Platão. As Leis, Livro XI. Analogia ao direito contemporâneo

Resumo: O presente artigo faz uma análise do livro XI, da obra As Leis, escrita pelo filósofo grego Platão, traçando um paralelo entre as leis propostas por Platão e uma contextualização do direito vigente, destacando trechos do livro que indicam a atualidade do pensamento desse filósofo.

Palavras-chave: Platão; As Leis; Livro XI.

Abstract: This article an analysis of the Book XI, Laws, written by the Greek philosopher Plato, tracing a parallel between the laws proposed by Plato and a contextualization of the current law, highlighting sections of the book that indicate the actuality of the thought of this philosopher.

Keywords: Plato; Laws; Book XI.

Sumário: Introdução. 1. Tutela da propriedade privada. 2. Escravos são regulamentados como bens. 3. Regulamentação dos contratos. 4. Da tradição e lugar do cumprimento da obrigação. 5. Riqueza e Pobreza. 6. O exercício da advocacia. Conclusão.

Introdução

As Leis, última obra do Platão, publicada em 437 a.C., é um conjunto de recomendações que um legislador deve impor aos cidadãos. Nesta obra, Platão propõe um ordenamento jurídico ideal para um Estado projetado por ele. O livro possui trechos com linguagem propriamente jurídicas, é escrito em diálogo, com a participação de dois personagens: o Ateniense e Clínias.

Platão tenta estruturar a forma mais perfeita de Governo e afirma que o Estado deve ser livre, racional e amigo de si mesmo. Destaca que a Constituição que disponha de liberdade e sabedoria deve encontrar elementos nas duas formas de governo: monarquia e democracia. Afirma que todas as outras formas de governo são derivadas e que sem elementos da monarquia ou democracia um Estado não poderá ser bem governado.

A religião é tratada como fundamento primordial na moralidade pública e que deve ser observada pelo legislador para determinar os preceitos da moralidade. Platão confere uma origem divina às leis, com menção aos deuses repetidas vezes.  

As Leis é uma obra composta por doze livros. No presente artigo será feita uma análise especificamente do livro XI, no qual Platão apresenta recomendações de leis que tratam das relações patrimoniais, bens e comércio, sucessão e o testamento. É também abordado no livro, com menor destaque, temas como falso testemunho, envenenamento, responsabilidade por danos causados por violência ou roubo e a função do advogado. Platão dedica-se a desenvolver um longo regramento na linha sucessória, com atenção principal à sucessão testamentária. O testamento, previsto no direito sucessório brasileiro, é pouco utilizado no cotidiano, talvez por desconhecimento da população acerca do assunto, bem como os seus efeitos práticos e formas previstas em lei. Entretanto, esse tema não será examinado nesse momento e merece um artigo próprio diante da extensa matéria envolvida. 

O objetivo deste artigo é bastante específico: destacar e analisar algumas das leis propostas por Platão no livro XI e contextualizar a atualidade do pensamento filosófico com as leis brasileiras vigentes.

1. Tutela da propriedade privada

O livro XI inicia com a seguinte regra geral como medida de justiça: “ninguém tocará meus bens nem os moverá ao menor grau, se não tiver de modo algum, obtido meu consentimento, tendo eu que agir de maneira idêntica com relação aos bens das outras pessoas, mantendo-me prudente”.

A regra expõe claramente o reconhecimento e a tutela da propriedade privada. Platão emprega a moral para justificar que o descumprimento desta norma além de violar a lei geral do homem nobre, é um mal exemplo que o pai pode exprimir ao filho, uma vergonha do pai com os seus filhos. Cita que a lei geral do homem nobre deve seguir a regra “não toma o que não depositaste”.

No tocante ao comportamento e à penalidade para quem descumprir a lei, Platão indica que a pessoa que tiver conhecimento de alguém que se apropriou de bens de terceiro deverá comunicar aos seus oficiais. Os deuses determinarão sobre o bem e o transgressor da lei será executado pelo Estado. O informante será beneficiado com a conquista de reputação de um homem virtuoso.

