Para além da senciência na consideração moral: sobre Peter Singer, Tom Regan e Gary L. Francione

Resumo: O presente estudo analisa, a partir de uma abordagem crítica e dialética, de que forma as propostas contemporâneas sencientistas são inadequadas para a consideração moral dos demais viventes, como forma de superação do antropocentrismo. Entre estas, primeiramente analisa-se o “princípio da igual consideração dos interesses semelhantes” elaborado por Peter Singer que, através de sua ética utilitarista, estabelece critérios de ação direcionados a priorizar interesses relevantes em determinadas situações. Em contraposição, analisa-se também a categoria de “sujeitos de uma vida”, construída por Tom Regan que, segundo o filósofo, seria o critério ético adequado para se considerar moralmente os demais animais, apesar de ter-se identificado arbitrariedade e irresponsabilidade epistemológica na construção desta categoria. Por fim, analisou-se a proposta de consideração dos “animais como pessoas”, defendida por Gary L. Francione, crítico ferrenho do “bem-estarismo animal” por acreditar que não passa de um discurso protelatório para a manutenção do atual paradigma de exploração. Entretanto, verificou-se que nenhuma destas foi capaz de atacar os baluartes econômicos da exploração institucionalizada, paulatinamente construída e justificada por uma longa tradição filosófica ocidental de priorização ontológica em detrimento da ética.[1]  

Palavras-chave: Éticas sencientistas, Peter Singer, Tom Regan, Gary L. Francione, Análise Crítica.

Abstract: The present study analyzes, from a critical and dialectical approach, how contemporary sentientist proposals are inadequate for the moral consideration of other living beings, as a way of overcoming anthropocentrism. Among these, it first analyzes the "principle of equal consideration of interests" elaborated by Peter Singer who, through his utilitarian ethics, establishes a criteria of action directed to prioritize relevant interests in certain situations. In contrast, the category of "subjects of life" constructed by Tom Regan is also analyzed, which, according to the philosopher, would be the appropriate ethical criterion for morally considering other animals, although, the present article identifies certain epistemological arbitrariness and irresponsibility. Finally, it analyses the proposal that considers "animals as persons", defended by Gary L. Francione, a fierce critic of "animal welfare" – a discourse for the maintenance of the current paradigm of exploitation. However, it concludes that none of them was able to attack the economic strongholds of institutionalized exploration, gradually built up and justified by a long Western philosophical tradition of ontological prioritization over ethics.

Keywords: Sentient ethics, Peter Singer, Tom Regan, Gary L. Francione, Critical Analysis.

Sumário: Introdução; 1. Singer e o “princípio da consideração dos interesses semelhantes”; 1.1 Objeções à Singer; 2 Regan e os “sujeitos de uma vida”: agência e paciência moral; 2.1 Críticas à teoria de Regan; 3. Francione: Animais como Pessoas; 3.1 Das faltas de Francione da visão sencientista; Conclusão; Referências.

Introdução

Sabe-se que os debates sobre as considerações morais de não-humanos percorrem toda a história do pensamento humano, visto que, desde a Antiguidade, Pitágoras de Samos (530 a.C.) já reconhecia uma ligação existente entre os homens e os demais seres vivos a pela teoria do continumm vivo, em que almas reencarnam por todos os seres vivos de forma cíclica. (MATTÉI, 2000, p. 39). Ato contínuo, conforme clarifica Keith Thomas (1996, p. 135), a criação da figura do animal de estimação foi pontual para a sua consideração como objeto da satisfação da vida privada. Aos poucos, o Direito e a Moral ocidental passaram a abarcá-lo como propriedade a ser protegida, mesmo que não fosse utilizada para alguma finalidade lucrativa. Contudo, o tímido, ou mesmo suposto alargamento, de modo algum extrapolaria os fundamentos auto justificantes da exploração massiva dos demais viventes, pois estes continuam até hoje na condição de objeto alvo da exploração institucionalizada, mesmo que encoberta pela névoa do “bem-estar”.

O próprio Jeremy Betham (1748 – 1832), percussor do utilitarismo clássico e referência massivamente mencionada quando se trata da consideração moral de animais não-humanos, é um grande defensor da senciência (posse de sensibilidade para buscar prazer e rejeição da dor) como o único parâmetro para a consideração moral de um indivíduo, contudo, nunca chegou a questionar o estatuto de propriedade do animal, embora fizesse fortes campanhas contra a crueldade. (BETHAM, 2000).

Além de Betham, o alargamento em direção à senciência, sem dúvida, fora influenciado pelas descobertas de Charles Darwin em The Descendent of man and selection in Relation to Sex (1871), que deixou clara a ancestralidade comum entre homens e animais não-humanos. O autor destacou que as diferenças entre estes variam grau de desenvolvimento das habilidades de acordo com a necessidade para a sobrevivência, sobrando pouco espaço para intervenção religiosa e privilégios não fundamentados sobre as demais espécies, embora ainda reforçasse uma “hierarquia da complexidade” entre os seres envolvidos no processo de seleção natural. (DARWIN, 1871).

Entretanto, defesas deste teor eram de pequena circulação e não havia mobilização social significativa quanto ao tema. A intensidade de publicações científicas junto às manifestações populares aumentou significativamente somente no fim da década de 60 para 70. De fato, da Antiguidade até o começo da década de 70, haviam apenas 94 publicações sobre a condição moral dos animais, entretanto, da década de 70 para 80, o número chega cerca de 240. (SINGER, 2013, p. 351).

