Resumo: O Brasil aderiu à Convenção das Nações Unidas de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados, com o intuito de promover a proteção e acolhimento desses indivíduos vítimas de deslocamentos forçados. A pesquisa tem como objetivo abordar os conflitos entre a normativa internacional e a interna no que tange à imigração ilegal e suas consequências jurídicas. Através das normas de direito internacional e interno, artigos e dados estatísticos colhidos pelos órgãos afetos, constatou-se a deficiência na proteção dos direitos sociais dos refugiados no Estado Brasileiro. A análise das políticas pioneiras adotadas pelos Estados do Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro é o Norte para que os demais Estados supram essa lacuna normativa.
Palavras-Chave: Direito Penal Internacional. Conflito aparente de normas. Descriminalização. Refugiados. Políticas Públicas.
Abstract: Brazil acceded to the United Nations Convention on the Status of Refugees in 1951 to promote the protection and shelter of those people who were victms of forced displacement. The research aims to address international and domestic regulations regarding illegal immigration and its legal consequences. Through the rules of internacional and domestic law, articles and statistical data collected by the affected organs, the deficiency in the protection of the social Rights of the refugees in the Brazilian state was verified. The analysis of the pioneer policies adopted by the states of Paraná, São Paulo and Rio de Janeiro the North, so that the other States supply this normative gap.
Keywords: International Criminal Law. Apparent Conflict of Norms. Descriminalization. Refugees. Public Policy.
1 INTRODRUÇÃO
O termo “refúgio”[1] deriva de um panorama social antigo das civilizações, e caracteriza a condição de pessoa deslocada forçadamente em detrimento de conflitos armados, perseguições políticas, crises sociais e violações massivas de direitos humanos nos seus países de origem. Também pode ser denominado como um conjunto de normas, leis e instituições elaboradas para proteger cidadãos em condições específicas que resultam num intenso fluxo migratório entre fronteiras internacionais.
Desde o século XV a história é testemunha da condição de refúgio suscitada, inicialmente, por grupos étnicos específicos espalhados pelo mundo. Podemos citar vários exemplos ao longo de quatro séculos: os judeus expulsos da região da atual Espanha, no ano de 1942, assim como os muçulmanos expulsos da mesma região no século XVI por serem descendentes do povo Otomano, temos ainda os protestantes dos Países Baixos entre 1577 a 1630, os huguenotes que fugiram da França em 1661, quando o rei Luís XIV impôs a conversão da população ao catolicismo e, por fim, a expulsão dos católicos irlandeses da Inglaterra, que findaram migrando para os Estados Unidos, e alguns como escravos para a região do Caribe no século XVIII.
Somente a partir da I Guerra Mundial, em meados de 1914, já no século XX, a condição de milhares de indivíduos em situação de refúgio começou a ser seriamente discutida. Milhões de europeus tiveram suas cidades completamente devastadas, sendo a migração sua única opção de sobrevivência, bem como determinados grupos étnicos de minoria como turcos e armênios, que vislumbraram a migração como a saída para que seu povo não fosse dizimado pelos regimes da época. Porém, foi a II Guerra Mundial que iniciou o maior fluxo migratória da história[2].
A condição de imigrante forçado traz consigo um peso sem precedentes, cruzando fronteiras sem a garantia de que terão uma nova chance, se serão respeitados em suas diferenças, gera uma expectativa e uma tensão tanto para os que saem de seus territórios como para os Estados que os recebem. Para o Professor Lafer (O Estado de São Paulo, 19/jun./2005), citado por Barbosa (2007, p. 14), “os refugiados integram a triste categoria dos deslocados no mundo. São os indesejáveis que não têm para onde ir, posto que se viram implícita ou explicitamente expelidos da trindade Estado-povo-território”
A consagração dos direitos humanos ainda não fazia parte do sistema democrático até a segunda metade do século XX, não existiam Tratados e Convenções entre as nações sobre a proteção do ser humano sob essa condição. A Organização das Nações Unidas surgiu somente após a II Guerra Mundial, em 1945, como substituta da denominada Liga das Nações[3], de 1920, portanto, as agências especializadas (ACNUR) também não existiam.
A partir do momento em que as normas de direito internacional começaram a ser produzidas, difundidas e assinadas pelas nações que faziam parte da ONU, foi possível enxergar o apelo mundial pela regulamentação da condição de refugiado, não só com um viés humanitário, mas também como instrumento de proteção interno.
A Declaração Internacional dos Direitos Humanos de 1948 [4]foi o marco que selou o compromisso entre as nações de buscar e manter a paz mundial, além de definir expressões como “liberdades fundamentais” e “direitos humanos”. As conversações iniciais datam de 1945, na Conferência de Yalta (Rússia), onde os países emergentes do pós-guerra como potências mundiais, liderados pela URSS e EUA, definiram e organizaram a criação de um organismo multilateral para a promoção da pacificação dos conflitos internacionais. O documento não tem valor normativo, tão somente o de firmar a cooperação entre as nações, visando o início da proteção dos direitos humanos, e serviu de base para a elaboração dos dois principais tratados de direito internacional sobre direitos humanos, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, e o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados[5], uma das agências da ONU[6], é especializada em prestar assistência integral às vítimas de perseguições e violações de direitos humanos. Desde a sua criação, em 1950, já atendeu mais de 50 milhões de pessoas que buscavam recomeçar suas vidas em outros países. Cerca de 45 milhões estão sob seu mandato atualmente, e segundo o ACNUR-BRASIL, entre 2010 e outubro de 2014 o Brasil possuía 7.289 refugiados reconhecidos, advindos principalmente da Síria, República Democrática do Congo, Colômbia e Angola. Esse número passou para mais de 9 mil em 2015. Tornou-se pauta emergencial de países como os Estados Unidos, Brasil, Austrália, Nova Zelândia, Espanha, Alemanha, Itália, Grécia, Holanda, Reino Unido e França.
A crise atual dos refugiados tornou-se um dos temas recorrentes no cenário internacional à medida em que os conflitos armados tomaram proporções exponenciais, preponderantemente na região do Oriente Médio. A crescente tensão política a partir do final de 2010 culminou na desordem social que assola aquela região. Os protestos elaborados contra os regimes totalitários começaram na Tunísia (Revolução de Jasmim[7]), passando pelo Egito (Revolução de Lótus[8]), Líbia (Muammar al-Gaddafi), Barein, Iêmen[9], Síria (Bashar al-Assad)[10], Marrocos, Omã e Argélia, e foram os principais responsáveis pelo fortalecimento de sociedades civis rebeldes, bem como o crescimento de organizações terroristas como o Estado Islâmico, Boko Haram e Al-Qaeda. Esse período ficou conhecido como Primavera Árabe[11].
A comunidade internacional vem sendo testemunha da instabilidade dos governos árabes frente aos diversos interesses e necessidades sociais antes negligenciados. Por um lado, temos um grupo de pessoas que desejam tomar o poder e ditar as regras sem o respaldo da estrutura democrática, baseando-se nas suas convicções religiosas, e por outro temos uma parcela que deseja reestruturar a sociedade, mas não possuem a organização necessária para sedimentar um novo governo. A estrutura bélica, com viés guerrilheiro, substituiu o bom senso e a civilidade, sem contar a influência categórica das ideologias religiosas quanto aos objetivos e tomadas de decisões.
A problemática central em relação aos refugiados consiste no conflito entre as normas de direito internacional e as normas internas, no momento em que o Brasil não oferece, de forma unificada e ampla, a proteção aos direitos humanos desses indivíduos em situação de vulnerabilidade. Outro fato a ser discutido é a criminalização dos refugiados, a partir do seu meio de ingresso no nosso país. Sabe-se que grande maioria deles chegam a outros países de forma clandestina, seja por terra ou pelo mar. A ausência de autorização estatal e de documentos legais capazes de legitimar a migração são os principais impedimentos para que esse fluxo migratório seja conduzido de maneira legal. Os Estados precisam manter o fluxo controlado, ao passo em que a demanda só cresce, e por serem situações diametralmente opostas, não é anormal constatar que grande parcela dos imigrantes pelo mundo, não só os refugiados, se locomovem sem qualquer tipo de fiscalização e conhecimento por parte das autoridades fronteiriças.
