Resumo: Este trabalho de conclusão de curso tem por objetivo analisar as características de um possível psicopata na sociedade e o consequente tratamento determinado pelo Direito Penal Brasileiro. A escolha do tema justifica-se, ante a polêmica existente na doutrina, na jurisprudência e como deve ser tratado em vista do que dispõe, o artigo 26 § único do Código Penal Brasileiro. Inicialmente, a pesquisa é voltada para teoria do crime, possibilitando adentrar aos elementos atinentes ao conceito analítico, com especial foco na culpabilidade e na imputabilidade. Posteriormente, no âmbito da psicopatia, também chamada de transtorno da personalidade antissocial, os estudos são relacionados à definição e principais características, ficando a cargo da psiquiatria e psicologia a laboriosa tarefa de analisar e diagnosticar o perfil do psicopata. Os exames da neurociência utilizados em larga escala pela psicologia moderna e filosófica, objetivam avaliar a capacidade dos psicopatas em realizar, ou não, juízos axiológicos prévios ao agir, a análise sobre julgamentos morais e a influência na tomada de decisões. Por fim, o estudo tem por escopo abordar especificamente a imputabilidade penal, em face do atual desenvolvimento da psicopatologia e da antropologia no hodierno sistema jurídico brasileiro.[1]
Palavras-chave: Psicopata. Psicopatia. Direito Penal Brasileiro. Antropologia. Culpabilidade. Imputabilidade.
Abstract: This course completion work aims to analyze the characteristics of a possible psychopath in society and the consequent treatment determined by Brazilian Criminal Law. The choice of theme is justified, faced with the controversy in doctrine, jurisprudence and how it should be treated with in accordance, article 26, sole paragraph of the Brazilian Penal Code. Initially, the research is focused on crime theory, making possible to enter into the elements related to the analytical concept, with a special focus on culpability and imputability. Subsequently, in the scope of psychopathy, also called antisocial personality disorder, the studies are related to the definition and main characteristics, being in charge of psychiatry and psychology the laborious task of analyzing and diagnosing the profile of the psychopath. Neuroscience examinations used in large scale by modern and philosophical psychology, aim to evaluate the ability of psychopaths to perform, or not, previous axiological judgments when acting, the analysis of moral judgments and influence in decision making. Finally, the study aims to approach specifically criminal imputability, given the current development of psychopathology and anthropology in today's Brazilian legal system.
Keywords: Psychopath. Psychopathy. Brazilian Criminal Law. Anthropology. Culpability. Imputability.
Sumário: Introdução. 1. História da psicopatia. 1.1 Psicopata x Serial Killers. 1.2 Aspectos do transtorno de personalidade antissocial. 1.3 Psicopatas: uma visão mais detalhada. 2. A imputabilidade no código penal brasileiro. 2.1 Inimputáveis e Semi-imputáveis. 2.2 Perturbação da saúde mental. 3. Teoria do crime. 3.1 Conceito analítico. 3.2 A culpabilidade como requisito estrutural do crime. 4. A responsabilidade penal dos psicopatas. 5. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O estudo pormenorizado da psicopatia no Brasil tem despertado ao longo dos anos interesse da comunidade científica, de modo que o tema é de suma importância para a Psicologia Forense e o Direito Penal, mais precisamente na área da Criminologia. Lombroso (1876) registra que, conforme estudos da Escola Positiva, desde os primórdios da história, as mais diversas Escolas Penais já faziam análises atinentes ao criminoso em si e suas compleições físicas.
Para tal, a criminologia surge como ciência empírica e interdisciplinar às Ciências Penais, responsável pela análise de um conjunto de conhecimentos específicos acerca de pontos elementares, como por exemplo, o estudo da mente criminosa, observação minuciosa do delinquente, da conduta e as condições em que o crime foi praticado. Percebe-se que, para a análise e estudo do tema ora apresentado, a esta Ciência, por conseguinte, se deve conceder importância especial, por ser responsável pelo fornecimento de material necessário para a apreciação acurada do delinquente.
Compreender as condições sociais, morais e culturais em que o indivíduo está inserido é crucial para que se possa esclarecer as motivações que suscitam um indivíduo a delinquir e como se deve aplicar a lei penal ao caso concreto, de tal modo que o magistrado, na análise do caso efetivo, necessita da referida avaliação, que deve ser considerada conjuntamente com outros indícios e provas, seja para a absolvição, fixação da pena base – adequada e proporcional, bem como o cumprimento de uma medida de segurança.
A Psicologia Forense, como ramo da Criminologia, neste cenário, mostra-se apta à especificação de conceitos inerentes ao conhecimento psicológico e jurídico. Assim sendo, nesse diapasão, surge a figura do psicopata, tema central desta pesquisa, que será melhor definido e explicado em capítulo específico.
A psicopatia, também conhecida como transtorno da personalidade antissocial, dissocial, psicopática, dentre outras nomenclaturas, transforma o indivíduo em um ser totalmente insensível aos valores sociais, de modo que sequer a coercibilidade do Direito mostra-se apta a limitá-lo. Por essa razão, o estudo do psicopata pela Ciência Jurídica deve ser feito com enfoque especial, no intuito de proteger a sociedade, assegurando a paz coletiva.
O tema escolhido para o presente trabalho justifica-se, portanto, por questões de ordem sociocultural, uma vez que os efeitos sórdidos, violentos e desumanos decorrentes da prática delitiva realizada por psicopatas atingem toda a sociedade. Além disso, mostram-se plenamente capazes de transgredir normas morais e jurídicas, bem como eliminar pessoas que estejam no caminho, para suprir seus desejos. Indiferentes, não compreendem e não se importam com o sofrimento alheio e as sanções sociais, excedendo os limites humanos. Em geral, os psicopatas são indivíduos desprovidos de culpa ou remorso.
Em suma, a pesquisa consiste, inicialmente, na apresentação, de forma clara e objetiva, do termo psicopatia, com ênfase na análise das peculiaridades que permeiam a personalidade dos psicopatas. Neste ponto, serão analisados textos da psiquiatria e psicologia no intuito de exemplificar como a neurociência é capaz de atestar por meio da Functional Magnetic Resonance Imaging (FMRI) e outras técnicas de imagem, a definição da psicopatia, bem como delinear, do ponto de vista penal, o problema da inimputabilidade, dispondo de avanços científicos mais recentes.