Diante da penalidade proposta, é possível deduzir que Platão defendia a pena de morte até mesmo para os infratores nos crimes contra o patrimônio. O denunciante do ato seria agraciado com a reputação de homem virtuoso, o que na Grécia antiga era considerado como princípio de inteligência humana. O homem virtuoso era capaz de atingir a felicidade plena.    

No ordenamento jurídico brasileiro, a proteção da tutela da propriedade privada está presente no Constituição Federal, Código Civil (Lei 10.406/2002) e Código Penal (Lei 2.848/1940).

Na Constituição Federal, o art. 5º, inciso XXII, prevê que é garantido o direito de propriedade, assim como o art. 170 que estabelece a propriedade privada como um dos princípios gerais da atividade econômica.

No Código Civil há previsão que garante ao proprietário do bem o direito de reivindicar o que é de sua propriedade daquele que injustamente o possua ou detenha (art. 1.028). O proprietário tem a faculdade usar, gozar e dispor do bem. Entretanto, o direito à propriedade não é absoluto, assim como nenhum outro direito. Evoluímos ao pensamento de Platão ao limitar e relativizar o direito de propriedade que deve ser exercido respeitando as finalidades econômicas e sociais e a preservação do meio ambiente.

Em harmonia com o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, o Código Civil estabelece que o proprietário pode ser privado do seu bem nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, inclusive em caso de perigo público iminente. A norma declara que o coletivo é superior ao particular. Tanto o aspecto da finalidade da propriedade quanto o interesse público que se sobrepõe ao privado, não foi idealizado por Platão no livro XI. 

O Código Civil também estabelece que o proprietário pode ser privado do seu bem se o imóvel reivindicado consistir em extensa área na posse ininterrupta e de boa-fé de terceiro, por um período superior a cinco anos, se nesse bem tiverem sido realizados serviços e obras de interesse social e econômico relevante.

Não obstante o livro XI apresentar na grande maioria normas com características de direito privado, Platão também introduz delitos no texto, mas sem se aprofundar. No contexto de propriedade, impõe que: se alguém, quer voluntária ou involuntariamente esquecer algum dos seus bens atrás de si, aquele que o encontrar não o tocará, deixando-o no mesmo lugar, confiante que a deusa protetora dos caminhos o protegerá, como coisas dedicadas à sua divindade pela lei.

A penalidade para quem desrespeitar a regra e apanhar um bem esquecido por terceiro, será diferente para quem é escravo e quem é livre. Se o infrator for escravo, lhe será aplicado muitos açoites; se for um homem livre, terá que pagar dez vezes o valor do bem removido ao proprietário. Evidente a imposição de penalidades diferentes, uma vez que o escravo não tem recursos para cumprir uma pena pecuniária.

Na regra definida por Platão é mencionado o verbo ‘esquecer’. No Código Penal Brasileiro há previsão do crime de apropriação de coisa achada, conforme inciso II do art. 169: “quem acha coisa alheia perdida e dela se apropria, total ou parcialmente, deixando de restituí-la ao dono ou legítimo possuidor ou de entregá-la à autoridade competente, dentro do prazo de 15 dias.” Já o crime de furto, previsto no caput do art. 155 do Código Penal, dispõe: “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia”. 

No dicionário, o verbo ‘esquecer’ é encontrado como sinônimo de ‘perder’. Porém, há distinção. A coisa esquecida é deixada em algum lugar por um lapso de memória do dono, mas ele terá uma ideia do local esquecido, diferente da coisa perdida, que não se sabe o local. Quem se apropria de coisa esquecida, tendo conhecimento, comete o crime de furto e não de apropriação. De todo modo, entendemos que o intuito da norma proposta por Platão é reprimir o delito contra o patrimônio e tutelar a propriedade de coisa privada, podendo se encaixar tanto no furto quanto na apropriação, crimes previstos no Código Penal Brasileiro. A diferença é que na norma do filósofo, a coisa esquecida ou perdida deve permanecer intocável confiando que os deuses irão protegê-la.

Platão confere aos deuses um papel preponderante no cumprimento das leis e nas penalidades. 

