiss (2004, p. 298), a ‘virtude institucional’ da adoção dos precedentes é a definitividade derivada da interpretação do direito por meio de procedimentos que são exclusivos do judiciário, enquanto não alterada a tese adotada. Porém, alguns julgadores questionam se a estabilização seria realmente um ponto positivo, vez que defendem a riqueza e a singularidade da experiência imediata de cada caso concreto. Os defensores dessa tese buscam a liberdade de explorar todos os fatos e argumentos que possam relacionar-se com a tomada da melhor decisão para cada caso específico, pois seria a especificidade de cada caso o mais vital. Nesse contexto extremista, os ordenamentos jurídicos poderiam – ou até, para alguns, deveriam – negar a relevância dos precedentes. Os benefícios da estabilização cederiam diante do desejo desses julgadores de "fazer o certo" para cada caso, e então as decisões pretéritas teriam mínima, ou nenhuma força como precedentes judiciais (SCHAUER, 1987, p. 601).
Por outro lado, há aqueles que, focando no passado e no futuro, enfatizam a recorrência dos casos face à singularidade. Nesse contexto, as decisões são comparadas, levando em conta um limitado número de fatores, os quais tendem a se repetir com o passar do tempo. Contudo, se esta tese fosse posta em prática, terminaria por equiparar decisões similares a decisões dotadas de particularidades, como se iguais fossem, uniformizando-as, apesar das diferenças. Na ausência de uma conclusão se a estabilização seria ou não benéfica, não se pode dizer se o uso dos precedentes é mais vantajoso ou mais prejudicial aos ordenamentos jurídicos. Teoricamente, pode parecer que a estabilização não causará nenhuma perda ou impedimento, quando na realidade, para atingi-la, é preciso abdicar da flexibilidade de poder explorar plena e profundamente os eventos ocorridos em cada caso concreto. Se esse é um preço a ser pago, vai depender dos objetivos que se almeja alcançar (SCHAUER, 1987, p. 602).
Como o grau de obediência aos precedentes não é fixo, mas sim sujeito a mudanças, e esse processo não se baseia em estritas regras pré-formuladas, mas depende do convencimento dos julgadores em decidir se há, ou não, similaridade em cada caso, não há que se falar na ausência de análise das minúcias. Na tradição da common law, faz-se uso da técnica do distinguishing, quando em virtude da diversidade fática entre dois casos, torna-se inadequado o uso do precedente ao caso em julgamento. A propósito, o CPC-2015 explicitamente a adotou no art. 489, cujo § 1º esclarece, a contrario sensu, que para não seguir o precedente invocado pela parte, o juiz deve demonstrar a existência de ‘distinção’ no caso em julgamento ou a superação do entendimento. Por óbvio, não é qualquer precedente que irradia efeito vinculativo, mas os previstos e citados pelo art. 927 do CPC.
Outra técnica utilizada na common law é a transformation, quando se objetiva a compatibilização da solução do caso em julgamento ao precedente adequado, transformando-o, sem fazer uso do distinguishing e sem revogá-lo (overruling).
Dessa forma, percebe-se claramente que não procede a crítica contra a estabilização da jurisprudência em razão da adoção de precedentes vinculativos, como se isso importasse numa impossibilidade de evolução do direito. Como esclarece René David (1997, p. 13-5), se essa crítica procedesse o direito inglês não evoluiria. Os precedentes, sob outro aspecto, não impedem o estudo dos detalhes dos casos, – até porque, conforme afirmado acima, é possível que o caso a ser julgado mostre-se distinto do precedente que o orienta, hipótese em que seria cabível o uso do distinguishing ou da transformation -, mas facilitaram no tocante às similaridades, como ocorre no "Incidente de resolução das demandas repetitivas", contribuindo para a celeridade, economia e segurança jurídicas, sem falar na previsibilidade das decisões.
