Resumo: Mediante do exame do conceito constitucional de renda e do direito à educação, este último sob o enfoque do mínimo existencial, este trabalho volta-se a discutir a legitimidade da restrição à dedutibilidade dos gastos com educação na formação da base de cálculo do imposto sobre a renda prevista no art. 8o, II, “b”, da Lei 9.250/1995. A competência tributária delimitada pelo emprego do termo “renda” no texto constitucional assegura ao sujeito passivo o direito de submeter-se a imposto cuja base de cálculo seja composta de forma dinâmica, de tal modo que não se podem ignorar as despesas necessárias à própria manutenção e de sua família. No tocante ao direito à educação, propõe-se observar um corte transversal condizente com a ideia de mínimo existencial, abrigando, sob a linha demarcada por essa noção, o direito à educação básica e infantil, hipótese em que a discricionariedade legislativa, relativa à previsão de dedutibilidade, é inexistente.
Palavras-chave: Direito Tributário. Imposto de renda. Mínimo existencial. Direito à educação.
Abstract: Through the examination of the constitutional concept of income and the right to education, the latter under the focus of existential minimum, this paper seeks to discuss the legitimacy of the restriction on the deductibility of education spending in the formation of the income tax base, provided for by the Law nº 9250/1995. The tax jurisdiction delimited by the term "income" in the constitutional text guarantees the taxable person the right to be subject to tax whose basis of calculation is composed in a dynamic way, in such a way that the expenses necessary for one’s own maintenance and that of one's family are not ignored. With regard to the right to education, it is proposed to observe a cross-section that is consistent with the idea of an existential minimum, sheltering, under the line demarcated by this notion, the right to basic and child education, in which case the legislative discretion regarding deductibility is non-existent.
Keywords: Tax law. Income tax. Existential minimum. Right to education.
Sumário: Introdução. 1. O Conceito Jurídico de Renda. 1.1. O conceito jurídico como proposição normativa. 1.2. A necessária existência do conceito constitucional de renda. 1.3. O conceito constitucional de renda. 1.3.1. “Certas” entradas e “certas” saídas. 2. Do direito à educação. 2.1. A disciplina constitucional da educação. 2.2. A jusfundamentabilidade do direito à educação sob a ótica do mínimo existencial. 3. Os gastos com educação e o imposto sobre a renda. 3.1. A disciplina infraconstitucional. 3.2. A discussão da doutrina e na jurisprudência. 3.3. Nossa posição. Conclusão.
INTRODUÇÃO
A legislação infraconstitucional que disciplina o imposto sobre a renda voltado às pessoas físicas prevê que o sujeito passivo da obrigação tributária, ao calcular a base de cálculo do imposto, tem a faculdade de descontar gastos efetuados com educação (art. 8o, II, “b”, da Lei 9.250/1995[1]). Sucede que essa previsão não contempla todo e qualquer gasto de tal natureza, na medida em que restringe a dedução respectiva por meios de critérios qualitativos e quantitativos. Do ponto de vista qualitativo, somente algumas espécies de despesas com educação são tidas por dedutíveis (creches, pré-escolas, ensino fundamental, ensino médio, educação superior, limitado à graduação, mestrado, doutorado e especialização, e educação profissional, compreendendo o ensino técnico e o tecnológico), enquanto que, sob o aspecto quantitativo, mesmo esses gastos não podem ser integralmente deduzidos, mercê das limitações estatuídas no art. 8o, II, “b”, 1 a 10, da Lei 9.250/1995.
As discussões em torno da constitucionalidade dessas limitações não são recentes. Sem embargo, pensamos que algumas palavras acerca do tema ainda podem ser utilmente tecidas, sobretudo porque, embora o Supremo Tribunal Federal[2] venha apresentando alguma resistência para apreciar a matéria, parece-nos[3] que cada vez mais que se aproxima o momento em que esse assunto ganhará destaque naquela Corte e, por consequência, junto à comunidade jurídica em geral.
A abordagem do tema terá dois pilares teóricos fundamentais. Em primeiro lugar, do ponto de vista da teoria geral do direito, este trabalho estará lastrado no Constructivismo Lógico Semântico[4], e, no que toca ao modo de se aproximar do direito tributário brasileiro, observará as lições de Geraldo Ataliba e Roque Antonio Carrazza (2015, p. 63), para quem não há como se estudar esse campo jurídico sem partir do texto constitucional, respeitando-se, em toda a sua magnitude, as regras e princípios dele decorrentes.
Normalmente, os debates em torno da dedutibilidade dos gastos com educação têm sido travados sob uma argumentação caracterizada pelo “tudo ou nada”. De um lado, alinham-se os que entendem que, afigurando-se a educação como um direito fundamental especialmente disciplinado pela Constituição da República, não seria dado à legislação infraconstitucional restringi-lo de qualquer forma, razão pela qual as limitações à dedutibilidade seriam invariavelmente ilegítimas. De outro, situam-se os que sustentam que a fixação da base de cálculo do imposto sobre a renda é matéria reservada ao livre juízo do legislador infraconstitucional, que, ao promover a ponderação dos interesses em jogo, estaria autorizado a manipular essas regras de dedutibilidade com ampla margem de discricionariedade. Nesse caso, o regime jurídico das dedutibilidades seria muito próximo daquele observado nos benefícios fiscais, eis que, tanto num como noutro caso, o principal fator a ser respeitado seria a liberdade do legislador.
Ambas as posições apresentam importantes argumentos, os quais serão mais bem detalhados em tópico próprio. Nada obstante, parece-nos que, examinando o conceito constitucional de renda e a questão da jusfundamentabilidade dos direitos sociais sob o parâmetro do mínimo existencial, uma posição intermediária, pouco explorada, poderia ser desenvolvida. É a isso que se propõe este trabalho.
1. O CONCEITO JURÍDICO DE RENDA
1.1. O conceito jurídico como proposição normativa
O sistema do direito positivo caracteriza-se com um corpo de linguagem de sobrenível de função prescritiva, sintaticamente fechado, embora semanticamente suscetível a influência de outros extratos de linguagem (contábil, econômico etc.). Do ponto de vista da Ciência do Direito, não cabe examinar os conceitos adotados em outros sistemas sociais, salvo quando esses mesmos que esses conceitos tenham sido abraçados pelo direito positivo.
Bem por isso, esse trabalho evitará fazer referências diretas a conceitos econômicos, contábeis ou de qualquer outra ordem do termo “renda”. O que importa, nesse contexto, é examinar qual o conceito de renda adotado pelo direito positivo brasileiro, a partir de uma analise que não pode ter outro ponto de partida que não o texto constitucional. Mas, antes mesmo de adentrar nessa seara, parece-nos que algumas palavras muito singelas são necessárias quanto à nossa concepção do que vem a ser um “conceito jurídico”.
A expressão “renda”, quando empregado em determinado texto do direito positivo, dá ensejo a uma significação que se apresenta como um fragmento de norma jurídica em sentido estrito, ou, em outras palavras, como uma proposição jurídica (CARVALHO, P. B., 2015, p. 134). Esse termo tanto pode ser empregado na regra matriz de incidência tributária (legislação ordinária), quanto para atribuir competência (legislativa) tributária a determinado ente federativo, no caso à União, hipótese em que poderia ser qualificada, para os que aceitam tal distinção, como uma regra (em sentido amplo) de estrutura.
Em qualquer dos casos, o termo “renda” enseja uma significação. Ante o contato com o texto normativo, o intérprete inicia um processo de produção de sentido, formulando proposições normativas, as quais, quando articuladas em forma de juízo hipotético condicional, produzem aquilo que o professor Paulo de Barros Carvalho denomina de norma jurídica em sentido estrito (2015, p. 135).
Adotado esse referencial teórico muito brevemente exposto, impõe-se concluir que o que se costuma denominar de “conceito jurídico” afigura-se, no mais das vezes, como uma proposição normativa, isto é, como uma significação construída com fundamento no plano de expressão do direto positivo ainda não suficiente, embora necessária, para estruturar um comando normativo em sua inteireza. Por outros torneios, pode-se dizer que a significação produzida a partir do termo “renda” integrará a estrutura de diversas normas jurídicas, de tal sorte que, pelo critério classificatório adotado, o conceito de renda ostenta a natureza de proposição normativa.
Dessa ordem de ideias e mantida fidelidade à proposta metodológica adotada, sobressaem duas consequências. A primeira delas consiste na constatação de que não existe termo sem um correspondente conceito, na medida em que, tendo contato com o texto, o intérprete inicia inexoravelmente uma produção de sentido, formulando no seu intelecto a significação daquele signo. O conceito é inerente à atividade interpretativa. Assim, quando o sujeito lê o termo “renda” empregado no art. 153, III, da Constituição da República[5], não há a produção de um nada na sua mente; dá-se uma produção de sentido, exsurgindo daí uma significação ou, para usar uma expressão mais consagrada, um “conceito de renda”.
A segunda consequência acima anunciada diz respeito ao que se deve entender por conceito jurídico, no sentido de conceito legal ou constitucional. Como resultado de um processo interpretativo, o conceito jurídico ou proposição normativa é uma construção intelectual que tem como base material o texto normativo (legal, constitucional etc.). Quando se fala em conceito constitucional, por exemplo, concebemos estar diante de um conceito construído pelo intérprete com suporte no texto constitucional e não de um conceito depositado nas dobras do texto constitucional simplesmente descoberto ou revelado pelo sujeito cognoscente. É justamente por isso que os conceitos constitucionais são dinâmicos, adaptando-se às novas exigências da sociedade, tal como se pode conferir mediante uma simples análise das sucessivas interpretações autênticas e não-autênticas a respeito de textos jurídicos inalterados no plano de expressão.
1.2. A necessária existência do conceito constitucional de renda
No que concerne especificamente ao ponto central em análise, as noções brevemente expostas nos conduzem a descartar prontamente a chamada teoria legalista do conceito de renda, segundo a qual o legislador infraconstitucional teria ampla liberdade para estabelecer a definição desse conceito, moldando o aspecto material da hipótese tributária do imposto sobre a renda (e a base de cálculo respectiva) sem amarras rígidas provenientes da interpretação do texto constitucional.