Cumpre também mencionar que no sistema normativo brasileiro há previsão da inviolabilidade do bem de família, assim definido na Lei n. 8.009/1990, e o artigo 5º, inciso XXVI da Constituição Federal, esse último, confere proteção especificamente à pequena propriedade rural trabalhada pela família. A impenhorabilidade do bem de família é matéria de ordem pública e a lei visa assegurar sobretudo aos membros da entidade familiar uma existência digna e o bem-estar, considerando que a moradia é fundamental para propiciar essa proteção da vida familiar e a Constituição garante o direito à propriedade e à moradia.

No tocante aos bens intangíveis, a lei protege a propriedade intelectual. A Constituição Federal, art. 5º, inciso XXIX, prevê a proteção aos autores de inventos e criações industriais, propriedade das marcas, nomes de empresas e outros signos distintivos, sendo que cada ramo possui lei específica para a tutela de tais direitos.

2. Escravos são regulamentados como bens

No Estado ideal de Platão a sociedade é dividida em classes, com três camadas sociais: a dos filósofos, a dos guerreiros e guardas que devem defender o Estado, e o povo. Fora dessas três camadas restavam os escravos. No livro XI há claramente uma desigualdade de tratamento dos escravos com o resto do povo, inclusive pela condição imposta aos escravos.

Platão confere aos escravos tratamento que atualmente seria facilmente comparado a um bem ou produto qualquer.

No livro XI está expresso a regra aplicada para solucionar a reclamação na compra de um escravo doente: “Se um homem vende um escravo que está sofrendo de tuberculose pulmonar, cálculo renal, estrangúria ou da doença sagrada como é chamada, ou de qualquer outro mal mental ou corporal, que as pessoas em geral não conseguem perceber. No caso de o comprador ser um médico ou um treinador, não será possível para ele conseguir restituição para um tal caso, tampouco se o vendedor tiver avisado o comprador a respeito dos fatos. Mas se qualquer profissional vender um tal escravo a uma pessoa leiga, o comprador reclamará restituição dentro de seis meses.” 

Ao ler esse trecho do livro rapidamente nos vêm à memória o regramento do Código de Defesa do Consumidor no tocante às garantias legais, vícios do produto e prazo de reclamação. Não sendo uma relação de consumidor e fornecedor, recorre-se ao Código Civil que prevê o vício oculto, assegurando a devolução da coisa por defeitos ocultos, se vier a tornar imprópria ao uso a que é destinada ou que lhe diminua o valor (art. 441). Para o caso de bens móveis, o Código Civil estabelece o prazo máximo de 180 dias para devolver e anular a compra se o vício no produto só puder conhecido mais tarde.

Prosseguindo nas regras de Platão sobre os direitos do comprador de um escravo: “Se alguém vender, deliberadamente, um assassino, estando o comprador ciente do fato, não terá direito a restituição no caso de um tal compra; mas se o comprador ignorar o fato, terá direito à restituição logo que o fato for notado, e o julgamento ocorrerá perante um tribunal composto de cinco dos mais jovens dos guardiões das leis.”

Nesta situação, Platão indica que a ação será julgada diante de uma bancada de médicos nomeados e escolhidos por ambas as partes e a parte que perder seu caso pagará o dobro do preço da venda do escravo.

O pensamento é bastante atual, se não se tratasse de escravo. Por outro lado, já que o escravo é considerado um bem, uma propriedade do seu dono, nesse viés, as propostas de Platão são pertinentes para introduzir um regramento nas negociações de compra e venda de um bem.

3. Regulamentação dos contratos

A norma proposta por Platão sobre os contratos é muito próxima da nossa legislação. Vejamos: “Quanto aos contratos, quando alguém deixar de cumpri-los – a menos que sejam contrários às leis ou a qualquer decreto, ou tiverem sido celebrados sob coação ou de maneira injustamente compulsória, ou no caso da pessoa se ver involuntariamente impossibilitada de honrá-los devido a algum acidente imprevisto – em todos os demais casos de descumprimento contratual, poderão ser movidas ações nas cortes tribais, se as partes não forem capazes de entrar num acordo prévio junto a árbitros ou vizinhos.”