2.3. Revogação dos precedentes (overruling)
Face aos argumentos de que os precedentes acabariam por ficar desatualizados, sem acompanhar a evolução política e social que, inerentemente, acompanham o Direito, surgiu o fenômeno do overruling. Quando estiver ultrapassado, o precedente pode deixar de ter eficácia, passando a ser substituído por uma decisão que adote diferente orientação. Importa esclarecer que a revogação do precedente compete à Corte que o instituiu, não cabendo ao juiz e aos tribunais subpostos ao que instituiu o precedente deixar de aplicá-lo sob o argumento de sua superação.
Da mesma forma que as cortes criam seus próprios ensinamentos, também podem rejeitá-los quando se tornarem inadequados. Não obstante esse fenômeno ocorra raramente no caso concreto, ele é de significativa importância num sistema de precedentes, vez que demonstra uma nova percepção acerca do direito, consubstanciando-se como uma ferramenta de mutação no ordenamento jurídico.
Como asseveram, James F. Spriggs, II e Thomas G. Hansford, a doutrina do stare decisis, segundo a qual as cortes seguem os precedentes judiciais articulados em casos anteriormente julgados, não obsta a Suprema Corte Americana de revogar esse precedente. É notório que o uso dos precedentes proporcionaria clareza, estabilidade e previsibilidade jurídicas, bem como serviria à eficiência, à legalidade, à justiça e à imparcialidade, mas o que justificaria então a revogação de um precedente? (SPRIGGS; HANSFORD, 2001, pp. 1097).
O overruling de um precedente, apesar de não ocorrer com frequência, é um evento de relevância política, legal e social, visto que representa uma alteração no entendimento legal. Como os precedentes reduzem a incerteza jurídica, permitindo aos litigantes formular suas pretensões de acordo com regras até então estáveis, o overruling pode influenciar o julgamento das demandas, vez que os litigantes terão que formular suas pretensões de acordo com o novo precedente. O que motivaria essa revogação são as inclinações ideológicas dos juízes ou a mudança social ou crises econômicas. Além disso, é levado em conta o tratamento legal dado pela própria corte, a idade do precedente e a quantidade de juristas favoráveis e contrários ao precedente (SPRIGGS; HANSFORD, 2001, p. 1099). Assim, constatou-se que a decisão de revogar um precedente é parcialmente baseada argumentos ideológicos, mas sem olvidar da influência causada pelas normas legais e das características do precedente em si.
Spriggs e Hansford (2001, p. 1100) afirmam que o primeiro e mais óbvio fator que afeta a decisão da corte de superar um precedente é a compatibilidade ideológica entre eles. Os autores afirmam que após décadas de pesquisa jurídica, constatou-se a conexão entre a orientação ideológica dos juízes e seus respectivos votos, e que a decisão da corte de superar um precedente depende das atitudes de seus julgadores. Mas eles concluíram que o overruling ocorre mesmo em grande escala quando há mudanças nas orientações ideológicas da Suprema Corte, com o decorrer dos anos. Nesse sentido, expõe Benjamin Cardozo (1978, p. 141-142) que, embora ele defenda que a regra de adesão aos precedentes não deva ser abandonada, uma vez constadas alterações fáticas (históricas e sociais) deveria ser relaxada:
“Penso que quando uma regra de direito, depois de devidamente provada pela experiência, é considerada inconciliável com o senso de justiça ou com o bem-estar social, deveria haver menos hesitação no franco reconhecimento deste fato e no completo abandono da referida regra […] Deveria haver maior presteza em abandonar uma posição insustentável, quando não se possa razoavelmente supor tenha a regra de que se quer descartar determinado o procedimento dos litigantes, e particularmente quando ela foi produto, em suas origens, de instituições ou condições que adquiram nova significação com o decorrer dos anos.”