Essa teoria apresenta séria fragilidade quando afirma não existir um conceito constitucional de renda, pois isso equivale a dizer que, tendo contato com o texto constitucional, o sujeito não produz nenhuma significação. A interpretação da Constituição, nesse particular, produziria um nada no intelecto do intérprete, algo que, há de se convir, é extremamente difícil de se sustentar, sobretudo no âmbito do modelo de pensamento adotado neste trabalho.
Todo e qualquer emprego de um termo indica uma ideia, uma vez que o primeiro é a forma do segundo. Por isso, não nos parece correto pensar que a Constituição da República é um texto que emprega palavras sem que elas apontem para determinado sentido. Não que as palavras, as letras no papel, contenham um sentido a ser meramente extraído pelo intérprete. Essas marcas (palavras) são os dados empíricos que servem de base para o processo gerador de sentido, o qual resultará na construção de uma significação. Essa significação, criada a partir desse contato com texto, pode não ser estável – já que o direito positivo apresenta certa permeabilidade semântica e pragmática (conversação) -, mas ela definitivamente existe e tem o perfil que a comunidade jurídica e o intérprete autêntico lhe confere em determinado momento.
Assim, quando a Constituição fala em “renda”, estamos diante de um ato de seleção de palavras que cria duas classes: a classe do conceito “renda” e a classe do conceito “não-renda”. Negar que aí existe um conceito é o mesmo que negar a existência dessas duas classes, o que, no fim das contas, subtrairia qualquer utilidade do texto constitucional.
Se ao legislador fosse conferida a liberdade de (re)desenhar, conforme suas próprias preferências, as significações suscitadas pelo texto constitucional, haveria que se reconhecer, por imperativo pragmático, que o Poder Legislativo seria detentor, no final das contas, de um poder reformador materialmente ilimitado e formalmente livre das restrições procedimentais especificamente previstas para a alteração do texto constitucional. Hugo de Brito Machado (2009, p. 7), com sua reconhecida habilidade retórica, demonstra didaticamente a debilidade do argumento legalista:
“Quem quer que estude Teoria Geral do Direito sabe que os conceitos utilizados em norma jurídica de hierarquia superior não podem ser livremente alterados pela norma de hierarquia inferior. Se a lei ordinária pudesse definir casa como a edificação com mais de mil metros quadrados e piso de mármore ou granito, certamente estaria anulada a regra da Constituição segundo a qual ‘a cada é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial’.
Realmente, se as palavras empregadas nas normas da Constituição pudessem ser livremente definidas pelo legislador ordinário, a supremacia constitucional não seria mais que um simples ornamento da literatura jurídica. Através de definições legais, todos os dispositivos da lei maior poderiam ser alterados pelo legislador ordinário”.
A teoria legalista, quando testada em situações extremas, produziria resultados que dificilmente seriam aceitos pelos seus defensores. Imagine-se, por exemplo, que a legislação ordinária definisse renda como “a realização de despesas” ou como “a promoção de operações de circulação de mercadorias”. A constitucionalidade dessas normas hipotéticas provavelmente não encontraria defesa entre os juristas gabaritados para tanto.
Parece-nos que, quando se procura defender a inexistência de “conceitos constitucionais”, quer-se, na verdade, aludir muitas vezes à inexistência de um conceito fixo, estável e pré-determinado. O problema, portanto, não está na existência do conceito; esse sempre existe. A questão diz respeito à abrangência do conceito ou à definição do conceito. Que “renda” é termo que representa um conceito ninguém pode negar, tal como evidenciam os exemplos acima. No entanto, saber se determinadas situações satisfazem os critérios conotativos para pertencer à classe correspondente é uma questão muito mais difícil, porque, nesse caso, está em pauta não a existência do conceito – discussão que nos parece superada –, mas o perímetro desse conceito. Enfim, a dificuldade na construção do limite da classe (conceito de renda) não pode implicar a conclusão de que a classe não existe, por motivo mais que evidente.
Os contornos da classe, além de difícil mensuração, não são necessariamente estáveis e não podem ser tidos como uma condição a ser descoberta pelo aplicador do direito. Esses limites são estabelecidos na definição, de tal modo que as disputas argumentativas devem se situar nesse campo específico e não na eventual negação do conceito. Por isso mesmo, sob a perspectiva de quem precisa convencer, o problema está na forma de legitimar uma definição proposta, já que, no final das contas, terá sucesso em seu intento aquele que convencer sobretudo o intérprete autêntico.
1.3. O conceito constitucional de renda
Fixada a premissa de que existe um conceito constitucional de renda, cabe delimitar o conteúdo que nos parece mais consentâneo com o ordenamento jurídico. Esse mister, naturalmente, terá por base material o próprio texto constitucional, tomado não só na parcela que diz respeito ao termo “renda”, mas ao conjunto dos dispositivos que possam auxiliar a construção da proposição objeto de nossa atenção.
Em alentado trabalho sobre o tema, José Artur Lima Gonçalves (2002, p. 177) inicia essa investigação com o exame de “conceitos próximos” trazidos na Constituição, uma vez que, identificando-se o que não é “renda”, clareia-se o caminho para se saber o que efetivamente o é. Nessa toada, o autor, sempre a partir do texto constitucional, define “faturamento” como o “[…] mero ingresso; é a soma das faturas; é a grandeza do conjunto de ingressos decorrentes do conjunto de faturas emitidas” (GONÇALVES, 2002, p. 177). “Capital”, a seu turno, é expressão “[…] tomada pela Constituição na acepção de investimento, de titulação de patrimônio […]” (GONÇALVES, 2002, p. 178). Já “Lucro” significa, no plano constitucional, o “[…] resultado positivo da atividade empresarial” (GONÇALVES, 2002, p. 178). “Ganho” é referido na Constituição como “ingressos, de forma descompromissada da noção de saldo positivo” (GONÇALVES, 2002, p. 178), enquanto que “’resultado’ é tomado como situação terminal de um processo, sem qualificação valorativa relativamente à manifestação de capacidade contributiva”. Por fim, “patrimônio” significa “conjunto estático de bens ou direitos titulados por uma pessoa, pública ou privada” (GONÇALVES, 2002, p. 179).
A partir desses referencias, o autor propõe um conteúdo semântico mínimo do conceito constitucional de renda, traduzindo da seguinte forma: “(i) saldo positivo resultante do (ii) confronto entre (ii.a) certas entradas e (ii.b) certas saídas, ocorridas ao longo de um (iii) período de tempo” (GONÇALVES, 2002, p. 179). A ideia de saldo aparta o conceito de “renda” de conceitos próximos, como o de capital ou de patrimônio, por exemplo, evidenciando que, enquanto esses últimos revelam uma natureza estática, a renda é eminentemente dinâmica. A noção de renda é sempre de uma relação entre dados, isto é, decorre da comparação entre grandezas distintas, de tal modo que esse saldo, quando positivo, exprime aquele plus inerente ao conceito em questão.
Esse saldo pressupõe, portanto, a comparação entre ingressos e saídas no patrimônio do sujeito passivo. No entanto, não são quaisquer entradas e saídas que se qualificam a compor essa equação. Explica o autor: “A restrição a ‘certas’ entradas e ‘certas’ saídas é imperativo do corte necessário à análise, somente, daqueles eventos que tenham ontologicamente significado relacionado ao acréscimo patrimonial que entendemos configurar renda” (GONÇALVES, 2002, p. 182).
1.3.1. “Certas” entradas e “certas” saídas
A ideia de que nem todas as entradas verificadas no patrimônio do sujeito passivo integram a noção de renda não é problemática. Desde que se adote a noção de que renda é um saldo patrimonial positivo verificado entre dois momentos, é inescapável concluir que somente serão consideradas as entradas que efetivamente representem acréscimo patrimonial, vez que as demais entradas – as que não impliquem essa adição –, serão neutras no que toca ao patrimônio do sujeito passivo, afigurando-se irrelevantes no cômputo daquele saldo referido.
Com efeito, entradas que não configurem real acréscimo patrimonial, como empréstimos tomados, permutas de bens ou recebimentos de indenizações, não estão qualificadas a integrar essa dinâmica. Devem ser excluídas da classe “certas receitas”.
A jurisprudência dos tribunais[6] acolhe essa posição, muito embora o faça sobretudo com espeque na legislação infraconstitucional. Sem embargo, é inegável que, a se incluir na equação da renda todo e qualquer ingresso, estar-se-ia diante da transmudação do correspondente imposto (IR) em tributo sobre ingressos ou sobre mutações patrimoniais. A violação art. 153, III, da CR, estaria caracteriza, tal como, em tempos passados, já chegou a decidir o Supremo Tribunal Federal: “Saber se indenização é, ou não, renda, para o efeito do artigo 153, III, da Constituição, é questão constitucional, como entendeu o acórdão recorrido, até porque não pode a Lei infraconstitucional definir como renda o que insitamente não o seja”. (RE 188684, Rel. Min. MOREIRA ALVES, DJ 07/06/2002).
Muito mais delicada tem sido a discussão em torno das “certas saídas” e é justamente esse ponto de maior interesse para este trabalho, na medida em que se está examinando questão relativa à dedutibilidade das despesas com educação da base de cálculo do imposto sobre a renda.
Na doutrina, a noção que o saldo que caracteriza o conceito de renda deve ser integrado por entradas e saídas especialmente qualificadas parece ser bem aceita. Uma vez adotado o conceito de renda acima proposto, não haverá como se atendê-lo sem que, da equação correspondente, participem os três pilares registrados: (i) certas entradas, (ii) certas saídas e (iii) certo lapso de tempo. O problema que se coloca, como se pode antever, diz respeito à delimitação da extensão do conjunto formado pela expressão “certas saídas”. Enfim, a questão é saber que saídas são necessariamente relevantes para a composição do conceito constitucional de renda. Ou, em outras palavras, qual o núcleo semântico mínimo dessa expressão (“certas saídas”) que, por compor o próprio conceito constitucional de renda, não pode ser violado pelo legislador infraconstitucional.