A Lei 9.474/97 prevê alguns desses aspectos, mas o cerne do conflito reside na sua aplicação. Criminalizar pessoas que saem de seu país de origem forçadamente é, no mínimo, insensível. Não há como exigir, numa situação de extrema necessidade, que eles busquem refúgio apenas pelos meios legais, se até mesmo chegar aqui requer a coragem de pôr suas vidas em risco.
Apesar do Brasil ter editado a Lei nº 9.474/97, definindo mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados, não existem políticas públicas estaduais que garantam a efetivação das normas de direito internacional com as quais o país se comprometeu. Após décadas de relapso legislativo, os Estados do Paraná, Rio de Janeiro e São Paulo mostraram-se pioneiros na criação de políticas públicas estaduais de atendimento aos refugiados. Diante de tal proposta, seria interessante que os demais Estados copiassem a iniciativa e implantassem a nível regional os mesmos projetos e leis.
A política neutra do Brasil é amplamente respeitada, mas ainda falta apoio legislativo para a concretização dessa unificação, assim como uma melhor adaptação das normas brasileiras à condição de refúgio.
2 NORMATIVA INTERNACIONAL SOBRE OS REFUGIADOS NO CONTEXTO DOS DIREITOS HUMANOS
Apresenta a organização cronológica dos debates acerca dos direitos humanos a partir dos grandes conflitos internacionais. Aponta o surgimento dos primeiros tratados de direitos humanos e a elaboração de órgãos específicos para proteção dos denominados refugiados. Faz-se mister entender os desdobramentos históricos que culminaram na criação dos principais órgãos internacionais e como os Estados atuaram conjuntamente para elaborar seus diversos tratados.
2.1 DECLARAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS
Foi elaborada em 1941 pelos países ditos aliados[12]. Foi o primeiro de vários tratados assinados no entre guerra, contendo a participação de 26 países: Estados Unidos, Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, Rússia, China, Austrália, Bélgica, Canadá, Costa Rica, Cuba, Tchecoslováquia, República Dominicana, Índia, Luxemburgo, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, Noruega, Panamá, Polônia, União Sul Africana, Iugoslávia, Holanda, Nova Zelândia e Nicarágua. Posteriormente foi aderido pelo Brasil, México, Filipinas, Etiópia, Iraque, Bolívia, Irã, Libéria, França, Equador, Peru, Chile, Paraguai, Venezuela, Uruguai, Turquia, Arábia Saudita, Líbano e Síria.
O compromisso maior entre tais nações, a princípio, baseando-se pelo cenário da época, foi o de combater energicamente as potências que conformavam o Eixo (Alemanha, Itália e Japão)[13]. Foi notadamente uma aliança política e financeira, com pano de fundo bélico e territorial.
O preâmbulo da Carta é autoexplicativo acerca dos principais objetivos dessa colaboração internacional:
“Os governantes signatários, tendo aderido a um programa comum de propósitos e princípios, incorporados na declaração conjunta do Presidente dos Estados Unidos da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, datada de 14 de agosto de 1941, e conhecida por Carta do Atlântico, e Convictos de que, para defender a vida, a liberdade, a independência e a liberdade de culto, assim como para preservar a justiça e os direitos humanos nos seus respectivos países e em outros, é essencial alcançar vitória absoluta sobre seus inimigos; e convictos de que se acham atualmente empenhados numa luta comum contra forças selvagens e brutais que procuram subjugar o mundo,
Declaram:
1. Que cada governo se compromete a empregar todos os seus recursos, tanto militares como econômicos contra os membros do Tríplice Pacto e seus aderentes, com os quais esteja em guerra;
2. Que cada governo se compromete a cooperar com os governos signatários da presente, e a não firmar, em separado, armistício ou tratado de paz com o inimigo.
Poderão aderir à presente declaração outras nações que já estejam prestando ou que possam vir a prestar colaboração ou assistência material na luta para derrotar o hitlerismo”. (Declaração das Nações Unidas. Washington.1941, p.1)
Apesar da união de forças ter-se dado, a priori, para cumprir objetivos claramente políticos, econômicos e territoriais, percebe-se que existiu uma intenção de colaboração mútua também no que diz respeito ao caráter humanitário. O deslocamento forçado fez parte das consequências advindas das duas grandes guerras e mereceu destaque nos tratados vindouros, sendo a Declaração das Nações Unidas o principal paradigma para legitimar o tratamento prioritário dos direitos humanos e do refúgio nos tratados posteriores.
2.2. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU):
Antecedendo a criação da ONU, a Conferência das Nações Unidas sobre Organização Internacional ocorreu entre 25 de abril a 26 de junho de 1945 em São Francisco, nos Estados Unidos, e teve como objetivo discutir a conjuntura internacional do pós-guerra. Estiveram presentes delegados de 51 nações aliadas, e o resultado dessa conferência foi a confecção da Carta das Nações Unidas. A conferência foi presidida pelo diplomata norte-americano Alger Hiss.
A partir dessa Conferência a Carta de São Francisco foi elaborada e ratificada pela China, Estados Unidos, França, Reino Unido, a antiga União Soviética e demais signatários, que culminou na criação das Nações Unidas em 24 de outubro de 1945. A denominação Nações Unidas foi concebida pelo então presidente Roosevelt pela primeira vez em 1942, durante a primeira guerra mundial[14].
É constituída por governos da maioria dos países do mundo[15], cujo maior objetivo é criar e pôr em prática mecanismos que possibilitem a segurança internacional, desenvolvimento econômico, definição de leis internacionais, respeito aos direitos humanos e progresso social[16].
A sede principal da ONU está localizada em Nova Iorque[17] (EUA), mas também possui sede em Genebra, Viena, Nairóbi, Addis Abeba, Bangcoc, Beirute e Santiago, além dos escritórios oficiais ao redor do mundo. Diversas são as reuniões e conferências realizadas para discutir projetos de cunho administrativo, político e diplomáticos internacionais, demonstrando que o âmbito de atuação dessa organização é abrangente e de suma importância na construção do entendimento entre as nações.
Atualmente é composta por 192 países membros, e dentro de sua estrutura existem outros órgãos responsáveis por setores específicos. O Sistema da ONU está formado pelos seis principais órgãos (Assembleia Geral, Conselho de Segurança, Conselho Econômico e Social, Secretariado, Corte Internacional de Justiça e Conselho de Tutela), bem como por quinze Agências especializadas (atuam em áreas como saúde, finanças, agricultura, aviação civil e telecomunicações), Fundos, Programas, Comissões, Departamentos e Escritórios.
A organização é sustentada pelos próprios países membros[18], de forma sistemática, onde são ponderados critérios específicos, como: produto interno bruto, ranking do país na economia mundial e sua capacidade de pagar. Em média a receita gira em torno de 5 bilhões de dólares. Mas todos os países membros possuem poder de voto perante a Assembleia Geral, independentemente do montante aportado. Como afirma o próprio preâmbulo da Carta das Nações Unidas[19], o grande objetivo da ONU é manter a comunidade internacional coesa num mesmo foco: preservar a paz mundial e os direitos humanos.
São propósitos das Nações Unidas[20]: a) Manter a paz e a segurança internacionais; b) Desenvolver relações amistosas entre as nações; c) Realizar a cooperação internacional para resolver os problemas mundiais de caráter econômico, social, cultural e humanitário, promovendo o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais; d) Ser um centro destinado a harmonizar a ação dos povos para a consecução desses objetivos comuns.