Uma das publicações mais impactantes e que impulsionou parte da sociedade para a defesa da senciência foi o livro Animal Liberation de Peter Singer, com sua primeira edição publicada em 1975, que teve uma enorme repercussão no movimento em prol do bem-estar animal, considerada até hoje um clássico de referência para o movimento, sendo um verdadeiro marco teórico adotado por muitos pesquisadores. Após tal publicação, inúmeras propostas acerca dos direitos e da consideração moral dos animais não-humanos surgiram, tanto reiterando a teoria de Singer bem como a rejeitando completamente. Tom Regan e Francione, por exemplo, direcionaram fortemente suas publicações para rejeitar em parte a teoria de Singer, acreditando estarem superando-a com criação de novas soluções, apesar de todas as incoerências que os tornam igualmente alvo de críticas quando intentaram promover certezas objetivas. Como se não bastasse a fragilidade das fundamentações dentro da própria totalidade sencientista, vieram também as defesas do interesse não-sencientes de Goodpaster (1978), bem como a da vulnerabilidade presente em cada forma conforme Paul. W. Taylor (2011).

Desta feita, o objetivo desta pesquisa é analisar a inadequação da imposição de uma nova ordem sencientista como superação do antropocêntismo, frente não só ás insuficiências lógico-argumentativas internas de cada proposta, resultados da falência do modelo de pensamento edificante de certezas fechadas e objetivas, mas como da própria lógica produtivista a qual desejam incorporar-se ou, no mínimo, não enfrentar. Para isto, faz-se uso de uma abordagem dialética e reflexiva entre os autores contemporâneos supracitados, na ordem disposta acima, em razão das etapas da construção dos seus próprios pensamentos, das críticas que estes realizam entre si e das lacunas que possuem.

1. Singer e o “princípio da consideração dos interesses semelhantes”

É inegável a importância da teoria de Singer para o desenvolvimento das discussões acerca da consideração moral de animais não-humanos. Em seu livro Animal Liberation (1975), o autor acredita que o princípio ético da igualdade entre os homens deverá ser estendido aos demais animais, entretanto, o filósofo reconhece que há evidentes diferenças nos interesses. Por exemplo, não há motivo para lutar pelo direito ao voto de um cão, haja vista que não possui tal potência e nem interesse. Logo, a extensão do princípio básico da igualdade, para Singer, não significa que todos os animais devem possuir os mesmos direitos e nem receber o mesmo tratamento, mas a igual consideração nos seus interesses semelhantes. (SINGER, 2013, p. 3-5).

O autor retira seus baluartes de Betham na medida em que aponta a capacidade de sofrer e buscar prazer – a senciência – como característica essencial para se conferir o direito à igual consideração. Estas capacidades, segundo Betham, seriam pré-requisitos para um ser ter algum interesse. Ao objetar que o desenvolvimento de certas capacidades, como a posse da linguagem e do pensamento matemático, sejam relevantes para se conferir qualquer proteção aos animais não-humanos, o autor ressalta que a aptidão racional superior do homem faz diferença em questões como a previsão de memória mais detalhada e maior compreensão dos fatos. Em razão disso, por vezes, o sofrimento do homem dar-se-ia em maior grau. No entanto, o autor reconhece que, em alguns casos, animais também podem sofrer em maior grau devido à compreensão limitada das circunstâncias. Por exemplo, quando um animal selvagem é retirado de seu habitat para preservação de sua espécie, este sofrerá o mesmo terror como se estivesse sendo transportado para confinamento. (SINGER, 2013, p. 9-26).

Sobre a morte, Singer (2013, p. 28-29) introduz a premissa de que, em um primeiro ponto de vista, é sempre errado matar um ser humano inocente, considerando a “sacralidade da vida” – argumento comumente utilizado por pessoas que se opõem ao aborto e à eutanásia. Paradoxalmente, no geral, tais pessoas não se opõem à matança dos demais viventes, considerando que somente a vida humana seria sacrossanta. Dessa forma, percebemos que a única razão que distinguiria um animal não-humano e um bebê humano com lesões cerebrais seria o direito à vida concedido aos membros da espécie homo sapiens, sendo esta uma visão completamente especiecista. Para que se evite o especiecismo, o autor certifica que seres com grau de interesses semelhantes devem possuir direitos semelhantes à vida. Por exemplo, um adulto humano, em suas plenas capacidades para planejar o futuro e manter relações significativas, teria maiores perdas ao morrer do que um camundongo que não possui tais características.

O autor sustenta que alguns atributos tornam a vida de certos seres mais valiosas do que de outros. Por exemplo, um chimpanzé, um cão ou um porco, por terem grau superior de autoconsciência e maior capacidade de estabelecerem relações duradouras e significativas, teriam suas vidas valoradas com maior importância do que a vida de um recém-nascido humano com lesões cerebrais graves ou um idoso em estado senil avançado. Singer admite que, a partir dessas proposições, podemos concluir tanto que estes animais viventes têm o direito de assim permanecer e cometemos uma grave ofensa moral ao mata-los, quanto que os seres humanos com debilidades mentais não possuem o direito à vida e podem ser mortos por razões triviais. Neste sentido, o filósofo conclui que precisamos de uma posição intermediária para se evitar o especiecismo e, ao mesmo tempo, não tornar a vida de humanos com debilidades mentais tão insignificante quanto a de não-humanos em sua plena capacidade. (SINGER, 2013, p. 30-31).

Singer (2013, p. 32-33) não considera arbitrariedade afirmar que a vida de um ser autoconsciente seja mais valiosa do que um ser que não seja, da mesma forma que, se tivéssemos de escolher entre salvar um ser humano em suas plenas capacidades e um com debilidades mentais, escolheríamos o primeiro, visto que este terá maiores perdas do que outro. Mas, se tivéssemos de escolher entre acabar com a dor de um destes, supondo que ambos tivessem os mesmos ferimentos, tal resposta não poderia ser dada de forma tão simples, haja vista que a dor afeta igualmente ambos os seres, contudo, o valor seria relativo a expectativa de futuro.