No entanto, as Cortes não podem revogar os precedentes anteriores com os quais uma nova composição de magistrados integrantes do órgão colegiado discorda da orientação antes adotada, de forma generalizada, sob pena de comprometer sua autoridade, sua legitimidade e reduzir a força de suas opiniões. O excesso de overruling vai de encontro à própria concepção do stare decisis, afetando a estabilidade, eficácia e, sobretudo, a credibilidade dos precedentes (SPRIGGS; HANSFORD, 2001, p. 1110). Nesse sentido, como nem todos podem ser revogados, para não cometer o excesso de overruling, quanto maior a disparidade ideológica entre determinado precedente e sua Corte, maior a chance de ele ser revogado.
Constatou-se, ainda, que quanto mais a Corte trata os precedentes negativamente, fazendo uso do distinguishing e da transformation, maior a tendência de ele sofrer o overruling. Além disso, como o sistema norte-americano também é o dos freios e contrapesos, a corte pode levar em consideração a opinião do Presidente e do Congresso, no tocante à revogação. Outro fator capaz de influenciar é se a decisão judicial que posteriormente tornou-se um precedente, não foi unânime, o que a tornaria mais fraca, haja vista a existência de opiniões divergentes (SPRIGGS; HANSFORD, 2001, p. 1110).
Assim, tem-se que inúmeros são os fatores capazes de ensejar o overruling, seja para atender às mudanças no contexto sociopolítico, seja porque não é mais o entendimento majoritário da corte, ou porque o precedente já sofreu várias transformações. Mas, ainda que vários sejam os fatores presentes num mesmo caso, a tendência de ocorrer a revogação de um precedente é muito pequena. Dessa forma, sem o excesso de revogações, a segurança jurídica é preservada, e os precedentes judiciais não correm o risco de ficarem estagnados no tempo, tornando-se obsoletos, afinal, apesar de raro, o fenômeno do overruling existe e se mostra imprescindível à renovação do ordenamento jurídico, mas há de ser a exceção e nunca a regra.
O item a seguir abarcará a tutela de evidência regulada pelo CPC-2015, em especial sua comparação com a tutela de urgência, os benefícios e as desvantagens da sua concessão através do uso dos precedentes judiciais, bem como as inovações trazidas pelo Código de Processo Civil de 2015.
3 A tutela da evidência no CPC-2015
3.1. O conceito de tutela e de provimento jurisdicional
A tutela jurisdicional é o primeiro ponto a partir do qual se pode discorrer acerca das técnicas à disposição do operador do direito a fim de solucionar as lides a ele apresentadas. A doutrina é dissonante quanto à elaboração de um conceito, porém segundo Cândido Rangel Dinamarco (2002, p. 797) “Tutela jurisdicional não é o mero exercício da jurisdição, ou somente a outorga do provimento jurisdicional em cumprimento ao dever estatal que figura como contraposto do poder de ação”.
Para Frederico Marques (1983, p. 152), a tutela jurisdicional representa a espécie de provimento judicial aplicado em cada caso concreto visando solucionar o conflito de interesses que ensejou a demanda: “… é a tutela que o Estado exerce, processualmente, sobre relações intersubjetivas litigiosas, a fim de dar a cada um o que é seu mediante a aplicação do direito objetivo. Com isso, fica conceituada a tutela jurisdicional”. Não designa apenas o resultado final do processo, outrossim, traduz os meios de se alcançar tal resultado. Para Yarshell (1999, p. 189):
“As formas de invocação da tutela jurisdicional – mediante o exercício da ação e consequente propositura de uma demanda – devem ser consideradas atípicas, no sentido de que as garantias constitucionais da inafastabilidade do controle jurisdicional e da própria ação funcionam como uma cobertura geral e ampla para todas as afirmadas posições jurídicas de vantagem decorrentes do plano material (diante de lesão ou ameaça de lesão de direito)”.
Mas pode-se também falar em espécies de ações ou de sentenças para designar a essência e a espécie do provimento jurisdicional. Contudo, as sentenças e também as ações são apenas técnicas através das quais a tutela jurisdicional é prestada. Neste sentido esclarece Marinoni (2000, p. 63):
“Deixe-se claro que quando se pensa nos meios que permitem a obtenção de um resultado no plano do direito material, não é incorreto falar em ‘tutela jurisdicional’. Quando se percebe, contudo, a necessidade de distinguir os meios (que permitem a prestação da tutela) do fim a ser obtido (o resultado no plano do direito material), apresenta-se como adequada a distinção entre tutela jurisdicional stricto sensu e técnicas de tutela jurisdicional”.