Posteriormente, será analisada a imputabilidade penal de forma genérica, fundamentada na capacidade do indivíduo de realizar ou não julgamentos morais e de determinar se sua conduta está de acordo com tais entendimentos. Assim, a investigação mostra-se essencialmente criminológica, transpassando as teorias abordadas no sistema penal e os métodos de realização das perícias médicas de cada indivíduo para aferição de sua sanidade mental, no campo das mencionadas ciências da mente e também ao tratamento conferido pelo Código Penal Brasileiro.
O capítulo seguinte tem como escopo examinar a Teoria do Crime, com ênfase no conceito analítico, analisando e compreendendo as consequências que devem ser suportadas pelo psicopata.
Nas linhas seguintes, será abordada particularmente a culpabilidade. Ademais, será delineado o conceito de crime adotado e a compreensão da culpabilidade como requisito estrutural do delito, conforme entendimento mais consentâneo com o Estado Democrático de Direito.
Por fim, busca-se compreender quais são as alternativas de punição mais adequadas, diante do sistema penal brasileiro. Neste capítulo será examinada qual a resposta oferecida pelo Direito Penal para os crimes cometidos por esses agentes, considerando que possuem consciência total das práticas realizadas, pois a sua parte racional/cognitiva é perfeita e íntegra.
Ademais, do ponto de vista lógico-sistemático, é essencial compreender que o estudo se faz com atenção à Constituição Federal, em observância aos direitos fundamentais, princípios e garantias inerentes ao Estado Democrático de Direito.
1 HISTÓRIA DA PSICOPATIA
Desde os primórdios, ao usar o termo psicopatia, resgatam-se na memória personagens caricatos de fácil reconhecimento, com traços óbvios de personalidade violenta e assustadora, além de desvios comportamentais, tal como, Hannibal Lecter que personaliza o mal no filme “O silêncio dos inocentes”. No entanto, o termo psicopata não pode ser associado levianamente à fisionomia, por tratar-se de análise de identificação psicológica, com exemplos na história mundial de diferentes personalidades, mas com desvios comportamentais cabíveis de reconhecimento, tais como Adolf Hitler, Saddam Hussein, Ted Bundy[2], Jeffrey Dahmer e Charles Manson.
Para Innes (2003), “desde tempos imemoráveis a psicopatia vem sendo discutida sobre várias vertentes, seja no âmbito filosófico, psicológico, biológico ou no âmbito do direito. Relatos históricos demonstram que várias culturas atribuíam os seus valores e visões para tentar explicar o que seria a psicopatia.”[3]
Em meados de 400 a.C., a sociedade da Grécia Antiga foi uma das primeiras a abordar o tema psicopatia, onde os gregos estudavam o comportamento humano, suas causas e a reação corporal dos indivíduos nas pesquisas e discussões. Todavia, as ciências ainda não haviam experimentado avanços significativos àquele tempo, o que só ocorreu com o ateniense Hipócrates, denominado “pai da medicina ocidental”. Desde então, Hipócrates estudou possíveis transtornos mentais que se originavam no organismo do ser humano, descrevendo um conjunto de desvios comportamentais semelhantes aos estudados atualmente.
Os estudos do filósofo Hipócrates se distinguiram por ser o pioneiro, ao analisar a atualmente conhecida como “teoria dos quatro humores corporais”, que se subdividiam em bílis negra, bílis amarela, fleuma e sangue ou linfa, elementos observados no humor, capazes de determinar os comportamentos pessoais (exemplo a ser citado é o da bílis amarela característica dos sujeitos dominadores e violentos).
Innes (2003) conceitua que:
“Hipócrates foi um grande defensor das pessoas que portavam transtornos mentais. Vale ressaltar que suas ideias geraram um avanço para a época. Devido a influência dos pensamentos de Hipócrates na cidade de Atenas as pessoas resguardavam e reconheciam o direito dos deficientes mentais em matéria de direito civil, mas se por acaso este indivíduo cometesse um ilícito de ordem penal ou fosse crime de natureza grave este perdia os seus direitos. ”[4] (INNES, 2003)
As principais características da psicopatia foram estudadas por Teofrasto, aluno de Aristóteles, que elencou alguns sintomas do denominado “homem inescrupuloso”, onde algumas das características especificadas foram incorporadas ao atual conceito de psicopata, tais como a inteligência, eloquência, charme e a boa argumentação.
Observou-se que, na Idade Média, pessoas acometidas por essas psicopatologias eram vistas como possuídas pelo demônio, transformando assim a patologia em misticismo religioso[5]. Por conseguinte, essas pessoas eram caçadas, torturadas e, por vezes, queimadas vivas e jogadas ao mar.
Nesse sentido assevera Pessoti[6] (1994):
“Uma das formas de atuação do demônio é a física. Nesta situação, instala-se no cérebro das pessoas, já que a alma é reservada a Deus. Podem ocorrer ainda de outras duas formas: ou dar-se mediante acompanhamento constante da pessoa, se estar dentro dela, tomando-lhe o corpo, ou mediante a produção de alterações de objetos e no corpo, no animou no humor da pessoa de modo a causar, alucinações, tremores, cegueira e doenças inexplicáveis para a Medicina. ” (PESSOTI,1994, p. 96).
Salienta-se que o termo “psicopata” foi empregado inicialmente para designar uma série de comportamentos considerados e vistos como moralmente repugnantes. Ao final do século XVIII, alguns filósofos e psiquiatras se interessaram pelo tema psicopatia e passaram a estudá-lo, com ênfase na relação de livre arbítrio e transgressões morais, analisando ainda, se esses indivíduos seriam ou não capazes de entender a consequência de seus atos.
A discussão efetiva acerca da psicopatia se iniciou entre o fim do século XVIII e início do século XIX, quando estudiosos e médicos interessados pelo tema começaram a traçar supostos perfis de criminosos, através de suas compleições físicas. Lombroso (1876)[7], notável médico italiano, valeu se da ciência Antropométrica para analisar características específicas de alguns esqueletos humanos, estabelecendo diagnósticos classificatórios de indivíduos predestinados ao crime.
Verifica-se que Lombroso (1876)[8] chegou a dissecar o corpo de um presidiário morto por execução e ao fazê-lo, percebeu que o detento possuía uma cavidade no crânio diferente de uma pessoa normal, assemelhando-se a de um roedor.