Embora se perceba o utilitarismo nas proposições acima, haja vista que devemos optar por proteger quem terá maiores perdas em relação ao futuro, esta ideia é melhor desenvolvida no livro A Ética Prática (1993), em que o autor considera que todas as ações deverão ser orientadas para maximizar os interesses de todos os afetados. Singer se mostra um “act utiltarian”, da mesma forma que Betham, entretanto, no primeiro, observa-se o singular “utilitarismo das preferências”, ou seja, não há somente a consideração da intensidade da dor ou prazer recebido, mas das preferências de cada ser afetado, traduzindo-se em um cálculo a fim de verificar qual seria a ação capaz de atender em maior número os interesses envolvidos. (SINGER, 1993). Nesse livro, o autor indaga sobre a possibilidade de animais não-humanos serem considerados “pessoas”, já que há provas sólidas de que alguns são de fato conscientes. Os chimpanzés, por exemplo, possuem inteligência necessária para desenvolver linguagem, faltando-lhe apenas a estrutura vocal para utilizá-la nos moldes antropomórficos. Ademais, possuem memória para compreender eventos passados e planejar acontecimentos futuros. (SINGER, 1993, p. 77-80).

Portanto, vê-se que o conceito de pessoa, em Singer, estaria vinculado à posse de autoconsciência e a expectativa de futuro. Em razão disto, ele diferencia o ser autoconsciente do ser “meramente consciente”, haja vista que, em razão de suas capacidades limitadas, o valor de sua vida seria menor e com minoradas perdas em relação ao futuro, já que poucas ou nenhuma seriam as expectativas a serem quebradas. (SINGER, 1993, p. 131).

Conclusivamente, o pensamento de Singer pode ser considerado abolicionista da exploração institucionalizada somente em relação aos animais não-humanos que podem ser enquadrados na categoria de “pessoa” em sua teoria. Em relação aos seres “meramente conscientes”, o tratamento limitar-se-ia à preocupação com o seu bem-estar sob os preceitos do “tratamento humanitário” para evitar o sofrimento “desnecessário”, ou seja, quando não agrega valor produtivo.

1.1 Objeções à Singer

Mesmo que a teoria dos interesses semelhantes seja capaz de abarcar animais não-humanos, como aos grandes primatas ou a golfinhos, ela continua a ignorar grande parcela dos viventes. A aludida teoria estabelece como condição para consideração moral a posse de certas características que justificariam as diferenças no tratamento entre os animais, no entanto, inúmeras espécies de animais não-humanos possuem várias características que não possuímos e que, convenientemente, não são escolhidas como parâmetro de consideração moral. Pássaros podem voar por suas próprias forças, cães podem dar saltos que seres humanos não conseguem, peixes podem nadar debaixo d’água sem apoio de um tanque de ar, no entanto, estes atributos são irrelevantes. Neste ínterim, a motivação desta teoria está em determinar que qualidades humanas tenham maior valor moral em detrimento dos predicados de outros animais. (FRANCIONE, 2008, p. 141).

Contudo, não é surpreendente que Singer reproduza esta redução do Outro ao Mesmo, ou seja, a assimilação dos demais viventes pelas semelhanças que possuem com o homem. Lévinas (1980, p. 31) esclarece que a filosofia ocidental segue esta tradição, atuando pela intervenção de um termo neutro, que neste caso seria a fundamentação através de princípios e teorias científicas, aniquilando assim a alteridade do vivente que não é humano.

Com efeito, inúmeros seres humanos não possuem as características que Singer estabelece como requisito para inclusão na comunidade moral. No entanto, o autor nega que estas pessoas devam ser tratadas sem qualquer consideração, da mesma forma que outros viventes não-humanos, o que não é coerente à estrutura lógica da sua própria teoria, reafirmando assim sua identidade antropocêntrica que só é capaz de abarcar não-humanos quando os humaniza.

Ainda, vê-se que não é aceitável comparar animais em sua plena capacidade física e mental com seres humanos debilitados, haja vista que os demais animais não estão em processo de desenvolvimento de predicativos antropogênicos, logo, não há razões se estabelecer estes parâmetros se não é do objetivo dos demais viventes o desenvolvimento de qualidade humanas. (FELIPE, 2014, p. 48).

Sobre a classificação dos seres “meramente conscientes”, equivalente ao que se pode chamar de “quase-pessoas”, Francione (2008, p. 61) alerta a para a armadilha deste tipo de categorização, pois, na realidade, não haveria um meio termo entre o status de coisa e o de pessoa. O autor exemplifica que, no período de utilização da mão de obra escrava nos Estados Unidos da América, houve a tentativa do estabelecimento do sistema estrutural em três níveis: a propriedade inanimada, pessoas livres e as “coisas superiores” ou “quase pessoas”. Esta sistematização fora extremamente eficaz, não para quem estava condição de escravo, mas para a manutenção da exploração institucionalizada na medida em que os escravos não possuíam os interesses a serem considerados quando em conflito com seus proprietários. Eis que novamente se observa a primazia ontológica, que capta o ser a partir do nada, reduzindo-lhe a nada, através de um termo médio neutralizante que lhe arrebata a alteridade. (LEVINAS, 1980, p. 31).

Sobre o interesse na existência continuada potencializado pela expectativa de futuro, Francione (2000, p. 137) entende que não há como se eliminar o interesse de seres sencientes, tendo em vista que a senciência nada mais é que um mecanismo de sobrevivência, uma ferramenta desenvolvida ao longo do processo de evolução. Neste sentido, destacamos que a natureza é prolífica. Nascem muito mais animais e plantas do os que apresentam possibilidade de sobrevivência, deste modo, ela seleciona os complexos de características que, por acidente, possuem melhores funções adaptativas fomentadoras da sobrevivência. (SAGAN, 1980, p. 27). Veja-se então que, neste seguimento, outras formas de vida também manifestariam o interesse, ainda que inconsciente, na existência continuada, já que também perpassaram pelo mesmo processo de seleção natural, desenvolvendo mecanismos para a sua adaptação e sobrevivência.