No Código Civil há previsão expressa dos requisitos objetivos para a validade do contrato: objeto lícito, possível, determinado ou determinável (art. 104, II). O objeto lícito é o que não contraria a lei, a moral e os bons costumes. O objeto pode ser dividido em jurídico, no sentido do conteúdo do negócio, que será sempre uma conduta humana: dar, fazer ou não fazer; e o objeto material, que são os bens ou prestações sobre os quais incide a relação jurídica obrigacional.

A ilicitude do objeto é mais ampla que a impossibilidade, que pode ser física (que provem de leis físicas ou naturais) ou jurídica (quando o ordenamento jurídico proíbe). A impossibilidade do objeto anula o negócio. Por último, o objeto do negócio jurídico deve ser determinado ou suscetível de determinação no momento da execução. 

Na segunda parte, Platão descreve que ninguém pode deixar de cumprir o contrato a menos que tenha sido celebrado sob coação ou de maneira injustamente compulsória. Nesse sentido, contextualizando nossa legislação, temos a previsão dos defeitos do negócio jurídico, que pela existência de algum vício torna o negócio anulável. O art. 171, inciso II, do Código Civil enumera seis defeitos. Dispõe que é anulável o negócio jurídico por vício resultante de erro, dolo, coação e estado de perigo, lesão ou fraude contra credores.

Os defeitos do negócio jurídico são imperfeições na manifestação de vontade, ou seja, não constitui verdadeiramente o desejo da parte. No caso específico da fraude contra credores, o vício não está na formação da vontade ou da declaração, mas no intuito de prejudicar terceiros.

A coação é uma ameaça ou pressão exercida para forçar alguém a realizar um ato contra a sua vontade. A coação pode ser absoluta, com o emprego de força física; e relativa, que é uma coação psicológica. No caso da primeira, trata-se na realidade de uma inexistência do negócio jurídico visto que há uma ausência do principal requisito que é a declaração da vontade.

O art. 151 do Código Civil dispõe sobre os requisitos da coação: deve ser de tal intensidade que incuta na vítima um fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família ou aos seus bens. Ademais, a coação deve ser a causa determinante do ato, grave e injusta, de modo que será entendida como ilícita, contrária ao direito.

Platão inclui também como causas para o não cumprimento do contrato a impossibilidade involuntária de honrar o contrato por motivo de acidente imprevisto. Aqui há uma total conexão coma as hipóteses de caso fortuito ou força maior previstas no capítulo do Inadimplemento das obrigações do Código Civil (art. 393). Ocorrerá quando decorrer de fato alheio à vontade das partes, por ação de terceiro, fenômenos da natureza ou de acontecimentos inevitáveis, impossibilitando o cumprimento da obrigação. 

Não existindo as três hipóteses mencionadas – contrário à lei ou a qualquer decreto; celebrado sob coação ou de maneira injustamente compulsória; ou involuntariamente impossível de honrar devido a algum acidente imprevisto – segundo os ensinamentos do filósofo, o contrato deve ser cumprido. É impossível não reconhecer que são construções de ideias muito avançadas para a época e que certamente influenciou na história de elaboração de muitas legislações atuais.  

No sistema jurídico brasileiro há outras hipóteses de defeitos nos negócios jurídicos que são capazes de anulá-los, como mencionado, o erro, o dolo, o estado de perigo, a lesão e a fraude contra credores. Há ainda as causas de invalidade do negócio jurídico, previstas no capítulo V, Livro III, do Código Civil, que abrange a nulidade e a anulabilidade do negócio. Sinteticamente, a diferença é que a nulidade é de ordem pública e decretada no interesse da própria coletividade, sendo que o ato nulo não produz efeito; e a anulabilidade é de interesse privado da pessoa prejudicada e o negócio anulável produz efeitos até o momento em que é decretada a sua invalidade.