2.3. ESTATUTO DOS REFUGIADOS:
Foi convocada em Genebra, pela Assembleia Geral, uma Convenção de Plenipotenciários das Nações Unidas[21] com o fito de regulamentar o status legal dos refugiados, resultando na Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados que entrou em vigor em 22 de abril de 1954. O objetivo primordial foi estabelecer critérios para o refúgio, não discriminando nenhum imigrante em detrimento de raça, sexo, religião ou país de origem. Estabeleceu-se um padrão para o tratamento desses imigrantes, ficando certo que nenhum país signatário pode aplicar o princípio do “non-refoulement” (não-devolução) ou expulsão de qualquer refugiado, contra a sua vontade, para um território em que sofrerá perseguição.
O fluxo migratório entrou em ascensão a partir da Segunda Guerra Mundial, o que tornou necessária a manutenção da Convenção através da Resolução 2.198 de 1966, entrando em vigor a partir de 4 de outubro de 1967. Esse Protocolo possibilitou a efetivação dos direitos humanos para refugiados sem limites de datas ou de espaços geográficos. Ambos conformam as principais normas de direito internacional sobre refúgio a medida em que os Estado passaram a incorporá-las à legislação interna.
Em 2007 o número de signatários chegou a 144, e os que assinaram as duas normas totalizam 141. De acordo com o Estatuo o Alto Comissariado das Nações Unidas é competente para tratar de assunto referentes aos refugiados, promover sua proteção, supervisão, aplicação e aprimoramento.
2.4. CARTAGENA +30:
O Brasil foi palco de uma das mais importantes reuniões internacionais sobre refugiados, a Cartagena +30, desdobramento da Declaração de Cartagena sobre Refugiados ocorrida em novembro de 1984 na cidade de Cartagena das índias, Colômbia. O evento teve como objetivo principal a discussão dos principais desafios contemporâneos para a proteção de refugiados, ampliando a conversação entre os governos e a sociedade civil dos países da América Latina e do Caribe, e ao mesmo tempo celebrar os 30 anos da Declaração. A reunião ocorreu na capital federal, em dezembro de 2014, a pedido do ACNUR. Disse o Alto Comissário das Nações Unidas[22] no evento:
“Um número significante dos movimentos que testemunhamos hoje pode ser considerado como situações novas que abriram novas lacunas de proteção. Alguns países da América Latina têm reconhecido desafios específicos relacionados às mudanças climáticas e têm desempenhado um papel importante na chamada Iniciativa Nansen. Há também novas situações afetando diferentes partes do mundo.” (Guterres, Antônio. Ex-Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados. 2005. Cartagena +30)
Apesar de ser um documento não vinculante, os governos de Belize, Colômbia, Brasil, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá e Venezuela, mantiveram o acordo de cooperação mútua para efetivar os compromissos citados na Declaração, focando na manutenção da proteção e nos desafios humanitários enfrentados por refugiados na América Central, além de ter sido adotada pelas legislações de mais quatorze países. Salienta-se a visibilidade positiva que a Declaração tem perante órgãos como a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a ONU. Participaram da Cartagena +30 mais de 30 países, 150 organizações da sociedade civil e organismos internacionais de grande visibilidade[23].
Os principais pontos abordados na Declaração especificam os princípios que os Estados devem seguir para o tratamento humano e as soluções duradouras para as pessoas em necessidade de proteção internacional, ampliando a definição de refugiado contida na Convenção de 1951.
3 EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS DOS REFUGIADOS: ESTRUTURA ORGÂNICA INTERNACIONAL ASSOCIADA À ESTRUTURA NORMATIVA E ORGÂNICA NACIONAL
A confecção das normas referentes aos direitos dos refugiados iniciou-se após a Segunda Guerra Mundial, a partir da criação dos organismos internacionais de proteção aos direitos humanos, sendo a ONU seu maior representante. Os principais tratados internacionais de direitos humanos conformam a base legal para a edição da proteção aos refugiados, apátridas e asilados, exercendo papel fundamental na construção dos Estados Democráticos. Através de órgãos internos específicos e da parceria com ONGs e demais instituições filantrópicas (Cáritas, ADUS), a rede de proteção atual é sólida e atua em todos os países que necessitam auxílio humanitário.
3.1. ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS (ACNUR) e ACNUR-BRASIL:
O ACNUR é uma das mais importantes agências especializadas pertencentes à ONU. Sua origem é resultado do desdobramento e da positivação de direitos internacionais voltados para os refugiados. Teve como marco a Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados, bem como o Protocolo de 1967 relativo ao Estatuto dos Refugiados, dando início às discussões contínuas sobre a situação de refúgio pelo mundo, efetivando, de fato, no âmbito internacional, políticas públicas de proteção, possibilitando aos países membros da ONU um entendimento mais firme acerca das medidas que cada um deve tomar para colaborar com a iniciativa.
Para o autor canadense, especialista sobre o tema, J.C. Hathaway[24], os refugiados nem sempre tiveram a mesma denominação, da década de 20 à atualidade a concepção de refugiado passou por três perspectivas: a fase jurídica, onde eram tratados como uma coletividade de etnia específica, deixando de lado o caráter individual; a fase da perspectiva social, em que se entendia o refugiado como produtos de ocorrências sociais e políticas; e a fase da perspectiva individual, que vigora até hoje, onde se tem a ideia de que o indivíduo, por si só, pode ser um refugiado dependendo das condições da qual decorre, portanto, se analisa caso a caso.
A universalização do instituto do refúgio passou a ser difundida com mais ênfase a partir da criação do ACNUR, na década de 50. A Assembleia Geral da ONU foi a responsável pela sua criação, com o objetivo específico de promover a proteção e o acolhimento internacional às vítimas de perseguição, da violência e da intolerância. Já ajudou mais de 50 milhões de pessoas e hoje é uma das principais agências humanitárias do mundo, tendo caráter apolítico e universal.
A sede está localizada em Genebra[25], na Suíça, e conta com mais de 9 mil funcionários, divididos entre o trabalho na sede e o apoio direto nos países que recebem os imigrantes. Atua em 126 países, inclusive nos que estão passando por conflitos armados de cunho internacional e interno, zonas afetadas por desastres naturais e em operações de repatriação. Seu orçamento anual é de 3 bilhões de dólares, e se mantém através de doações por parte dos países voluntários, do setor privado e individuais por todo o mundo.
O novo Alto Comissário responsável pelo ACNUR é o italiano Filippo Grandi[26], especialista em relações internacionais, faz parte da organização há 27 anos, e possui vasta experiência de atuação na África, Oriente Médio e Ásia. Foi eleito no dia 4 de janeiro de 2016 e cumprirá um mandato de cinco anos.
O Brasil foi o primeiro país da América Latina a promover a proteção efetiva aos refugiados a partir da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, em 1960. Também foi um dos primeiros países integrantes do Comitê Executivo do ACNUR. O trabalho do órgão no país consiste em promover a acolhida, obter documentos, trabalho, estudo e plena cidadania aos refugiados que procuram abrigo em território brasileiro. Atualmente o número de refugiados beira os 10 mil, a maioria proveniente da Síria.
A nossa sede está localizada em Brasília, mas recentemente foi inaugurada em São Paulo uma nova unidade. Atua em parceria com o CONARE e demais órgãos brasileiros que lidam direta ou indiretamente com a problemática do refúgio, bem como as diversas organizações não-governamentais, sendo a Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro e de São Paulo as mais expressivas, além do Instituto Migração e Direitos Humanos (IMDH), e do Instituto de Reintegração do Refugiado (ADUS), garantindo assistência humanitária e integração.
3.2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO REFÚGIO NO BRASIL:
A participação do Brasil no que tange aos refugiados tem destaque perante a comunidade internacional, sendo reconhecido pela ONU e pelo ACNUR como uma nação atuante e importantíssima para a consolidação dos direitos humanos.