Humberto Ávila qualifica como juridicamente relevantes, para fins de definição de renda, “[…] as saídas necessárias à manutenção da fonte produtora ou da existência digna do contribuinte” (2011, p. 34). Eis a sua lição (2011, p. 17):
“Somente a renda disponível da atividade desempenhada por ser tributada. Despesas indispensáveis à manutenção da dignidade humana e da família devem ser excluídas da tributação. Preservar a dignidade humana e a existência da família implica não as destruir por meio da tributação.
Quer dizer: a preservação do direito à vida e à dignidade e da garantia dos direitos fundamentais de liberdade alicerça não apenas uma pretensão de defesa contra restrições injustificada do Estado nesses bens jurídicos, mas exige do Estado medidas efetivas para a proteção desses bens. O aspecto tributário dessa tarefa é a proibição de tributar o mínimo existencial”.
Com efeito, integram o conceito constitucional de renda: (i) as saídas necessárias para a manutenção da fonte produtora das entradas que se acrescentam ao patrimônio do sujeito passivo e (ii) as saídas relativas aos gastos necessários para a manutenção digna do contribuinte e de sua família.
Os gastos para a manutenção da família, considerado um contexto de existência digna, não podem ser ignorados quando se está diante do conceito constitucional de renda. Essa noção, que representa importante avanço para a compreensão da composição do referido conceito, deixa, a seu turno, mais uma questão a ser solucionada: o que exatamente são gastos necessários à manutenção digna da família e, mais especificamente, os gastos com educação são qualificados necessariamente dessa maneira?
Para tentar contribuir com a resposta a essa questão, pensamos ser necessário examinar a disciplina constitucional do direito à educação, firmando uma posição teórica quanto aos contornos desse direito.
2. DO DIREITO À EDUCAÇÃO
2.1. A disciplina constitucional da educação
A Constituição de 1998 é reconhecidamente uma Carta de perfil analítico, disciplinando com relativa minúcia temas que normalmente são deixados para a legislação infraconstitucional. No que toca à educação, essa característica do texto constitucional ganha ainda mais intensidade, tendo-se conferido especial sede ao direito em questão, quando comparado com outros de semelhante índole.
O art. 6o da CR/88 qualifica o direito à educação como um direito social:
“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015)”
Além de conferir essa especial natureza ao direito à educação, o texto constitucional também contém diversas outras referências que lhe tocam diretamente, as quais, compreendidas no seu conjunto, permitem formar seguro juízo quanto à destacada atenção atribuída ao tema pelo Poder Constituinte. Conforme art. 7o, IV, da CR88, “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social (…) salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação (…)”. O art. 205, a seu turno, dispõe que “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. O art. 208 assegura a gratuidade da “educação básica obrigatória” (inciso I) e determina a “progressiva universalização do ensino médio gratuito” (inciso II). O parágrafo primeiro desse mesmo artigo estabelece que “O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo”. De igual modo, também restou fixado que “A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino” (art. 212).
O direito à educação, quando comparado com outros direitos sociais, foi objeto de uma atenção especial por parte da Constituição, dada a minúcia com a qual se dedicou a tema, traçando balizas mais estreitas para a atuação do Estado e reforçando, no que tange ao ensino obrigatório e gratuito, a previsão de que se trata de um direito subjetivo do particular. Vê-se que, quanto ao direito à educação, o arcabouço normativo desenhado pelo Poder Constituinte contém algumas indicações que podem ser muito importantes para se construir interpretativamente o núcleo mínimo desse direito, o que, como se verá mais adiante, terá consequências importantes para o fim de eventualmente caracterizar esses gastos do contribuinte (com educação) como integrante da classe “certas saídas”, isto é, como dedutíveis (ou não) da base de cálculo do imposto sobre a renda.
2.2. A jusfundamentabilidade do direito à educação sob a ótica do mínimo existencial
Todo o arcabouço normativo resultante da interpretação do texto constitucional conduz a doutrina a qualificar o direito à educação como um direito social ou como um direito fundamental de segunda geração, caracterizado por exigir (também) uma posição ativa do Poder Público na respectiva concretização. De acordo com André Ramos Tavares (2010, p. 869):
“Perante o direito à educação como direito fundamental, ao Estado surge um dever de atuar positivamente, seja i) criando condições normativas adequadas ao exercício desse direito (legislação), seja ii) na criação de condições reais, com estruturas, instituições e recursos humanos (as chamadas garantias institucionais relacionadas diretamente a direitos fundamentais)”.
Esse direito, concebido na sua máxima dimensão jusfundamental, imporia ao Estado, independentemente da edição de legislação infraconstitucional, o dever de (i) abster-se de adotar qualquer medida, inclusive tributária, que venha a inviabilizar ou dificultar o exercício do direito à educação; e a obrigação de (ii) implementar medidas concretas para o fornecimento do serviço educacional em todos os níveis. Somente assim o direito à educação poderia ser considerado, na sua integralidade, como um direito fundamental, isto é, como um direito de eficácia plena e aplicabilidade imediata, sujeito, portanto, à irrestrita tutela judicial. Afinal de contas, direitos fundamentais – e as expressões afins (direitos humanos, direitos do homem etc.) – podem ser definidos de várias maneiras, mas, do ponto de vista do direito positivo, parece-nos ter importância central aquela que identifica o regime jurídico dessa classe de direitos. E essa sistemática particular é justamente caracterizada pela possibilidade irrestrita de se produzirem normas individuais e concretas (sentenças judiciais, por exemplo), a partir tão somente do texto constitucional, para o fim de assegurar o âmbito de proteção da norma geral e abstrata (direito subjetivo fundamental).
Essa forma de enxergar os direitos sociais, destaca o Ricardo Lobo Torres (2009, p. 46), sensibilizou relevante parte da doutrina brasileira na década de 1980. Nesse sentido, cita o pensamento de Celso Antônio Bandeira De Melo, segundo o qual “todas as normas constitucionais concernentes à justiça social” geram direitos que são “verdadeiros direitos subjetivos na acepção mais comum da palavra” (apud TORRES, 2009, p. 46). Também Luís Roberto Barroso já escreveu, embora tenha evoluído no seu posicionamento, que
“[…] já não cabe negar o caráter jurídico e, pois, a exigibilidade e acionabilidade dos direitos fundamentais, na sua tríplice tipologia. É puramente ideológica, e não científica, a resistência que ainda hoje se opõe à efetivação, por via coercitiva, dos chamados direitos sociais”. (apud TORRES, 2009, p. 47).
A tese da indivisibilidade dos direitos humanos, que atribui o regime jurídico de direito fundamental aos direitos de defesa e sociais indistintamente, produz sério impasse. Isto porque, embora o sistema de direito positivo produza, na qualidade de metalinguagem, sua própria realidade (CARVALHO, P. B., 2014, p. 34), parece-nos certo que toda e qualquer norma jurídica somente poderá assentar-se sobre o modo lógico da possibilidade (CARVALHO, P. B, 2014, p. 54), de tal modo que a expedição de ordens jurídicas de cumprimento impossível acabaria por simplesmente desmoralizar a própria previsão normativa. A promoção dos chamados direitos sociais não depende tão somente da produção de um texto normativo que imponha tal obrigação ao Estado. Em sociedades em que os recursos econômicos são especialmente limitados, é inescondível a constatação de que nem todos os direitos sociais poderão ser plena e prontamente atendidos, de tal forma que escolhas muito difíceis deverão ser feitas pelas autoridades investidas de competência para tanto.
Essa ordem de ideias poderia conduzir à conclusão de que os direitos sociais seriam carentes de jusfundamentabilidade, de tal sorte que o legislador, quanto a eles, teria ampla margem de decisão, implementando-os de acordo com as opções políticas do momento. Essa conclusão, no entanto, não nos parece ser a melhor saída, eis que (i) também acabaria por desmoralizar o texto constitucional, que, quanto aos direitos sociais, teria sua normatividade completamente subtraída por essa tese; (ii) implicaria a adoção de um modelo de Estado claramente não acolhido na Constituição de 1998.
Diante dessa encruzilhada, Ricardo Lobo Torres (2009, p. 53) propõe a seguinte solução:
“A saída para a afirmação dos direitos sociais tem sido, nas últimas décadas: a) a redução de sua jusfundamentabilidade ao mínimo existencial, que representa a quantidade mínima de direitos sociais abaixo da qual o homem não tem condições de sobreviver com dignidade; b) a otimização da parte que sobreexcede os mínimos sociais na via das políticas públicas, do orçamento e do exercício da cidadania”.
Assim, mediante um corte transversal nos direitos sociais poder-se-ia separar (i) a parcela daqueles direitos essencial à existência digna do indivíduo e (ii) a porção desses mesmo direitos que vai além desse conteúdo mínimo. No primeiro caso, isto é, naquilo que diga respeito ao mínimo existencial, os direitos sociais estariam acobertados pelo regime jurídico próprio dos direitos fundamentais, enquanto que, na parcela restante, a implementação dos direitos estaria sujeita à mediação legislativa e, portanto, às disputas políticas travadas em torno sobretudo do orçamento.
Nesse sentido, a especial proteção dos direitos sociais, na qualidade de direitos fundamentais, estaria restrita ao mínimo existencial, tal como registra Ricardo Lobo Torres (2009, p. 41):
“Parece-nos que a jusfundamentabilidade dos direitos sociais se reduz ao mínimo existencial, em seu duplo aspecto de proteção negativa contra a incidência de tributos sobre os direitos sociais mínimos de todas as pessoas e de proteção positiva consubstanciada na entrega de prestações estatais materiais em favor dos pobres. Os direitos sociais máximos devem ser obtidos na via do exercício da cidadania reivindicatória e da prática orçamentária, a partir do processo democrático”.
Do ponto de vista da tributação, duas conclusões podem ser formuladas a partir dessas premissas. A primeira delas consiste em que o núcleo fundamental dos direitos sociais, resultante do corte promovido pela noção de mínimo existencial, está protegido contra a incidência de tributos, haja vista que o Estado, pela via da tributação, não pode obstar ou dificultar o exercício daqueles direitos que qualificou como fundamentais. Nesse particular, pode-se invocar, inclusive, princípio da não obstância do exercício de direitos fundamentais por via da tributação, cunhado por Regina Helena Costa (2006, p. 87), para quem:
“[…] se a Lei Maior assegura o exercício de determinados direitos, que qualifica como fundamentais, não pode tolerar que a tributação, também constitucionalmente disciplinada, seja desempenhada em desapreço a esses mesmos direitos”.