Regan (2004a, p. 207-210) acredita que Singer falha em explicar porque possuímos um dever prima facie de não prejudicar o outro. Na visão de Singer, matar qualquer ser é proporcionalmente errado ao interesse que este possui em continuar vivendo, ou seja, possuir este desejo particular é tanto uma condição necessária quanto suficiente para não matar um indivíduo. Podemos concluir que, em Singer, os seres autoconscientes são meros “receptáculos” de seus interesses, ou seja, não são valorados por si mesmos, mas dependem da intensidade do interesse que possuem, e em um modelo antropomórfico.

Logo, esta teoria não nega que preferências más (não revestidas de preceitos éticos), pois, se forem mais intensas do que preferências boas (baseadas em preceitos éticos), poderão prevalecer visto que ambas deverão ser calculadas de modo imparcial no cálculo utilitário, sem qualquer avaliação acerca da moralidade da ação em si. (REGAN, 2003, p. 60).

Um exemplo prático disto pode ser visualizado no filme Kill Bill – Vol. 1, em que a personagem principal, Beatrix Kiddo, está em coma no hospital, prestes a ser estuprada. Vemos aí o conflito entre o interesse dela em não ser abusada sexualmente, mesmo em estado comatoso, em face da preferência do homem, em suas plenas capacidades, em estuprá-la. Neste caso, Beatrix não poderia manifestar qualquer interesse consciente em não ser explorada. Assim sendo, a vontade momentânea presente no homem em se satisfazer do estupro seria consideravelmente mais intensa que o interesse em não ser alvo de violência, presente implicitamente em Beatrix assim como em qualquer forma de vida. Neste ínterim, ambos os interesses seriam postos no cálculo utilitário, correndo-se o risco de que o interesse do homem seja considerado em detrimento do de Beatrix. Felizmente, a mesma saiu do coma a tempo de defender-se da violência. (KILL BILL – VOL. 1, 2003).

Conclusivamente, em uma interpretação literal e negativa, a teoria de Singer poderia ser utilizada para justificar a exploração institucionalizada, pois, se o número de preferências em se manter a exploração for maior do que o interesse de um indivíduo em não ser explorado, tal ação poderia ser justificada.

2. Regan e os “sujeitos de uma vida”: agência e paciência moral

Antes de mais nada, precisamos entender os conceitos de agência e paciência moral. Agentes morais são indivíduos que possuem capacidades mais sofisticadas, incluindo a habilidade de trazer o princípio moral da imparcialidade para determinar qual ação deve ser tomada após a consideração de diversos fatores. Uma vez considerada a decisão como moralmente correta, poderá optar livremente por executá-la ou não. Um ser humano adulto em suas plenas capacidades é o paradigma normal de consideração de um agente moral. Estes agentes não se limitam a agir de forma correta ou errada, mas também podem ser receptores das ações de outros. (REGAN, 2004a, p. 151-152).

Em contraste, os pacientes morais carecem de pré-requisitos que os habilitem a controlar o seu próprio comportamento, logo, pacientes morais não estão livres para fazer escolhas a partir de princípios éticos, limitando-se a serem alvos de ações morais realizadas pelos agentes. Crianças humanas, recém-nascidas e os mentalmente degenerados são o paradigma de consideração de um paciente moral. Continuando, dentre os pacientes morais, há diferenças entre os membros, incluindo seres conscientes e sencientes, abrangendo também inúmeros animais não-humanos. (REGAN, 2004a, p. 152-153).

Após esclarecimento destes conceitos, a proposta filosófica de Regan para consideração moral de não-humanos é baseada em uma justiça vinculada às noções de igualdade e respeito, considerando que alguns indivíduos possuem valor inerente, não dependente de terceiros e nem conforme a sua capacidade de vivenciar dor, prazer ou outras experiências, ao contrário de Singer. O autor opta por entender que os sujeitos morais devem ser valorados de forma igual, haja vista que se fossem valorados em graus diferentes, teríamos de determinar quanto seria o valor inerente de cada um e, teoricamente, a base para esta escolha poderia ser qualquer atributo, dando azo para a construção de uma hierarquia, estando aqueles que carecem das “habilidades paradigma” destinados a servir os possuidores destas. (REGAN, 2004a, 235-240).

O conceito de valor inerente não está vinculado a nenhuma característica física nem a disposições biológicas genéricas, mas ao fato do ser estar vivo; embora Regan não estabeleça este como único critério haja a vista as dificuldades de se determinar deveres diretos a todas as formas de vida. Desta forma, a condição que o autor elabora para a consideração moral é fato de ser “sujeito de uma vida”. Este, além de estar vivo e ser possuidor de consciência, deve ter suas crenças, desejos, percepção, memória, senso de futuro e outras características cognitivas sofisticadas. (REGAN, 2004a, p. 240 -243).

A noção de “sujeitos de uma vida”, portanto, está pautada: a) na semelhança que vincula tanto agentes morais quanto pacientes morais; b) nas características que se fazem presentes nestes; c) na ausência de graduação ou diferenciação em sua valoração; d) bem como na determinação de que temos deveres diretos para com estes. (REGAN, 2004a, p. 244).

O filósofo restringe a sua comunidade moral aos seres que possuem aparato para o desenvolvimento de linguagem; comportamento, estrutura anatômica e sistema neurológico em comum e que são cientes do mundo e do que acontece a si mesmo. O autor ressalta que, apesar de muitas diferenças, todos os mamíferos, inclusive os humanos, possuem estes aspectos fundamentais, por isso são classificados como “sujeitos de uma vida”. (REGAN, 2004b, p. 9-10). Embora o filósofo afirme que essa classificação pode se estender aos animais que não são mamíferos, mas possuem características semelhantes, ele admite que estar preparado a limitar a noção de “sujeitos de uma vida” aos mamíferos e pássaros que seriam os casos “menos controversos”. (REGAN, 2004b, p. 11-13).