A Lei nº 9.747, de 22 de julho de 1997 é a legislação específica federal que trata do refúgio no território brasileiro, resultado direto dos tratados internacionais de direitos humanos para refugiados dos quais é signatário. Em 2007 o Brasil agilizou seu processo de adesão à Convenção da ONU de 1961, objetivando reduzir o número de apátridas no mundo, com especial atenção aos casos de refúgio.
A medida em que os conflitos internacionais tomam proporções cada vez maiores, o Brasil observa com preocupação o número alarmante de pedidos de refúgio, que, atualmente, tem participação ativa da Defensoria Pública da União. Os pedidos concentram-se, majoritariamente, nos Estados de São Paulo, Acre, Rio Grande do Sul e Paraná.[27]
Contudo, há uma exceção na qualificação em relação aos angolanos e liberianos, desde que o ACNUR expediu uma orientação global que cessava a condição de refugiados àqueles nacionais. O Ministério da Justiça elaborou a Portaria nº 2.650, de 25 de outubro de 2012, ordenando aos órgãos competentes que concedessem residência permanente aos cidadãos desses dois países:
“O MINISTRO DE ESTADO DA JUSTIÇA, no uso das atribuições que lhe conferem o art. 87, parágrafo único, inciso II, da Constituição, tendo em vista o disposto na Resolução Normativa nº 6, de 21 de agosto de 1997, do Conselho Nacional de Imigração, e considerando que o Comitê Nacional para os Refugiados, decidiu em 28 de setembro de 2012 pela cessação da condição de refugiados de nacionais angolanos e liberianos, conforme orientado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, resolve:
Art. 1o Esta Portaria dispõe sobre o registro permanente de nacionais angolanos e liberianos no Brasil, beneficiários da condição de refugiados.
Art. 2o Os nacionais angolanos e liberianos beneficiários da condição de refugiado, e que não ostentem condenações criminais, poderão, dentro do prazo de noventa dias, protocolizar junto ao órgão do Departamento de Polícia Federal do local de sua residência, pedido de registro permanente no País, mediante cumprimento de um dos seguintes requisitos:
I – residir no Brasil há no mínimo quatro anos na condição de refugiado;
II – ser profissional qualificado e contratado por instituição instalada no País, ouvido o Ministério do Trabalho;
III – ser profissional de capacitação reconhecida por órgão da área pertinente; ou
IV – estar estabelecido com negócio resultante de investimento de capital próprio, que satisfaça os objetivos da Resolução Normativa nº. 84, de 10 de fevereiro de
2009, do Conselho Nacional de Imigração, que dispõe sobre a concessão de visto para investidor estrangeiro.” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, Portaria nº 2.650. 2012, p.1)
Situação semelhante envolve os casos dos refugiados sírios, através da Resolução Normativa nº 17, de 20 de setembro de 2013:
“O Comitê Nacional Para os Refugiados – CONARE, no uso de suas atribuições previstas no art. 12, inciso V, da Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997, tendo em vista a deliberação em sessão plenária realizada em 20 de setembro de 2013;
Considerando os laços históricos que unem a República Árabe Síria à República
Federativa do Brasil, onde reside grande população de ascendência síria;
Considerando a crise humanitária de grandes proporções resultante do conflito em andamento na República Árabe Síria;
Considerando o alto número de refugiados gerado pelo conflito desde o seu início;
Considerando a crescente busca por refúgio em território brasileiro de parte de indivíduos afetados por aquele conflito;
Considerando as dificuldades que têm sido registradas por parte desses indivíduos em conseguirem se deslocar ao território brasileiro para nele solicitar refúgio, inclusive por conta da impossibilidade de cumprir os requisitos regularmente exigidos para a concessão de visto;
Considerando a excepcionalidade das circunstâncias presentes e a necessidade humanitária de facilitar o deslocamento desses indivíduos ao território brasileiro, de forma a lhes proporcionar o acesso ao refúgio, Resolve:
Art. 1º Poderá ser concedido, por razões humanitárias, o visto apropriado, em conformidade com a Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, e do Decreto 86.715, de 10 de dezembro de 1981, a indivíduos afetados pelo conflito armado na República Árabe Síria que manifestem vontade de buscar refúgio no Brasil.
Parágrafo único. Consideram-se razões humanitárias, para efeito desta Resolução Normativa, aquelas resultantes do agravamento das condições de vida da população em território sírio, ou nas regiões de fronteira com este, como decorrência do conflito armado na República Árabe Síria.
Art. 2º O visto disciplinado por esta Resolução Normativa tem caráter especial e será concedido pelo Ministério das Relações Exteriores.” (CONARE, Resolução nº 17. 2013, p.1)
Tal medida foi pensada justamente com vistas à regulamentação sem tanta burocracia para os cidadãos sírios que buscam acolhimento. É sabido que o conflito armado nesse país ainda está em pleno vigor, completando 5 anos de incessantes massacres à população. A cidade de Aleppo encontra-se completamente devastada, restando apenas escombros, poucos sobreviventes e os mais bravos membros da ajuda humanitária[28].
Há urgência em receber e regularizar a situação dos oriundos desse país, onde já se contabiliza quase 300 mil mortos, enfrentando diariamente o bombardeio incessante entre o Exército Livre da Síria, Exército Árabe Sírio (do presidente Bashar al-Assad), Exército Norte Americano, Exército Russo, e a infiltração do Estado Islâmico[29].
3.3. CONSELHO NACIONAL PARA OS REFUGIADOS (CONARE):
Conselho Nacional para os Refugiados é o órgão nacional que trabalha diretamente com o ACNUR na tomada de decisões em matéria de refúgio. Foi criado pela Lei nº 9.474/97 (Estatuto do Refugiado) com competência exclusiva para reconhecer, perante o Brasil, a condição de refugiado. O Brasil faz parte do Comitê Executivo do ACNUR desde 1958. É vinculado ao Ministério da Justiça e integrado pelo Itamaraty, pelos Ministérios da Saúde, Educação e Trabalho e Emprego, pela Polícia Federal, e por organizações não governamentais de assistência.
Segundo dados do próprio site do CONARE, atualmente o Brasil possui quase 10 mil refugiados, assentados principalmente nas regiões norte, sul e sudeste. O número de pedidos subiu em torno de 2.868% entre 2010 e 2015[30]. Existem mais de 2.000 Sírios no país, e as autoridades brasileiras foram autorizadas a emitir visto especial[31] para esses nacionais, a partir de 2013, tendo em vista a crise humanitária que já deslocou mais de 5 milhões de Sírios. Outra grande parcela é de angolanos, colombianos, congoleses e palestinos, mas há uma variedade étnica muito grande, chegando a 79 nacionalidades.
4 CONFLITO APARENTE DE NORMAS ENTRE OS TRATADOS INTERNACIONAIS E A LEI BRASILEIRA
Há um nítido choque entre os tratados de direito internacional em face do direito penal brasileiro no que tange à criminalização do refúgio. A comunidade internacional tem pleno conhecimento acerca do modus operandi das pessoas que se encontram em situação de deslocamento forçado, contudo, a norma internacional se dispôs a entender e averiguar cada caso concreto, pois não é factível exigir a entrada regular de imigrantes em estado de vulnerabilidade.
O capítulo explana os princípios elementares que envolvem o refúgio, a aplicação da excludente de culpabilidade como chave para dirimir o conflito, e aponta as mais notórias políticas públicas implementadas a nível estadual para a promoção e proteção dos direitos dos refugiados.
4.1 PRINCÍPIOS NORTEADORES DO REFÚGIO:
Os princípios são ditames genéricos que fundamentam as normas jurídicas, são as bases do direito que não estão contidas em nenhum ordenamento específico, encontram-se espalhadas por diversos diplomas legais, principalmente na Constituição Federal.