Em contrapartida, a segunda conclusão é a de que, desde que respeitadas as exigências constitucionais pertinentes, os direitos sociais podem ser tocados pela tributação, na parcela que sobreexcede o mínimo existencial. A porção dos direitos sociais que exorbitam a linha traçada pelo mínimo existencial não está protegida da tributação, razão pela qual, nesse particular, a imposição de gravame tributário estará à mercê de escolha política do legislador, respeitadas, por certo, as demais normas constitucionais conformadoras da atividade legislativa e tributária.
Esse corte permite avançar na compreensão do cruzamento entre tributação e direitos sociais, haja vista que introduz elemento capaz de assegurar a normatividade dessa classe de direitos, no seu aspecto negativo (proteção à tributação), sem cair no impasse que seria gerado pela aplicação da tese da indivisibilidade dos direitos fundamentais. No entanto, a definição do que seja exatamente esse mínimo existencial não é algo fácil de fazer, a menos que se recorra a expressões igualmente vagas que apenas deslocam a incerteza do definiendum para o definies.
No caso do direito à educação, essa incisão é particularmente ainda mais problemática e isso pode ser demonstrado quando se examinam outros direitos topicamente semelhantes. Note-se, por exemplo, que o direito social à moradia, também previsto no art. 6o, CR/88, revela esses dois aspectos de modo muito mais claro: o mínimo existencial tem ligação com o estritamente necessário para uma moradia digna, extrapolando essa noção moradias suntuosas, casas de veraneio etc. Enfim, aquilo que for considerado supérfluo, mesmo em se tratando de moradia, não estará protegido como direito fundamental, embora posa merecer diversas outras modalidades de proteção, legais e constitucionais. A jusfundamentabilidade do direito à moraria, pelo menos no plano teórico, é mais facilmente identificável, dentro do modelo adotado. O mesmo pode ser dito quanto ao direito à alimentação, também estabelecido no art. 6o, da CR/88: a jusfundamentabilidade desse direito, restrita ao mínimo existencial, não está ligada a refeições requintadas, mas apenas a uma alimentação digna e suficiente para a manutenção saudável do indivíduo. O supérfluo, mais uma vez, exsurge como elemento importante para se separar a face do direito situada no hemisfério do mínimo existencial daquela que não se abriga sob esse manto e que, portanto, não goza da especial proteção à tributação.
Quando se trata do direito à educação, no entanto, é difícil visualizar a aplicação dessa ideia de superfluidade. A noção de que determinados gastos com educação possam ser supérfluos pode não ser muito bem aceita, na medida em que o investimento em tal área é essencial para o desenvolvimento do ser humano naquilo que ele tem de mais humano. Assim, uma posição segundo a qual o direito à educação estaria, todo ele, inserido na concepção de mínimo existencial não seria reprovável e talvez seja o caminho mais propício para a superação das grandes e históricas dificuldades da sociedade brasileira.
Sem embargo disso, não se pode ignorar que mesmo o direito à educação pode ser visto em camadas de essencialidade. A partir do texto da Constituição de 1998, é possível verificar a especial atenção que foi dispensada à educação básica. De acordo com o art. 208, I, da CR/88, o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade. Aos particulares, ademais, foi expressamente assegurado que o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo. De outro lado, quando disciplina as demais etapas do processo educacional, a Constituição de 1988 foi mais comedida. Prescreve a progressiva universalização do ensino médio gratuito (art. 208, parágrafo 1o) e o acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um (art. 208, inciso V).
Destarte, quanto à educação básica, não nos parece haver dúvida que se situa no âmbito demarcado pela linha do mínimo existencial, tanto pela referência especial que recebeu no texto constitucional, quanto por configurar o núcleo mais inegociável do direito à educação (BARCELLOS, 2002, p. 258). A educação infantil, afigurando-se etapa anterior à educação básica, também já foi reconhecida pela Supremo Tribunal Federal como essencial à ideia de mínimo existencial (ARE 639337, pub. 15-09-2011)
Quanto às demais atividades educacionais – ensino médio, superior etc. –, apesar de extremamente importantes por razões mais que evidentes, parece-nos que escapam a esse conceito estrito de mínimo existencial, dado o tratamento que lhes foi conferido pela Constituição e, ainda, pela necessidade de se reconhecer que, embora não seja o ideal, não é impeditivo de uma vida digna a ausência de tais níveis de instrução, sobretudo quando considerado o atual contexto socioeconômico do Brasil.
3. OS GASTOS COM EDUCAÇÃO E O IMPOSTO SOBRE A RENDA
3.1. A disciplina infraconstitucional
O art. 8o, II, “b”, da Lei 9.250/1995[7], ao disciplinar a formação da base de cálculo do imposto sobre a renda da pessoa física, prevê a dedutibilidade de gastos efetuados com educação. No entanto, impõe certos limites.
Do ponto de vista qualitativo, as deduções estão restritas às seguintes atividades: creches, pré-escolas, ensino fundamental, ensino médio, educação superior, limitado à graduação, mestrado, doutorado e especialização, e educação profissional, compreendendo o ensino técnico e o tecnológico. Como se vê, as diretrizes adotadas na legislação, nesse particular, parecem ser as seguintes: (a) acolher a dedutibilidades dos gastos relativos à educação básica, ao ensino médio e ao ensino superior (este restrito a mestrado, doutorado e especialização) e igualmente à educação profissional; (b) excluir a dedutibilidade de outras despesas, tais como as relativas a cursos de idiomas, por exemplo.
Sob o critério quantitativo, a legislação estabelece um teto para as deduções, de modo que, independentemente do valor efetivamente dispendido, a dedução ficou limitada a um valor individual anual de R$ 3.561,50 (três mil, quinhentos e sessenta e um reais e cinquenta centavos), ou seja, R$ 296,79 (duzentos e noventa e seis e setenta e nove centavos) por mês, para o exercício de 2015. Ao assim proceder, o legislador infraconstitucional: (a) primeiro, dentro do universos da atividades educacionais que propiciam a dedução, não foi estabelecida nenhuma diferenciação entre educação básica, ensino médio, superior etc.; (b) segundo, fixou limite igual para todas essas atividades, limite este reconhecidamente aquém dos efetivos custos para a obtenção de uma educação razoável em nosso país (nesse sentido, conferir demonstrativo preparado pela OAB na ADI 4927).
3.2. A discussão na doutrina e na jurisprudência
Diante dessas limitações à dedutibilidade dos gastos com educação na apuração da base de cálculo do imposto de renda, formaram-se na doutrina e na jurisprudência duas posições diametralmente opostas, uma advogando a inconstitucionalidade das restrições impostas pelo art. 8o, II, “b”, da Lei 9.250/1995, especialmente quanto ao aspecto quantitativo, e outra defendendo a perfeita compatibilidade da disciplina legal com a Constituição. Um bom roteiro para se conhecer bem essas duas posições é a análise de julgamento proferido pelo Tribunal Regional Federal da 3a Região nos autos da Arguição de Inconstitucionalidade n. 0005067-86.2002.4.03.6100/SP, ao qual serão agregadas outras manifestações, sobretudo do Supremo Tribunal Federal e da doutrina especializada.
Naquele julgado, prevaleceu a posição de que os limites impostos pela legislação infraconstitucional são inconstitucionais, tal como se pode conferir a partir da leitura da respectiva ementa:
“CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. PESSOA FÍSICA. LIMITES À DEDUÇÃO DAS DESPESAS COM INSTRUÇÃO. ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 8º, II, "B", DA LEI Nº 9.250/95. EDUCAÇÃO. DIREITO SOCIAL FUNDAMENTAL. DEVER JURÍDICO DO ESTADO DE PROMOVÊ-LA E PRESTÁ-LA. DIREITO PÚBLICO SUBJETIVO. NÃO TRIBUTAÇÃO DAS VERBAS DESPENDIDAS COM EDUCAÇÃO. MEDIDA CONCRETIZADORA DE DIRETRIZ PRIMORDIAL DELINEADA PELO CONSTITUINTE ORIGINÁRIO. A INCIDÊNCIA DO IMPOSTO SOBRE GASTOS COM EDUCAÇÃO VULNERA O CONCEITO CONSTITUCIONAL DE RENDA E O PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA.
1. Arguição de inconstitucionalidade suscitada pela e. Sexta Turma desta Corte em sede de apelação em mandado de segurança impetrado com a finalidade de garantir o direito à dedução integral dos gastos com educação na Declaração de Ajuste Anual do Imposto de Renda Pessoa Física de 2002, ano-base 2001.
2. Possibilidade de submissão da quaestio juris a este colegiado, ante a inexistência de pronunciamento do Plenário do STF, tampouco do Pleno ou do Órgão Especial desta Corte, acerca da questão.
3. O reconhecimento da inconstitucionalidade da norma afastando sua aplicabilidade não configura por parte do Poder Judiciário atuação como legislador positivo. Necessidade de o Judiciário – no exercício de sua típica função, qual seja, averiguar a conformidade do dispositivo impugnado com a ordem constitucional vigente – manifestar-se sobre a compatibilidade da norma impugnada com os direitos fundamentais constitucionalmente assegurados. Compete também ao poder Judiciário verificar os limites de atuação do Poder Legislativo no tocante ao exercício de competências tributárias impositivas.
4. A CF confere especial destaque a esse direito social fundamental, prescrevendo o dever jurídico do Estado de prestá-la e alçando-a à categoria de direito público subjetivo.
5. A educação constitui elemento imprescindível ao pleno desenvolvimento da pessoa, ao exercício da cidadania e à livre determinação do indivíduo, estando em estreita relação com os primados basilares da República Federativa e do Estado Democrático de Direito, sobretudo com o princípio da dignidade da pessoa humana. Atua como verdadeiro pressuposto para a concreção de outros direitos fundamentais.
6. A imposição de limites ao abatimento das quantias gastas pelos contribuintes com educação resulta na incidência de tributos sobre despesas de natureza essencial à sobrevivência do indivíduo, a teor do art. 7 º, IV, da CF, e obstaculiza o exercício desse direito.