Prosseguindo com o tema dos contratos, Platão afirma que “Aquele que contrata um trabalho, a lei dá o mesmo conselho que deu ao vendedor, no sentido de não superestimar seu trabalho, ou seja, colocá-lo acima do seu valor estrito; faz a mesma prescrição a quem realiza o trabalho, pois ele, o artesão, seguramente conhece o devido valor. Numa cidade de homens livres, é errado que um artífice tente, por meio de sua arte agir artificiosamente com as pessoas leigas, caso em que a pessoa prejudicada gozará do recurso de processar aquele que o prejudicado. ”

Pretendeu-se reforçar que na contratação de serviços a lei será igualmente aplicada. Platão condena o prestador de serviços que de modo artificioso aproveita-se do desconhecimento do contratante para lhe aplicar um preço abusivo. Segundo ensina, o prestador de serviços deve ser razoável e justo no valor do serviço e não poderá cobrar um preço excessivo, ou seja, acima do valor exato do serviço, sob pena de ser processado pelo contratante prejudicado.

A respeito do descumprimento do contrato por parte do contratante que deixa de pagar o valor devidamente acordado, a primeira penalidade possui um apelo divino: “menospreza a Zeus, o patrono do Estado e Atena”. Desse modo, justifica a aplicação de uma regra para o devedor em apoio aos deuses e à união do Estado: “todo aquele que tiver previamente recebido um trabalho encomendado e deixar de pagar o preço dentro do prazo contratado ficará obrigado a pagar o dobro do preço.”

4. Da tradição e lugar do cumprimento da obrigação

Platão também regulamenta a transferência de domínio das coisas móveis e o lugar do pagamento: “E quando alguém realizar uma transação comercial com outra pessoa mediante um ato de compra ou venda, a transação será feita por uma transferência de mercadoria para o lugar apontado no mercado, e em nenhum outro lugar mais, e por pagamento do preço na praça e nenhuma compra ou venda será feita sob crédito”.

No direito brasileiro, o domínio de coisa móvel só se adquire pela tradição. A tradição é a entrega efetiva da coisa móvel feita pelo alienante ao adquirente. O contrato cria direitos e obrigações, mas não basta para a transferência do domínio. Na obrigação de entregar algo a alguém, o contrato gera apenas um crédito, mas, por si só, não transfere o domínio. O art. 481 do Código Civil preceitua que “um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro”. A tradição não envolve somente negócios jurídicos a título oneroso, como na compra e venda, mas também negócios jurídicos a título gratuito, como na doação.

O lugar da entrega da coisa pode ser escolhido livremente pelas partes. Se as partes não dispuserem, a entrega será no domicílio do devedor. Assim dispõe o art. 327 do Código Civil: “efetuar-se-á o pagamento no domicílio do devedor, salvo se as partes convencionarem diversamente, ou se o contrário resultar da lei, da natureza da obrigação ou das circunstâncias”. Decorre do princípio do favor debitoris, correntemente utilizado no direito civil e comercial para proteger o devedor. 

A parte final da redação da lei de Platão dispõe que não será permitida a compra e venda à credito. Esta proibição pode ter como finalidade evitar endividamentos e cobrança de juros por parte dos comerciantes, principalmente para aproveitar-se dos necessitados, corroborando no entendimento já divulgado de atribuir à classe dos comerciantes como mercenários.

De todo modo, Platão determina que se a transação comercial não for realizada nos moldes da lei, valendo-se tão somente na confiança da pessoa com a qual se está transacionando, não poderá posteriormente utilizar-se de meios processuais e de amparo legal, uma vez que as regras não foram seguidas.

5. Riqueza e Pobreza

Não se pode fazer uma análise do livro XI das Leis sem mencionar o pensamento de Platão sobre riqueza e pobreza para o Estado idealizado por ele. Afirma que a riqueza e pobreza são dois inimigos do legislador e que os extremos devem ser combatidos. Define a riqueza como um mal que corrompe a alma dos seres humanos com o luxo, e a pobreza, por meio de sofrimento, faz com que o indivíduo pratique ações vergonhosas, rendendo-se à indignidade.

Nesse contexto, Platão aponta que os extremos da riqueza e pobreza é uma doença, indicando os remédios: “O primeiro é empregar a classe dos comerciantes o mínimo possível; o segundo é designar para essa classe os homens cuja corrupção se revelaria uma grande perda para o Estado; o terceiro é descobrir um meio pelo qual as disposições daqueles que se dedicam a essas atividades possam não se tornar com tanta facilidade contaminadas pela impudência e a mesquinhez da alma.”