Reale firma que:
“Princípios são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, a aplicação e integração ou mesmo para a elaboração de novas normas. São verdades fundantes de um sistema de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas também por motivos de ordem prática de caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos pelas necessidades da pesquisa e da práxis.”[32] (REALE, Miguel. 2003, p. 37)
Toda criação normativa deve, primeiramente, exigir uma análise da adequação entre os princípios e o conteúdo a ser criado. Eles é que impõem diretrizes e limitações, visando uma correta compreensão e interpretação da norma.
Assim como qualquer disciplina jurídica, o direito internacional se baseia nos princípios para regulamentar toda e qualquer norma de direito internacional que verse sobre os refugiados.
4.1.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana:
As normas brasileiras, principalmente a Constituição Federal, têm como princípio norteador a dignidade da pessoa humana, sendo alicerce principal para a garantia dos direitos sociais, econômicos, políticos e culturais do povo brasileiro. No ordenamento brasileiro este princípio encontra-se consagrado no artigo 1º, III da Constituição Federal.[33]
Conforme preceitua José Afonso da Silva:
“Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. ‘Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais (observam Gomes Canotilho e Vital Moreira), o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer ideia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir teoria do núcleo da personalidade individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência humana’. Daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos existência digna (…), a ordem social visará a realização da justiça social (…), a educação, o desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania (…) etc., não como meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo normativo eficaz da dignidade da pessoa humana.”[34] (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 1998, p.109)
O Estado Democrático de Direito exige que, para a sua concretização fática, exista uma base mínima de respeito aos tratados internacionais de direitos humanos, bem como a implementação dos direitos e deveres fundamentais a todo ser humano.
A ideia é que todo Estado que deseja fazer parte do cenário internacional de proteção aos refugiados tenha em seu escopo esse princípio como norteador de seu sistema normativo. Não faria o menor sentido ser signatário dos principais tratados sobre refúgio e não ter no seu sistema interno a efetiva proteção aos direitos humanos como base.
4.1.2 Princípio da Solidariedade:
Este é um dos princípios que passaram a ter relevância no âmbito internacional somente após a Segunda Guerra Mundial, apesar de preexistente. Inclusive, é o princípio basilar do preâmbulo da Convenção de 1951, constante no 4º parágrafo:
“Considerando que da concessão do direito de asilo podem resultar encargos indevidamente pesados para certos países e que a solução satisfatória dos problemas cujo alcance e natureza internacionais a Organização da Nações Unidas reconheceu, não pode, portanto, ser obtida sem cooperação internacional”. (ACNUR. Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados. 1951, p.1)
Fábio Konder Comparato diz que:
“A solidariedade prende-se à ideia de responsabilidade de todos pelas carências ou necessidades de qualquer indivíduo ou grupo social. É a transposição, no plano da sociedade política, da obligatio in solidum do direito privado romano. O fundamento ético deste princípio encontra-se na ideia de justiça distributiva, entendida como a necessária compensação de bens e vantagens entre as classes sociais, com a socialização dos riscos normais da existência humana.”[35] (COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2005, p.62)
Aplica-se aos refugiados como forma de garantir que os Estados se responsabilizem igualitariamente dos custos e das estratégias globais para a efetivação da justiça social. Assim como o princípio da cooperação internacional.
4.1.3 Princípio da Cooperação Internacional:
Está presente no preâmbulo da Convenção dos Refugiados de 1951, nos parágrafos 4º e 6º.
“Considerando que da concessão do direito de asilo podem resultar encargos indevidamente pesados para certos países e que a solução satisfatória dos problemas cujo alcance e natureza internacionais a Organização da Nações Unidas reconheceu, não pode, portanto, ser obtida sem cooperação internacional;
Notando que o Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados tem a incumbência de zelar pela aplicação das convenções internacionais que assegurem a proteção dos refugiados, e reconhecendo que a coordenação efetiva das medidas tomadas para resolver este problema dependerá da cooperação dos Estados com o Alto Comissário.” (ACNUR. Convenção Relativa aos Refugiados. 1951, p.1)
Este princípio tem como base a solidariedade dos Estados para a discussão e resolução de problemáticas envolvendo a comunidade internacional ou de seu interesse. É promovida principalmente por organizações internacionais e seus respectivos órgãos, sendo o principal deles o ACNUR. A atuação conjunta se faz necessária ao passo em que os Estados firmam os tratados de cooperação para viabilizarem a divisão e medida das suas respectivas responsabilidades, até onde atuarão e que tipo de ajuda fornecerão.
4.1.4 Princípio da Tolerância:
É um princípio constitucional implícito, onde se extrai tal interpretação através do preâmbulo, além do artigo 3º, inciso IV[36]que expõe os objetivos fundamentais da República.
A Declaração de Princípios sobre a Tolerância confeccionada pela UNESCO[37] em novembro de 1995, dispõe em seu artigo 1º que:
“Artigo 1º – Significado da tolerância
1.1 A tolerância é o respeito, a aceitação e a apreço da riqueza e da diversidade das culturas de nosso mundo, de nossos modos de expressão e de nossas maneiras de exprimir nossa qualidade de seres humanos. É fomentada pelo conhecimento, a abertura de espírito, a comunicação e a liberdade de pensamento, de consciência e de crença. A tolerância é a harmonia na diferença. Não só é um dever de ordem ética; é igualmente uma necessidade política e jurídica. A tolerância é uma virtude que torna a paz possível e contribui para substituir uma cultura de guerra por uma cultura de paz.
1.2 A tolerância não é concessão, condescendência, indulgência. A tolerância é, antes de tudo, uma atitude ativa fundada no reconhecimento dos direitos universais da pessoa humana e das liberdades fundamentais do outro. Em nenhum caso a tolerância poderia ser invocada para justificar lesões a esses valores fundamentais. A tolerância deve ser praticada pelos indivíduos, pelos grupos e pelo Estado.
1.3 A tolerância é o sustentáculo dos direitos humanos, do pluralismo (inclusive o pluralismo cultural), da democracia e do Estado de Direito. Implica a rejeição do dogmatismo e do absolutismo e fortalece as normas enunciadas nos instrumentos internacionais relativos aos direitos humanos.
1.4 Em consonância ao respeito dos direitos humanos, praticar a tolerância não significa tolerar a injustiça social, nem renunciar às próprias convicções, nem fazer concessões a respeito. A prática da tolerância significa que toda pessoa tem a livre escolha de suas convicções e aceita que o outro desfrute da mesma liberdade. Significa aceitar o fato de que os seres humanos, que se caracterizam naturalmente pela diversidade de seu aspecto físico, de sua situação, de seu modo de expressar-se, de seus comportamentos e de seus valores, têm o direito de viver em paz e de ser tais como são. Significa também que ninguém deve impor suas opiniões a outrem.“ (UNESCO. Declaração de Princípios sobre a Tolerância. 1995, p.1)
Não se trata necessariamente de um direito implícito concedido em detrimento de norma jurídica, mas de um direito inerente à condição do ser humano, através do reconhecimento de suas liberdades e direitos fundamentais.
É dever de cada um e do Estado obedecer tal princípio, proporcionando ao indivíduo a possibilidade de agir conforme suas convicções, aceitando as suas diferenças e buscando harmonizarem-se apesar delas.
4.2 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DAS NORMAS DE DIREITO INTERNACIONAL E A INCORPORAÇÃO DE TRATADOS INTERNACIONAIS:
A constitucionalização deu-se a partir da criação da Liga das Nações, no século XX. Entretanto, seu alcance era direcionado a alguns grupos específicos que tinham a atenção da comunidade internacional à época. Vários Alto Comissariados foram criados a partir de 1921, com intuito específico de proteger e prestar assistência, modificando-se a nomenclatura e competência ao longo dos anos. Foi somente a partir da Convenção de 1951 que o ACNUR estabeleceu um caráter permanente, genérico e universal de proteção para refugiados.