7. Na medida em que o Estado não arca com seu dever de disponibilizar ensino público gratuito a toda população, mediante a implementação de condições materiais e de prestações positivas que assegurem a efetiva fruição desse direito, deve, ao menos, fomentar e facilitar o acesso à educação, abstendo-se de agredir, por meio da tributação, a esfera jurídico-patrimonial dos cidadãos na parte empenhada para efetivar e concretizar o direito fundamental à educação.
8. A incidência do imposto de renda sobre despesas com educação vulnera o conceito constitucional de renda, bem como o princípio da capacidade contributiva, expressamente previsto no texto constitucional.
9. A desoneração tributária das verbas despendidas com instrução configura medida concretizadora de objetivo primordial traçado pela Carta Cidadã, a qual erigiu a educação como um dos valores fundamentais e basilares da República Federativa do Brasil.
10. Arguição julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da expressão "até o limite anual individual de R$ 1.700,00 (um mil e setecentos reais)" contida no art. 8º, II, "b", da Lei nº 9.250/95.”
A análise desse julgado é sobremaneira interessante porque a questão foi tratado com profundidade incomum, quando comparado com outros julgados sobre a matéria, o que nos permite colher posições bem fundamentadas, tanto a favor quanto contra a constitucionalidade da limitação à plena dedutibilidade dos gastos com educação da composição da base de cálculo do imposto sobre a renda.
Em favor da constitucionalidade art. 8o, II, “b”, da Lei 9.250/1995, o primeiro argumento alinhavado naquele julgado consistiu na afirmação de que a subtração dessa norma do ordenamento jurídico acabaria por caracterizar a atividade judicial como a de um legislador positivo, pois, caso acolhesse a pretensão do contribuinte, o Judiciário estaria introduzindo, nesse mesmo ordenamento, uma segunda norma de dedução integral. Esse argumento, aliás, tem sido prestigiado pelo Supremo Tribunal Federal. No RE 606179 AgR, a 1a Turma do STF, sob a relatoria do Ministro Teori Zavascki, decidiu “que não pode o Poder Judiciário estabelecer isenções tributárias, redução de impostos ou deduções não previstas em lei, ante a impossibilidade de atuar como legislador positivo”, razão pela qual “não é possível ampliar os limites estabelecidos em lei para a dedução, da base de cálculo do IRPF, de gastos com educação”.
A regra de dedutibilidade, portanto, foi caracterizada como um benefício fiscal, o que nos leva a pensar essa construção tem em sua base, ainda que não explicitamente, alguma das seguintes premissas: (a) ou não existe um conceito constitucional de renda; (b) ou, caso esse conceito exista, não faria parte dele a noção de que há “certas saídas” que devem ser necessariamente consideradas; (c) ou que, entre essas “certas saídas”, não estão necessariamente as despesas com educação. Adotada qualquer uma dessas ideias, pode-se sustentar que a regra de dedutibilidade dos gastos com educação seria um benefício fiscal, ficando à inteira mercê do legislador moldá-lo de acordo com suas próprias preferências, respeitados, é claro, os demais parâmetros constitucionais.
A partir do exame de outros precedentes, parece-nos que, por critério de coerência, o Supremo Tribunal Federal tem-se inclinado pela primeira opção, já que sequer conhece de recursos extraordinários sobre a matéria, por considerar trata-se de uma discussão de cunho infraconstitucional. No AI 724817 AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, a 1a Turma da Corte entendeu que a “discussão relativa à limitação da dedução, na declaração de ajuste anual do imposto de renda, dos valores pagos a título de educação, na forma da Lei nº 9.250/95, insere-se no âmbito infraconstitucional, sendo certo, ainda, que eventual ofensa à Constituição, caso ocorresse, dar-se-ia de forma reflexa ou indireta”. Para o Supremo Tribunal Federal, ao que parece, não haveria um conceito constitucional de renda, razão pela qual o desenho das eventuais deduções para a formatação da base de cálculo do imposto de renda dependeria exclusivamente a opção política do legislador.
Um segundo argumento à favor da regularidade da norma infraconstitucional foi colocado pelo Desembargador Federal Paulo Octávio Baptista Pereira no julgamento da já mencionada Arguição de Inconstitucionalidade n. 0005067-86.2002.4.03.6100/SP (trecho de voto, p. 9):
“Observe-se que nem todas as despesas eventualmente realizadas pelos contribuintes por insuficiência ou ineficiência do Estado em garantir os direitos previstos nos Arts. 6o e 7o, da CF (moradia, alimentação, lazer, vestuário, higiene, segurança) foram admitidas pelo legislador como dedutíveis (aluguéis e prestações para aquisição da casa própria, por exemplo). Até mesmo em relação à saúde, despesas com medicamentos, por exemplo, permaneceram excluídas”.
Essa fundamentação, a nosso ver, está diretamente ligada com a questão da jusfundamentabilidade dos direitos sociais. Aparentemente, diante da incapacidade do Estado de implementar todos esses direitos na sua extensão máxima, o Desembargador Paulo Octávio Baptista Pereira optou pela solução interpretativa que não os insere na classe dos direitos fundamentais, entendidos como aqueles de aplicabilidade plena e imediata. Por isso, esses direitos não estariam protegidos da tributação. A questão da jusfundamentabilidade restrita dos direitos fundamentais, segundo o corte resultante do mínimo existencial, não foi objeto de discussão, mas, ainda assim, a posição que prevaleceu é incompatível com essa forma de conceber os direitos sociais. A preservação dos direitos sociais não seria uma limitação ao exercício da competência tributária.
Em polo oposto – agora já ingressando nos argumentos contrários à constitucionalidade do art. 8o, II, “b”, da Lei 9.250/1995 -, o Desembargador Federal Mairan Maia argumentou o seguinte (trecho de voto, p. 27):
“O exercício dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição da República não pode, em hipótese alguma, ser obstado ou dificultado em função do exercício das competências tributárias inerentes aos entes políticos, também disciplinadas constitucionalmente, razão pela qual inviável admitir que quantias empenhadas na concretização de direitos dessa espécie sejam atingidas pela tributação”.
Como se vê, ao proteger de tributação os valores empregados na concretização dos direitos sociais – ainda mais sem fazer referência a qualquer limite para essa proteção -, essa posição parece acolher a tese da indivisibilidade dos direitos fundamentais, mantendo a salvo da incidência de tributos as despesas relativas aos gastos com educação. Os direitos sociais, concebidos como direitos fundamentais em toda a sua extensão, não admitiriam restrição por efeito do uso da competência tributária atribuída aos entes políticos. Nesse ponto, cabe destacar que o voto faz referência expressa à doutrina de J. J. Gomes Canotilho e ao princípio da máxima efetividade da Constituição.
A seu turno, o Desembargador Federal Johonson di Salvo, naquele mesmo julgamento, argumentou que:
“[…] o limite imposto pela lei significa tributação sobre despesa e não de renda, pois, como apontam com rigor as entidades que se debruçam em estudos a respeito da tributação, essa pífia dedução não paga sequer a carga tributária incidente sobre as mensalidades de escolas particulares (trecho de voto, p. 4)”.
Esses dois argumentos acima expostos são prestigiados por Hugo de Brito Machado (2009, p. 87), segundo o qual:
“Negar o direito de o contribuinte partilhar com a sociedade o ônus de seus gastos com educação, além de ser uma flagrante afronta aos dispositivos constitucionais que a colocam como um direito fundamental, viola também a Constituição porque implica a cobrança do imposto sobre algo que não é renda, mas despesa. Ninguém de bom senso, portanto, poderá considerar válido o dispositivo que limita a dedução das quantias com educação, na formação da base de cálculo do imposto de renda”.
Na mesma linha, embora com base argumentação diferente, aduz Carlos Leonetti (2003, p. 194):
“Com efeito, grande parte da população se vê̂ obrigada a utilizar os serviços de instituições de ensino privadas, com ou sem fins lucrativos, cujos custos via de regra consomem boa parte de seus rendimentos. Dessarte, os gastos com instrução também se incluem entre aqueles necessários e involuntários e que beneficiam não apenas o contribuinte e/ou seus dependentes, mas a comunidade em geral. (…) Neste giro, a capacidade contributiva do indivíduo depende dos montantes dos gastos com educação em que este incorre, impondo-se a dedução destes dos respectivos rendimentos brutos”.
Diante desse quadro, pode-se concluir que essa segunda posição, contrária à constitucionalidade do art. 8o, II, “b”, da Lei 9.250/1995, assenta-se nos seguintes fundamentos teóricos, nem sempre explicitados: (a) existe um conceito constitucional de renda; (b) é inerente a esse conceito uma dinâmica formada não só pode “certas entradas”, mas também por “certas saídas”; (c) as despesas necessárias do contribuinte, relativas à concretização de direitos sociais, devem integrar o conceito de renda, como espécie do gênero “certas saídas”; (d) isso porque os direitos sociais são considerados como direitos fundamentais na sua máxima extensão, não podendo ser tolhidos ou dificultados por via da tributação.
No que se refere ao argumento de que a declaração de inconstitucionalidade da norma examinada implicaria legislar positivamente, convém transcrever os seguintes trechos do parecer proferido pela Procuradoria Geral da República na ADI 4927:
“Em termos práticos, o pedido de inconstitucionalidade veiculado na inicial, acaso julgado procedente, acarretaria, ao menos momentaneamente (ou seja, até que sobreviesse lei para os fixar em nível mais elevado), a supressão dos limites de deduções, com a consequente possibilidade de o contribuinte pessoa física deduzir todo o montante de gastos com educação a cada exercício. Tal resultado não exige do Judiciário a elaboração de regra ou norma que implique indevida inovação do ordenamento jurídico.
Em outras palavras, no caso, a declaração de inconstitucionalidade das normas não representaria indevida atuação do Poder Judiciário como legislador positivo, pois não adicionaria regras ao regramento jurídico vigente, tampouco implicaria concessão de benefício fiscal a pretexto de isonomia”.