Platão corrobora que a atividade do comércio não é nobre e nem merecedora de respeito. Porém, pode reestabelecer o equilíbrio dos bens, o que não seria possível, segundo ele, sem a prática do comércio varejista que torna igual a distribuição de mercadoria. Justifica que deve ser legalizada de modo que a atividade do comércio seja praticada de acordo com um regramento, com o intuito de impedir a corrupção e atender plenamente as necessidades de todas as pessoas. O comerciante mercenário, que se aproveita de uma determinada situação de necessidade do consumidor do serviço, exigindo valores altos, é considerado por Platão como prática criminosa. A corrupção foi vinculada somente à classe dos comerciantes.

Para combater essas imperfeições, Platão propõe uma sequência de leis, sendo a primeira: “nenhum dos detentores de terras que pertencem às 5.040 habitações se torne, voluntária ou involuntariamente, um comerciante varejista ou mercador, ou se envolva em qualquer atividade a serviço de pessoas que lhes são inferiores, a não ser que seja para seu pai, mãe ou aqueles de uma geração ainda anterior, e todos aqueles que são mais velhos do que ele, sendo homens livres, de modo que preste serviço a homens livres.”

A segunda lei impõe que somente os estrangeiros que possuem residência fixa na cidade (denominado em Atenas como ‘meteco’) e os estrangeiros de fato, poderão se dedicar ao comércio varejista. Prossegue na terceira lei indicando que estas pessoas serão fiscalizadas pelos guardiões da lei para que os trabalhos sejam fornecidos e executados por eles da melhor maneira possível, ou menos ruim possível. Ressalta ainda que os guardiões devem protegê-los ainda mais que os outros (a quem denominou de bem-educados) por serem diferentes (que não foram educados por nascimento ou formação) sendo mais difíceis de serem afastados dos modos ilícitos e maus.

Diante dos escritos de Platão no livro XI, nota-se que os comerciantes são tratados por ele como uma classe inferior, com depreciação, sem formação e mercenários. Por sua vez, reconhece que o comércio varejista pode reestabelecer um equilíbrio dos bens, reduzindo as extremidades da riqueza e pobreza, mas somente se existir um regramento para o exercício desta atividade.  

Na Constituição Federal Brasileira há um projeto político de Estado com previsão de metas a serem cumpridas e consta como um dos objetivos fundamentais da República a erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais e regionais. O art. 3º prevê: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

O art. 79 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), incluído pela Emenda Constitucional n. 31 de 2000, estabeleceu a criação do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, para vigorar até 2010, tendo como objetivo viabilizar a todos os brasileiros acesso a níveis dignos de subsistência. Os recursos captados serão aplicados em ações de nutrição, habitação, educação, saúde, reforço de renda familiar e outros programas de interesse social destinados à melhoria da qualidade de vida.

O Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza é regulamentado pela Lei Complementar nº 111/2001, na qual restaram definidos o modo de captação dos recursos e as ações e programas a serem executados. Em 2010, promulgou-se a Emenda Constitucional n.º 67/2010 prorrogando-se por tempo indeterminado o prazo de vigência do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza.

Um estudo divulgado pelo Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo (IPC-IG), vinculado ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) indicou que entre 2004 e 2013, os índices de pobreza no Brasil caíram de 20% para 9% da população e de 7% para 4% no caso da pobreza extrema. Está mais presente no meio rural, sendo as regiões Norte e Nordeste as que apresentam as maiores taxas de prevalência da pobreza. Foram considerados para o estudo os critérios como pobreza e extrema pobreza as pessoas que ganham R$70,00 e R$140,00 por mês.[1]

Platão prega que um Estado bem organizado jamais pode abandonar uma pessoa a ponto de ser reduzida à pobreza extrema. Entretanto, a singela solução dada por Platão para erradicar com os indigentes é simplesmente expulsá-los da cidade. A lei sugerida por Platão para solucionar o destino daqueles que são mendigos é a seguinte: “não haverá mendigos no nosso Estado e se alguém tentar praticar a mendicância, de modo a sobreviver esmolando interminavelmente, os agorânomos o expulsarão da ágora e o corpo dos astínomos o expulsará da cidade, bem como ele será banido de qualquer região do território para fora deste pelos guardiões do campo (agrônomos), para que todo o país fique inteiramente livre de uma tal criatura.”