Segundo Nunes (2003), muitos outros autores passaram a tentar explorar a formação do conceito de psicopatia como, por exemplo, Pinel, que se referiu a psicopatia como “loucura dos degenerados” e, fazendo estudos sobre a teoria da degeneração de Morel, Magman conceituou a psicopatia como “desequilíbrio mental”. Desta forma o tema foi sendo cada vez mais discutido e difundido, gerando novas teorias e formas de pensar.
Relata-se que, em 1801, o conceituado médico Philippe Pinel foi o primeiro a observar o comportamento de pacientes específicos, acometidos de transtornos autodestrutivos e impulsivos. Foi capaz de diagnosticar que esses indivíduos tinham sua habilidade de raciocínio intacta, tendo, portanto, total consciência de seus atos. Casos semelhantes a esses se qualificaram como Manie Sans Delire, que significa insanidade sem delírio.
Neste sentido, relata Millon[9] (1998):
“Nesta época, como era entendido que “mente” era sinônimo de “razão”, qualquer inabilidade racional ou de intelecto era considerada insanidade, uma doença mental. Foi com Pinel, que surgiu a possibilidade de existir um indivíduo insano (manie), mas sem qualquer confusão mental (sans delire). (MILLON, Theodore et al., Op. cit., p. 92).
Seguindo a mesma linha de pesquisa, Esquirol, discípulo de Pinel, prosseguiu os estudos de seu tutor e denominou a psicopatia como uma “monomania impulsiva”. Posteriormente à manifestação de Pinel e seu discípulo, em 1812, Benjamin Ruesch iniciou estudos capazes de descrever a personalidade daqueles que cometiam atos antissociais desde a infância, designando-os como portadores de “idiotez moral” ou “imbecilidade moral”.
O britânico James Cowles Prichard, em meados de 1835, aceitou a teoria de Pinel acerca da Manie Sans Delire, acrescentando a esta a discussão em relação a moralidade neutra presente no transtorno, em que Pinel acreditava. Assim sendo, Prichard tornou-se um dos expoentes a crer que tais desvios comportamentais significavam um repreensível defeito de caráter, apto à condenação social.
Ainda segundo o autor, caracteriza “loucura moral”, uma perversão mórbida dos sentimentos naturais[10], do temperamento, das inclinações, das disposições morais, da falta de consciência nas relações interpessoais, dos hábitos, representada por atos impulsivos e inconsequentes, sem que seja verificável algum transtorno racional ou cognitivo, dada a ausência de alucinações e ilusões. Para Prichard, loucos morais são os criminosos e as pessoas pouco decentes, carentes de sentimentos e de sentido ético.[11]
A intitulada “escola francesa”, em meados do século XIX, considerou o psicopata como uma pessoa desequilibrada. Auguste Morel, expoente desse pensamento, manifestou-se no sentido da presença da loucura dos degenerados, determinando o conceito de “mania instintiva” em relação a tal degeneração.[12]
Neste período, o alemão Koch verificou os elementos diferenciadores das psicoses e da psicopatia. Para tanto, agrupou entidades que denominou sonhadores, os exaltados, os caprichosos, etc., caracterizando-as como “inferioridades psicopáticas”.
No período do século XX, sobrevieram numerosas descobertas sobre a psicopatologia, que por sua vez, foram capazes de agregar conhecimento afeto às áreas da medicina, da psicologia, da psiquiatria e da antropologia. Assim, foi iniciada a tentativa de explicar geneticamente o que diferenciava um indivíduo portador da psicopatia dos demais. Após séculos de especulações e décadas de estudos, sendo a maioria deles baseados na experiência dos seus autores, o mistério começou a ser revelado.[13]
Assevera a psiquiatra Barbosa Silva (2010):
“Eles vivem entre nós, parecem fisicamente conosco, mas são desprovidos deste sentido tão especial: a consciência. A natureza dos psicopatas é devastadora, assustadora, e, aos poucos, a ciência começa a se aprofundar e a compreender aquilo que contradiz a própria natureza humana. “ (BARBOSA SILVA, Ana Beatriz, 2010, p. 22)
No Brasil, os estudos da psicopatia ganham nova roupagem no século XXI, principalmente com as diferentes denominações, definições e testes aplicados pela psiquiatra forense Hilda Morano, na escala PCL-R, de Psycopathy Check-list Revised (HARE, 1991), em “Penitenciárias Brasileiras para a Detecção de Psicopatas”. A psiquiatra forense tentou convencer o legislativo a realizar reformas no sistema prisional, buscando a separação dos indivíduos acometidos pela psicopatia, tentando recolocá-los em prisões especiais, apoiando-se no elevado índice de reincidência nas prisões.
1.1 Psicopata x Serial Killers
Salienta-se que, geralmente os psicopatas são indivíduos inescrupulosos, frios, mentirosos, sedutores, hedonistas, dissimulados, calculistas, persuasivos, narcisistas, incapazes de estabelecer vínculos afetivos saudáveis ou de se colocar no lugar do outro. Intitulados como “predadores sociais”, desprovidos de qualquer tipo de culpa ou remorso, revelam-se algumas vezes violentos e agressivos, sendo que a mais evidente expressão da psicopatia envolve a flagrante violação criminosa das regras sociais. Sem qualquer surpresa adicional, a maioria dos psicopatas são assassinos violentos e cruéis[14]. Todavia, essas características por si só não os associam diretamente aos denominados Serial Killers[15], que é a terminologia norte-americana para designar o assassino em série.
Nesse diapasão o professor Souza (2002) ressalta que não se pode atribuir a toda pessoa portadora de transtorno de personalidade antissocial a condição de Serial Killer. E prossegue, “a tendência é que as pessoas imaginem que para ser psicopata é necessário ser um homicida cruel e torturador”, portanto é necessária a distinção entre psicopatas e Serial Killers, conforme Andreas (2009):
“Serial Killers são indivíduos que cometem uma série de homicídios de comum intervalo entre eles, durante meses ou anos, até que seja preso ou morto. As vítimas têm o mesmo perfil (prostitutas, mochileiros, crianças, idosos) e mesma faixa etária, sexo, raça, etc. As vítimas são escolhidas ao acaso dentro deste perfil e mortas sem razão aparente; ela é objeto da fantasia do Serial Killer. ” (ANDREAS, 2009).
Assentir a existência de indivíduos de tal natureza violenta é preciso, embora seja perturbador para os que creem no amor e na compaixão como regras essenciais entre as relações humanas. No entanto, são verdadeiros atores da vida real, sendo necessário valer-se de todas as formas de proteção, pois o psicopata usará todo seu ardil e maldade para retaliar.