Esse parecer, é importante notar, reconhece (i) a existência de um conceito constitucional de renda, (ii) que esse conceito implica a dedução de certas despesas, mas (iii) entende, paradoxalmente, que a ponderação acerca dos limites dessas deduções cabe exclusivamente ao legislador, razão pela qual, mesmo em se tratando de educação, seria inviável falar-se em dedutibilidade plena. Observe-se:
“Despesas com saúde e educação são imposições da vida e ao mesmo tempo relacionam-se com direitos fundamentais garantidos pela Constituição. Caso a legislação fosse totalmente omissa em prever algum nível de dedução delas da base de cálculo dos tribu- tos impostos aos cidadãos em geral – como é o caso do mais direto entre todos, aquele que incide sobre a renda –, operar-se-ia, aí, sim, verdadeira inconstitucionalidade, por contrariedade ao conceito constitucional de renda.
A escolha, porém, de quais despesas são dedutíveis e sua quantificação pertence ao juízo de conveniência e oportunidade do legislador, pois não há preceito constitucional que determine parâmetro de dedutibilidade. Em resumo, a definição dos lindes da renda tributável é questão de política fiscal legislativa, que deve ser veiculada por leis ordinárias elaboradas de acordo com a Constituição”.
A posição da Procuradoria Geral da República, portanto, é a de que, embora exista um conceito constitucional de renda e esse conceito seja integrado pela dedutibilidade de certas saídas, o legislador poderia fazer uma “escolha” acerca de quais despesas devem ser admitidas para fim de dedução, segundo juízo de conveniência e oportunidade.
Dentro desse panorama brevemente traçado, o que pode perceber é que as argumentações, em regra, são colocadas de modo extremado, no sentido de que ou se admite a dedução integral em qualquer caso ou se entende que não há um direito constitucional mínimo à dedutibilidade de certas saídas, ficando tal disciplina ao sabor do juízo do legislador. Trata-se de argumentações caracterizadas por uma espécie de “tudo ou nada”: ou o direito à educação deve ser protegido da tributação em toda sua dimensão, ou esse direito não tem proteção especial alguma de índole constitucional, caso em que o legislador deve decidir, com ampla liberdade, sobre a relação entre esse direito e a tributação.
É certo que essas posições variam quanto às premissas adotadas, as quais nem sempre são devidamente explicitadas, mas, no geral, todas elas revelam alguma inclinação quanto aos pontos tratados nos tópicos anteriores deste trabalho. Note-se que os argumentos dos que defendem a constitucionalidade da atual disciplina constitucional partem de algum dos seguintes fundamentos: (a) da não existência de um conceito constitucional de renda; (b) da adoção de um conceito de renda do qual não fazem parte as necessárias deduções de certos gastos; (c) da ausência de jusfundamentabilidade do direito à educação, no que tange à proteção, ainda que relativamente a um núcleo mínimo, dos gravames tributários. O argumento segundo o qual a eventual declaração de inconstitucionalidade do dispositivo legal implicaria legislar positivamente também é muito empregado, muito embora me parece que, nesse caso, essa linha argumentativa é muito mais um reflexo desses outros argumentos do que efetivamente um fundamento autônomo e suficiente para sustentar a posição referida. Só haveria que se falar em legislador positivo se o direito à dedução dos gastos com dedução, no caso, não decorresse diretamente da interpretação do texto constitucional, o que, por certo, pressupõe adotar uma daquelas três posições acima expostas.
No hemisfério oposto, os argumentos alinhavados relevam tomada de posição quanto aos seguintes pontos abordados neste trabalho: (a) existe um conceito constitucional de renda; (b) esse conceito constitucional é integrado pela necessária dedutibilidade de certas saídas; (c) dentre essas saídas, estão os gastos com educação.
Feito esse breve resumo dos argumentos mais prestigiados sobre o tema, passa-se a expor a nossa posição.
3.3. Nossa posição
Diante das considerações formuladas nos tópicos anteriores, algumas posições já foram firmadas, as quais serão retomadas, de forma muito breve, apenas para auxiliar na construção do raciocínio que fundamenta nossa posição.
Em primeiro lugar, não nos parece razoável defender a inexistência de um conceito constitucional de renda. As palavras empregadas no texto constitucional apontam inescondivelmente para algum sentido, suscitando no intérprete a construção de uma significação. Aparentemente, confundem-se eventuais disputas argumentativas em torno da definição do conceito com a inexistência do próprio conceito (v. tópico 2.2.).
Diante da interpretação sistemática do texto constitucional, mediante a qual é examinada a noção de renda em conjunto com diversas outras, como patrimônio, receita, capital etc., temos firme convicção, com apoio na lição de José Artur Lima Gonçalves e da doutrina mais abalizada, que esse conceito deve ser compreendido de forma dinâmica, isto é, como um conceito que relaciona certos elementos durante certo período de tempo. Renda, portanto, no sentido que se pode construir a partir do texto constitucional, deve ser entendida como o “(i) saldo positivo resultante do (ii) confronto entre (ii.a) certas entradas e (ii.b) certas saídas, ocorridas ao longo de um (iii) período de tempo” (GONÇALVES, 2002, p. 179).
Essa definição traduz um importante avanço na compreensão do conceito, sobretudo porque, no que interessa mais particularmente para este trabalho, fixa a ideia de que não se estará diante do conceito de renda se não estiver presente o elemento essencial “certas saídas”. A dedutibilidade de certas despesas na formação da base de cálculo do imposto de renda é uma imposição constitucional, haja vista que essa exigência liga-se diretamente ao conceito (constitucional) de renda.
Naturalmente, essa premissa nos leva a rejeitar a posição segundo a qual a regra de dedutibilidade deveria ser vista como um benefício fiscal. Ora, na medida em que o cômputo de certas saídas é parte indissociável do conceito de renda, conceito este de índole constitucional, sobressai necessário reconhecer que a dedutibilidade dessas saídas decorre precisamente da norma constitucional e não da vontade do legislador infraconstitucional. Pode-se discutir – e, mais do que isso, dever-se discutir – quais são essas deduções essenciais, decorrentes da própria Constituição e, bem assim, o papel do legislador como intérprete do texto constitucional e participante ativo do processo de ponderação que antecede a edição dos enunciados normativos de sua competência. Mas, indubitavelmente, há que se reconhecer que, assim como renda apresenta um núcleo semântico inegociável, também a noção de “certas saídas” não está à inteira disposição do legislador, o qual deverá respeitar o sentido essencial dessa expressão construído a partir da própria Constituição.
Em geral, a doutrina identifica duas espécies despesas que devem necessariamente integrar o conceito constitucional de renda: as despesas necessárias à manutenção da fonte produtora das entradas que representam o aspecto positivo da renda e aquelas essenciais à manutenção digna do indivíduo e de sua família. Nesse sentido, além dos autores já citados, cabe uma breve referência à doutrina de Sacha Calmo Navarro Coelho (2005, 466):
“Enquanto as pessoas jurídicas são tributadas com base no chamado princípio do balanço, as pessoas físicas apuram a renda tributável pelo saldo entre o que ganharam durante o período de um ano, sejam rendimentos decorrentes do capital ou do trabalho, ou da combinação de ambos, e o que gastaram para obter os rendimentos, acrescido das despesas de auto-manutenção, aí incluído o mínimo vital para uma existência digna, abaixo do qual a renda não revela capacidade contributiva e, pois, é intributável”.
Conquanto o autor sustente que, abaixo do mínimo existencial, a renda deixa de ser tributável, pensamos que melhor seria dizer que a renda é justamente o resultado de uma equação em que as despesas essenciais, ligadas ao mínimo existencial, representam o subtraendo, de tal modo que efetivamente não há renda enquanto não for realizada essa subtração. Não se trata de qualificar a renda com não tributável, mas efetivamente de identificar não haver renda ainda devidamente apurada. Há tão somente algumas entradas, mas ainda não a renda calculada, razão pela qual não pode servir de base de cálculo do imposto de renda. Sem embargo, a conclusão do autor está em linha com a ideia central que nos sensibiliza: o mínimo existencial, na sua feição negativa, não pode ser alcançado pela tributação.
A lição de Klaus Tipke e Joachim Lang (2008, p. 463) é na mesma direção:
“Para o pagamento do imposto não é disponível que o sujeito passivo precise despender para sua própria subsistência de sua família… Por isso o mínimo vital e as obrigações de manutenção devem diminuir a base de cálculo. Vale o princípio da dedutibilidade de despesas inevitáveis (o chamado princípio de liquidez privada ou subjetiva)”.
Com base nessas considerações, é de se concluir que o conceito constitucional de renda tem como elemento essencial a consideração de “certas saídas” e que, dentre essas “certas saídas”, estão aquelas relacionadas ao mínimo existencial. E dessa ideia é possível sacar mais duas importantes noções.
A primeira e mais evidente consiste em que, respeitado o conceito de renda e delimitação do sentido da expressão “certas saídas”, haverá que se reconhecer a existência de despesas dedutíveis e de despesas não dedutíveis, já que a dedutibilidade está ligada a uma característica especial de uma certa classe de despesas, não decorrendo do simples fato de ser uma despesa. Tal consideração nos leva a rejeitar o argumento empregado por Hugo de Brito Machado e pelo Desembargador Federal Johonson di Salvo (v. tópico 3.2) segundo o qual um dos motivos que determinariam a dedutibilidade plena dos gastos com educação seria porque se trata de uma despesa e não de renda. O fato de ser uma despesa é uma condição necessária para a dedutibilidade; no entanto, não é uma condição suficiente. É imprescindível que a despesa esteja qualificada de forma especial.
A segunda conclusão, portanto, é a de que, para se concluir pela dedutibilidade ou não de certa saída, é necessário qualificá-la de acordo com os critérios explicitados. O Desembargador Federal Mairan Maia, por exemplo, entendeu que os gastos exigidos para a concretização dos direitos fundamentais (expressão empregada em sentido amplo, para designar os direitos sociais, inclusive) carregam consigo essa qualificação especial e, por isso, não podem ser alcançados pela tributação, inclusive, por meio de aplicação de regra restritiva de dedutibilidade.