Quando referido por Platão que não haverá mendigos, significa que o Estado não poderia permitir a pobreza extrema. A lei, portanto, indica que se alguém tentar praticar a mendicância será expulso da cidade. Ao que parece, o seu intuito é evitar que pessoas utilizam desta prática. Entretanto, ninguém faz mendicância por vontade, mas por necessidade. Expulsar os mendigos da cidade não resolve a pobreza. Esse pensamento não condiz em nada com um Estado Socialista.

6. O exercício da advocacia

Na última parte do livro XI, Platão dedica-se a tratar do exercício da advocacia. Ele inicia enaltecendo a profissão do advogado e faz uma semelhança à beleza da justiça: “ninguém negaria que a justiça entre os seres humanos é uma coisa bela e foi ela que civilizou todos os assuntos humanos. E se a justiça é bela, como negar que a profissão da advoga-la também não o é?”.

Entretanto, o enfoque dado por Platão é a utilização do exercício desta profissão para a prática de arte nociva. Critica severamente o advogado que utiliza da sua arte da retórica e persuasão para atuar na defesa de alguém, independentemente de os argumentos serem justos ou injustos, em troca de pagamento. Diante disso, ele afirma que o Estado não deve jamais tolerar esse tipo de prática ardilosa, denominando estas pessoas de “artista”, que interpreta e mente para convencer o outro, sendo considerado como uma afronta à justiça.

Nesse contexto, Platão sugere uma lei, inclusive com previsão de pena de morte para o advogado que, por ambição, tentar desfigurar os atos com argumentos que não são justos. A lei possui os seguintes termos: “Se alguém for flagrado tentando reverter à força dos argumentos justos nas mentes dos juízes, ou multiplicando processos indevidamente, ou auxiliando outros a fazê-lo, quem desejá-lo o acusará de conduta perversa ou apoio a conduta perversa, e ele será julgado perante a corte dos juízes selecionados, e em caso de condenação, a corte determinará se o seu comportamento é provocado por ambição ou espírito de querela; se for por disposição a querela, a corte fixará um período de tempo o qual lhe será interdita toda a ação pessoal tanto quanto qualquer discurso de defesa a favor de alguém; se for por ambição, ele deverá, se for estrangeiro, deixar o território do Estado para não retornar jamais, sob pena de ser punido com a morte. Se ele for um cidadão, será punido com a morte por haver amado tanto o dinheiro a ponto de colocá-lo acima de tudo. A pena capital se aplicará também a todo aquele que for condenado duas vezes por tal conduta movido pelo espírito de querela”.

 A redação da lei é esclarecedora por si só e a penalidade é extremante severa. O motivo dessa rigidez está associado à antipatia e rivalidade que Platão nutria em face dos Sofistas, que teriam sido os primeiros advogados na história da Grécia. Os Sofistas utilizavam da retórica e da persuasão para ganhar os processos e eram remunerados por esta atividade. Platão os considerava como negociadores de conhecimento, o que o levou a questionar os fundamentos da ciência do Direito.

No nosso ordenamento jurídico também há penalidade para o profissional que cometer infração disciplinar. O rol bastante extenso das infrações disciplinares está previsto no art. 34 do Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil, Lei 8.906/2004. O Estatuto determina que o advogado tem o dever de atuar com ética, ou seja, deve proceder de forma que o torne merecedor de respeito e que contribua para o prestígio da classe e da advocacia (art. 31).

Platão define dois atos como condutas perversas: (i) reverter à força dos argumentos justos nas mentes dos juízes; e (ii) multiplicar processos indevidamente, ou auxiliar outros a fazê-lo. No primeiro ato, Platão sugere a punição para o advogado que faltar com a verdade. Nas devidas proporções, contextualizando com o direito atual, o advogado tem o dever de ética, previsto tanto no Estatuto da Advocacia quanto no Código de Ética e Disciplina da OAB. O advogado tem o dever de agir com honradez, com observância aos deveres da justiça e da moral, respeitando o ordenamento jurídico e o padrão geral de honestidade. Entretanto, cabe também ao advogado defender o seu cliente, expondo a verdade do cliente.  