O Brasil aderiu à Convenção em janeiro de 1961 através do Decreto nº 50.215, bem como o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967, que é autônomo, mas vinculado à Convenção, sendo assim, não há limitação quanto à adesão por Estados-partes alheios à Convenção.
A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, adjetivada de cidadã, houve uma mudança substancial na política externa e interna do Brasil. Esse maior interesse nas questões envolvendo os direitos humanos deu-se principalmente após décadas de ditadura militar, durante o governo Sarney, com o retorno dos exilados.
A constitucionalização do direito internacional está explícita na Constituição Federal.[38]Extraímos que a intenção do legislador foi a de proteger e resguardar os direitos fundamentais expressos e os consagrados no direito internacional. Essa é a premissa utilizada para encaixar os Estados num ordenamento jurídico internacional com normas gerais que funcionem para todos de maneira igualitária, refletindo assim a pretensão de evoluir a universalização do Direito Internacional.
Tal constitucionalização está baseada no próprio fundamento de respeito aos direitos humanos presente na Constituição, tendo em vista que a prevalência desses direitos pressupõe a limitação da soberania nacional em face das normas externas. Portanto, o princípio da soberania nacional e da não-intervenção não são absolutos, a partir do momento em que nos tornamos signatários dos tratados internacionais que versam sobre direitos humanos, caracterizando assim a relativização em prol de sua proteção.
Flávia Piovesan[39] explica que:
“Enfatize-se que, enquanto os demais tratados internacionais têm força hierárquica infraconstitucional, nos termos do artigo 102, III, "b" do texto (que admite o cabimento de recurso extraordinário de decisão que declarar a inconstitucionalidade de tratado), os direitos enunciados em tratados internacionais de proteção dos direitos humanos detêm natureza de norma constitucional. Este tratamento jurídico diferenciado se justifica na medida em que os tratados internacionais de direitos humanos apresentam um caráter especial, distinguindo-se dos tratados internacionais comuns. Enquanto estes buscam o equilíbrio e reciprocidade de relações entre Estados-partes, aqueles transcendem os meros compromissos recíprocos entre os Estados pactuantes, tendo em vista que objetivam a salvaguarda dos direitos do ser humano e não das prerrogativas dos Estados. Este caráter especial vem a justificar o status constitucional atribuído aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos.
Conclui-se, portanto, que o Direito brasileiro faz opção por um sistema misto, que combina regimes jurídicos diferenciados: um regime aplicável aos tratados de direitos humanos e outro aplicável aos tratados tradicionais. Enquanto os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos — por força do artigo 5º, §§ 1º e 2º — apresentam natureza de norma constitucional e aplicação imediata, os demais tratados internacionais apresentam natureza infraconstitucional e se submetem à sistemática da incorporação legislativa (e não automática).” (PIOVESAN, Flávia. O Direito Internacional dos direitos humanos e a redefinição da cidadania no Brasil. 1996, p. única)
Os tratados que versam sobre direitos humanos têm votação diferenciada, sendo necessária a aprovação por 3/5 dos membros de cada uma das casas, em dois turnos de votação, de acordo com o artigo 5º, §3º da Constituição Federal.[40] O status do tratado passa a ser de norma constitucional nesse caso.[41]
A incorporação de tratados internacionais no Brasil se inicia com a assinatura do Chefe de Estado no tratado de interesse. Cabe ao Poder Executivo remeter o texto do pretenso tratado ao Congresso Nacional, solicitando de maneira fundamentada a aprovação do Legislativo. As comissões pertinentes analisam o projeto do decreto legislativo, remetendo-o ao Plenário da Câmara dos Deputados, onde aprovarão por maioria simples, se presentes a maioria absoluta dos membros. Aprovado pela Câmara, passa para apreciação do Senado, sendo observado o respectivo Regimento Interno, podendo ser votado pelo rito normal no Plenário ou pelo rito abreviado. Sendo aprovado, o Presidente do Senado promulga e publica o decreto legislativo.[42]
A última fase compete ao Presidente da República, que ratifica o texto, podendo fazer reservas. Terá então validade internacional, mas será necessária a edição de um decreto executivo ou presidencial para regulamentar o tratado perante o ordenamento interno.
4.3. Criminalização do refúgio: a imigração ilegal e sua repercussão perante o direito penal brasileiro.
O conflito aparente de normas no caso dos refugiados surge no momento em que os meios utilizados para entrar no país vão de encontro ao ordenamento penal brasileiro. Os métodos são os mais variados e muitas vezes importam na prática de ações ou omissões tipificadas no código penal. Logo, há uma dualidade sem sentido, tendo em vista que, ao mesmo tempo em que um refugiado encontra-se amparado pelos tratados de direito internacional dos quais o Brasil é signatário, ele é criminalizado por suas condutas contrárias ao ordenamento penal que possibilitaram sua entrada no país. São duas as teorias que explicam a relação entre as normas de direito internacional e de direito interno. Carl Heinrich Triepel e Hans Kelsen criaram essas teorias visando elucidar o conflito envolvendo o direito internacional e o direito pátrio.
A teoria dualista de Heinrich afirma que as normas de direito internacional e as de direito interno formam dois sistemas distintos e autônomos, onde o primeiro seria a regulamentação das relações jurídicas entre os Estados, enquanto que a segunda se refere à regulamentação jurídica entre o Estado e os indivíduos. De acordo com o dualismo, para que uma norma internacional tenha eficácia no âmbito interno de um Estado é necessário transformá-la em norma de direito interno através de um decreto.
A teoria monista de Kelsen caracteriza-se pela mescla entre o direito internacional e o direito interno, ao passo em que o Estado se compromete a aplicar as normas estabelecidas num tratado internacional sem a necessidade de encaixar tais normas no ordenamento interno. Existe obrigatoriedade quanto à execução do que foi acordado, portanto não se fala em divergência ou conflito de normas. Para a corrente monista internacionalista o direito interno se sujeita ao direito internacional pois dele deriva. Diferentemente, o monismo nacionalista defendido por Hegel enxerga a subsunção do direito interno ao direito internacional somente quando o Estado assim decidir, prevalecendo a soberania absoluta das normas interna, ficando a cargo da Constituição definir quais são as regras que envolvem a aplicação dos tratados internacionais.[43]
Um dos muitos casos que podemos citar ocorreu no ano de 2014, envolvendo cidadãos sírios que entraram no Brasil utilizando passaportes falsos. O processo nº 0004342-10.2014.4.05.8400 tramitou perante a 14ª vara da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte com pedido de revogação da prisão preventiva, inicialmente indeferido. Massoud Douka, Ahmad Abdul Rhman Douka, Ahmad Mohamad Douka, Azzam Omar e Salah Aldeen Abdul Rhman Douka, foram acusados na Ação Penal nº 0003785-23.2014.4.05.8400 pela prática dos crimes de falsidade ideológica (artigo 299, CP) e uso de documento falso (artigo 304, CP).
Outro caso recente data de 2013, nos moldes semelhantes aos de 2014, onde outro sírio foi acusado de entrar ilegalmente no Brasil, sendo preso e processado por falsidade ideológica. Diferentemente do resultado de 2014 que indeferiu o pedido de revogação da preventiva, o juiz da 6ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, nos autos da Ação Penal nº 0490199-77.2013.4.02.5101 (2013.51.01.490199-0), decidiu sobre o pedido de liberdade provisória:
“No entanto, no que concerne ao juízo de reprovação, necessário considerar-se que o acusado, estrangeiro, de minoria curda, como informalmente noticiado pelo Ilmo.Sr. Intérprete durante a audiência especial de citação (fls.46/49), tentava sair da República Síria, notoriamente em estado de guerra civil – fato, portanto, que prescinde de comprovação, em busca de melhores condições de vida, a seu juízo, no continente europeu, onde, nada obstante sua formação acadêmica, encontraria uma função subalterna que lhe permitisse a subsistência.