Ressalta-se que a psicopatia possui três níveis de gravidade: leve, moderada e grave, onde os psicopatas portadores do primeiro nível dedicam-se a trapacear e aplicar pequenos golpes, como por exemplo, furtos, mas por vezes não chegam ao ato de praticar homicídios[16]. Todavia, os psicopatas de nível mais complexo atuam diretamente no delito, seguindo as características citadas de crueldade e frieza, seguidos de prazer por seus atos. Ratifica Barbosa Silva (2010), “qualquer que seja o grau de gravidade, todos, invariavelmente, deixam marcas de destruição por onde passam, sem piedade”.
Demonstra Rezende (2011) a respeito da psicopatia de grau leve:
“A maioria dos psicopatas corresponde ao grau leve, frequentemente estão ao nosso lado, mas não são percebidos, são colegas de faculdade, o chefe no trabalho, o vizinho. Difíceis de serem diagnosticados passam despercebidos na sociedade e dificilmente matam. Possuem inteligência acima da média, mas são frios, mentirosos, charmosos e manipuladores, raramente vão para a cadeia quando cometem algum ato ilícito, mas quando são presos, conseguem diminuir a pena por seu comportamento exemplar. “ (REZENDE, Bruna Falco de. 2011, p. 14.)
Ainda segundo o autor, já o psicopata de grau moderado e grave:
“Apresentam as mesmas características dos psicopatas de grau leve, entretanto […] são aqueles que estão mais facilmente vulneráveis a delitos graves e chocantes, sendo mais facilmente inseridos no meio carcerário. São agressivos, mentirosos, sádicos, impulsivos, são os autores de golpes e assassinatos. De forma com que a sociedade os veja como pessoas normais, escondem tais características. ” (REZENDE, Bruna Falco de. 2011, p. 14.)
Percebe-se, que o assassinato tende a ser praticado por aqueles psicopatas de grau moderado e grave, assim associando-os aos Serial Killers[17]. É incomum a prática de crime de homicídio pelo psicopata de grau leve, pois, seus atos concentram-se em comportamentos antissociais e outros ilícitos, cuja reprimenda penal não será tão severa.
Certifica Barbosa Silva (2010):
“Dizem que a vida imita a arte e vice-versa. Desse ponto de vista, costumo acreditar na segunda opção: a arte imita a vida. Se observarmos bem, existem diversos filmes em que os personagens principais ou secundários dão vida, voz e ação aos diversos tipos de psicopatas, sejam eles golpistas ou estelionatários, grandes empresários ou políticos inescrupulosos, ou ainda os assassinos cruéis e impiedosos que agem de forma repetitiva e sistemática (os ditos Serial killers). “ (BARBOSA SILVA, Ana Beatriz, 2010, p.45-46)
E o autor, conclui que:
“É preciso estar atento para o fato de que, ao contrário do que se possa imaginar, existem muito mais psicopatas que não matam do que aqueles que chegam a desumanidade máxima de cometer um homicídio. Cuidado, os psicopatas que não matam não são, em absoluto, inofensivos! Eles são capazes de provocar grande impacto no cotidiano das pessoas e são igualmente insensíveis. “ (BARBOSA SILVA, Ana Beatriz, 2010, p. 45-46)
Salienta-se que essas especificidades típicas dos psicopatas os diferenciam dos Serial Killers. Porém, faz-se necessário reafirmar que a análise deve ser feita com criteriosa seleção, em decorrência da destreza natural destes em se ocultar e persuadir, dificultando, portanto, a identificação e diagnóstico do seu perfil. Por conseguinte, adverte-se que nem toda pessoa portadora de transtorno de personalidade antissocial deve ser rotulada como Serial Killer.
1.2 Aspectos do transtorno de personalidade antissocial
No esforço para denominar adequadamente os transtornos, em atenção as características de seus portadores, já foram empregadas as expressões: sociopatas, personalidades antissociais, personalidades psicopáticas, personalidades dissociais, entre outras.
Segundo Amaral (2009)[18]:
“[…] nos estudos médicos sobre este transtorno são usados como sinônimo de psicopatia as denominações de sociopatia e transtorno de personalidade antissocial (TPA). Esta última denominação é a mais usada nos textos científicos. O conceito atual de psicopatia refere-se a um transtorno caracterizado por atos antissociais contínuos (sem ser sinônimo de criminalidade) e principalmente por uma inabilidade de seguir normas sociais em muitos aspectos do desenvolvimento da adolescência e da vida adulta. Os portadores deste transtorno não apresentam quaisquer sinais de anormalidade mental (alucinações, delírios, ansiedade excessiva, etc.) o que torna o reconhecimento desta condição muito difícil. ” (AMARAL, 2009)
Todavia, é importante salientar que, embora alguns estudiosos entendam tais nomenclaturas sinônimas, a comunidade psiquiátrica, através de suas pesquisas e estudos, prefere diferenciá-las, a partir de aspectos particulares, dificultando a compreensão do tema. Assim, todas as terminologias citadas servem para suscitar o perfil de um transgressor. Porém, a diferença entre eles é dada pela intensidade da manifestação dos sintomas.[19]
Com os avanços realizados pela comunidade científica, relatam-se novos conceitos atribuídos à psicopatia:
“Na personalidade psicopática […] o indivíduo apresenta uma falha na formação do seu superego, sendo este responsável pelo juízo de reprovação estruturado na personalidade. Uma vez que esta constituição não se tem por completa e correta, a psique do criminoso não censura seus atos, tendo as antissociais consciências das normas sociais, no entanto as ignora realizando satisfação efetiva do id.15. “ (SCHMITT, Rafaela Thaís Bortolaci. 2008, p. 17).
Conforme a Associação de Psiquiatria Americana (DSM-IV-TR)[20], os critérios para diagnóstico do transtorno da personalidade antissocial se consubstanciam na análise do padrão comportamental dos indivíduos, com relação ao desrespeito e violação dos direitos dos outros. Observou-se que esses comportamentos proeminentes ocorrem usualmente desde os 15 anos, conforme afirma Davidoff (2001):
“As pessoas com distúrbio de personalidade antissocial […] são distinguidas por uma longa história de comportamento antissocial, que começa aos 15 anos. Mentira, roubo e vadiagem são típicos na pré-adolescência. Na adolescência, há agressão, excessos sexuais, e abuso de drogas e álcool. Durante a fase adulta, esses antigos padrões continuam e outros aparecem. ” (DAVIDOFF, 2001, p. 581)
Em face das divergências conceituais na doutrina e na comunidade científica, seguem alguns critérios (PCL-R[21]) apresentados pelo psiquiatra Robert Hare à Associação de Psiquiatria Americana[22] para averiguar o Transtorno da Personalidade Antissocial:
1) “Incapacidade de adequar-se às normas sociais com relação a comportamentos lícitos, indicada pela execução repetida de atos que constituem motivo de detenção.