Dentre os princípios previstos no Código de Ética que devem formar a consciência do advogado temos, “ser fiel à verdade para poder servir à Justiça como um de seus elementos essenciais”. O Código de Ética proíbe ao advogado expor fatos em juízo falseando deliberadamente a verdade ou empregar de atos de má-fé (art. 6º). Desse modo, não pode o advogado jamais alterar dispositivos de lei, jurisprudências, doutrina, documentos, nem mesmo instruir o seu cliente e testemunhas a mentirem.

As sanções disciplinares previstas no Estatuto da Advocacia consistem na censura, suspensão, exclusão e multa (art.35). Cada sanção será aplicada de acordo com a infração cometida, conforme regulamento no art. 37, sendo a pena de exclusão a mais grave delas. O poder de punir compete exclusivamente à Ordem dos Advogados do Brasil. 

Importante destacar que a Constituição Federal dispõe que o advogado é indispensável à administração da justiça e confere-lhe proteção dos seu atos e manifestações no exercício da profissão pela garantia da inviolabilidade (art. 133). O Estatuto da Advocacia determina que o advogado presta serviço público e exerce função social (art. 2º, §1º), sendo assim, o exercício da advocacia, mesmo que de forma privada, tem o propósito de fazer justiça.

7. Conclusão

O livro XI trata de apresentar um conjunto de leis de natureza civil, regendo as relações entre as pessoas, os seus bens, as obrigações, o comércio e a sucessão, não sendo este último tema examinado neste artigo.

É possível notar algumas contradições nas propostas de Platão. A primeira é a racionalidade e a religião. Platão propõe um Estado racional, mas a religião é muito predominante na estrutura e origem das leis, bem como na penalidade. Confere às leis uma origem divina, indicando, por exemplo, como motivo de cumprimento de determinada norma o temor aos deuses. Há previsão de penalidade de censura e desonra, demonstrando, inclusive, ser mais rigorosa que uma multa de grande valor. A segunda contradição está na proposta de um Estado livre, mas com a permanência da escravidão. Há uma passagem no livro que diz “numa cidade de homens livres…”, por outro lado, Platão dedica-se a regulamentar o comércio dos escravos, as penas específicas e diferenciadas para estas pessoas, e as relações entre os escravos e os seus donos.  Por fim, Platão propõe um Estado Socialista, não obstante reconhecer a propriedade privada e a sua proteção, inclusive com pena de execução para o transgressor da lei. 

Na concepção de Platão, devem haver leis para estabelecer um equilíbrio entre a riqueza e a pobreza. A proposta de igualdade proporcional, as garantias aos direitos e combate aos extremos da riqueza e pobreza é um pensamento muito audacioso para a época.   

Platão reconhece a importância do exercício da advocacia, aliás, a Grécia é considerada o berço da advocacia, onde surgiram grandes oradores. Entretanto, Platão critica a sua prática por mercenários.  Condena veemente as pessoas que, com o único propósito de ganhar dinheiro, independentemente de os argumentos serem justos ou não, utilizam da arte da retórica e da persuasão, que, para Platão, são virtudes recebidas dos deuses. A previsão de pena de morte para esse tipo de conduta retrata a desproporção existente entre o delito e a pena na antiguidade.

De todo modo, o pensamento de Platão é bastante atual. O livro foi publicado em 437 a.c., mas é possível notar, diante das leis retratadas neste artigo, como são próximas das normas que vigoram atualmente. Daí a importância da leitura de clássicos da Grécia, o pensamento inovador e influencias trazidas para a estrutura política e jurídica de muitos países.

 

Referências
PLATÃO. As Leis. São Paulo: Edipro, 1999.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria Geral das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. 31 ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
FIUZA, Ricardo. Novo Código Civil Comentado. 5. Ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
 
Nota

Informações Sobre o Autor

Apoliana Rodrigues Figueiredo

Advogada. Mestranda em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. MBA em Direito Eletrônico pela Escola Paulista de Direito. Especialista em Direito Empresarial (pós-graduação lato sensu) pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus


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