Anote-se, no ponto, ter a INTERPOL informado não constar de seus sistemas (fl.26) qualquer anotação em nome do acusado.
Trata-se, assim, de situação de evidente color humanitário, em que não se pode considerar pudesse o agente se comportar conforme o direito, em que a resposta sancionatória penal se afastaria, em muito, de sua função profilática, contribuindo para o agravamento da condição desesperada em que se encontra o estrangeiro, e em nada colaborando para sua ressocialização.
Outro não é o entendimento do Egrégio Tribunal Regional Federal da Segunda Região, que, em uma messe de Julgados, e pela voz de suas duas Turmas Especializadas em matéria criminal, vem reconhecendo, em casos tais, a presença da causa supralegal de exclusão da culpabilidade da inexigibilidade de conduta diversa, para absolver os que se veem, premidos pelas circunstâncias, a se valer de documentos falsos:
PENAL. PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. USO DE DOCUMENTO FALSO. ESTRANGEIRO. DIREITO DE RECORRER EM LIBERDADE. REQUISITOS DA PRISÃO CAUTELAR NÃO PREENCHIDOS. ORDEM CONCEDIDA. Tratando-se de prisão de Ré estrangeira (cubana), economicamente hipossuficiente e presumidamente primária e sem antecedentes criminais, decorrente de sentença condenatória por crime praticado sem violência ou grave ameaça, na qual foi fixada pena inferior a 04 (quatro) anos de reclusão, ou seja, hipótese que ensejaria, em tese, a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos, não se verifica o preenchimento dos requisitos autorizadores para a manutenção da prisão cautelar da Paciente, a despeito de ter permanecido presa ao longo da instrução criminal. Ademais, se o parecer social, o termo de guarda provisória e a declaração do Conselho Tutelar evidenciam a urgente necessidade de que a Paciente permaneça com seus filhos, especialmente o menor portador de autismo. – A Primeira Turma Especializada, em sede de crimes de passaporte falso, por mais de uma vez já decidiu pela absolvição de acusados primários e sem antecedentes criminais que se arriscam às terríveis contingências de uma emigração ilegal, para lograrem encontrar melhores condições de subsistência. Trata-se, sem sombra de dúvida, de aplicação da tese de inexigibilidade de conduta diversa como causa supra-legal de exclusão da culpabilidade (TRF-2, ACR 2000.02.01.025487-7, Relator Des. Fed. ABEL GOMES, j.27/02/2008, DJU 07/04/2008, p. 234; ACR 2001.51.01.539862-8, Des. Fed. ABEL GOMES, j. 14/11/2007, DJU 25/01/2008, p.463; ACR 2003.51.01.519180-0, Relator Des. Fed. SERGIO FELTRIN CORREA, j. 10/04/2007, DJU, 18/05/2007, p. 343). – Concede-se a ordem de Habeas Corpus para que a Paciente aguarde o julgamento do seu Recurso em liberdade. (TRF2. 1ª T. HC200802010154213. Rel. Desª. Maria Helena Cisne. DJU 21.10.2008.p.76)
Do que se vê, impõe-se, portanto, a absolvição sumária do acusado.
Isto posto, JULGO IMPROCEDENTE O PEDIDO para rejeitar a pretensão punitiva estatal e ABSOLVER SUMARIAMENTE, nos termos do artigo 397, II, do CPP, o réu WELAT SHEIKHMOS das imputações que lhe são feitas na denúncia, com a emenda do libelo operada.
Expeça-se imediato alvará de soltura.
Oficie-se ao Exmo.Sr.Desembargador Federal Messod Azulay, Relator do habeas corpus nº 2013.02.005702-1, comunicando o teor da presente sentença. Com o trânsito em julgado, promova-se a devolução dos bens relacionados à fl.07, à exceção do passaporte falso búlgaro, que deverá ser encaminhado à representação diplomática da República da Bulgária, conforme solicitado à fl. 36.” (FARIAS, Francisco Eduardo Guimarães. Juiz Federal. 2014, p.5)
Não há coerência na aplicação da norma interna em algumas circunstâncias, pois sob o ponto de vista doutrinário haveria de se aplicar o princípio da inexigibilidade de conduta diversa, presente na teoria da culpabilidade. Segundo Nucci[44]:
“Culpabilidade é um juízo de reprovação social, incidente sobre o fato e seu autor, devendo o agente ser imputável, atuar com consciência potencial de ilicitude, bem como ter a possibilidade e a exigibilidade de agir de outro modo, seguindo as regras impostas pelo Direito.” (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal: parte geral. 2011, p.300)
Acerca da inexigibilidade de conduta diversa, ensina Fernando Capez: a exigibilidade de conduta diversa “consiste na expectativa social de um comportamento diferente daquele que foi adotado pelo agente. Somente haverá exigibilidade de conduta diversa quando a coletividade podia esperar do sujeito que tivesse atuado de outra forma”[45] (CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 2004, p.308). Os próprios tratados internacionais que versam sobre direitos humanos e refúgio são explícitos quanto à excludente de culpabilidade, vide Convenção de 1951 em seu artigo 31.[46]
É imprescindível que haja a avaliação de cada caso perante o órgão estatal competente, para que se comprove toda e qualquer circunstância que tenha exigido um comportamento ilícito por parte do sujeito investigado.[47]
4.4 Políticas Públicas para a efetivação dos direitos dos refugiados no Brasil: Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro como pioneiros na edição de leis estaduais.
Ainda que existam tratados de direito internacional sobre refugiados vigentes no Brasil, a carência de políticas públicas no âmbito estadual compromete a eficácia das obrigações ratificadas pelo Estado. A ONU, através do ACNUR, garante proteção a nível internacional, mas é necessário que exista um plano de ação devidamente organizado em cada país-membro, que leis sejam elaboradas, aprovadas e cumpridas.
A previsão de reassentamento no Brasil está contida no artigo 46 da lei nº 9.474/97, que diz que o reassentamento de refugiados no Brasil se efetuará de forma planificada e com a participação coordenada dos órgãos estatais e, quando possível, de organizações não-governamentais, identificando áreas de cooperação e de determinação de responsabilidades.
O Plano Estadual de Políticas Públicas para Promoção e Defesa dos Direitos dos Refugiados, Migrantes e Apátridas do Paraná (2014-2016), foi criado no ano de 2014, elaborado e distribuído pela Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos – SEJU, e pelo Departamento de Direitos Humanos e Cidadania – DEDIHC, ainda no governo de Carlos Alberto Richa. Participaram do projeto várias secretarias estaduais, a Casa Civil, a Universidade Federal do Paraná, a Casa Latino Americana e a Pastoral do Migrante de Curitiba.[48]O Comitê foi instituído através do Decreto Estadual nº 4.289/2012, tendo como base todas as diretrizes e preceitos firmados com o intuito de garantir a proteção dos direitos humanos e a dignidade da pessoa humana, visando o acesso dos estrangeiros às políticas públicas.
O estado do Rio de Janeiro também possui um plano de atendimento e atenção aos refugiados e solicitantes de refúgio, divulgado no mês de agosto de 2014 e lançado por decreto no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro em 25 de agosto de 2014. O principal objetivo é diminuir a burocracia que envolve o acesso desta população aos serviços básicos como saúde educação. São seis as diretrizes do plano: documentação, educação, emprego e renda, moradia, saúde e ambiente sociocultural/conscientização da temática.[49] O documento foi elaborado pelo Comitê Estadual Intersetorial de Políticas de Atenção aos Refugiados, em parceria com o ACNUR, a Caritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro e o CONARE.