2) Para enganar, indicada por mentir repetidamente, usar nomes falsos ou ludibriar os outros para obter vantagens pessoais ou prazer.
3) Impulsividade ou fracasso em fazer planos para o futuro.
4) Irritabilidade e agressividade, indicadas por repetidas lutas corporais ou agressões físicas.
5) Desrespeito irresponsável pela segurança própria ou alheia.
6) Irresponsabilidade consistente, indicada por um repetido fracasso em manter um comportamento laboral consistente ou de honrar obrigações financeiras.
7) Ausência de remorso, indicada por indiferença ou racionalização por ter ferido, maltratado ou roubado alguém. ”
Todavia, faz-se necessário enfatizar que o aspecto psicossocial é a causa crucial do comportamento antissocial, suficiente para caracterizar a psicopatia/ sociopatia. Tal constatação se deve ao fato de que o ambiente no qual o indivíduo está inserido muitas vezes é capaz de transformá-lo, como bem demonstram a Sociologia e a Antropologia, confirmando a máxima sociológica de Castro (2013) segundo a qual, “o indivíduo é sua história e cultura local”.
1.3 Psicopatas: uma visão mais detalhada
Como proposto no presente item, ao visualizar o perfil do psicopata em versão pormenorizada, é preciso atentar-se ao fato de que não se deve rotular esses indivíduos como loucos ou doentes mentais, pois possuem pleno controle racional, consciência de suas ações e capacidade cognitiva perfeita e íntegra.
Etimologicamente, a expressão “psicopata” significa doença da mente (do grego, psyche = mente; e pathos = doença). Todavia, conforme aclarado, a psicopatia em termos médico-psiquiátricos não condiz com a visão tradicional das doenças mentais.
Segundo Sanchez Garrido, observa-se historicamente que a psicopatia não deve ser considerada uma doença mental, como a esquizofrenia ou transtorno bipolar[23]. Cleckley (2011) declara que o indivíduo considerado psicopata não tem alucinações, psicose ou neurose[24]; o psicopata possui plena capacidade mental, porém com características cerebrais específicas, que o difere de alguém com funções psíquicas normais[25].
Sanchez Garrido afirma que, de acordo com o psicoanalista Robert Lindner em seu livro “Rebel Without Case”, o psicopata é um rebelde, um desobediente fanático, estando a rebeldia dirigida para alcançar a satisfação de seus próprios objetivos, sendo assim incapaz de realizar algo em benefício de outra pessoa[26].
Diversamente do que possam talvez alguns imaginar, os psicopatas podem ser encontrados em qualquer cultura, raça, credo, sociedade, sexualidade e nível financeiro, podendo apresentar-se por vezes como executivos bem-sucedidos, trabalhadores, “pais e mães de família” políticos, religiosos, dentre outros. Observa-se que os psicopatas, surpreendentemente, aparentam superioridade em relação ao intelecto de outras pessoas, tornando-se crível que possuem uma inteligência, talento e perspicácia acima da média.
Segundo Barbosa Silva (2010):
“Com base nos estudos de Cleckley, um dos primeiros pesquisadores a apresentar uma concepção definitiva e abrangente da psicopatia, o psicólogo canadense Robert Hare (professor da University of British Columbia) dedicou grande parte de sua vida profissional reunindo características comuns de pessoas que aparentemente apresentavam transtornos sociais, até conseguir montar, em 1991, um sofisticado questionário denominado escala Hare (também denominada de psychopathy checklist, ou PCL)[27] e que hoje certamente representa o método mais confiável no diagnóstico e identificação de psicopatas. “ (BARBOSA SILVA, Ana Beatriz, 2010)
Utilizando-se desse instrumento, o diagnóstico da psicopatia ganhou uma ferramenta altamente confiável, podendo ser aplicada por qualquer profissional da área da saúde mental, desde que esteja apto.
Conforme preconiza HUSS (2011), as características da psicopatia são, em suma:
a) “Charme superficial e boa inteligência;
b) Ausência de delírios e outros sinais de pensamento irracional (por isso a psicopatia não deve ser considerada doença mental, mas sim um transtorno mental);
c) Ausência de nervosismo;
d) Não confiável;
e) Falsidade e falta de sinceridade;
f) Ausência de remorso ou vergonha;
g) Comportamento antissocial adequadamente motivado;
h) Julgamento deficitário e falha em aprender com a experiência;
i) Egocentrismo patológico e incapacidade de amar;
j) Deficiência geral nas relações afetivas principais;
k) Perda específica de insight;
l) Falta de resposta nas relações interpessoais gerais,
m) Comportamento fantástico e desagradável com, e às vezes sem bebida;
n) Suicídio raramente concretizado
o) Vida sexual e interpessoal trivial e deficitariamente integrada e
p) Fracasso em seguir um plano de vida.” [28]
Por fim, compreende-se que, diferentemente das pessoas comuns, os psicopatas apresentam atividade cerebral reduzida no que concerne às emoções em geral. Todavia, a sua capacidade de cognição é perfeita e íntegra. Os psicopatas são sujeitos racionais, mas a sua capacidade emocional[29] é certamente deficitária.
2 A IMPUTABILIDADE NO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO
Nesse passo, necessário é estabelecer se tem o psicopata “capacidade de imputação”[30] de acordo com sua sanidade mental, considerando suas particularidades, assim como os critérios e teorias abordadas no sistema penal.
Deste modo, antes de adentrarmos ao tema proposto no presente trabalho, faz-se necessário mencionar as três correntes sobre a imputabilidade de uma pessoa com transtorno de personalidade antissocial, que são: a inimputabilidade, a imputabilidade e a semi-imputabilidade.