Neste sentido, todos os “sujeitos de uma vida” estariam aptos a possuir direitos próprios que lhes protegeriam de qualquer forma de exploração, dessa forma, devem ser considerados como pessoas, pois o status de propriedade reconhece o seu valor somente para terceiros e não para si mesmos. Logo, a finalidade de se atribuir consideração jurídica para estes sujeitos está em dissolver a indústria baseada na exploração de animais como conhecemos. Além do mais, mesmo que muitos animais não-humanos não possam ser considerados “sujeitos de uma vida”, inúmeros destes ainda são sencientes, portanto, nos casos em que os benefícios oriundos do uso forem extremamente menores que a possibilidade deste indivíduo ser capaz de vivenciar a dor, é razoável dar a estes animais o benefício da dúvida para trata-los como sujeitos de direitos nesta ocasião. (REGAN, 2004a, p. 347-366).

Para análise prática de sua proposta ética, Regan elabora o dilema do bote salva-vidas. Há cinco sobreviventes, quatro adultos normais e um cachorro, no entanto, o bote suportará apenas quatro destes e todos morrerão se alguém não se sacrificar. Destarte, quem deverá realizar tal altruísmo? Para o autor a escolha correta seria o cachorro, visto que a morte para qualquer destes humanos teria um impacto negativo maior. A magnitude do dano da morte pode ser medida através do número e da variedade de oportunidades de satisfação que um indivíduo poderá perder, e não seria especiecista afirmar que a morte de um ser humano em suas plenas capacidades traria maiores perdas que a de um cachorro. Portanto, escolher o ser humano seria pior que escolher o cachorro. O autor acredita que a escolha pelo cachorro não conflita com o seu valor inerente e igual ao do homem e salvá-lo seria dar-lhe mais do que se deve. Mesmo um milhão de cachorros poderiam ser jogados para fora do bote se isto fosse necessário para salvar quatro seres humanos em suas plenas capacidades, seguindo a mesma lógica descrita acima, haja vista que esta decisão deve levar em conta qualitativamente as perdas que cada indivíduo se depara. (REGAN, 2004a, p. 324-325).

2.1 Críticas à teoria de Regan

Embora os conceitos de agência e paciência moral tenham sido extremamente importantes para determinar que, embora um ser não tenha liberdade para agir moralmente, ele deve ser alvo de obrigações morais, os parâmetros de limitação destes sujeitos são imensamente criticados pela comunidade científica.

Tanner (2009, p. 1) afirma que a tese de Regan é epistemologicamente irresponsável no que tange aos requisitos impostos para consideração de um ser como “sujeito de uma vida”. Primeiramente, a pesquisadora esclarece que a posse de consciência está associada à presença de um sistema nervoso central complexo, não havendo diferenças fundamentais entre o sistema nervoso humano e de outros vertebrados, desta forma, é razoável crer que vertebrados e, possivelmente, cefalópodes são conscientes.

Ademais a teoria da evolução traz inúmeras evidências de que vertebrados sejam conscientes, haja vista que isto justificaria os mecanismos de adaptação e sobrevivência, possibilitando que os animais não-humanos aprendessem a sobreviver no ambiente (TANNER, 2009, p. 7-8). Considerando isto, a afirmativa de que ao menos mamíferos e pássaros seriam conscientes estaria incorreta, pois diante das evidências, Regan exclui sem qualquer fundamento uma considerável quantidade de seres conscientes.

Continuando, Tanner (2009, p. 14) acredita ser provável que a consciência varie em grau, logo, seria possível que alguns animais a possuíssem em menor grau que alguns humanos. Portanto, se a consciência apresenta tal variação e toda a tese de Regan está baseada em limitar o círculo ético para os seres que a possuem, é bastante paradoxal admitir que cada “sujeito de uma vida” tenha um valor inerente e igual mesmo possuindo distintos graus de consciência. Ainda, a pesquisadora afirma que os animais percebem o mundo de forma diversa, na medida em que possuem órgãos diferentes bem como processam informações de modo singular. Um claro exemplo é que os seres humanos em suas plenas capacidades conseguem elaborar ideias abstratas a partir de suas percepções externas, já animais não-humanos e humanos autistas observam apenas dados brutos, concentrando suas informações em detalhes específicos.

Ato contínuo, a autora reitera a ideia de que é razoável que animais tenham memória em razão da indiscutível importância desta para sua a sobrevivência e adaptação. Se o animal não possuísse memória para se relacionar com o ambiente, lembrando de evitar os perigos e do modo seguro para buscar alimentos, tais espécies não sobreviveriam. Inclusive, há muitas evidências físicas como a presença de ocitocina (hormônio sexual que possibilita que animais lembrem uns dos outros), assim como semelhanças no cérebro; tal como a presença do hipocampo, região presente em vários animais, inclusive em pombos, ratos e homens. Do mesmo modo, há evidências da presença de vários tipos de memórias em vários animais, incluindo as de longo alcance, médio alcance e curto alcance. (TANNER, 2009, p. 13-17).

Por fim, hoje é comumente aceito na comunidade científica que quase tudo que animais humanos e não-humanos fazem é influenciado por algum tipo de sentimento emocional, sabendo-se que os mamíferos demonstram os mesmos sentimentos básicos que os seres humanos. Neste sentido, estudos apontam que cobras e lagartos possuem emoções específicas, podendo ser identificadas no modo em que as cobras fêmeas cuidam dos seus filhotes. Hormônios como a ocitocina e vasopressina, que controlam o sexo, a paternidade, maternidade, o amor entre humanos e outros animais são similares, diferenciando-se dos que cumprem a mesma função em sapos e anfíbios apenas por um aminoácido. Portanto, há evidências, tanto de cunho evolutivo quanto de caráter comportamental, mostrando que todos os vertebrados, não apenas mamíferos e algumas espécies de pássaros, possuem emoções. Logo, se as emoções importam moralmente para Regan, é epistemologicamente irresponsável ignorar as evidências que os vertebrados mostram. (TANNER, 2009, p. 18-21).