São Paulo aprovou a PL 142/2016 sobre imigração, a Política Municipal para a População Imigrante tem como objetivo garantir o acesso igualitário de estrangeiros e brasileiros aos serviços públicos, além de proteção contra xenofobia e racismo. Outra grande inovação fica por conta da criação do Conselho Municipal de Imigrantes, composto em sua maioria por imigrantes eleitos de forma direta e aberta. A legislação prevê a formação dos agentes públicos que estarão diretamente em contato com esses imigrantes, além da criação de um canal para denúncias para casos de violações de seus direitos.
Além da atuação estatal, do ACNUR e do CONARE, são diversas as instituições que colaboram diretamente para a manutenção dos refugiados e imigrantes em geral. No estado de São Paulo podemos citar a Cáritas Arquidiocesana de São Paulo, que atua desde 1968 (refundada em 1987), é uma organização não governamental fundada pela Igreja Católica em 1950 com objetivo de prestar assistência humanitária às vítimas de emergências naturais, imigrantes e demais pessoas em estado de vulnerabilidade social.
Outro parceiro que atua diretamente com os refugiados é a ADUS – Instituto de Reintegração de Refugiados. Fundando em 2010 por três amigos pesquisadores sobre refugiados, atua na melhora das condições para integração dos solicitantes de asilo e refúgio, através do acolhimento, conscientização, cursos, e atuação dos voluntários que colaboram com os projetos e ações voltados para esses cidadãos.
5 CONCLUSÃO
O conceito de dignidade da pessoa humana é a chave para o desenvolvimento desse trabalho. Apesar dos avanços em relação à proteção dos direitos fundamentais no âmbito internacional, estamos longe de alcançar um patamar satisfatório quanto à assistência necessária para proteger os cidadãos que se encontram em situação de risco.
A condição de refugiado é resultado direto dos grandes conflitos mundiais e locais que se desdobraram ao longo dos anos, em dezenas de países, com proporções e motivações distintas e resultados devastadores. O fator econômico é o mais atingido, consequentemente é o que mais subjuga a população de um país que passa por uma crise humanitária.
Os organismos internacionais criados a partir da segunda guerra mundial (ONU, OIT, Otan) são os grandes responsáveis pelo surgimento dos órgãos de apoio específicos para a população imigrante do mundo, incluindo nesse rótulo os refugiados, apátridas e asilados. A luta pela igualdade entre os seres humanos é constante, requer uma base sólida de aliados e esforço recíproco entre as nações envolvidas nesse processo.
Tais conflitos são gerados tendo como objetivo principal a dominação de um determinado povo por outro, além da disputa pelos territórios e pelos recursos naturais. Serve, concomitantemente, para encobrir outros motivos nefastos: questões de raça, religião ou ideologia. Não é de se espantar que o Oriente Médio seja o palco central dos maiores conflitos dessa geração, sendo a Primavera Árabe o ponto histórico que deu início ao maior fluxo de imigrantes refugiados da última década. A crise generalizada que abala a União Europeia se aprofunda a medida em que os embates não são efetivamente neutralizados, obrigando países como Alemanha, França, Itália, Grécia, Espanha, Turquia e Holanda a receberem esses refugiados sem a menor preparação, pois o que se extrai diariamente através dos jornais de grande circulação é que esses cidadãos estão vivendo em condições precárias, num ambiente totalmente destoante do ideal, recebendo pouco ou quase nenhum auxílio por parte dos Estados que os acolheram. É oportuno salientar que o fluxo de refugiados ultrapassou a capacidade de manutenção na maioria desses países, pois não existe uma solução que cauterize o foco do problema, ainda que a comunidade internacional venha buscando maneiras de concretizar acordos de paz.
A ONU, desde a sua criação, buscou o comprometimento de seus Estados-membros no que diz respeito à paz mundial, tanto é que as discussões sobre direitos humanos resultaram em diversas normas de direito internacional amplamente ratificadas, responsabilizando os Estados pelas suas decisões e condutas. O papel do ACNUR como órgão responsável pelos refugiados é imprescindível, o seu sistema de informação, o acolhimento e acompanhamento, e a ramificação dos seus postos nos países, aprimoram a parceria com as ONGs para cauterizar as consequências sociais. A busca pela pacificação é contínua, árdua, exigindo esforço e abstenção de todos os interessados. São problemas enfrentados pelo ACNUR: a falta de condição humana nos campos de refugiados; o embate entre diferentes culturas; as violações constantes de direitos, tanto por parte dos Estados, como pelos grupos civis rebeldes; as limpezas étnicas; as perseguições; e a intolerância quanto aos posicionamentos ideológicos.
A globalização, como qualquer mudança substancial na dinâmica social, trouxe consigo uma nova identidade dos povos, as fronteiras ainda existem no plano geográfico e continuam demarcando limites, mas se rompem com o advento da cooperação entre as nações, utilizando-se a mediação e os tratados internacionais como instrumentos fundamentais para a construção de um ambiente multicultural saudável.
Hoje, a essência efêmera da informação cobra seu preço, demonstrando que visibilidade tem prazo de duração. Esse intenso fluxo é constante há décadas, mas a mídia internacional só focou no problema quando ele finalmente atingiu os mais notórios países da Europa. A preocupação em relação à inserção de novos grupos em meio a países ocidentais causou comoção no mundo inteiro, justamente pela notória barreira cultural que existe entre oriente e ocidente. Não é possível concluir até que ponto essa mescla pode prejudicar os países que acolhem esses refugiados, pois os conceitos inerentes à sociedade divergem de forma abismal.[50]
O objetivo da discussão, portanto, é a necessidade de um sentimento mais profundo em relação à questão dos mais de 60 milhões de refugiados espalhados pelo mundo.[51] É preciso partir para as ações afirmativas que ponham em prática o que se espera dos Estados que fazem parte dessa coalisão humanitária. Não basta assinar um tratado que discorra sobre direitos humanos, muito menos discutir a constitucionalização desses direitos, se os signatários não regularizarem suas próprias normas internas, pois a mudança em relação ao tratamento dado aos refugiados deve partir de cada país, garantindo a evolução constante desse rol.
A segurança nacional e a proteção das fronteiras são pontos delicados que, deveras, precisam ser analisados com cautela. O terrorismo internacional ganhou força nos últimos anos, demonstrando ousadia e criatividade na perpetração de seus atentados, e já se sabe que muitas das células terroristas conseguiram espaço na Europa, América do Norte e América Latina através dos imigrantes refugiados, o que causa pânico na população das cidades que recebem esses deslocados.[52]
É inadmissível e incompatível com a obrigação firmada pelo Brasil que os refugiados sejam criminalizados. A PL 236/2012 traz um retrocesso vergonhoso ao tratar dos refugiados, os artigos 452-456 resgatam uma abordagem da época da ditadura militar que criminalizava imigrantes em situação irregular, responsabilizando também quem tentasse ajudar.[53] Trata-se de ignorar cabalmente a situação de vulnerabilidade dessas pessoas, revelando um total desconhecimento acerca das questões humanitárias vivenciadas no século XXI. A tentativa de invalidar a entrada desses imigrantes é barrada pela jurisprudência atual, que permite a elucidação desse problema ao aplicar uma das excludentes de culpabilidade, qual seja, a inexigibilidade de conduta diversa.
Constata-se, portanto, que há uma dependência da vontade política dos Estados, pois a efetivação da proteção aos refugiados só existirá, de fato, caso sejam elaboradas normas internas sólidas e bem planejadas. A falta de informação ainda é um dos fatores que mais contribuem para que o refúgio seja sinônimo de competitividade, segregação, insegurança, intolerância e preconceito, e é prioritário que haja divulgação positiva, para que partir daí o conceito de comunidade passe a fazer sentido.
Informações Sobre o Autor
Alessandra de Paiva Albano
Graduada em Direito pela Universidade Potiguar; Pós-graduada em Direito e Processo Penal pelo Centro Universitário do Rio Grande do Norte – UNIRN