Entrementes, convém esclarecer que, de acordo com Silva (2011), a noção de responsabilidade penal não se confunde com a de imputabilidade, decorrendo a primeira da segunda. Ferrajoli (1996) conceitua “responsabilidade penal como o conjunto das condições normativamente exigidas para que uma pessoa seja sujeita a pena”. Assim, sendo a culpabilidade, dentre outras, condição à responsabilização penal e sendo a imputabilidade elemento ou pressuposto daquela própria culpabilidade, tem-se que a imputabilidade constitui uma dentre as condições para que haja a responsabilidade penal. A imputabilidade distingue-se da responsabilidade por ser antecedente lógico desta última ou, noutras palavras, pelo fato de somente pode haver responsabilização penal se o agente delituoso for imputável[31].
2.1 Inimputáveis e Semi-imputáveis
De acordo com Silva (2011), a dogmática penal é construída a partir do direito posto e é com base nos textos legais estabelecidos que se fixarão os institutos e as soluções legais a eles conferidas. Assim, para cumprir a tarefa de proceder-se ao exame da inimputabilidade penal e das consequências jurídicas que recairão sobre o agente do fato previsto como crime, deve-se delimitar o conceito de crime adotado, bem como a localização sistemática da imputabilidade para, só então, chegar-se a inimputabilidade e suas consequências jurídicas[32]. Como sustenta Zaffaroni (2002), a localização sistemática e o conceito de imputabilidade são questões conectadas, ao ponto de ser impossível falar de uma sem fazer referência a outra.
Nesse diapasão, Sanches (2016) assevera que a imputabilidade é a capacidade de imputação, ou seja, a possibilidade de se atribuir a alguém a responsabilidade pela prática de uma infração penal.
Atualmente, o sistema jurídico penal brasileiro, no rol de dirimentes da imputabilidade, é taxativo (Numerus Clausus), ou seja, a inimputabilidade penal é caracterizada tão somente em três hipóteses bem definidas, quais sejam: Anomalia psíquica – Artigo 26, caput (doentes mentais e aqueles que possuem desenvolvimento mental incompleto ou retardado); Menoridade – Artigo 27 (menor de 18 anos) e a Embriaguez acidental – Artigo 28, § 1 (embriaguez completa advinha de caso fortuito ou força maior).
O Código Penal Brasileiro cuida da inimputabilidade nos artigos 26 a 28 e optou por adotar o critério biopsicológico (biológico+psicológico), para a aferição da imputabilidade, ou seja, a análise simultânea deve ser feita com base em um dupla aferição. O referido critério é capaz de determinar a capacidade e a responsabilidade penal de cada indivíduo. Todavia, aqui será analisado exclusivamente o artigo 26 do aludido dispositivo legal, temática central do presente trabalho.
Assim dispõe o art. 26 do CP:
“Art. 26 – É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Redução de pena
Parágrafo único – A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Importante compreender ainda que ao inimputável, nos termos do artigo 26 caput, do Código Penal, aplica-se a medida de segurança (CP, art. 97). Todavia, embora o indivíduo tenha sido absolvido por ausência da culpabilidade, sujeitar-se-á, em virtude de sua absolvição imprópria, a sanção penal.
Por fim, o agente poderá ter sua pena diminuída de um a dois terços, conforme determina o artigo 26, parágrafo único, tratando-se de responsabilidade diminuída, ou semi-imputabilidade, em virtude de questões afetas às anomalias psíquicas. De tal feita, o magistrado, na análise do caso concreto, condenará o agente, aplicando-lhe pena diminuída, em respeito ao sistema vicariante. Vale consignar que, desde a reforma penal de 1984, alterada a regra do artigo 98 do Código Penal, não se utiliza o obsoleto sistema duplo binário, no qual ao magistrado era lícito a aplicação de ambas reprimendas penais.
2.2 Perturbação da saúde mental
Segundo Silva (2011), a perturbação da saúde mental é mais abrangente do que a expressão doença mental. Portanto, se a doença mental apenas reduzir a capacidade do agente, será o caso de este responder penalmente, infligindo-se uma pena reduzida, visto que, como informado, estará a doença abrangida pela expressão mais ampla traduzida na perturbação. Em suma, a perturbação da saúde mental abrange a doença mental e outras causas que não constituem doença mental. Além desta, segundo grande parte da doutrina e da comunidade científica-jurídica, enquadrar-se-iam nessa hipótese a neurose grave, a psicopatia, o alcoolismo crônico moderado, a toxicomania moderada, a neurose sem gravidade e a toxicomania leve, sendo as quatro primeiras, na visão de alguns, causas de semi-imputabilidade, o mesmo não ocorrendo com as demais.[33]
Conforme supramencionado, a perturbação da saúde mental é uma das causas de inimputabilidade e semi-imputabilidade penal, conforme o grau que se apresenta. Resta, por conseguinte, compreender que o legislador, ao optar pela expressão “perturbação da saúde mental”, achou por bem, sem excluir a doença mental, abranger outras causas que não constituam doença mental como possíveis causas de semi-imputabilidade.
3 TEORIA DO CRIME
É fundamental que a compreensão do direito penal seja feita junto à análise de leis, princípios e dispositivos, esses em consonância com a Constituição de 1988. Faz-se necessário construir uma análise lógico-sistemática do direito penal e suas nuances frente ao atual modelo constitucional de processo. Todavia, essa análise deve ser feita de forma gradativa, para que a apreensão se torne mais crível. Como instrui Roxin (2006), a Dogmática Penal ocupa-se da interpretação, sistematização, elaboração e desenvolvimento das disposições legais, tendo em conta as manifestações doutrinárias[34].
Sobre a teoria do crime ou do delito, segundo Zaffaroni (2002):
“Parte da ciência do direito penal que se ocupa de explicar o que é o delito em geral, isto é, quais são as características que deve ter qualquer delito. Esta explicação não é um mero discorrer sobre o delito com interesse de pura especulação, contrariamente atende ao cumprimento de um propósito essencialmente prático, consistente em tornar mais fácil a averiguação da presença, ou ausência, do delito em cada caso concreto. ”[35] (grifo do autor) (ZAFFARONI, 2002)
Deste modo, o crime pode ser conceituado sob várias perspectivas. Assim, serão apresentados três conceitos comumente utilizados pela Dogmática Jurídico – Penal. São eles, o conceito legal (Art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal – Decreto Lei 3914/41), o conceito formal (violação da norma penal) [36] e, por fim, o conceito material (violação de um bem penalmente protegido) [37].
3.1 Conceito analítico
Observa-se que nenhum dos conceitos anteriormente mencionados pela doutrina foi capaz de conceituar precisamente o que é crime, pois nenhum consegue defini-lo especificamente, visto que, por exemplo, não consideram a possibilidade de exclusão de ilicitude ou dirimente de culpabilidade (conceito formal), ou ignoram o princípio da legalidade (conceito material).