Tanner (2009, p. 23) conclui que, quanto mais restritas e em maior quantidade forem feitas as afirmações epistêmicas de determinada teoria, maiores chances ela tem de ser irresponsável. Já que Regan faz muitas alegações epistêmicas, sendo muitas delas alvo de controvérsias, as suas afirmativas se mostram extremamente arriscadas de um ponto de vista epistemológico. Logo, a ausência de consistência lógica e factual para delimitação da comunidade moral é o maior motivo das críticas direcionadas à teoria de Regan.

Como se não bastasse, identificamos uma grave incoerência no dilema do bote-salva-vidas. Uma parte considerável da teoria reganiana ressalta que todas as formas de exploração institucionalizada violam o dever de respeito, assim como os princípios referentes à escolha do “menor dano”, que se faz presente no próprio caso do bote salva-vidas, tendo em vista que não consideram os indivíduos pelo seu valor inerente e igual. Logo, se a interpretação da teoria moral do autor estiver correta, poderíamos assumir que a discussão acerca do bote salva-vidas é completamente desnecessária. Portanto, a escolha entre um ser humano ao invés de um animal não-humano baseada em uma suposta diferença qualitativa ou cognitiva, assumindo que a morte trará sempre um dano maior para o ser humano, é especiecista e, inclusive, assegura que animais não-humanos nunca terão consideração em nenhuma situação real de conflito com humanos. (FRANCIONE, 2008, p. 223). Podemos concluir que mesmo em situações excepcionais, Regan abre espaço para uma hierarquização entre seres, o que é contraditório ao próprio discurso do valor inerente e igual.

Para Francione (2008, p. 227) poderíamos escolher em favor do ser humano em detrimento do não-humano, não em razão do princípio do “menor dano”, pois não se sabe o que a morte significa para ele. De outro modo, podemos nos fundamentar em qualquer outro parâmetro para solucionar conflitos genuínos, já que não haveria uma escolha moralmente melhor que outra. Por exemplo, podemos nos pautar em questões de limitações epistemológicas como critério de desempate, assim como podemos jogar uma moeda e decidir pelo “cara-ou-coroa”. O que não pode, para Francione, é invocar alguma noção de que seres humanos são animais “superiores”.

Em resumo, Regan atribui consideração moral somente em relação a mamíferos e pássaros, fundamentando-se na presença de consciência e outras características sofisticadas, entretanto, desconsidera que outros animais também possuem tais características. Mesmo partindo das noções de “valor inerente e igual”, o autor assume que o dano da morte será maior para seres humanos haja vista que são mais complexos, logo, identificamos uma aproximação com Singer a respeito da ideia do “interesse na vida continuada”, não superando parâmetros especiecista e totalizantes, na medida que só se torna possível considerar os demais viventes quando estes se ajustam à identidade do Mesmo. Assim sendo, identificamos a construção de uma cadeia hierárquica entre seres vivos, sendo contraditória à noção de “valor inerente e igual”, na medida em que se atribuem maiores considerações aos seres humanos nas situações de conflitos genuínos em razão de sua “maior complexidade”.

3. Francione: Animais como Pessoas

O pensamento de Francione consiste, primeiramente, na identificação do discurso bem-estarista como ferramenta para manutenção do desequilíbrio de interesses causado pelo reforço do status jurídico de propriedade, fator responsável pela sustentação da exploração institucionalizada de animais não-humanos. De fato, identificamos um grande grupo de pesquisadores que realizam críticas ao paradigma atual de exploração, entretanto, não entram significativamente no mérito dos conflitos gerados pelo estatuto jurídico e moral de propriedade, assim como Peter Singer e Tom Regan.

Francione (2008, p. 25) observa uma profunda disparidade entre o que se fala sobre os animais não-humanos e como de fato eles são tratados. Por exemplo, dois terços dos americanos entrevistados pela Associated Press concordam que o direito de um animal viver livremente deve ser tão importante quanto o de uma pessoa, e mais de 50% dos entrevistados são contra a caça e o uso de pele em roupas. No entanto, somente nos EUA, mata-se milhões de animais anualmente para fins de experimentos científicos, sem incluir os utilizados para outras finalidades. Por essas razões, Francione (2008, p. 28) acredita que se sofre de uma esquizofrenia moral, haja vista que se diz considerar como moralmente significativos os interesses de não-humanos, contudo, o comportamento dos homens revela o contrário.

Deste modo, a esquizofrenia moral em relação aos animais está diretamente vinculada ao seu status de propriedade (FRANCIONE, 2008, p. 135). Como já foi dito, este estatuto jurídico autoriza que sejam tratadas como mercadorias do modo que é interessante, sendo responsável por pré-definir qualquer conflito de interesses que venha a existir entre humanos e não-humanos, pois a propriedade não possui interesse jurídico a ser protegido, mas sim o proprietário. Deste modo, podemos impor qualquer forma horrenda de sofrimento aos não-humanos desde que seja considerado como algo necessário. Por exemplo, um coelho tem o interesse de não ser submetido ao Draize Test, mas isso é considerado como necessário para a ciência e para indústria. Neste ínterim, o requerimento para tratar animais de forma “humana” e não infligir dor “desnecessária” é, na realidade, nada mais do que uma determinação para não se impor mais sofrimento do que o suficiente para o uso do animal de forma eficiente e produtiva.

Recorrendo-se à analogia, apesar da abolição da escravatura nos EUA ter ocorrido de forma relativamente rápida, a economia norte Americana se apresentava bem menos dependente dela do que hoje é em relação à exploração institucionalizada de não-humanos, deste modo, a erradicação desta poderá ocorrer através de uma mudança estrutural. Contudo, isto não significa dizer que qualquer proposta de minimização da dor seja moralmente permissível e empiricamente verdadeira como caminho para erradicação total do uso de animais como afirmam os “neo bem-estaristas”. (FRANCIONE, 1996a).