É, portanto, possível distinguir pelo menos duas acepções sobre a tutela jurisdicional: ora pode traduzir-se nos meios de obtenção de resultados, ora pode demonstrar-se como o próprio fim a ser obtido no âmbito do direito material. Esclarecido isto, passaremos a empregar a expressão tutela para designar a técnica de exercício do provimento jurisdicional que se alcança pelas diferentes modalidades de processos, sendo estes meios, instrumentos pelos quais a jurisdição presta a tutela.
3.2. Das tutelas de urgência e da evidência
A mera previsão legislativa de uma alternativa à solução de dado conflito não pode ser considerada suficiente para solucioná-lo, vez que a efetividade do resultado só existe quando o provimento jurisdicional conciliar a tempestividade e a segurança jurídica. Desta feita, como ressalta Humberto Theodoro Júnior, é salutar que a tutela jurisdicional conferida ao cidadão, pelo Estado, tenha a capacidade de cumprir efetivamente o desígnio para o qual foi estruturada (THEODORO JÚNIOR, 2014, p. 137). A tutela de evidência funda-se em cognição sumária, e sua concessão não se submete ao instituto da coisa julgada. Como expõe Luiz Fux (2000, p. 02):
“A expressão vincula-se àquelas pretensões deduzidas em juízo nas quais o direito da parte revela-se evidente, tal como o direito líquido e certo que autoriza a concessão do mandamus ou o direito documentado do exequente. São situações em que se opera mais do que o fumus boni juris, mas a probabilidade de certeza do direito alegado, aliada à injustificada demora que o processo ordinário até a satisfação do interesse do demandante, com grave desprestígio para o Poder Judiciário, posto que injusta a espera determinada.”
Se o direito da parte resta manifesto e evidente, não haveria motivo para postergar o seu provimento. Desta feita, a resposta do Poder Judiciário deve ser rápida não só nos casos em que esteja presente o periculum in mora, mas também naqueles onde as alegações da parte revelam a fumaça do bom direito, como ocorre quando o fato se fundamenta em precedente dos tribunais superiores.
Da análise dos casos práticos, é possível extrair a distinção entre a tutela satisfativa e a cautelar: a cautelar visa garantir a justiça e a eficiência prática da futura e provável sentença, enquanto a satisfativa antecipa o bem da vida postulado pelo demandante, integrando-o no patrimônio jurídico do autor. É necessário, ainda, destacar a diferença entre a liminar cautelar e a liminar satisfativa: a primeira busca proteger a eficiência e a utilidade da sentença a ser proferida na fase cognitiva (no CPC-2015, não mais por meio de um processo autônomo e sim na mesma relação jurídica processual), enquanto a segunda realiza desde logo, provisoriamente, a pretensão contida no processo principal (CARNEIRO, 2005, p. 87).
3.3. A tutela da evidência no CPC/2015 e a recente jurisprudência sobre o tema
O art. 273 do CPC/1973, tratando da tutela antecipada (satisfativa), impunha duas condições à sua concessão: prova inequívoca dos fatos alegados e verossimilhança da alegação. Esses critérios, a contrario sensu dos adotados para as medidas cautelares, exigem que haja uma quase certeza de que o querelante tem razão quanto à pretensão principal e, isso posto, é merecedor de sua antecipação.
Da análise do art. 311 do CPC/2015, é possível constatar um avanço no tocante à tutela de evidência, uma vez que resta dispensado o requisito do perigo de dano irreparável ou de difícil reparação para sua concessão, vejamos: "Art. 311: A tutela da evidência será concedida, independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo (…)". Essa é a grande diferença entre a tutela da evidência e a de urgência antecipada, pois apesar de ambas restarem inseridas no gênero da tutela provisória, e de se constituírem como medidas satisfativas, a tutela antecipada requer a demonstração do perigo de dano para a sua concessão.