Diante da falta de concretude e das dificuldades apresentadas pela doutrina na caracterização do crime, surge o conceito analítico adotado pelo Código Penal Brasileiro.
Destaca Greco[38] (2009):
“O chamado conceito analítico (também conhecido como dogmático) trouxe as maiores contribuições para determinar o que seria um delito. Adotando os estudos de Berner acerca de “ação”, de Liszt e Beling sobre “ilicitude” e de Merkel e Binding e a “culpabilidade”, determinou-se que delito seria a ação ou omissão típica, antijurídica e culpável. Tal conceito explicou os três elementos importantes e integrantes do delito, quais sejam, a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade. ” (GRECO, Rogério. 2009, p. 143)
Neste diapasão, o Código Penal, na concretude apresentada pelo conceito analítico de crime, optou por adotar, conforme já demonstrado, a teoria tripartite que demonstra a estratificação do delito como fato típico, ilícito-antijurídico e culpável. Portanto, de acordo com Silva (2011), é o conceito analítico que se mostra apto a fornecer uma contribuição tanto dogmática quanto prática, constituindo, assim, um conceito científico e operacional[39].
3.2 A culpabilidade como requisito estrutural do crime
A culpabilidade, embora seja um conceito amplo, é compreendida em sua concepção amplamente majoritária e aceita no seio jurídico como o juízo de reprovação pessoal que é realizado sobre a conduta típica e ilícita do agente.
Diferentemente da maioria dos autores que contribuíram para a formação doutrinária sob a égide da Parte Geral original do Código Penal de 1940, Hungria (1978)[40] incluía a punibilidade no conceito analítico de delito, mas em nada alterava a concepção de culpabilidade no contexto da visão casual naturalista então vigente. Para o autor, o crime constituía-se em fato típico, injurídico, culpável e punível.[41]
Em contrapartida, segundo Silva (2011), os principais autores que se ocuparam em comentar o Código nos primeiros anos de vigência do estatuto substantivo, viam no crime o comportamento humano voluntário, típico, ilícito e culpável, sendo que o mesmo ocorre com autores mais recentes. Esse entendimento corresponde as lições de Anibal Bruno, José Frederico Marques, E. Magalhães Noronha, Manoel Pedro Pimentel, Heleno Cláudio Fragoso, Luiz Luisi, Paulo José da Costa Jr, João Mestieri, Juarez Tavares, Miguel Reale Júnior, Juarez Cirino dos Santos, Luiz Régis Prado, Cezar Bitencourt, Eugenio Raúl Zaffaroni e Rogério Greco, dentre outros. (SILVA, 2011)[42].
Importante consignar que, nos primeiros anos de vigência do Código Penal, os autores, por verdadeira imposição lógica da concepção causal naturalista do fato punível (Teoria Psicológica da Culpabilidade – Liszt e Beling), consideravam a culpabilidade como requisito estrutural do delito, uma vez que o crime era dividido em parte objetiva, representada pelo tipo penal e a ilicitude/antijuridicidade, e em parte subjetiva atinente à culpabilidade. Conforme assevera Silva (2011), para os autores causalistas, a culpabilidade é a própria essência subjetiva do delito, não sendo possível haver crime sem culpabilidade, a menos que se admitisse crime sem dolo ou culpa.
A Teoria psicológica da Culpabilidade representou por anos uma grande revolução no pensamento do Direito Penal e, por conseguinte, foi capaz de afastar a possibilidade de responsabilização objetiva. Embora a teoria tenha sido louvável em alguns pontos, demonstrou-se frágil em outros, não abarcando diversas hipóteses penais importantes.
Diante da ineficiência da teoria em explicar determinadas hipóteses penais relevantes, surge a “teoria psicológico-normativa”, cujo fundador fora Reinhard Frank, que a concebeu visando a reprovabilidade sem afastar o dolo e a culpa. Assim, para este pensamento, a culpabilidade deixa de ser um mero liame subjetivo entre o agente e o resultado, transformando-se em um juízo de valor a respeito de um fato doloso (psicológico) ou culposo (normativo), portanto, dolo e culpa tornam-se elementos da culpabilidade e não, espécies da mesma[43].
Embora considerada uma evolução teórica no sistema causal, com um significativo avanço no que tange à culpabilidade, ainda se mostrou ineficiente em alguns pontos, assemelhando-se à primeira teoria e por isso também recebendo críticas.
Por fim, surge a chamada “teoria normativa pura” ou finalista, representada por seu maior expoente, Hans Welzel, trazendo mudanças significativas, principalmente quanto ao dolo e a culpa.
A Culpabilidade, segundo Welzel (apud Prado, 2001), é “a reprovabilidade de decisão da vontade”[44]. Exclui-se, deste conceito, a maioria dos elementos subjetivos, anímicos ou psicológicos – integrantes do tipo do injusto – conservando-se, fundamentalmente, o critério valorativo da censurabilidade[45]. Tem como base principal a capacidade da livre autodeterminação de acordo com o sentido do autor, isto é, poder ou a faculdade de atuar de modo distinto de como atuou.[46]
Assim, a culpabilidade, sob a ótica finalista, passa a ser composta pelos seguintes elementos: a imputabilidade, potencial consciência da ilicitude (a possibilidade de conhecimento do injusto) e exigibilidade de conduta diversa.
4 A RESPONSABILIDADE PENAL DOS PSICOPATAS
O sistema hodierno brasileiro passa por uma grave crise quanto aos parâmetros legais utilizados para a aplicação de uma sanção penal aos criminosos doentes mentais e psicopatas. Assim, especular e decidir quais as melhores formas de penalizá-los sempre foi um dos objetivos da ciência jurídica, mais especificamente da Criminologia.
Por seu turno, os psicopatas, conforme verificado em estudo anterior, não são loucos ou doentes mentais, muito embora gerem impressão equivocada, pois não apresentam déficit cognitivo e sua capacidade de autodeterminação sequer é reduzida.