Em relação ao movimento pelo bem-estar, muitas propostas são obstruídas pelo interesse de quem se beneficia da exploração animal e, até mesmo, as leis bem-estaristas são burladas sob a justificativa de diminuição de gastos. Isso não significa afirmar que o movimento pelo bem-estar não despertou o interesse público em relação ao tratamento de animais não-humanos. Muito pelo contrário, tivemos um aumento significativo quanto à conscientização sobre o assunto, mas este aumento não é proporcional à diminuição da exploração animal. A respeito da experimentação científica, por exemplo, embora se tenham inúmeras leis regulamentando-a, não há nada que de fato proíba nenhum experimento cruel e doloroso em razão da ideologia da “necessidade”. Ademais, a ideia de que estas leis asseguram o “tratamento humanitário” são responsáveis por atrair o público no qual acredita que tal objeto foi de fato produzido sob preceitos éticos. (FRANCIONE, 1996a).

No entanto, algumas vitórias foram alcançadas em relação às campanhas que promovem o não-financiamento de produtos de origem animal, porém, nem sempre são dadas aos consumidores informações claras sobre a existência de alguma forma de uso animal. Outras campanhas focam no próprio fim da experimentação, todavia, não se sabe se estas possuem eficácia a longo prazo sem uma exigência paralela de mudanças legislativas. (FRANCIONE, 1996a).

Ademais, o argumento de que reformas levariam, a longo prazo, à consideração de direitos aos animais é considerado extremamente equivocado por Francione. A visão de “direitos” assegurada pela doutrina do “bem-estar” geralmente é limitada ao próprio paradigma, ou seja, o animal possui direito de não sofrer “desnecessariamente”, ou o animal possui direito de receber o “tratamento humanitário”, no entanto, mantém-se o status jurídico de propriedade e o desequilíbrio de interesses. (FRANCIONE, 1996a)

O autor afirma que somente a vertente abolicionista possui uma estratégia satisfatória na medida em que promove a erradicação do estatuto de propriedade que, a longo prazo, levaríamos ao paradigma ideal de direitos dos animais. Essas medidas podem ser primeiramente indiretas, dependendo da educação pública sobre a necessidade de eliminar este estatuto, ou podem ser diretas, desconstituindo-se os institutos que autorizam a exploração através de mudanças legislativas e administrativas, primeiramente reivindicando proibições de práticas exploratórias, para o alcance do nível macro, que seria o fim da exploração em si. (FRANCIONE, 1996b)

Deste modo, o autor entende que o único estatuto jurídico capaz de assegurar juridicamente o interesse dos não-humanos seria o de Pessoa. Dizer que um ser é uma pessoa é o mesmo que dizer que este possui interesses significativos, não que devem ser aplicados todos os direitos que seres humanos possuem, ou que não possa resguardar o interesse de um ser humano em detrimento do não-humano em situações de conflito genuíno. Requer apenas que se tenha a obrigação moral de não utilizar animais como meros recursos. (FRANCIONE, 2008, p. 62).

O autor ressalta que não há conflito genuíno entre humanos e não-humanos no cenário da experimentação animal. De fato, não se identifica que há conflito entre os seres humanos doentes e aqueles que poderiam ajudá-los, pois se considera todos como parte da nossa comunidade moral e tal requisito impediria o seu uso. Assim sendo, por que haveria de se considerar que há um conflito quando o não-humano é o sujeito a ser testado? Esta situação é bem diferente de um conflito verdadeiro, em que há uma situação de emergência. Exemplificamos com uma casa em chamas onde há dois indivíduos presentes, um animal e um ser humano, e somente poderia salvar um deles. Tais situações, de fato, suportam escolhas arbitrárias que não são justificáveis moralmente em situações gerais. (FRANCIONE, 2008, p. 64-65).

A proposta de Francione (2008) não está fundada em nenhuma outra característica que não seja a senciência. Dizer que um ser possui interesses é semelhante a assumir que ele possui um grau de consciência, diferente dos seres que emitem apenas reflexos automáticos sem nenhuma consciência acerca disto, como plantas, por exemplo. (FRANCIONE; MARDER, 2012).

Deste modo, a senciência deve ser entendida não como um fim em si mesma, mas como um meio para um fim, que é permanecer vivo, na medida em que usam de seus atributos para evitar situações de dor e sofrimento, demonstrando assim o interesse na vida continuada. Como já foi ressaltado, para que um animal permaneça vivo, ele deve ser capaz de escapar de perigos e se mover em busca de alimento, abrigo e outras formas de proteção da vida. Para isto, ele precisará ter percepção e memória, não só do meio ambiente externo, mas de seu próprio corpo, logo, não há como negar que seres sencientes possuem um grau de autoconsciência. (FRANCIONE, 2008, p. 157-158).

3.1 Das faltas de Francione e da visão sencientista

Inicialmente, o aspecto mais problemático, não só da proposta de Francione, mas também como das outras éticas sencientistas até aqui vistas, é que as mesmas não enfrentam e não desejam refrear “o mecanismo universal da infinita acumulação de riqueza”. (SOUZA, 2012).

É possível observar que, na estrutura do pensamento do próprio Francione, a economia hoje ainda é extremamente dependente da exploração animal e, diferente do escravo, a grande maioria dos não-humanos ainda não possuem outra função além da condição de propriedade, ainda que como adorno estético enquanto domesticado. O próprio autor alega que críticos de uma perspectiva econômica do direito, sobre a escravidão humana, argumentam que a passagem do estatuto de propriedade para o de pessoa se mostrava bem mais eficiente para maximizar a produção e o “bem-estar social” naquele período. O próprio direito da criança foi analisado nesta perspectiva, visto que a sociedade, ao desejar maximizar o seu bem-estar, investe para que suas crianças possam alcançar em seu máximo o potencial de produtividade em uma vida. Para isto, inúmeras leis são criadas para assegurar educação, alimentação, saúde, bem como para restringir o trabalho com o objetivo de aumentar o retorno para o capital humano. (FRANCIONE, 1995).