Perceba-se, contudo, que a tutela inibitória (a qual se presta para a remoção do ilícito), regulada pelo art. 497 do CPC-2015, dispensa a ‘ocorrência’ do dano, como declara o parágrafo único do art. em questão, verbis: “Para a concessão da tutela específica destinada a inibir a prática, a reiteração ou a continuação de um ilícito, ou a sua remoção, é irrelevante a demonstração da ocorrência de dano ou da existência de culpa ou dolo”.
A tutela da evidência, no entanto, representa novidade no direito processual brasileiro, no âmbito do direito legislado, no tocante à possibilidade de sua concessão liminar, pois o seu deferimento diante de conduta procrastinatória do réu já era admitido pelo art. 273, II, do CPC-2015. A propósito da inovação do CPC-2015 sobre a tutela de evidência, Luiz Fux (2011, p. 18) arremata, que:
“A novidade também se operou quanto aos direitos líquidos e certos de uma parte em face da outra. Entendeu a comissão que nessas hipóteses em que uma parte ostenta direito evidente, não se revelaria justo, ao ângulo do principio da isonomia, postergar a satisfação daquele que se apresenta no processo com melhor direito, calcado em prova inequívoca, favorecendo a parte que, ao menos prima facie, não tem razão. A tutela de evidência não é senão a tutela antecipada que dispensa o risco de dano para ser deferida, na medida em se funda em direito irretorquível da parte que inicia a demanda”.
Nos quatro incisos do art. 311 do CPC-2015, o legislador buscou caracterizar o que seria a "evidência", capaz de ensejar a prestação da tutela provisória pretendida. Das quatro hipóteses ali dispostas, percebe-se que todas têm em comum a noção de defesa inconsistente, que é a base da tutela da evidência. No caso dos incisos II e III, a defesa inconsistente é presumida, razão pela qual o parágrafo único do mesmo artigo autoriza o juiz a decidir liminarmente apenas nessas duas hipóteses, enquanto nos demais incisos a concessão da tutela da evidência só poderá ocorrer após a contestação (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2015, 198). Especificamente, em relação ao caso regulado no inciso III, do art. 311, o Enunciado de nº 29, da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), orienta, com total acerto, que: “Para a concessão da tutela de evidência prevista no art. 311, III, do CPC/2015, o pedido reipersecutório deve ser fundado em prova documental do contrato de depósito e também da mora.
Mas, em que pese a posição dos autores citados, quanto à necessidade de contestação, não é necessária a apresentação da contestação para que haja a concessão da tutela de evidência prevista nos incisos I e IV, do art. 311, pois mesmo sendo revel o réu pode abusar do direito de defesa ou demonstrar um manifesto propósito protelatório (inciso I) ou, mais ainda, por não ter apresentado contestação não opôs prova capaz de gerar dúvida razoável à pretensão do autor (inciso IV). Sobre a possibilidade de concessão liminar da tutela da evidência, dispõe o art. 9º do CPC-2015, que “Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida. Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica: I – à tutela provisória de urgência; II – às hipóteses de tutela da evidência previstas no art. 311, incisos II e III; III – à decisão prevista no art. 701”. Pois bem, acerca do que seria o direito evidente, Luiz Fux (2000, p. 08) esclarece, que:
“[…] é evidente o direito demonstrável prima facie através de prova documental que o consubstancie líquido e certo, como também o é o direito assentado em fatos incontroversos, notórios, o direito a coibir um suposto atuar do adversus com base em "manifesta ilegalidade", o direito calcado em questão estritamente jurídica, o direito assentado em fatos confessados noutro processo ou comprovados através de prova emprestada obtida sob contraditório ou em provas produzidas antecipadamente, bem como o direito dependente de questão prejudicial, direito calcado em fatos sobre os quais incide presunção jure et de jure de existência e em direitos decorrentes da consumação de decadência ou da prescrição.”