Essa é uma posição que avança na qualificação das saídas relevantes para a composição do conceito constitucional de renda, mas que nos parece um tanto quanto extremada. Embora seja verdade que a tributação deva ser realizada de modo a minimizar que seus reflexos atinjam os direitos fundamentais, inclusive os sociais, parece que algum grau de interferência sempre haverá e, mais, que essa inevitável interferência é tolerada pelo ordenamento jurídico.
Robert Alexy (p. 277) expõe com muita clareza a concepção de que os direitos fundamentais, desde que entendidos como posições prima facie, estão suscetíveis a restrições, sem que isso cause maiores divergências na doutrina:
“O conceito de restrição a um direito parece familiar e não problemático. Que direitos tenham restrições e que possam ser restringidos parece uma ideia natural, quase trivial, que encontra expressão na Constituição alemã (arts. 5o, § 2o; 8o, § 2o; 10, § 2o; 11, § 2o; 11, § 2o; 13, § 3o; 14, § 1o, 2; 17a, §§ 1o e 2o; 19, § 1o, 104, § 1o). O problema para não estar no conceito de restrição a um direito fundamental, mas exclusivamente na definição dos possíveis conteúdo e extensão dessas restrições e na distinção entre restrições e outras coisas como regulamentações, configurações e concretizações”.
A bem da verdade, a restrição a direitos fundamentais é inerente à ideia de tributação. É bem destacada pela doutrina a tensão que existe entre esses dois polos, sobretudo no que toca ao direito de propriedade e ao direito à liberdade, ambos diretamente afetados pela tributação. A professora Regina Helena Costa destaca que a tributação de índole predominantemente fiscal afeta mais incisivamente a propriedade, enquanto que a tributação extrafiscal, justamente por revelar fins ordinatórios da conduta do sujeito passivo, tem ponto de contato acentuado com a liberdade (2006, p. 86-87). Essa relação entre direitos fundamentais (sentido amplo) e tributação, no entanto, não se esgota nesses dois direitos. É possível verificar essa oposição entre tributação e direitos fundamentais levando-se em conta os direitos à saúde, à moradia, à educação, dentre tantos outros.
Ocorre que, conquanto essa tensão seja mais comumente destacada sob a ótica da tributação como elemento de restrição dos direitos fundamentais, também não se pode ignorar que os direitos fundamentais somente podem ser promovidos pelo Estado se houver recursos econômicos disponíveis para tanto. Por isso, é certo que os direitos fundamentais são limites à atividade tributária do Estado, mas, sob outro ponto de vista, também se revelam como a fundamentação mais basilar para que a própria tributação exista e seja aceita pela coletividade.
Equilibrar esses dois pontos de contato verificados entre tributação e direitos fundamentais é o que nos parece essencial para a concepção de um sistema tributário harmônico e eficiente, pois, de um lado, o Estado não deve obstar, pela via da tributação, o exercício de direitos fundamentais e, de outro, deve viabilizar, com os recursos advindos da tributação, semelhantes direitos, em geral, para a parcela da população economicamente mais fragilizada. É claro que falar, no plano teórico, sobre esse necessário equilíbrio, ainda mais de um modo abstrato, não revela grandes dificuldades, de modo que tal exortação, desacompanhada de uma proposta mais detalhada, cairia num completo vazio.
É justamente por isso que a compreensão dos direitos sociais sob a ótica do mínimo existencial se mostra tão interessante. Com base nessa teoria, reduz-se a jusfundamentabilidade do direito social ao seu núcleo e garante-se uma estabilidade de regime jurídico quanto a essa sua dimensão. Nesse sentido, a síntese de Ricardo Lobo Torres (2009, p. 80) merece registro:
“Em síntese, a jusfundamentabilidade dos direitos sociais se reduz ao mínimo existencial, em seu duplo aspecto de proteção negativa contra a incidência de tributos sobre os direitos sociais mínimos de todas as pessoas e de proteção positiva consubstanciada na entrega de prestações estatais materiais em favor dos pobres. Os direitos sociais máximos devem ser obtidos na via do exercício da cidadania reivindicatória e da prática orçamentária, a partir do processo democrático. Esse é o caminho que leva à superação da tese do primado dos direitos sociais sobre os direitos da liberdade, que inviabilizou o Estado Social de Direito, que não permite a eficácia destes últimos sequer na sua dimensão mínima”.
Assim, embora Alexy esteja correto quando afirma que os direitos fundamentais (sentido amplo) podem sofrer restrições, essas mesmas restrições têm como limite o mínimo existencial, que deverá ser protegido, seja mediante prestações positivas ou, no que interessa mais diretamente a este trabalho, pela proibição de intervenção do Estado naquilo que constitui o núcleo essencial dos direitos necessários à dignidade humana.
No que diz respeito ao campo delimitado pela linha do mínimo existencial, a margem de atuação do legislador, quando se trata de restrição, inclusive por intermédio da tributação, é inexistente. De fato, “[…] há um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado na via dos tributos […]” (TORRES, 2009, p. 35). Bem por isso, malgrado não se negue que o legislador possa fazer escolhas na dosagem da tributação, inclusive quando se trata de disciplinar a dedutibilidade de despesas da base de cálculo do imposto de renda, também não se pode ignorar que não lhe é dado fazer qualquer escolha: a discricionariedade legislativa estará limitada pela linha do mínimo existencial. A tributação buscará seu ponto de equilíbrio com os direitos fundamentais (sentido amplo) em algum ponto da parcela que sobreexcede o mínimo existencial. Nunca abaixo dessa linha.
Enfim, (a) a tributação pode afetar os direitos sociais, mas (b) não pode ir além da linha traçada a partir da noção de mínimo existencial. Com base nessas duas premissas, não podemos concordar nem com a posição que tem a plena dedutibilidade de todos os gastos com educação como uma exigência constitucional e nem com o entendimento segundo o qual a regra de dedutibilidade dependeria de uma escolha do legislador, adstrito unicamente a juízo de conveniência e oportunidade. Não concordamos com a primeira porque ela estende o âmbito de irrestrita proteção do direito social para além do mínimo existencial e discordamos da segunda porque nega a existência de um núcleo do direito dotado de proteção especial e, portanto, fora do campo da discricionariedade legislativa.
No tópico 3.2, firmamos posição no sentido de que, a partir do exame do direito positivo, o direito à educação básica tem um tratamento singular, que o coloca em patamar sobremaneira especial. O artigo 208, I, da CR/88, prescreve que o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de educação básica obrigatória e gratuita. Associado ao dever do Estado, foi previsto destacadamente o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo. Essas cláusulas permitem compreender o grau de essencialidade que se conferiu ao direito em questão, o que é perfeitamente compreensível, de vez que a educação básica constituiu o núcleo mais elementar do direito à educação, revelando-se essencial à ideia de dignidade e mínimo existencial.
Ana Paula de Barcellos (2002, p. 258), ao abordar a composição do mínimo existencial, destacou a essencialidade do direito à educação fundamental:
“[…] o mínimo existencial que ora se concebe é composto por quatro elementos, três materiais e um instrumental, a saber: a educação fundamental, a saúde básica, a assistência aos desamparados e o acesso à justiça. Repita-se, ainda uma vez, que esses quatro pontos correspondem ao núcleo da dignidade humana que se reconhece eficácia jurídica positiva e, a fortiori, o status de direito subjetivo exigível diante do Poder Judiciário. (destaques não são do original)”.
Parece-nos seguro sustentar, portanto, que o direito à educação básica encontra-se diretamente relacionado com o conceito de mínimo existencial, razão pela qual deve estar completamente protegido contra a tributação, independentemente da vontade do legislador infraconstitucional. Essa proteção, repita-se, configura direito subjetivo exigível perante o Poder Judiciário, porque decorrente diretamente da Constituição.
Aplicada essa premissa mais geral ao caso concreto, parece-nos conclusão necessária aquela segundo a qual os gastos com educação básica não podem sofrer restrição no que toca à respectiva dedutibilidade na formação da base de cálculo do imposto de renda. Ora, uma vez reconhecido que (i) os gastos condizentes com o mínimo existencial devem compor a equação do conceito de renda e que (ii) as despesas com educação básica têm relação inescondível com o mínimo existencial, é seguro afirmar que a restrição à dedutibilidade prevista no art. art. 8o, II, “b”, 1 a 10, da Lei 9.250/1995, não nos parece estar de acordo com a Constituição Federal.
A norma decorrente desse enunciado não respeita o conceito mínimo resultante da interpretação do termo “renda”, pois, ao vedar a dedutibilidade integral de despesas essenciais à preservação do mínimo existencial, acaba por transformar o imposto sobre a renda em imposto sobre receitas. A advertência feita por Roque Antonio Carrazza (2012, p. 84) quanto a esse ponto é extremamente pertinente:
“[…] o IR não pode ser transformado em singelo imposto sobre receitas – o que ocorre quando se nega venham a ser abatidas de sua base imponível as despesas necessárias da pessoa física. A legislação infraconstitucional deve garantir, pois, o discernimento da renda tributável, com a subtração, dos ganhos globais, dos gastos para obtê-lo, máxime os representados pelos gastos familiares do contribuinte”.
Destarte, a irrestrita dedutibilidade dos gastos com educação básica na formação da base de cálculo do imposto de renda é uma exigência de ordem constitucional, como meio imprescindível para a proteção do mínimo existencial, razão pela qual a limitação quantitativa prevista no art. 8o, II, “b”, 1 a 10, da Lei 9.250/1995, parece-nos inconstitucional, nesse ponto específico.
Da mesma forma, embora a Constituição Federal, no capítulo dedicado ao direito à educação, não tenha dispensado, à educação infantil (art. 208, IV) – creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade –, a mesma atenção que conferiu à educação básica, existe certo consenso de que tal direito também se revela essencial para promoção do mínimo existencial. Nesse sentido, convém dar destaque a trechos de importante precedente do Supremo Tribunal Federal, que, embora esteja amparado em diferente e mais alargada noção de mínimo existencial, está em linha com nosso entendimento no que diz respeito ao cerne da questão:
“[…] A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). […]
A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. […]
A noção de “mínimo existencial”, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1º, III, e art. 3º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação e o direito à segurança”.[…] (ARE 639337 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125)
Como se vê, diante da jusfundamentabilidade do direito à educação infantil, resultante de sua ligação direta com a noção de mínimo existencial, o Supremo Tribunal Federal, afastando a aplicação da “cláusula da reserva do possível” e a discricionariedade do Poder Público, determinou a adoção concreta de políticas públicas (ações positivas) para o efetivo atendimento do comando constitucional sob análise (art. 208, IV). Sendo assim, tratando-se de previsão normativa de força suficiente para ensejar a adoção de uma decisão judicial dessa ordem, que interfere diretamente nas políticas públicas, há que se reconhecer, por imposição de coerência, que esse mesmo direito à educação infantil também demanda proteção máxima no seu aspecto negativo.