De fato, embora não possa dizer que é uma justificativa moralmente aceitável, há um inegável peso o argumento de que as mudanças de status jurídicos tenham ocorrido em função de retornos econômicos. Portanto, por mais que Francione acredite que a sua proposta apresente um plano estruturado baseado no imperativo moral do não-tratamento como propriedade e na paulatina abolição de atividades exploratórias, ele não clarifica de que forma é possível a nossa estrutura econômica suportar os dispêndios financeiros oriundos deste novo tratamento ético.

Do mesmo modo, a proposta ética de Francione, assim como as demais propostas até aqui observadas, não enfrentam os baluartes responsáveis, não só pela lógica competitiva de acumulo individual de riqueza, mas também que asseguram a primazia da ontologia sobre a ética, ou seja, um modelo de pensamento que incita a dominação pela a tematização fechada, reduzindo o Outro ao Mesmo. Pode-se dizer que estas propostas, apesar de aparentemente bem-intencionadas, não passam de “mecanismos protelatórios, que não fazem mais do que acompanhar a lógica geral e totalizante do sistema” (SOUZA, 2012).

Ademais, Goodpaster (1978, p. 316) afirma que, biologicamente, a senciência é um artificio que tem por finalidade proteger a vida, e isto ao menos sugere que a capacidade de sofrer e sentir prazer nada mais é do que auxiliar a algo mais importante, e não o objetivo final em si mesmo. Taylor (2011, p. 15) também entende que todas as formas de vida estão incluídas na categoria de “sujeitos morais”, constructo similar à categoria de pacientes morais elaborada por Regan, haja vista que todos os seres vivos são vulneráveis às ações que melhorem ou piorem sua integridade física.

Destarte, sabe-se que a evolução de um ser vivo é resultado da seleção de inúmeras características aleatórias que se mostraram aptas a sobreviver, logo, cada forma de vida, por obviedade, realiza um esforço adaptativo para se manter nesta condição, deste modo, o interesse não dependeria da consciência ou sensibilidade. O próprio fato de estar vivo já representaria um estado de sujeição ao interesse de não ter sua integridade violada. Assim, éticas idealizadas no modelo sencientista ignoram a existência deste interesse e, por essa razão, não servem para direcionar considerações éticas vez que grande parte dos seres vivos não sentem dor e nem sofrem nos termos compreendidos pelo homem (FELIPE, 2007, p. 78).

Não obstante, outra imensa dificuldade é a de se estabelecer o que realmente difere uma coisa viva de uma não-viva. Sabemos que não há definição precisa na biologia do que seja a vida. De um lado, macromoléculas à base de carbono possuem um papel essencial nas entidades consideradas vivas; por outro lado, a vida artificial pressupõe que possa ser realizada em um computador adequadamente programado. (BEDAU, 2007, p. 455-459). Como bem esclarecem Cleland e Chyba (2002, p. 391), antes de elaborar tal definição, se é que é possível algum dia a mesma seja formulada, talvez o seu conceito não se limite ao que se entende por natural e, se não, a sua definição será uma questão de escolha linguística.

Logo, ao invés de nos prendemos em raciocínios que intentam justificar uma totalidade, devemos estar abertos à uma recepção ética, não apenas dos seres humanos ou “quase-humanos”, mas também do desconhecido, do diferente. Como assevera Ricardo Timm de Souza (1999, p. 171) “A Ética é, nesse sentido, uma forma de conhecimento, mas uma forma de conhecimento na qual o conhecimento não tem nem a primeira e nem a última palavra”. Não há um fechamento para o infinito ético, mas um eterno desejo em buscá-lo para além de nossas fronteiras.

Conclusão

Primeiramente, apesar de Singer ter desempenhado um papel significativo na disseminação de um discurso “pró-inclusão” dos demais animais na comunidade moral, o filósofo realiza a mesma tática ontológica de assimilação pela identificação e exclusão da diferença, ainda que de forma mais alargada que no antropocentrismo tradicional, embora se possa considerar sua proposta como uma espécie de reconstrução do antropocentrismo, já que o modelo tradicional expôs suas fragilidades de forma irreversível.

Ademais, Regan, apesar de suas críticas contundentes à teoria de Singer, não foi capaz de superá-lo, haja vista os seus equívocos epistemológicos se traduziram arbitrários. Já Francione, apesar de se mostrar mais coerente, não convence que sua teoria poderá ser adotada em conformidade ao modelo de produção atual, assim como não o enfrenta devidamente. Na verdade, nenhuma destas teorias assume que seja impossível, em uma metafísica do acumulo infinito através da exploração, a priorização de uma relação ética entre as inúmeras espécies, mesmo os animais não sejam abarcados pela sua própria alteridade, mas somente na medida em que se assentam na totalidade em que estamos inseridos.

Como se não bastasse, ainda há as propostas biocêntricas que relembram que a senciência nada mais é que um artificio para uma finalidade maior, ou seja, a própria vida, que empreende um esforço significativo para assim manter-se, embora não se possa se dizer, definitivamente, o que é vivo e o que não é.

Conclusivamente, as propostas de Singer, Regan e Francione para consideração moral dos seres sencientes são identificadas como sugestões protelatórias, que não fazem mais do que acompanhar a lógica totalizante da tradição do pensamento ocidental, para que esta não possa ser desarticulada já que se presta sempre a justificar e racionalizar a “realidade”.

 

Referências
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Nota
[1] Artigo produzido como parte do Trabalho de Conclusão de Curso na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB


Informações Sobre o Autor

Aline de Almeida Silva Sousa

Advogada. Graudada em Direito pela Unidade de Ensino Superior Dom Bosco. Realiza pesquisas em Ética Filosofia do Direito e Bioética


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