É notória a inovação trazida pelo Código de 2015 ao introduzir a possibilidade de utilização dos precedentes judiciais como fonte do direito em tutela satisfativa, especificamente para a tutela da evidência fundada em tese firmada em julgamento de casos repetitivos e em súmula vinculante, no tocante à possibilidade de concessão in limine litis. A hipótese versada no inciso I já era objeto do CPC-1973, art. 273, II, e a do inciso IV do CPC-2015, isto é, quando: “a petição inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável” consiste em outra novidade do novo código, não prevista no CPC/1973, mas que não admite a concessão de liminar.
Da análise do art. 311, inciso II, é possível verificar a imposição de duas exigências pelo legislador: que os fatos alegados possam ser comprovados apenas documentalmente, e que haja tese firmada em casos repetitivos ou em súmula vinculante. Acerca desse entendimento, insta trazer à baila julgado recente do Tribunal de Justiça de São Paulo:
“PLANO DE SAÚDE. Ação de obrigação de fazer, c.c. declaratória de nulidade contratual e indenização por danos morais. Pedido de tutela provisória. Concessão. Requisitos dos artigos 300 e 311 do Novo CPC evidenciados. Recusa de custeio de material ligado ao ato cirúrgico (stent). Abusividade. Contrato de plano de saúde de trato sucessivo, que se submete ao Código de Defesa do Consumidor e da Lei nº 9.656/1998, ainda que firmado antes da vigência desses diplomas legais. Determinação para que a seguradora de saúde arque com o pagamento. Inteligência das Súmulas nºs. 93 e 100 deste E. Tribunal. DECISÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO” (TJ-SP – AI: 20937081720168260000 SP 2093708-17.2016.8.26.0000, Relator: Paulo Alcides, Data de Julgamento: 18/07/2016, 6ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 18/07/2016).
Ainda que desnecessária a existência ou a comprovação do periculum in mora, uma vez ausente um dos requisitos constantes no inciso II do art. 311, será a tutela da evidência indeferida, como evidencia o julgado do Tribunal de Justiça do Distrito Federal abaixo transcrito:
“Prescreve o artigo 311, II, do NCPC que a tutela da evidência será concedida, independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo, quando as alegações de fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante, hipótese na qual é lícito ao magistrado deferir liminarmente o pedido se presentes os requisitos (artigo 311, parágrafo único, novo Código de Processo Civil). 2.A tutela de evidência somente ocorre quando o legislador desde logo presume que a defesa será inconsistente (art. 311, II e III, CPC)”. (TJ-DF 20160020108843 0012150-85.2016.8.07.0000, Relator: CARLOS RODRIGUES, Data de Julgamento: 13/07/2016, 6ª TURMA CÍVEL, Data de Publicação: Publicado no DJE : 02/08/2016 . Pág.: 386/446).
Nesse mesmo sentido, destaque-se jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais:
“A concessão da tutela de evidência, nos termos do art. 311, inciso II do CPC/2015, demanda que os fundamentos jurídicos apresentados pela parte autora já estejam pacificados em sede de julgamentos repetitivos ou por força de súmula vinculante e que a matéria fática esteja comprovada documentalmente. … Tratando-se de matéria de fática não provada documentalmente, e controvertida nos autos, faz-se necessária maior dilação probatória, desautorizando, portanto, a concessão da tutela de evidência, nos termos do art. 311, inciso II do CPC/2015. 5. Recurso provido” (TJ-MG – AI: 10000160380820001 MG, Relator: Sandra Fonseca, Data de Julgamento: 31/07/0016, Câmaras Cíveis / 6ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 09/08/2016).