Os gastos com educação infantil, portanto, afigurando-se essenciais à salvaguarda do mínimo existencial, também devem ser integralmente deduzidos na composição da base de cálculo do imposto de renda, aplicando-se, nesse particular, as mesmas conclusões apresentadas quando se abordou a educação básica, inclusive, quanto à inconstitucionalidade – nessa parte – do art. 8o, II, “b”, 1 a 10, da Lei 9.250/1995.
Relativamente aos demais níveis de ensino, a Constituição prevê a progressiva universalização do ensino médio gratuito (art. 208, II) e o acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um (art. 208, V). Assim, sem embargo da inquestionável importância de uma educação mais completa, parece-nos que existe diferença de grau quando se trata da essencialidade da educação infantil e básica ante o ensino médio e superior.
Esse quadro normativo não nos confere segurança suficiente para defender que essas camadas do direito à educação – ensino médio e superior – estejam necessariamente situadas abaixo da linha traçada pela noção de mínimo existencial, o que, em princípio, conduz-nos a aceitar a discricionariedade legislativa na definição do equilíbrio que deve haver entre esses direitos sociais e a tributação. A dedutibilidade integral desses gastos na formação da base de cálculo do imposto não nos parece ser uma decorrência do conceito constitucional de renda e sequer uma exigência derivada da noção de mínimo existencial.
Sem embargo, essa discricionariedade não significa uma completa ausência de parâmetros à atividade legislativa. Os princípios de ordem mais geral como igualdade, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, eficiência, dentre outros, deverão ser observados pelo legislador, assim como ocorre na edição de qualquer ato de sua competência. A discussão quanto à dedutibilidade dos gastos com ensino médio e superior deve estar situada não na legitimidade da restrição em si, mas, sim, na compatibilidade do grau de restrição imposto pelo legislador com o próprio direito à educação e com os demais princípios constitucionais mencionados.
A legislação, segundo nos parece, foi estruturada de maneira muito questionável. Primeiro, porque tratou de modo linear todo e qualquer gasto com educação qualificado como dedutível, isto é, estabeleceu limite quantitativo único para qualquer despesa dedutível. E, segundo, porque esse teto é extremamente reduzido, revelando-se insuficiente para contemplar mesmo uma fração relevante do valor efetivamente pago em circunstâncias normais a estabelecimentos de ensino. Muito mais condizente com o equilíbrio entre tributação e educação seria a previsão de restrições específicas para cada tipo de gasto com educação, respeitando-se o grau de essencialidade crescente que existe entre ensino médio, ensino superior, mestrado, doutorado etc. E, bem assim, que essas restrições, atualmente previstas em forma de teto de dedutibilidade, observassem parâmetros mais condizentes, em termos de valores, com a realidade efetivamente vivenciada.
Isso nos leva a considerar que, muito embora seja possível introduzir, pela via da tributação, restrições ao direito à educação, ressalvada a educação infantil e básica, o modelo adotado pela legislação atualmente vigente (art. 8o, II, “b”, 1 a 10, da Lei 9.250/1995) pode ter extrapolado o âmbito da discricionariedade reservada ao legislador. Por isso, sem prejuízo da possibilidade geral de editar-se legislação restritiva do direito à dedutibilidade, parece-nos que o regime atualmente em vigor fica no limite do que pode ser considerado ou não abrangido pelo campo de mérito legislativo.
Essa percepção, no entanto, não se mostra suficientemente forte para justificar a inconstitucionalidade da norma, quanto a esses pontos específicos. Embora a escolha do legislador possa não ter sido a melhor, não se tendo, a nosso sentir, atendido os princípios constitucionais em questão da forma mais adequada, o juízo de inconstitucionalidade não se contenta com zonas de incerteza, no âmbito das quais convém preservar a ação do legislador.
Diante disso, mesmo ressalvando essa posição pessoal no sentido de que a legislação não foi desenhada da maneira mais condizente com o equilíbrio exigido entre tributação e direito à educação, parece-nos que a interferência do Judiciário nesse campo seria demasiada, razão pela qual as escolhas feitas pelo legislador merecem ser respeitadas. O aprimoramento desse regramento, ao nosso sentir, deve ocorrer por meio do exercício da cidadania e no âmbito do processo político.
Em linha com essas considerações, nossa conclusão, quanto às despesas com ensino médio e superior, é pela constitucionalidade do art. 8o, II, “b”, 1 a 10, da Lei 9.250/1995, ressalvando-se, no entanto, que a legislação poderia ter sido estruturada de modo a atender de forma muito mais plena as exigências constitucionais em jogo.
Por fim, no que toca às despesas com educação indedutíveis por critérios qualitativos – curso de idioma, por exemplo –, entendemos que se aplica, com maior razão ainda, aquilo que foi dito quanto à necessidade de se respeitar o mérito legislativo, uma vez que tais despesas não estão ligadas ao mínimo existencial, cabendo ao legislador calibrar a tributação e equilibrar os valores sensíveis envolvidos nesse processo.
CONCLUSÃO
A posição adotada neste trabalho parte de algumas premissas fundamentais: (a) a existência de um conceito constitucional de renda; (b) que esse conceito corresponde ao saldo apurado mediante a comparação de centras entradas e certas saídas, durante um intervalo de tempo; (c) que integram conceito mínimo dessas “certas saídas” e, portanto, o próprio conceito constitucional de renda, os gastos exigidos para a preservação do mínimo existencial; (d) a jusfundamentabilidade dos direitos sociais, inclusive à educação, está restrita à porção do mínimo existencial; (e) especificamente no que toca ao direito à educação, estão relacionadas ao mínimo existencial o direito à educação infantil e à educação básica, apenas.
A partir dessas premissas, foram firmadas as seguintes conclusões: (a) o art. 8o, II, “b”, 1 a 10, da Lei 9.250/1995, no que toca às restrições quantitativas à dedutibilidade de gastos realizados com educação infantil e básica, é inconstitucional; (b) esse dispositivo, quanto à disciplina referente aos demais gastos com educação, muito embora não tenha sido concebido da melhor forma possível, não se afigura inconstitucional.
A questão, segundo nos parece, não é trivial. Demanda séria reflexão sobre diversos assuntos, exigindo exame de temas mais afetos a diferentes áreas do direito. De um lado, impõe-se estudo quanto ao desenho constitucional da hipótese tributária possível do imposto de renda, haja vista a necessidade de se estabelecerem os limites para o exercício da competência tributária, notadamente quanto à fixação do aspecto material e, ainda, quanto à parcela mais importante do aspecto quantitativo situado no consequente normativo (base de cálculo). De outro, não se pode deixar de examinar questão central do direito constitucional, vale dizer, a questão alusiva a jusfundamentabilidade dos direitos fundamentais (e sociais), especialmente quanto ao grau de efetividade que eles devem ter no seu aspecto negativo (proteção à tributação).
São temas complexos e que, repita-se, merecem atenção especial por parte da doutrina e dos tribunais. O que se vê, no entanto, especialmente no Supremo Tribunal Federal, é o exame da questão de forma pouco interessada. Basicamente, os processos que tocam esse assunto são decididos, sem maiores aprofundamentos, mediante o emprego de premissas muito genéricas: (a) o Judiciário não poderia atuar como legislador positivo; (b) a fixação da base de cálculo do imposto de renda é matéria exclusivamente infraconstitucional[8].
Por tudo o que foi exposto nos tópicos anteriores, não podemos concordar com os argumentos utilizados pelo Supremo Tribunal Federal, muito embora, quanto às conclusões, exista um alinhamento circunstancial, no que diz respeito à restringibilidade da dedutibilidade dos gastos com educação que não se refiram à educação infantil e básica. O que se quer enfatizar, no entanto, muito mais do que essa divergência parcial de conclusão, é a necessidade de se discutir o assunto com mais comprometimento, o que requer, por certo, um aprofundamento nos debates quanto à pertinência das premissas utilizadas normalmente pela corte.
Essas discussões mais aprofundadas podem ser feitas no âmbito de diversos processos, conquanto dois mereçam referência especial. O primeiro deles, já referido neste trabalho, diz respeito à Ação Direta de Inconstitucionalidade 4927/DF, proposta pela Ordem dos Advogado do Brasil, entidade capaz de atrair especial atenção do Supremo Tribunal Federal para o enfrentamento mais detido da matéria. O segundo processo com potencial de gerar esse debate mais verticalizado é o de número 0005067-86.2002.4.03.6100, também já referido mais acima. Embora seja um feito sem nenhuma particularidade especial, a disputa argumentativa travada no Tribunal Regional Federal da 3a Região[9], que resultou no reconhecimento da inconstitucionalidade da limitação à dedutibilidade dos gastos com educação da base de cálculo do imposto de renda, pode servir de impulso para igual ordem de discussão no âmbito do Supremo Tribunal Federal.
De fato, existe espaço para que a discussão em torno do tema ganhe nova dimensão. E, ocorrendo esse debate mais alentado sobre o assunto, espera-se prevaleça posição comprometida com a autoridade do texto constitucional, no tocante à delimitação da competência tributária fixada a partir do conceito de renda, e, bem assim, com a noção de mínimo existencial, que assegura regime jurídico estável e de proteção integral da parcela dos direitos sociais essencial à dignidade humana. A proteção da educação infantil e básica em face da tributação não pode, por todos os argumentos expostos ao longo deste trabalho, ser concebida com um favor do legislador; trata-se, antes, de uma imposição constitucional e de um direito subjetivo exigível perante o Judiciário.
Informações Sobre o Autor
Leonardo Avelar da Fonte
Advogado Procurador do Município do Recife Mestrando em Direito pela PUC/SP