Como esclarece Silva (2008) e Hare (2013):
“Esses indivíduos não são considerados loucos, nem apresentam qualquer tipo de desorientação. Também não sofrem de delírios ou alucinações (como a esquizofrenia) e tampouco apresentam intenso sofrimento mental (como a depressão ou o pânico, por exemplo). Ao contrário disso, seus atos criminosos não provêm de mentes adoecidas, mas sim de um raciocínio frio e calculista combinado com uma total incapacidade de tratar as outras pessoas como seres humanos pensantes e com sentimentos. (…) os psicopatas são racionais, conscientes do que estão fazendo e do motivo por que agem assim. (grifo do autor) Seu comportamento é resultado de uma escolha exercida livremente. ”
Diante do exposto e de todo o estudo previamente apresentado, mostra-se imprescindível responder a um questionamento: qual a responsabilidade penal dos psicopatas? Eles podem ser consideramos plenamente imputáveis, ou não, segundo a legislação vigente?
Trindade, Beheregaray e Cuneo (2009) entendem que, “do ponto de vista científico e psicológico a tendência é considerá-los plenamente capazes, uma vez que mantém intacta a sua percepção, incluindo as funções do pensamento e da sensopercepção que, em regra, permanecem preservadas”. (…). “Por isso, entendemos que além da sua capacidade cognitiva, sua capacidade volitiva, em princípio, também se encontra preservada”.[47] Nessa senda, os psicopatas seriam imputáveis e, assim, sujeitos à pena criminal.
Contudo, quanto ao tratamento a ser dado àquele que sofre de transtorno da personalidade antissocial (psicopata), é grande a controvérsia na doutrina, existindo basicamente três opções fundamentais: aplicação da pena pura e simples (imputável), aplicação de pena reduzida ou imposição de medidas de segurança como tratamento ambulatorial ou internação, caracterizando-se a semi-imputabilidade.
Autores como Bitencourt (2011)[48], Mirabete (2010)[49], Fragoso[50] (2003), Jesus (2005)[51] e Bruno (2005)[52] defendem que a psicopatia se encaixa no estado fronteiriço do parágrafo único do art. 26 do CP, sendo os psicopatas, portanto, considerados semi-imputáveis. Contudo, a classificação dada ao referido transtorno recebe oposição de psiquiatras, como Cohen[53], que criticam o fato das leis serem elaboradas somente por juristas e sem o assessoramento de outras áreas e Morana[54], que afirma: “Nossos legisladores inventaram a semi-imputabilidade para os psicopatas porque ‘eles nasceram assim, não têm culpa e sua capacidade de discernimento está prejudicada’ […]. Mas a sociedade também não tem e ela não quer o psicopata nas ruas”.
A aplicação de uma pena àquele indivíduo acometido de psicopatia[55], sem um estudo de sua condição psicossocial, certamente significa não se importar em lograr êxito quanto à recuperação social do agente, uma vez que os conhecimentos técnicos-científicos se mostram relevantes. Assim, o direito penal deve valer-se, acima de tudo, da compreensão e consideração as particularidades de cada infrator para a aplicação da reprimenda penal mais adequada e eficiente.
Isto posto, como já explicado anteriormente, é preciso reiterar a existência de psicopatas que não se dedicam a prática criminosa, conforme dizia Hervey Cleckley em 1941, todavia identificá-los fora das prisões e dos manicômios judiciários não é uma tarefa fácil. Essa análise, portanto, requer o estudo detalhado psicológico e psiquiátrico de um especialista, acerca do seu comportamento.
5 CONCLUSÃO
Constatou-se no presente trabalho de conclusão de curso baseando-se nas questões expostas, que a legislação brasileira não se encontra apta a lidar com indivíduos acometidos pela psicopatia. Um dos graves problemas enfrentados pelo campo do saber é o repouso dogmático, verificável na medida que não se estudam e questionam as “verdades absolutas”. E, no tocante a psicopatia, é urgente a ampliação dos debates e a consequente punição de psicopatas no Brasil.
Faz-se necessário ratificar que a psicopatia ou transtorno da personalidade antissocial é a alteração da personalidade do indivíduo, caracterizada principalmente pela ausência de emoções, empatia e consciência moral. Contudo, são seres dotados de um sistema cognitivo e volitivo perfeito e íntegro, conscientes de seus atos e possuem motivação para agir conforme esse entendimento.
A partir dessa compreensão e superando as inesgotáveis divergências apresentadas pela doutrina acerca da responsabilidade penal desses agentes, percebe-se que a Teoria do Crime trouxe elementos substanciais capazes de interpretar a complexidade do Direito Penal. Compreender os elementos estruturais do crime, na soma da tipicidade, ilicitude e culpabilidade se mostra imprescindível para que se faça uma análise acurada de suas consequências jurídicas.
Isto posto, através da análise realizada neste trabalho, destaca-se a importância do elemento culpabilidade. A evolução histórica, ao longo dos séculos, demonstrou-se capaz de afastar a responsabilidade penal objetiva, tornando o Direito Penal mais hígido e justo. Atingir a atualidade com a compreensão dos preceitos da culpabilidade como meio indispensável à configuração delituosa é um grande avanço histórico.
O Código Penal brasileiro viu por bem elencar, em seu art. 26 caput, a inimputabilidade. Verifica-se que, a inimputabilidade prevista no citado artigo não deve ser aplicada a psicopatia, uma vez que, não há que se falar em doença mental ou transtorno mental, capaz de qualificar o psicopata como inimputável. Da mesma forma dispõe, em seu parágrafo único, a existência dos semi-imputáveis, aqueles agentes acometidos de perturbação de saúde mental, cuja capacidade resta diminuída. Nestes casos, o legislador conferiu ao magistrado a faculdade de aplicar uma medida de segurança ou uma pena reduzida, conforme determina o sistema “vicariante”.
Por esse viés, convém salientar, conforme explanado no desenvolver deste trabalho, em consonância com o que expõe a maior parte da comunidade psiquiátrica e de acordo com o entendimento de alguns juristas e doutrinadores, segue-se o entendimento pela imputabilidade dos psicopatas.
Em síntese, não há argumentos convincentes capazes de excluir a imputabilidade dos psicopatas. O Código Penal de 1940, contudo, não evidencia sua posição quanto a psicopatia. Resta compreender qual a consequência de ter-se a inimputabilidade e a semi-imputabilidade como possíveis respostas, visto que se faz necessário maior compreensão no campo didático da psicopatia, a fim de que se definam parâmetros mais concretos de punições que sejam capazes de se adequarem ao sistema processual-penal vigente e a realidade da sociedade brasileira.
Informações Sobre o Autor
Rayane Ferreira Guedes
Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG. Pós Graduanda pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Ciências Penais. Advogada Criminal