Lucas Buril de Macedo (2014, p. 110), no entanto, em sua excelente obra "Precedentes judiciais e o direito processual civil", afirma que o CPC/2015 não deve ser interpretado restritivamente, mas sim como um documento dotado de unicidade, devendo-se levar em consideração os princípios que, mesmo presentes em outros dispositivos, norteiam o texto normativo. Dessa forma, o autor propõe (com acerto) que além das teses firmadas em casos repetitivos ou em súmulas vinculantes, devem também ser respeitados os precedentes do Supremo Tribunal Federal, em matéria constitucional, e do Superior Tribunal de Justiça, em matéria infraconstitucional. Essa proposta encontra respaldo no art. 927, do CPC/2015, que dispõe:
“Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão: I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II – os enunciados de súmula vinculante; III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.”
Na mesma senda, a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM) editou os enunciados de nº 30 e 31, segundo os quais:
“30) É possível a concessão da tutela de evidência prevista no art. 311, II, do CPC/2015 quando a pretensão autoral estiver de acordo com orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle abstrato de constitucionalidade ou com tese prevista em súmula dos tribunais, independentemente de caráter vinculante.
31) A concessão da tutela de evidência prevista no art. 311, II, do CPC/2015 independe do trânsito em julgado da decisão paradigma”.
Destarte, tem-se que o artigo 311 do CPC-2015 deve ser interpretado extensivamente, a fim de que, além das teses firmadas em caso de demandas repetitivas e em súmulas vinculantes, a tutela da evidência possa se firmar com base em qualquer precedente judicial obrigatório. Com isso, facilita-se a concessão da tutela da evidência concedida liminarmente, pois ao aumentar-se o número de precedentes e de leading cases também cresce a quantidade de lides que podem ser solucionadas tomando-os como referência.
Conclusão
Após a análise histórica dos precedentes judiciais, de sua aplicação na tradição da common law e na civil law, destacando os seus benefícios e malefícios apontados por diversos doutrinadores, infere-se que os precedentes de fato evoluem junto com a história, não ocorrendo o que muitos temiam: que eles ficassem estagnados no tempo, desalinhados com o entendimento mais moderno das Cortes. Ademais, não procede o temor de que seu uso impeça a análise das minúcias de cada caso concreto, pelo contrário, a existência de julgados anteriores possibilita um julgamento mais célere das demandas a eles similares, resguardando o tempo necessário à análise dos casos mais complexos. Ademais, a expressa adoção da técnica do distinguishing, pelo art. 489 do CPC-2015, presta-se, precisamente, para permitir que o magistrado de primeiro grau possa proceder a tal distinção entre a demanda sob apreço e o precedente invocado pela parte para regular a matéria.
Como defende Schauer, ordenamentos sem precedentes, nos quais o legislador pode descer às minúcias de cada caso, não passa de um ideal longínquo. No Brasil, com sua grande quantidade de demandas no Judiciário, seria impraticável ao legislador criar uma lei específica para solucionar todas as lides, em todos os seus detalhes.
Igualmente, a estabilização dos precedentes garante celeridade nos julgamentos, precisamente através do provimento liminar da tutela da evidência, atendendo eficazmente à necessidade do requerente independentemente de demonstração de perigo de dano ao direito já respaldado em precedentes obrigatórios. O receio de que a estabilidade das decisões seja óbice à evolução de acordo com o contexto político e social não merece guarida, afinal, da mesma forma que ocorre na common law, a técnica do overruling presta-se para a superação e revogação de precedentes desatualizados.
Informações Sobre os Autores
Alexandre Freire Pimentel
Professor do PPGD da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Professor da Faculdade de Direito do Recife (FDR-UFPE). Pós-doutorado (Universidade de Salamanca – Espanha, com bolsa da CAPES). Doutor e Mestre (FDR-UFPE). Advogado (1989-1991). Promotor de Justiça (1991-1992). Juiz de Direito Titular da 29ª Vara Cível do Recife – TJPE. Diretor da Escola Judicial Eleitoral do TRE-PE. Desembargador Eleitoral do TRE-PE. Membro da Associação Norte e Nordeste dos Professores de Processo (ANNEP). Membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).
Paulo Roberto de Carvalho Lyra
Acadêmico em direito pela UNICAP Universidade Católica de Pernambuco